Resumo: Este artigo pretende explorar algumas hipóteses que dizem respeito à dinâmica de crescimento e fragmentação de certos clãs tukano (alto Rio Negro, Brasil), sobretudo aqueles que são tomados nativamente como “médios”. Tomando como base o entrelaçamento entre dois aspectos de sua organização social, o sistema de casamento (preferencialmente FZD) e a hierarquia, serão discutidos, através de elementos já levantados pela literatura e de sugestões nativas, movimentos de “torção” de regras e de contrapesos a estas. Como resultado, a aposta aqui vai na direção de uma dialética entre expansão e contração do regime de alianças regional.
Palavras-chave:TukanoTukano,Aliança PatrilateralAliança Patrilateral,Regime ComplexoRegime Complexo,HierarquiaHierarquia,SimetriaSimetria.
Abstract: This article intends to explore some hypotheses that concern the dynamics of growth and fragmentation of certain Tukano clans (Upper Rio Negro, Brazil), especially those that are taken natively as "medium class". Based on the interweaving between two aspects of its social organization, the marriage system (FZD preference) and the hierarchy. We will discuss through elements already raised in the literature and native suggestions, movements of "twist" of rules and counterweights to it. As a result, the bet here goes in the direction of a dialectic between expansion and contraction of the regional alliance regime.
Keywords: Tukano, Patrilateral Alliance, Complex Marriage, Hierarchy, Symmetry.
Artigos
Contração, expansão e a dialética do parentesco Tukano
Contraction, Expansion and the Dialectics of the Tukano Kinship
Este artigo tem como objetivo explorar as implicações que a hierarquia (entre sibs, clãs, etnias) Tukano traz para o regime de alianças na região do alto Rio Negro (Amazonas, Brasil)[1]. Explorando múltiplos aspectos da organização social, levantados pela literatura, se procurará aqui dar um maior peso à relação entre hierarquia e parentesco do que o de costume: geralmente essas duas dimensões são tratadas separadamente, e o parentesco é tratado, sobretudo, através de uma característica que pressupõe simetria das relações. De outro lado, a hierarquia foi, algumas vezes, especialmente na literatura mais recente, vista como uma das protagonistas de uma “cosmologia do crescimento” (Andrello, 2016), mas também teve como consequência fragmentações e disputa de clãs. Estas dinâmicas têm despertado interesse recente na etnografia regional, e veremos que tais pontos também estão imbricados ao problema das alianças de casamento. Nesse sentido, pretende-se aqui colaborar com hipóteses produzidas a partir de um reexame de uma literatura mais clássica, para esse conjunto etnográfico mais sólido que vem aparecendo na última década.
Os poucos censos indígenas e indicações demográficas que dispomos (Azevedo, 2005 [baseada no censo indígena de 1992]; Ricardo, 2012) indicam que os tukano são uma etnia em expansão entre as 23 que compõem o “sistema rionegrino”, não somente populacional, mas também sugerindo implicações ainda não totalmente exploradas que se remetem à adoção do Tukano como língua franca na região[2]. Mas não só: a expansão tukano envolve grandes deslocamentos (Rodrigues, 2012), fabricação de narrativas (Andrello, 2010), participação na política partidária e no movimento indígena (Iubel, 2015), além de um fluxo migratório para a cidade de São Gabriel e constantes deslocamentos rio acima e rio abaixo (Andrello, 2012b).
No interior de conexões entre esses movimentos, chama a atenção uma ideia que perpassa o sistema, que em termos gerais se coaduna com aquilo que Andrello tem descrito como uma espécie de ideologia do “crescimento” da pessoa rionegrina, entendendo esta nos planos de uma metaexistência: uma pessoa, um grupo doméstico, um clã, um ancestral, e, quem sabe, uma etnia ou povo. Isto, evidentemente, enuncia um processo em que definir as unidades sociais rionegrinas é bastante complicado (nesse sentido ver Cayon, 2013 e o ensaio de G. Andrello [2017, esp.:234-235] sobre este); ao longo da história etnográfica da região, já vimos algumas aparecerem com mais ou menos ênfase: fratrias (Goldman, 1963; Århem, 1981), clãs (C. Hugh-Jones, 1979), grupos linguísticos exogâmicos (Sorensen, 1967), grupos domésticos (S. Hugh-Jones, 1988), Casas (S. Hugh-Jones, 1993, 1995), nexos regionais (Cabalzar, 2009), etnias (Ricardo 2012), fractais (Andrello, 2016). Às vezes uns contêm outros, mas a própria noção de "grupo" é incerta na medida em que rituais, onomástica, trocas, xamanismo e política podem fazer “pulos de escala” – para “cima ou para baixo” – na mobilização de qualquer noção que se aproxime de “grupo” (Cayón, 2013). Aparentemente, todos e nenhum fazem sentido, pois dependem do contexto de enunciação e da eliciação uns dos outros (Andrello, 2016).
Mas o crescimento passa por todos estes níveis. Uma magnificação da pessoa ancestral é uma chave que está nas narrativas míticas para explicar sucessos e fracassos em migrações, e dessas para explicar, por exemplo, uma complexa chave sociológica nativa que é o jogo hierárquico que também se coloca de ponta a ponta em cada um desses níveis acima. Aliás, a hierarquia é um destes outros pontos não muito claros por lá: todos sabem que ela existe, muito se fala dela, mas seu conteúdo parece ser ponto de ampla controvérsia. Em princípio, ela está ancorada pela ordem de nascimento, tanto cósmica quanto natural: sua moldura é um age-class-system de um grupo de germanos (irmãos “maiores” e “menores”), que se alastra por vários níveis. No entanto, tanto em termos do mito quanto em termos de uma política efetiva entre aquelas pessoas (assim como uma política mitológica, cf. Andrello, 2010; S. Hugh-Jones, 2012), o crescimento pode representar uma chave de subversão desta ordem: crescer significa torcer o modelo, representando uma matemática que permite, inclusive, inversões terminológicas em que o “mais novo” passe a uma posição superior, “irmão maior” (ou “tio”, ou “avô”, ver logo abaixo)[3].
