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Kenneth Iain Taylor
Anuário Antropológico, vol. 44, núm. 1, pp. 379-382, 2019
Universidade de Brasília

Obituários



Em setembro de 1962, quando cheguei pela primeira vez à porta da secretaria do departamento de antropologia na Universidade de Wisconsin, encontrei Ken Taylor. Nós não sabíamos, mas aquela nossa troca de olhares iria se transformar numa relação de mais de vinte anos. Duas décadas de convivência incluíram longas viagens pelas estradas americanas, prolongado trabalho de campo na floresta amazônica, convivência acadêmica na Universidade de Brasília, autoexílio na Grã-Bretanha e muita, muita conversa. Estudantes, viajamos pelos Estados Unidos, excursionamos de caiaque pelos lagos fronteiriços com o Canadá, envolvemo-nos em protestos contra a Guerra do Vietnam, enfim, vivemos plenamente os anos 1960. Pelas estradas, para passar o tempo, espantar o sono e reavivar a memória da pátria, a Escócia, Ken me brindava com cantigas, aventuras, folclore de família e de amigos e chistes com riqueza de detalhes em alguns dialetos britânicos. Foi assim que assimilei o inglês profundo e pelo qual nunca deixo de lhe ser grata.

Como eu, Ken era estudante de pós-graduação. Ao contrário de mim, sempre fascinada pela Amazônia, ele acalentou o sonho permanente de voltar à Groenlândia. Tendo cursado arquitetura em Glasgow, sua cidade natal, e depois em Copenhague, escolheu estudar antropologia guiado pelo fascínio e experiência com caiaques que o levaram a um verão encantado entre os Inuit. Pelo resto da vida, embalou a expectativa de lá voltar. Nunca conseguiu. Por razões alheias à sua vontade, foi obrigado a mudar os planos de fazer a pesquisa de doutorado na Groenlândia. Embora imensamente frustrado, precisava de uma alternativa de pesquisa. Entrei eu com um plano B e a proposta de irmos para a Amazônia estudar os então quase desconhecidos Yanomami. Para meu alívio, escapei de passar um ano inteiro no congelamento ártico. Optamos por viver entre os Sanumá, o subgrupo Yanomami mais setentrional, já na fronteira do Brasil com a Venezuela. Para alguns deles, fomos os primeiros setenabi (“brancos”) que viram na vida. Ficamos com eles cerca de 23 meses, indo de uma aldeia para outra, aprendendo a língua e partilhando o seu cotidiano, à velha moda malinowskiana de fazer pesquisa de campo. Um intervalo de alguns meses quebrou essa rotina etnográfica para que Ken se curasse de uma hepatite na Fundação Oswaldo Cruz, no Rio de Janeiro.

Naturalmente, mudança tão drástica teve efeitos colaterais. Embora dedicado à etnografia Sanumá (Taylor 1974, 1976, 1977a, 1977b, 1981, 1996) e ao ensino no recém-criado PPGAS da Universidade de Brasília, em 1972, Ken nunca se sentiu à vontade nos trópicos nem na academia. Desempenhava bem suas funções de professor e pesquisador, mas sua vocação não estava aí. Faltava-lhe ação. Já doutor pela Universidade de Wisconsin, tendo lecionado no primeiro semestre de 1972 no Museu Nacional, e membro do corpo docente da Universidade de Brasília, a partir do segundo semestre daquele, Ken refletia sobre o futuro dos Yanomami. Ainda poupados de invasões e outras vicissitudes do contato interétnico que assolavam a grande maioria dos povos indígenas da Amazônia, seria apenas uma questão de tempo antes que fossem atingidos pelo inevitável. Prevendo isso, Ken elaborou o “Plano Yanoama”, primeiro projeto de proteção aos Yanomami e apresentou à Funai. Como seria de esperar, naquele momento, caiu em ouvidos moucos.

A ditadura militar reinava no país. No entanto, em meados dos anos 1970, houve um ensaio de abertura política que chegou à Funai na figura de seu presidente, o General Ismarth Araújo de Oliveira. Era o tempo do avanço esmagador do Estado sobre os povos indígenas da Amazônia, com a construção de estradas, mineração, projetos agroindustriais. Apesar da censura de imprensa, começavam a espalhar-se notícias aterradoras de massacres, mortes em massa por doenças infecciosas, atos generalizados de violência contra indígenas, muitas vezes, brutalmente arrancados do isolamento.

