Dossiê
kubẽ-kà kumrenx: Vestidos e gênero entre os Mẽbêngôkre
kubẽ-kà kumrenx: Dresses and gender among the Mẽbêngôkre
kubẽ-kà kumrenx: Vestidos e gênero entre os Mẽbêngôkre
Anuário Antropológico, vol. 45, núm. 3, pp. 127-146, 2020
Universidade de Brasília

Recepção: 09 Março 2020
Aprovação: 16 Junho 2020
Resumo: Este artigo busca abordar questões contemporâneas da sociedade Mẽbêngokre-Kayapó a partir do estudo referente aos vestidos utilizados pelas mulheres deste povo, chamados de kubẽ-kà kumrenx e fabricados na maioria das cidades próximas às aldeias. Este objeto abrirá espaço para reflexões sobre as pontes construídas e tensionadas pelas mulheres mẽbêngôkre entre seus mundos e o dos brancos em uma perspectiva sobre a manipulação de substâncias materiais e imateriais como estratégias, estéticas e políticas de construção de seus corpos. Em um primeiro momento, apresento o campo sobre a Casa de Costura em Kaprãnkrere, T.I. Las Casas, e sua idealizadora Tuíre Kayapó. Na segunda parte, relato histórias contadas sobre a origem destas vestimentas no Território Menkragnoti em busca de conectar as intenções de uso com o fenômeno da difusão desta moda em todos os Territórios Kayapó.
Palavras-chave: Vestidos, Mẽbêngôkre, Mulheres.
Abstract: This article proposes to address contemporary issues of the Mẽbêngokre-Kayapó society, based on the study of the dresses worn by their women, which are called kubẽ-kà kumrenx, and manufactured in most towns near to the villages. This object enables reflections about the bridges built and tensioned by the mẽbêngôkre women, between their worlds and the world of the white, having as a perspective of the manipulation of material and immaterial substances as strategies, aesthetics and policies of the construction of their bodies. At first, I present the field on the Casa de Costura (sewing house) at Kaprãnkrere, T.I. Las Casas, and its creator Tuíre Kayapó. In the second part, I bring narratives about the origins of these clothing at the Menkragnoti Territory in an effort to establish connection between the intentions of their use and the phenomena of diffusion of this trend through all of the Kayapó Territories.
Keywords: Dresses, Mẽbêngôkre, Women.
INTRODUÇÃO
Neste artigo teço algumas considerações iniciais sobre a vestimenta contemporâneo das mulheres mẽbêngôkre[1] com base em dados recolhidos em momentos distintos de campo em dois dos seis territórios Kayapó[2]. Assim, este trabalho está organizado de forma cronológica: do momento em que a temática dos vestidos se apresenta como relevante para um estudo de caso neste grupo às iniciais pesquisas de campo em 2019 no Território Menkragnoti[3], destinando as últimas partes para reflexões junto à extensa bibliografia dedicada aos Mẽbêngôkre.
O interesse pelo tema dos vestidos surgiu a partir do projeto da Casa de Costura das mulheres da aldeia Kaprãnkrere em Las Casas, idealizado e requisitado pela cacique Tuíre Kayapó em 2017, durante o projeto de implementação do Plano de Apoio à Autonomia dos Kayapó do Leste[4]. O Território de Las Casas se destaca do maciço de floresta correspondente aos demais Territórios Kayapó da região[5], localizado no sudeste do estado do Pará, dentro dos municípios de Pau D ́Arco, Floresta do Araguaia e Redenção (González, 2016). Apresenta uma vegetação majoritariamente de cerrado em uma área cercada por áreas desmatadas, com fazendas de gado e soja. Homologado em 2009, este território é também conhecido por ter Tuíre como uma de suas principais lideranças. Uma das primeiras personalidades femininas marcante na história da política indígena do Brasil, é a responsável por me fazer levar a sério os vestidos usados por estas mulheres, como irei apresentar neste breve artigo.

Com corte reto, dois bolsos laterais, gola e cavas bem justas ao corpo, este vestido pode ser visto em uma pluralidade de estampas e vieses coloridos disponíveis em lojas especializadas nesta produção e localizadas em cidades próximas a seus territórios, como Redenção, Novo Progresso, Tucumã, Altamira e Peixoto. Uma produção restrita a atender o público feminino mẽbêngôkre, majoritariamente realizada por costureiras não indígenas destas cidades, atendendo a demandas de mulheres mẽbêngôkre, seus maridos e visitantes que as presenteiam com tais vestimentas; uma moda consolidada entre as mulheres deste povo com uma dinâmica e aspectos normalizadores, ao meu ver, intrigantes.
A proposta de olhar com mais calma para estes pedaços de tecidos, que recobrem seus corpos pintados, vem também da própria tradução realizada por algumas jovens mẽbêngôkre no território de Las Casas, em que percebi que seu significado poderia ir além do simples vestido. Chamado de kubẽ-kà, segundo as jovens imbuídas em um tom jocoso equivaleria à “pele de branco”. Sendo kubẽ[6] o termo utilizado para se referirem aos “brancos”, não índios, inimigos ou apenas o outro. Enquanto kà poderia ser glosada como “pele”. No entanto, detém o sentido geral de “envoltório”, utilizado deste modo em: “casca de árvore”, “pele/couro de animal” e em palavras compostas como “sapato” (pat kà ou pari kà) e “avião” (màt-kà, “envoltório de arara”), segundo Isabelle Giannini (1991, p. 152).
