Resenhas
Aragão, Luiz Tarlei de. Coronéis, candangos e doutores: por uma antropologia dos valores aplicada ao caso brasileiro. Luiz Eduardo de Abreu (Org.). Curitiba: Appris, 2018. O xadrez e o pôquer: a antropologia de Luiz Tarlei de Aragão
Lembro-me de Tarlei, na beira do Lago Paranoá, bebendo vinho francês escutando fado, e contando suas lembranças da França, anedotas que envolviam Marcel Mauss e Louis Dumont. Seus relatos, como seus textos, entrelaçam sua infância em Mato Grosso, seu exílio na França e sua radicação no Sertão. Lembro-me do ruído de Tarlei na sua máquina de escrever antes do sol raiar. Os escritos das caixas de Tarlei, compilados por Luiz Eduardo de Abreu são como umbom vinho, pleno de sabores.
Merecida homenagem a Luiz Tarlei de Aragão, o livro Coronéis, Candangos e Doutores, reúne os escritos do professor, cuidadosamente revisados e editados por seu discípulo Luiz E. Abreu. Este livro reúne os escritos de Tarlei ao longo de sua carreira acadêmica. Alguns dos mesmos já foram publicados em periódicos, outros permaneceram inéditos e foram cuidadosamente trabalhados e comentados por Luiz Abreu.
O livro é prefaciado por Abreu, a partir de um estudo sobre a obra reunida em caixas de escritos deixada pelo professor depois do seu falecimento no ano de 2004. Esseestudo , intitulado “O xadrez e o pôquer”, sistematiza e interrelaciona os trabalhos cuidadosamente comentados com um estilo que remete aos escritos de Marcel Mauss.
Tarlei foi um de nossos professores do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social na Universidade de Brasília na década de 1990. Nesse departamento, cada professor fazia parte de uma linhagem que remetia a seu orientador. Tarlei tinha sido orientando de Louis Dumont. O título que dá nome ao prefácio remete ao episódio em que Tarlei convenceuDumonta aceitar sua orientação com o argumento, um tanto surreal, que encaixa com a tradição francesa: “M. Dumont, eu já sei jogar xadrez, eu quero aprender a jogar pôquer” (Abreu, 2018, p. XVIII). No mesmo estilo, como organizador do livro e hoje professor do mesmo departamento na UnB, Luiz Eduardo de Abreu se mostrou um exímio enxadrista ao organizar os textos e comentar a oposição entre estes jogos, mas deixou passarum detalhe nessa comparação. No xadrez, ambos os competidores começam com o mesmo tipo e número de peças, no pôquer os participantes começam a partida com baralhos estritamente diferentes e sem saber quais são os dos outros oponentes. O pôquer depende da sorte e da habilidade do jogador para poder blefar, quase como no conceito de virtú, de Maquiavel.
Quais eram as cartas que Tarlei tinha na mão ao longo da sua vida acadêmica? Quais os conceitos que ele nos ensinou no seminário sobre o Sertão, (ofertado como Tópicos Especiais no PPGAS/DAN/UNB em 1993 e 1994), do qual participavam também as professoras Mireya Suarez e Janaina Amado,oferecido durante dois semestres? Em suma, quais são os conceitos-chave que apresentam estes écrits agora reunidos em livro?
Sem dúvida, um dos conceitos-chave é a categoria de "hierarquia” de L. Dumont. O conceito de hierarquia nos remete às sociedades holísticas, aquelas nas quais a pessoa é parte de um grupo. Seu estudo clássico focou na civilizaçãoindiana. No caso indiano, a pessoa é membro de uma casta; e as castas são, em relação às outras, castas superiores e inferiores (Dumont,1992). Esta lógica nos remete, em parte, ao trabalho de Evans-Pritchard sobre a organização Nuer, no qual uma identidade engloba as outras (Dumont,1960). Na tradição ocidental, a pessoa se constrói como indivíduo ao longo de um processo histórico que remonta ao Iluminismo (Dumont,1992; 2000).
No seu trabalho de doutorado, resumido num dos artigos que abrem a coletânea, Tarlei aplica de forma magistral o conceito de “hierarquia” para a cidade de St. Quentin em Yvelines, na França, na qual as antigas aldeias camponesas foram cercadas por novos prédios residenciais. Mesmo considerando o poder aquisitivo dos novos moradores nos bairros construídos recentemente, a identidade da cidade passava pelos camponeses que, em matéria de identidade (e acesso aos políticos), aparecem como o termo englobante da equação.