Foi então, a partir de 1974, que o General Ismarth convocou antropólogos para elaborar e dirigir projetos destinados a assistir povos indígenas severamente atingidos pelo impacto dos megaprojetos militares. Ávidos por participar dessa abertura e pôr seus conhecimentos antropológicos a serviço dos indígenas com quem conviviam, vários antropólogos puseram mãos à obra. João Pacheco de Oliveira dedicou-se aos Tikuna no oeste do estado do Amazonas, David Price aos Nambiquara de Rondônia, Peter Silverwood-Cope aos povos do Alto Rio Negro no Amazonas, Iara Ferraz e Vincent Carelli aos Gaviões do Pará, Gilberto Azanha e Elisa Ladeira aos Krahó de Tocantins. De 1975 a 1976, Ken Taylor, já mobilizado pela experiência de poucos anos antes, elaborou e dirigiu um desses projetos, do qual Bruce Albert e eu participamos: o Projeto Perimetral-Yanoama, em Roraima (Taylor 1979b), iniciativa pioneira na luta pela demarcação oficial da Terra Indígena Yanomami, lograda apenas em 1992. Menos de um ano depois de iniciado, o Projeto Perimetral-Yanoama foi cancelado pela recusa explícita dos militares a ver um estrangeiro atuando na fronteira. Naquele momento, as razões implícitas foram apenas parcialmente desveladas. Foi somente em meados da década de 1980 que novos elementos (por exemplo, o advento do Projeto Calha Norte, menina dos olhos dos militares) permitiram compreender melhor aquela reação contra o Projeto Perimetral-Yanoama (os detalhes esclarecedores estão no livro de Rubens Valente, Os fuzis e as flechas, Companhia das Letras, 2017, cap. 12. Cicatriz). Os outros cinco projetos tiveram o mesmo destino, mesmo aqueles dirigidos por brasileiros.

O auge da insatisfação de Ken veio com a invasão do campus da UnB pelos militares em 1977. Morávamos na Colina, conjunto de apartamentos para professores dentro do campus, e passávamos pelo dissabor de ter que mostrar documentos na barreira militar para poder chegar em casa. Pior ainda, vários de nossos alunos foram presos na ocasião. Indignado com o exacerbado autoritarismo que reinava no Brasil, Ken recusou-se a permanecer aqui. Demitimo-nos da UnB e fomos para a Escócia. Lá, na remota região vizinha do Loch Ness, vivemos cerca de quatro anos, tempo em que nos engajamos na campanha pela demarcação das terras Yanomami. No início dos anos 1980, Ken ligou-se à Survival International e coordenou o seu escritório em Washington, D.C. por mais de uma década. Trabalho empolgante, diretamente ligado à defesa de direitos indígenas, levou-o a lidar com situações extremas de abusos interétnicos. Desempenhou essa função com compromisso política e ética inabaláveis. Mas também essa atividade ficou aquém dos seus anseios existenciais.

Tomou então a decisão radical de começar um outro tipo de vida na comunidade de Twin Oaks, na Virginia, Estados Unidos. Produzir seus próprios meios de subsistência dava-lhe imensa satisfação. Tornou-se uma espécie de patriarca de Twin Oaks. Nos últimos anos, surpreendeu a muitos colegas com o trabalho minucioso, exaustivo e altamente sensível sobre as técnicas de caça com caiaque desenvolvidas pelos Inuit da Groenlândia (https://kayakgreenland1959.wordpress.com/). Stephen Corry, por muitos anos diretor de Survival International em Londres e amigo de longa data, escreveu em nota para o boletim da Survival: “Postou a última entrada três dias antes de morrer. Ken foi um grande amigo com um enorme senso de humor. Era totalmente destemido e vivia uma existência frugal como um eremita, embora gostasse muito de whisky (escocês, naturalmente)”.

A frustração de toda uma vida por nunca mais ter voltado à sonhada paisagem de Illorsuit Ken transformou em primorosa peça antropológica, magnífico legado de um mundo encantado ao mundo acadêmico que, afinal, ele prestigiou. Terminado o trabalho, não restou mais nada.



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