Traduzir palavras nem sempre é uma tarefa simples, ou possível. Assim, o esforço inicial desta pesquisa estará em não estabelecer traduções, nas quais a aproximação sem a mistificação está situada em um limite tênue entre se atentar às ações cotidianas e enxergá-las nestas particularidades de cada cultura, assim como Wagner (2010) nos sugere. Portanto, buscarei desnaturalizar o que vemos por meio de nossos próprios conceitos e assumir que esta pesquisa não é sobre a produção e o uso de vestidos, assim como a tradução direta nos faria crer, mas sim sobre o surgimento, a produção, utilização e circulação de kubẽ-ká – suas próprias peles/envoltórios de não indígenas. Pois creio que há mais questões a serem elaboradas, ao passo que ao questionar as próprias mulheres mẽbêngôkre se estas roupas eram de branco, a resposta incisiva comumente dada era: “Kêti!“, um não enfático, “esse é o vestido kayapó!”.
Os vestidos abrem desta maneira um caminho investigativo que pode contribuir de forma distinta para a substancial produção acadêmica sobre o povo mẽbêngôkre, realizada por Terence Turner, Gustaaf Verswijver, Vanessa Lea, Clarice Cohn, Lux Vidal, e tantos outros. Assim, iniciarei com o contexto do projeto da Casa de Costura e a intenção de sistematizar conceitos teóricos em meio às torções sugeridas por Tuíre, para que tanto seu facão quanto os vestidos sejam devidamente situados nesta trama que me leva a pensar os vestidos enquanto pontes relacionais.
O FACÃO E OS VESTIDOS
Ao longo dos últimos vinte anos, os mẽbêngôkre vêm acompanhando a concretização das políticas públicas, sobretudo na área de infraestrutura, arquitetadas em governos do regime militar, porém executadas nos governos desenvolvimentistas do presidente Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), Lula (2003-2011) e Dilma (2011-2016). No entorno do Território mẽbêngôkre estão obras como o asfaltamento da BR-163, o empreendimento Onça Puma de exploração de Níquel (Jerozolimski; Niemeyer, 2016) e a mais grave intervenção contemporânea aos povos do Xíngu: a Usina Hidrelétrica de Belo Monte[7], quarta maior hidrelétrica do mundo, com proporções de grande impacto social, ambiental e econômico. Somam-se a isso as atividades ilegais de garimpo e extração de madeira, além da violência nos centros urbanos adjacentes que vem crescendo nos últimos dois anos, desde o início do governo Bolsonaro (eleito em 2018). Este cenário ilustra, de maneira realista, o modo pelo qual o “desenvolvimento” se desloca, violentamente, sobre os territórios indígenas nas brechas abertas pelo desmonte da estrutura estatal de apoio aos povos tradicionais e seus locais históricos de ocupação.
Neste contexto, as Medidas de Compensação Ambiental[8] foram criadas para “mitigar” os impactos gerados por estas infraestruturas nestas regiões. No entanto, na prática, acabam por viabilizar as grandes obras neste contexto em que as intervenções passam a ser negociáveis através da monetização dos impactos sociais e ambientais. Nos territórios Mẽbêngôkre, as verbas de mitigação são distribuídas por meio da formulação e aplicação de “projetos” através das associações locais. Atualmente as três organizações principais são: Associação Floresta Protegida (AFP), Instituto Raoni (IR) e Instituto Kabu (IK).
Foi neste contexto de formulação de projetos e levantamento de demandas, do qual participei como designer integrante da equipe de arquitetos, que pela primeira vez ouvi falar da Casa de Costura das mulheres da aldeia de Kaprãnkrere. O projeto surgiu do desejo de Tuíre em transformar a reverberação da construção da Usina de Belo Monte em possibilidade de ação em seu território, na mão contrária ao conformismo com a dor ou com o sofrimento que os episódios em prol do rio Xingú arrastaram.
O nome de Tuíre é relacionado à construção da Usina de Belo Monte desde fevereiro de 1989, quando tal vínculo se estabeleceu pela primeira vez na esfera pública das imagens em um dos maiores movimentos de resistência indígena. Foi por meio da foto mundialmente famosa de Tuíre encostando seu facão no rosto do então diretor de planejamento da Eletronorte, José Antônio Muniz Lopes, que o ato contra o complexo hidrelétrico que visava o potencial energético da bacia hidrográfica do Xingú foi disseminado. Na cena, uma mulher se impõe com um facão paralisando o bloco de homens e figuras do poder que assistem. A repercussão da imagem fez com que o Banco Mundial retirasse o financiamento para tal empreendimento e, sob pressão, a Eletronorte engavetou o projeto. Uma reunião histórica que, para Turner (1991a, p. 337-338), foi comparada ao ritual baridjumoko (milho verde) por operar uma transformação desejada para o povo mẽbêngôkre. E paralelamente a isso, Tuíre ficou conhecida mundialmente como “Tuíra”, com “a”, “a guerreira Kayapó”.

No entanto, segundo Mantovanelli (2016), no governo Fernando Henrique Cardoso tal empreendimento retorna com cara nova: menos áreas afetadas por alagamento e um novo nome. No lugar de Kararaô, “Belo Monte”, seguindo as mesmas lógicas de nomeação por mais uma vez fazer referência a uma situação de guerra, assim como o primeiro nome “Kararaô”[9].
Em meio a licenciamentos ambientais controversos, no dia 5 de maio de 2016 a Usina de Belo Monte foi inaugurada, mesmo após seguidos embates, ocupações, reuniões e tentativas de embargo liderados por ONGs internacionais e movimentos indígenas da volta grande do Xingú[10]. Sua construção, como previamente anunciada por diversos especialistas, gerou impactos sociais e ambientais imediatos e irreversíveis. E assim, as verbas de mitigação foram distribuídas entre os atingidos diretamente ou indiretamente na região da Volta Grande do Xingú[11]. Dentre estes, estão cerca de 40 aldeias Kayapó, respondendo aos impactos gerados no imaginário e no sistema de representação simbólica deste povo. Curiosamente, o Território Las Casas, que está localizado na Bacia do rio Araguaia, fora contemplado da mesma forma. O motivo se dá por ser Tuíre uma das lideranças locais, sublinhando sua relevância política nesta disputa pelos direitos de seu povo (Jerozolimski; Niemeyer, 2016).