Outro corolário desta abordagem da École de France é trabalhar em nível de tradições culturais. Uma antropologia que não se esgota no trabalho de campo empírico e leva em conta os valores, desenvolvidos pelas civilizações. Dumont trabalhou coma civilização indiana, não um estudo de comunidade ou uma etnografia numa aldeia. Nesse sentido, Tarlei tentou pensar o Brasil e, mais especificamente, o Sertão como parte de uma civilização mediterrânea imposta pela colonização lusitana, e um tempo ibérico, que combina memória, expetativa e intuição.
Ao trabalhar o parentesco, Tarlei não recorreu aos sistemas de primos, como na tradição americana, nem ao parentesco como critério de pertencimento, como na tradição britânica, nem às teorias do intercâmbio restrito e intercâmbio generalizado, com o estruturalismo de Lévi-Strauss. Ele explorou o parentesco a partir da aplicação da teoria do valor. Em alguns dos textos, ele explora a aplicação da honra como valor da tradição lusitana, para focalizar na figura da mãe como personagem centraltanto das famílias urbanas estruturadas, como nas famílias do sertão, matrifocais. Esta figura da mãe, em oposição às prostitutas (desonra), tem seu desdobramento analítico (quase psicanalítico) quando aborda a experiência da maternidade desdobrada dos filhos das elites, com uma mãe branca, distante, e um ama de leite negra, próxima que transmite sentimentos, jeitos e que em oportunidades foi submetida à iniciação sexual dos meninos da família. Qual o efeito na psique desses brasileiros? Qual os efeitos nessa ama de leite que foi separada dos seus filhos e sua família? O quanto isto reflete o caráter nacional brasileiro, suas elites carentes, sua população negra estuprada?
Durante o tempo em que esteve radicado em Brasília, o grande tema de Tarlei foi o sertão, inclusive nos seus escritos sobre Brasília. O sertão é uma categoria central para entender o Brasil e a sociabilidade em Brasília. Sertão tão presente no pensamento social brasileiro, na literatura e nas crônicas, escorregadio no plano etnográfico. O sertão sempre fica lá para a frente.
No pensamento social, o sertão se apresenta como oposição do litoral escravocrata, do senhor de engenho no Nordeste, dos barões do café no Sul, das elites burocráticasde Rio de Janeiro. Um estado dependente das exportações de açúcar e café que intenta se reinventar olhando para o interior, para a fronteira. O litoral da decadência, por contraste com um interior, sertão, puro, austero e livre que prometia fundar um novo Brasil, simbolizado na criação de Brasília.
O sertão, povoado por bandeiras,como quixotes mediterrâneos que marchavam àprocura de ouro e diamantes, deixando pequenos povoados no seu rastro. Uma civilização errante, ancorada em fazendas de pecuária extensivas, povoadas por austeros coronéis e peões. Uma população por séculos esquecida pelo estado. Um parentesco ancorado em famílias matrifocais, com pais trabalhando em fazendas longínquas, onde o parentesco obrigatório se articulava com o compadrio, eletivo. Um sertão como fronteira do Brasil e enquanto fronteira constitutivada nação. Sertão de rebeliões, como Canudo, Contestado e tantos movimentos messiânicos. Um sertão que tem que ser conquistado e civilizado, processo este simbolizado na construção de Brasília.
Brasília monumental construída no cerrado, desmanchando o sertão. A nova capital com uma arquitetura planejada para modelar uma sociabilidade. A tradição mediterrânica e o sertão emergem na modernidade de Brasília e sua sociabilidade organizada a partir das categorias de coronéis, doutores e candangos. Uma Brasília que ainda sofre a disjunção entre propriedade e posse, que remete às sesmarias e política colonial portuguesa. Uma Brasília que como cidade nova e com alta rotação de população se apresentava como uma cidade sem parentes afins, sem sogras nem avós.
Um sertão que desmancha com as políticas de modernização, as mudanças produtivas e a violenta urbanização.No seu empenho etnográfico, Tarlei chegou a adquirir uma fazenda em Buritis, cidade do norte-mineiro, próxima a Brasília, estabelecer relações de compadrio com peões e sitiantes, participar do sistema de festas nas folias. Seus relatos do sertão e de sua fazenda estão carregados de poética afetiva, que mostra que o doutor não pode se transformar em coronel, mas pode se transformar em poeta.