Equipes formadas por biólogos, arquitetos, engenheiros e designers foram contratadas em 2016 para atender às demandas das comunidades e executar os projetos locais para o direcionamento da distribuição das verbas de mitigação. Nesse cenário, muitas aldeias decidiram construir casas de kubẽ (como falado pelos próprios mẽbêngôkre), solicitar barcos, gasolina e materiais de pesca, destinando as verbas a estes fins. No entanto, a aldeia liderada por Tuíre se distinguiu do padrão dos pedidos a serem financiados pela Eletronorte, solicitando à equipe uniformes para o time de futebol feminino, cestas básicas para serem trocadas por sementes com aldeias vizinhas, galinheiros, galinhas, miçangas, além de máquinas de costura e a Casa de Costura das Mulheres Kayapó.
Com esta construção, sua intenção seria atender à demanda das mulheres de sua aldeia em aprender a costurar seus próprios vestidos e a produzi-los de forma autônoma, já que estes são vendidos exclusivamente nas cidades próximas. Este desejo reverbera uma atitude, se assim posso dizer, bem mẽbêngôkre, ao passo que o mundo dos brancos se apresenta de forma dúbia: encantadora e destrutiva. Entre os antropólogos que estudam este povo, tal assunto pertence a instigantes debates sobre a “preservação” da cultura mẽbêngôkre e o conceito de “kukradjà”, palavra utilizada para remeter à “cultura”. Cohn (2005, 2008) nos oferece uma leitura deste conceito, adentrando camadas particulares, que servirá para a reflexão aqui proposta: “para os Mẽbêngôkre, kukradjà é algo aberto que deve se manter em aberto, há de ser continuamente renovado, para manter sua potência e melhor produzir novos mẽbêngôkre, pessoas e coletivos” (Conh, 2008, p. 3).
Nesse sentido, Tuíre ilustra não somente a proponente de um projeto de costura, mas também a mulher que possibilita deslocamentos de visões pré-concebidas, protagonista de estratégias de transformações que vão do adiamento de Belo Monte à reinvenção de um projeto nacional de submissão dos povos indígenas, expresso nas entrelinhas de medidas compensatórias. No entanto, talvez seja precipitado afirmar que, por se tratar de uma liderança feminina, os aspectos coletivos aparecem de forma mais contundente nas decisões tomadas, contrapondo-se às demandas dos demais caciques homens. Por outro lado, não descarto tal pensamento tão rapidamente, assumindo que este dado poderá auxiliar na formulação de uma nova perspectiva quanto ao papel das lideranças femininas nas aldeias. Suas ações apontam caminhos de vínculos imagéticos propositivos, realizando torções das nossas congeladas maneiras de prever as relações entre mẽbêngôkre e brancos, seja em reuniões políticas ou na produção de corpos e pessoas preparadas para o diálogo com os outros.

KUBẼ - KÀ: AS PELES/ENVOLTÓRIOS DE BRANCO
O vestido nesta sociedade, assim como em muitas outras, marca o gênero feminino e explicita, para além de seu uso, a construção de um código por meio de processos e materiais urbanos que performatiza um jeito de ser feminino. São, assim, elementos ativos que simultaneamente conectam pessoas entre si e com a sociedade envolvente em um diálogo estético, de maneira particular aos povos ameríndios, na atualização de uma cultura de decoração do corpo (Lagrou, 2015). Segundo Lea,
desde o início de seu contato com os seringueiros, até a sua “pacificação”, os Mẽbêngôkre conceberam os kubẽ kryt [brancos] como muito parecidos com qualquer outro tipo de kubẽ, incluindo os homens-morcegos e inúmeros outros kubẽ mitológicos, outros povos indígenas como os Yudjá e os Panará (Krãjakàrà). Os Mẽbêngôkre apropriaram cerimônias, cantos, nomes e adornos de todos esses kubẽ (Lea, 2012, p. 376).
A alteridade, já tanto trabalhada sobre este povo, parece novamente alinhavar esta “moda” de uma forma situada nessa cultura. Como aponta Vanessa Lea (2012), elementos estrangeiros específicos são incorporados por esta sociedade de forma sistemática, passando a pertencer a uma categoria de objetos próprios: Nekretx, conceito trabalhado extensamente por Lea (2012) e Vidal (1977), vistos como riquezas permeadas por histórias e mitologias pertencentes a determinadas Casas (Lea, 1995, 2012). Seus kubẽ-kàsugerem conexões não somente com a relação simbólica expressa em sua condição de “envoltório/pele de branco” mas também com as possibilidades de sua leitura enquanto nekretx. De maneira similar, os vestidos também puxam questionamentos sobre seu caráter “híbrido”, que assombra os olhos daqueles que buscam a leitura dos povos “puros”, tecendo fios complexos de serem desembaraçados. Os kubẽ-kà abrem um caminho para reflexões não apenas sobre a incorporação de bens materiais kubẽ mas sobretudo no que se refere a gênero, em sua construção cotidiana e ritualística. E por isso iniciei a pesquisa em busca de etnografar algumas histórias que pudessem me dar pistas das origens destas roupas.

Na cidade de Tucumã (PA), em janeiro de 2017, estive em uma pequena loja para adquirir vestidos a pedido das mulheres de uma aldeia, que especificaram que queriam cores “mejx” (bonitas), relacionado às cores vibrantes e vivas, e não cores “kaprire” (tristes), cores frias ou pouco contrastantes, como tinham as presenteado das últimas vezes. Mejx (belo, bom, perfeito) designa valores – estéticos, morais e éticos – essenciais tanto no plano individual quanto no coletivo (Gordon, 2006, p. 8), sendo um dos princípios essenciais desta sociedade e um objetivo a ser alcançado por todos.
A loja era um típico comércio familiar estruturado em um cômodo que fora revertido para a rua. Ao fundo: televisão, sofá e crianças assistindo desenho animado, nas estantes centenas de vestidos divididos por tamanhos nas mais diversas estampas. Na ocasião eu acompanhava uma das antropólogas que trabalha há mais de cinco anos nas aldeias de Las Casas, Sol González, que afirmou que tínhamos que levar os modelos com estampas diferentes, pois as mulheres não gostam de se vestir de maneira igual.
Com apenas este tipo de vestido, tal comércio tem como consumidores as mulheres mẽbêngôkre, seus maridos (que visitam com mais frequência a cidade, ou que moram na cidade), visitantes e antropólogos que querem levar algum presente para as aldeias. Segundo a proprietária da loja, de vez em quando alguma estrangeira (ou pesquisadora) adquire um para recordar a experiência com os “índios”, no entanto afirma vender “vestidos de índias” e não para brancas se vestirem.
Em 2019 tive a oportunidade de ir a seis aldeias Mekrãgnoti, a convite do Instituto Kabu[12]. Desta vez obstinada em compreender um pouco mais o universo das vestimentas e a dinâmica que poderia estar por trás desta firme relação comercial entre as aldeias e as cidades vizinhas. Como sabia que o tempo de passagem em cada aldeia seria curto, resolvi focar na história da origem desses vestidos e na afirmação proferida recorrentemente por elas de que estes “são vestidos kayapó”, mesmo sendo costurados por brancos.
No entanto, não foi tão simples assim chegar aos Kubẽ-kà kumrenx nos Mekrãgnoti, não pela ausência, mas sim pelo interesse por estas peças de roupa não ser tão recorrente vindo de pesquisadores. Quando me sentava ao lado de um grupo de mulheres para começar uma conversa, mantinha a estratégia de iniciar perguntando das miçangas, que prontamente despertavam frases feitas, dando nomes aos grafismos e mostrando, orgulhosas, algumas pulseiras e brincos em produção. Em seguida perguntava um pouco sobre os grafismos corporais e da mesma forma apontavam os grafismos, falavam nomes, classificações e etc., muito acostumadas aos antropólogos. No entanto, quando perguntava “e os Kubẽ-kà?”, suas expressões delatavam confusão imediata: “por que você quer saber dos nossos vestidos?”; “são os nossos vestidos, vestidos mẽbêngôkre!”. E tudo virava uma grande piada, pois para elas eu não teria interesse nessas roupas que nenhuma kubẽ costuma usar. Meu interesse era saber como tinham surgido tal modelo singular, onde surgiram, e não exatamente comprá-los. Além do mais não pareciam estar à venda. Buscava compreender afinal quem os tinha projetado, produzido pela primeira vez, e como haviam se disseminado tão rapidamente. Tentei encontrar mulheres que costuravam nas aldeias e localizar as aldeias com máquinas de costuras. O fato de não costurarem suas próprias roupas e as adquirirem na cidade me gerava muitas dúvidas por se diferenciarem de outros povos nesse aspecto, tornando estas roupas e a relação para com elas ainda mais singular.
De maneira distinta do território de Las Casa e do Território Kayapó, nos Mekrãgnoti existem outros padrões e modelos de vestidos que circulam pelas mulheres. No entanto, quando as questionava sobre qual era o vestido mais bonito, a resposta sempre era o “kubẽ kà kumrenx”, a pele/involtório de branco correta/verdadeira. Segundo elas, o outro modelo, que é mais popular na região e entre alguns povos vizinhos, é mais fraco e arrebenta na primeira esfregada no rio, sendo utilizado para ir à roça e realizar trabalhos mais pesados que, diga-se de passagem, não são poucos. Assim, um é “punure”, ruim ou feio, e o outro é “mejxkumrenx”, belo e correto (Gordon, 2006; Cohn, 2008; Lea, 2012).

Recolhi cerca de seis versões distintas pelas aldeias que passei no período de dois meses. Cinco provenientes de indígenas e uma versão da dona da loja de vestidos de Novo Progresso. Em narrativas distintas, e às vezes tortuosas, acabavam por afirmar que foram os mẽbêngôkre os criadores dos vestidos. Por conta do padrão e limite do texto, não colocarei todas na íntegra; mas alguns trechos selecionados possibilitarão um primeiro desenvolvimento deste tema.
Em todas as aldeias encontrei pelo menos uma máquina de costura a pedal, encostada no canto de alguma casa ou até guardada com cadeado, porém sempre parada com a justificativa de que não costuravam porque faltava material e porque os trabalhos cotidianos lhes tomavam muito tempo e muito esforço. No entanto, na aldeia Pyngraitire, uma casa de costura[13] foi construída recentemente pelo Instituto Kabu em circunstâncias similares às de Kaprãnkrere e se encontra em período de teste, recebendo periodicamente a própria dona da loja de vestidos kayapó de Novo Progresso para dar aulas de costura. A partir destas aulas, realizaram uma leva de vestidos rosas feitos especialmente para serem usados em uma reunião no Congresso Nacional. As fotos que circularam no Whatsapp das aldeias e Instagram da Associação Kabu geraram muitos comentários orgulhosos entre as mulheres. Todas comentavam comigo sobre os “vestidos rosas”.

Em Pyngraitire, um homem me contou sua versão da história. Disse que logo no início do contato com os kubẽ, a Funai teria chegado em suas aldeias com muitas roupas para os vestirem. No entanto, as mulheres não gostaram de nenhuma roupa. Foi neste momento que uma missionária teria criado tal modelo. Porém, os bolsinhos e as fitinhas (como chamam o acabamento de viés) foram postos depois a pedido das próprias mulheres mẽbêngôkre, para que o tabaco e o papel de caderno utilizado para enrolar o cigarro ficassem à mão, e desde então ele é feito dessa forma.
Em Kubenkókre, uma das maiores e mais tradicionais aldeias Mekrãgnoti, um agente de saúde (AIS) me levou para conversar com uma senhora em sua casa. Ficamos em sua cozinha conversando, enquanto sua filha fazia um cinto de miçangas escrito “coca cola” para a festa. Me contou então que foi o cacique de Gorotire que, há muito tempo, foi à Redenção (PA) e comprou tecidos para levar a uma costureira. E pediu para que ela fizesse o vestido do jeito que ele havia imaginado. Contou que ele pediu para fazer assim mesmo como é hoje, com bolsinho e as fitinhas. A costureira fez quatro e, quando levou para a aldeia de Gorotire, todas as mulheres gostaram e queriam vestidos iguais. Segundo ela, esses vestidos chegaram em Kubenkókre para uma festa em que as parentes de Gorotire vieram usando esses vestidos, e logo todas as mulheres quiseram também.
Quando perguntei se o vestido era “coisa de branco”, ela entoou bem alto um “Kati!”, “de jeito nenhum, o vestido é mẽbêngôkre, ‘mẽkukradjà’, nossa cultura”. Pela história, achei estranho ser um homem o criador, mas ela reafirmou falando que era assim que ela sabia. Seguindo a conversa, também me falou que tinha aprendido a costurar em um curso na cidade de Colíder (MT), mas sua máquina estava quebrada e às vezes ia costurar ou fazer reparos na máquina de outra Casa. Também me contou que quando costuram dão os vestidos como presentes. No entanto, para brancos, elas vendem. Disse também que os melhores vestidos vinham da loja de Redenção. Segundo ela, a loja de Novo Progresso não fazia vestidos bons, eram fracos, rasgavam fácil, “punure”.

Entretanto, o AIS tinha outra versão desta história e contou que tinha escutado que uma enfermeira de Redenção, ao receber duas mulheres mẽbêngôkre nuas no hospital da cidade, sentiu pena e costurou para elas dois vestidos para que se cobrissem. Quando voltaram à aldeia de Gorotire, a vestimenta foi um verdadeiro sucesso e o cacique teve que ir à cidade pedir que a enfermeira costurasse mais vestidos iguais para todas as mulheres da aldeia. Tal costureira teria sido tão solicitada após esta primeira entrega que teria aberto uma loja em Redenção com foco nos vestidos Kayapó, para atender à demanda que aumentava consideravelmente, de acordo com a difusão do vestido pelas aldeias.
Em Novo Progresso fui atrás da loja local de vestidos Kayapó para conversar com sua proprietária, a mesma que dá os cursos em Pyngraitire. Seu nome foi recorrente na pesquisa em todas as aldeias, e a passagem pela loja era obrigatória. Sem dúvidas, era bem diferente da lojinha de Tucumã. Trata-se de uma loja ampla com um letreiro escrito “Indianna” voltado para uma das avenidas principais da cidade. Lá estavam os vestidos de modelo kumrenx, os outros com saias rodadas e elástico na região do peito, além dos shortinhos e topes de festas que também compunham as opções junto com as bermudas masculinas.
A proprietária me avistou do fundo da loja e perguntou se eu estava aguardando alguma “índia” para comprar roupas. Eu disse que não, e que tinha ido lá para conversar com ela mesma. Sentada em uma máquina de costura junto a mais uma costureira, ambas trabalhavam para a entrega de duzentos shorts verdes neon que seriam usados em uma festa em Metuktire no Mato Grosso. Assim que me escutou, parou a máquina para conversarmos um pouco.
Perguntei sobre sua história e, também, pela origem daqueles vestidos. Ela começou falando que tinha se especializado em “moda de índio…. Kayapó, no caso” e explicou: “tem moda de branco, né? Então, também tem moda de índio”. E então contou sua versão da origem dos vestidos. Afirmou que tinha inventado aquele vestido há mais de dezoito anos atrás. Disse que a filha e a mulher de Raoni (Ropni Metuktire) a procuraram na sua antiga casa em Colíder para que ela fizesse um vestido. No entanto, por não entender o que elas queriam, deu a elas um papel para que riscassem o vestido. Ao ver o desenho, disse que não faria daquele jeito: “aquele modelo era fechado e as mulheres teriam que levantar a saia para amamentar as crianças ou tirar o peito pela gola! Impossível”. E então tentou fazer diferente, com decote, alça fina e menos duro ao corpo, mas não adiantou, elas nunca estavam satisfeitas. Até que decidiu dar tecido e linha a elas, que voltaram dias depois com o vestido todo feito à mão. Foi então que “não teve jeito”, teve que seguir o que as clientes tinham feito: um vestido fechado, reto e com bolsinhos. E no fim conclui, “é elas que fizeram o vestido, mas eu que comecei a costurar”. Deste dia em diante só apareciam mais mulheres mẽbêngôkre em sua porta pedindo novos vestidos, levando tecidos diferentes e pedindo novos para a filha, mulher, mãe e neta.
A demanda era tanta que ela abriu sua primeira loja em Colíder (MT), depois em Peixoto (MT) e depois em Novo Progresso (PA), atendendo uma variedade grande de aldeias da região. Me impressionou ver a dimensão do negócio e sobretudo o consumo expressivo dos mẽbêngôkre. Quando perguntei sobre a loja de Redenção, me afirmou, indignada, que a dona “da loja de lá” teria visitado sua loja e copiado tudo, confirmando a teoria que ela teria visto o surgimento do modelo. Aproveitei a oportunidade e perguntei também sobre as aulas que estava dando em Pyngraitire. Ela contou que eram ótimas, e que não tem medo de perder o mercado porque “as índias gostam de comprar, mesmo reclamando que são caros ou fracos”. Em sua perspectiva, devido aos cortes realizados pelo governo Bolsonaro, 2019 é o primeiro ano em que suas vendas caem.
Estas versões da história de criação adicionam mais camadas à disputa pela “patente” do kubẽ-kà, assim como para a circulação desta vestimenta. Neste sentido, recentemente me foi chamada a atenção para homens utilizando kubẽ-kà em festas tradicionais, como riquezas e artefatos ritualísticos. No entanto, não consegui verificar tal fato em campo, mesmo tendo tocado no assunto em algumas aldeias. Porém através do Whatsapp (ativo nos horários de gerador ligado nas aldeias maiores), Bemôro, de Kubenkókre, me contou que o kubẽ-kà vermelho pertence a sua Casa, e que apenas os homens o utilizam em certas festas. Por estarem em período de preparação para uma destas grandes festas me enviou áudios e um breve vídeo com cenas de jovens os utilizando em ensaios. Este recente desdobramento, mediado pelo indigenista Luis Carlos Sampaio (Instituto Kabu), abre caminhos para outras questões apenas tangenciadas neste artigo, e a serem desenvolvidas futuramente.

CORPO E ROUPA
Segundo Banjakrê, uma amiga da aldeia Kawatum, o kubẽ-kà kumrenx não é usado para ir à roça, e sim para ir em festas de aldeias vizinhas e de kubẽ, como fizeram com o vestido rosa em Brasília. Nestas ocasiões especiais, no entanto, o uso também é diferenciado pois ao contrário de quando usam nas aldeias, buscando se diferenciar das outras, nas ocasiões elencadas como “festas” buscam uma unidade. Assim, o mesmo vestido é usado por todas de forma similar ao modo como se preparam com miçangas e pinturas que ornam de forma padronizada e apropriada seus corpos. Amaú, mulher do cacique da aldeia Pyngraitire, também falou algo bem similar; disse que esses vestidos não são para trabalhar, para ela são para ficar em casa ou para ir em festas de Kubẽ. Brinquei com ela traduzindo kubẽ-kà como “pele de branco” e perguntei como era então “pele de mẽbêngôkre” e ela gargalhando agarrou meu braço e passou seu dedo tingido de jenipapo ao longo dele para que eu entendesse como suas peles são.
Vestimentas e roupas são tidas como um dos grandes temas multidisciplinares e se firmaram a partir de 1930 no campo da Antropologia com a publicação de três ensaios em Encyclopedia of the social sciences: .Dress”, de Ruth Benedict , “Ornament”, de Ruth Bunzel, e “Fashion”, de Edward Sapir (Eicher, 2000). Em 1960, as vestimentas e adornos se tornaram dados imprescindíveis de coleta etnográfica segundo o manual Notes and Queries on Antrophology. Os trabalhos desenvolvidos especificamente sobre roupas e vestidos tomam relevância concomitantemente à atuação de mulheres no campo da etnologia, trazendo novas perspectivas que vão de encontro às tradicionais interpretações oriundas de corpos masculinos. No entanto, segundo Joanne Eicher (2000), é apenas no fim desta década que aparecem os primeiros trabalhos que buscam significados e simbolismos nas peças que cobrem estes outros corpos, superando o rigor técnico descritivo. Neste sentido, da mesma forma que os tecidos entram como temas da Melanésia, Nigéria e Mongólia, em localidades em que a produção têxtil não era possível pelos limites técnicos, outros modos de manipular o corpo e criar superfícies que o recobrem e o ressignificam, como a escarificação, a pintura corporal e o uso de miçangas, foram esmiuçados com o objetivo de olhar para estas práticas enquanto possibilidades da construção nativa de dimensões próprias.
Nos estudos ameríndios, as pesquisas sobre pintura corporal foram introduzidas na antropologia brasileira a partir das pesquisas de Claude Lévi-Strauss e Darcy Ribeiro (1979) entre os Kadiwéu do Mato Grosso (Velthem, 2013, p. 139). Contudo, é através de Turner (1980) e principalmente de Lux Vidal, no livro Grafismo Indígena (1992), que os grafismos do povo Mẽbêngôkre tomaram um espaço importante dentro da Antropologia. No entanto, os processos de fabricação e manipulação dos corpos se tornaram fundamentais nos estudos dos povos ameríndios a partir do artigo de Seeger, DaMatta e Viveiros de Castro (1979), sublinhando nestas sociedades a centralidade do corpo, compreendido pelos autores como matriz de símbolos e objeto de pensamento.
No contexto Mẽbêngôkre, não exatamente direcionado às vestimentas mas sim ao papel das mulheres e à produção de pessoas nesta sociedade, Vanessa Lea realiza uma entrada inovadora na etnologia deste grupo conferindo às mulheres o lugar de sujeito ativo e central, ao revelar um sistema de identificação de indivíduos que pertencem à mesma Casa e possuem nomes e riquezas, nekretx, referentes a seus lugares específicos no círculo aldeão (Lea, 1995, 2012). Ao contribuir para o trabalho de Carsten e Hugh-Jones (1995), a autora evidencia as matricasas como espaços centrais, torcendo a leitura masculina hegemônica das aldeias Jê e a dualidade entre cultura/natureza, centro/periferia e masculino/feminino, ao passo que compreende as casas como espaços fundamentais para a construção dos corpos adornados e preparados para a exibição no pátio central, onde tradicionalmente se localiza a casa dos guerreiros[14].
Ao ressaltar a importância política e ritualística das Casas, Vanessa Lea, busca compreender a importância dos objetos nekretx nesta sociedade. Segundo a autora, os nekretx se referem a bens como adornos, máscaras, porções de carne, armas, itens kubẽ, cantos e papéis cerimoniais, elencados como riquezas próprias de cada Casa, justificados por sua origem mítica.
As visões contraditórias de Terence Turner e Vanessa Lea sobre a temática da “transformação social”, diretamente relacionada à incorporação dos bens materiais derivados de outras culturas, são analisadas por Joana Miller (2001), que contrapõe a visão eurocêntrica de Turner (1993), com ênfase no “encontro”, à de Lea (2012), que considera que os Kayapó fizeram com os kubẽ o mesmo que faziam com seus inimigos e com os seres do mundo animal e vegetal. Ou seja, desde as origens míticas até a atualidade, capturaram seus objetos, adornos, canções e armas transformando-os em nekretx, defendendo que há uma convergência do tempo histórico com o tempo mítico, em um processo que anula qualquer ruptura significativa de tempo passado (Lea, 2012, p. 332).
Nesta temática recorrente sobre a alteridade[15], Marco Antônio Gonçalves, ao escrever sobre o conceito de cromatismo de Lévi-Strauss, contribui para esta reflexão ao comentar que “a alteridade não se constrói por pares de oposição em que o eu estaria em oposição a um outro, mas, de fato, o eu se constrói e depende do não-eu, e não do outro como figura ontológica de alteridades para se constituir a diferença” (2010, p. 133).
A ação de colecionar coisas e “amontoar” (Lea, 2012, p. 307) em suas Casas, como definem os nekretx, constrói vínculos materiais que os diferenciam entre os membros desta sociedade e simultaneamente os conectam com outros. Trançam desta maneira suas Casas a seus corpos e pertences, evidenciando as relações por meio dos objetos e adornos. Visto que as vestimentas podem ser encaixadas nesta perspectiva, lançarei mão da produção acadêmica realizada sobre o uso de miçangas como ponte para a compreensão do uso dos kubẽ-kà dentro e fora de rituais.
Segundo Demarchi (2012), a incorporação das miçangas em seus adornos atualiza estes objetos como novas releituras em um ciclo constante de transformação e substituição de matérias-primas e símbolos. Bandeiras de time, logomarcas e emojis de Whatsapp surgem deste vasto repertório não-indígena percorrido pelas mulheres em suas televisões, celulares e visitas às cidades, atualizando os grafismos tradicionais e os antigos nekretx realizados com matérias-primas locais (como fibras e sementes) (Ver: Lea, 2012; Demarchi, 2012; Lagrou, 2016).
Desta maneira, nossas visões puristas, tão sólidas quando tratamos de sociedades ditas como “não-modernas”, evocam o conceito de hibridismo. No entanto, Els Lagrou (2013) aponta como o sentido notório de híbrido desqualifica algo por não ser vernáculo, sublinhando a importante sensibilidade para a maneira particular de incorporação da alteridade estabelecida pelos ameríndios. Segundo a autora, estariam domesticando esteticamente a matéria-prima de maneira particular, manipulando e sobrepondo-a em seus corpos, produzindo pessoas a partir de pedaços de artefatos “vivos” (Lagrou, 2016, p. 19) que carregam a agência de outros seres na sua própria constituição.
Contra uma abordagem purista que vê na miçanga um sinal de poluição estética, resultante da substituição de matéria-prima extraída do ambiente natural por materiais industrializados, partimos da própria concepção estética ameríndia alheia a este purismo, para ver como objetos, matéria-prima e pessoas são por eles domesticados e incorporados através do processo de tradução e ressignificação estética. Objetos rituais e enfeites que contêm miçanga não devem, portanto, ser analisados como hibridismo, mas como manifestações legítimas de modos específicos de se produzir e utilizar substâncias, matérias-primas e objetos segundo lógicas de classificação e transformação específicas (Lagrou, 2013, p. 56).
Por outro lado, Marilyn Strathern (2014) aborda o conceito de híbrido reconceitualizando-o, apoiada em Clifford e em Latour, instigando antropólogos à inventividade de tais objetos “porque sua configuração de significados (sua rede) se manifesta como a criação (a rede) de muitos actantes” (2014, p. 291). Nesse sentido, a autora reflete como os artefatos ditos como híbridos podem ser compreendidos como realizações de conexões materiais e imateriais dos mundos fronteiriços, indígena e não-indígena, sublinhando a importância de entender tais objetos em suas extensões e rastros em uma busca pela potência desses encontros. Uma abordagem que poderia ser complementar ao argumento de Lagrou, se olharmos pela intenção de tornar tais objetos singulares por sua potência criativa.
Trago Strathern neste artigo por notar a proximidade teórica possível no mundo mẽbêngôkre, já compreendida por Vanessa Lea em seu posfácio (2012, p. 409-413), onde sublinha a conexão existente entre nekretx e a noção da circulação de riquezas no altiplano da Nova Guiné. Lea acentua a similaridade entre seu olhar e a compreensão de Strathern sobre os adornos como extensões dos corpos e pessoas. Em uma perspectiva que enxerga as mulheres como agentes transformadores de inimigos em aliados, uma potente chave para este artigo.
PRODUÇÃO, VESTIDOS E GÊNERO
As mulheres são tidas nesta sociedade como as principais manipuladoras dos corpos, as verdadeiras artesãs e projetistas de pessoas e do cotidiano estético ritualístico dos mẽbêngôkre. O modo “bom e correto” de se apresentar, foi chamado por Lux Vidal (1992, p. 144) como uma ética e uma estética expressas na ornamentação corporal, em que os grafismos profundamente estudados pela autora assumem um papel central. Segundo Clarice Cohn, os corpos são fabricados desde a gestação à comensalidade, sendo manipulados ao longo da vida de acordo com as prerrogativas rituais, nomes e adornos (Cohn, 2006, p. 175). Desta maneira, a alimentação, as pinturas e os enfeites próprios de cada pessoa se encaixam como parte fundamental para a compreensão da fabricação destes corpos que partilham Casas e constituem seu patrimônio de diferenciação.
Tais aspectos destacados servem de fonte para pensarmos de forma situada a apropriação e a fabricação dos kubẽ-kà pelas próprias mulheres mẽbêngôkre, pois assim como as miçangas, e os demais materiais da cidade incorporados no cotidiano, os tecidos são materiais urbanos. São assim relacionados com o modo branco de fabricar coisas. Segundo Taussig (1993), mimetizar o outro está inserido em um processo de conhecimento em que a apropriação do fazer, a incorporação da materialidade e a estéticas deste outro mundo se conjugam em um processo ativo de conhecimento e reconhecimento destes outros. Em busca do estado mejx (belo), os mẽbêngôkre produzem seus artefatos e adornos transformando os objetos em coisas propriamente mẽbêngôkre, melhor que os próprios brancos. Segundo Demarchi, Alfred Gell (1999) e Carlo Severi (2007) contribuem nesta abordagem, pois estão em busca pelo entendimento da agência dos objetos “como se fossem pessoas”, imbricadas em redes de efeitos e eficácias simbólicas, pragmáticas e cognitivas (Demarchi, 2014, p. 23).
Ao contrário das pulseiras de miçangas, que se tornaram adornos desejados em lojas de artefatos indígenas, os kubẽ-kà pertencem a um código e a um sistema interno mẽbêngôkre. Além do mais, me parece que para as mulheres a novidade do vestido vai além de seus tecidos, perpassa pela circulação, enaltecendo a peça em si e no que proporciona enquanto código de um outro, na agência simultânea destas vestimentas em seus corpos e no olhar destes outros. Vestir peles, ou invólucros de brancos, estaria falando sobre incorporar ou performatizar um modo de ser branco? Vestir uma camada superficial da estrutura física de um outro estaria ocultando um corpo, construindo outro? Ou destacando e evidenciando a diferença?
Pode parecer estranho mas demorei a enxergar seus kubẽ-kà kumerenx como algo alienígena à cultura Kayapó. Desde a primeira vez que fui a uma aldeia mẽbêngôkre, estes vestidos me chamam a atenção não pela estranheza, mas pela confusão que fazem em nosso olhar. Pois por mais que sejam nitidamente de fabricação industrial são tão mẽbêngôkre quanto seus grafismos, impossibilitando o descolamento das camadas sobrepostas em seus corpos. As cores e as estampas chamativas, gráficas ou de padrões de animais, recobrem parte de seus corpos, deixando braços e pernas aparentes com suas pinturas Kayapó. Um corpo duplo e simultâneo, como inspira Aparecida Vilaça (2000) ao tratar da transformação em “outro”, simetrizando xamãs e vestimentas de brancos no mundo Wari, abordando brevemente os vestidos Kayapó:
(...) devemos ressaltar que o corpo não é meramente lugar de expressão da identidade social, mas o substrato onde ela é fabricada, de modo que os adereços e roupas constituem menos uma “pele social” que socializaria externamente um substrato natural interno, como propõe Turner (1971, p. 104) para os Kayapó, do que o motor de um processo corporal. (...) (Vilaça, 2000, p. 60).
Tal reflexão proposta por Vilaça esboça o que talvez esteja realmente em jogo tanto na utilização dos vestidos em seus cotidianos quanto na Casa de Costura de Tuíre, assim como em seu gesto político de 1989: a fabricação de corpos à maneira mẽbêngôkre. A sobreposição e o amontoamento de substâncias reivindicam uma reapropriação de forças colonizadoras conduzindo antigos símbolos a serem interpretados e utilizados de acordo com seus preceitos. São maneiras desconcertantes em que o encantamento pela alteridade nos surpreende sem parâmetros possíveis de escoramento ao purismo e à busca pelo “tradicional”. As intrigantes e complexas torções destas fronteiras entre mundos realizada pelas mulheres mẽbêngôkre evocam uma questão que nos ajuda a pensar nessa sociedade em relação e contra o Estado (Clastres, 1974), operando a seus modos as verbas de mitigação e políticas ofensivas aos direitos indígenas. E neste ponto, uma questão reverbera: como lidar com as intensas ameaças se o rosto do inimigo nem sempre pode ser abordado por seus facões?
Se há um mito que torna seus kubẽ-kà em nekretx ainda não posso afirmar com clareza. No entanto, as falas repetitivas das mulheres demonstram que a transformação de tal peça em um adorno mẽbêngôkre já foi realizada. Este invólucro, que as cobre durante o cotidiano da roça ou que enfeita seus corpos para a apresentação em rituais kubẽ, de forma estética e política as conectam com outros corpos, mundos e devires em um movimento ativo e intencional de construção de corpos protagonistas de seus futuros.
Referências
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Notas