Ao longo do texto, ficará claro que uma definição do que é a “hierarquia” rionegrina é muito difícil de se alcançar, mas pensar como ela age não é impossível. Porém, desde já é interessante ter em mente que ela não diz respeito nem a “poder” (como numa cadeia de comando, por exemplo), nem a uma noção como a de “precedência baseada em critérios de pureza” (cf. Dumont, 1996), ainda que guarde semelhanças com o sul da Índia (ver abaixo). De todo modo, a intenção aqui é mostrar como as alianças matrimoniais justamente nos permitem ajustar o foco para entender a hierarquia – talvez não chegando exatamente a uma definição, mas mais a uma aproximação fundada tanto numa noção nativa como a de mahsa põ’rã – “fila de gente”. Isto remete à noção de precedência como uma ordem de saída ancestral no tempo, já que o derivativo põ’rá também designa filhos, descendentes (isto é, de algumas formas as pessoas estão conectadas a uma ordem ancestral), mas também aparece na mitologia como um designativo que indica “mesmas pessoas”. Podem ser “pessoas de um mesmo tempo” ou, também, um “tempo de mesmas pessoas”, ou ainda ambos. Cabe notar, assim, que quando falamos de “irmãos maiores e menores” isso aparece conectado aos seus descendentes (que aparecem numa intrincada classificação como “tios”, “avós” ou “sobrinhos” e “netos”), que no fim designam a tal hierarquia. Quando designo alguém por “avô”, estou me referindo a uma pessoa de posição inferior (assim mesmo, essa posição é invertida, ver nota 3).
Além disso, a etnografia clássica, sobretudo explorada na monografia de C. Hugh-Jones (1979), associa a hierarquia a uma divisão de papéis que também obedece a “ordem de maioridade” – dos “irmãos menores” aos “maiores” a ordem seria, respectivamente, “servos”, “xamãs”, “guerreiros”, “dançarinos/cantadores”, “chefes”. Segundo ela, há um protótipo que elenca a hierarquia, dos “últimos” aos “primeiros” nascidos, segundo a divisão ideal em que, além da hierarquia linear de papéis, haveria uma configuração concêntrica em que servos e chefes estariam conectados em um domínio “englobante” (que ela chama de “domínio exterior” pp. 70; 103 e ss.), enquanto as três outras posições (do “interior” do círculo concêntrico) formariam um campo mais “plástico”, inclusive com o desaparecimento do “papel de guerreiro” e sua eventual substituição pelos outros[4], que cumpririam funções críticas em rituais e na “casa rionegrina”, como bem demonstrará posteriormente S. Hugh-Jones (1995). Nesta divisão de papéis, os chefes, teoricamente, tenderiam às alianças mais próximas, enquanto os elementos mais centrais da fórmula concêntrica, justamente aqueles responsáveis por conexões com domínios exteriores (inimizade/afinidade/metafísica), tenderiam a realizar alianças mais longínquas (C. Hugh-Jones, 1979:103).
De certa maneira, esta “fotografia” da separação de papéis poderia facilmente nos lembrar de algo como um “sistema de castas” (com divisão de funções e complementaridade entre a classe superior e a externa que se assemelha aos brâmanes e intocáveis), se não fosse justamente o modo pelo qual a afinidade, que não respeita endogamia de “classe” como na Índia, acaba constituindo um razoável “atravessamento” a qualquer rigidez hierárquica[5]. Assim, mesmo se tomarmos a ideia de que esses papéis representam algo como “grupos de status”, e que suas atribuições, em princípio, induzem a uma situação inicial de “divisão do trabalho”, é notável que esta só seja realmente vista de maneira mais clara nos “grupos da ponta” – que teoricamente ocupam posições mais claras –, e que os que ocupam as posições “centrais” (ou, como me disse um tukano, a “classe média”) permaneçam em situações bem pouco claras quanto às suas próprias posições, inclusive para eles mesmos (como veremos mais ao final). Deste modo, sem pureza, sem endogamia, sem precedência dada por uma espécie de “totalidade” (cf. Dumont, 1996), é notável que a hierarquia rionegrina aparentemente não tenha “função” alguma. No entanto, se eu estiver certo na hipótese que aqui pretendo levantar, um de seus principais agenciamentos é provocar “efeitos colaterais” no regime de alianças, e assim contribuir para toda uma política do parentesco regional. Nesse sentido, como se verá, a hierarquia afeta a aliança, mas, também, a aliança afeta a hierarquia. Trata-se, como sugiro no título, de uma dialética, em que ambos os elementos engendram processos uns nos outros.
Pois bem, como pretendo mostrar, se de um lado tais designações da hierarquia nos ligam a uma chave temporal relacionada à descendência e à germanidade, de outro – esta é nossa hipótese – ela (a hierarquia) adquire seu maior sentido quando conectada ao regime de alianças matrimoniais, cuja terminologia implicaria, em princípio, na ideia de regimes simétricos, com estatutos diametrais para consanguíneos e afins de “tipo dravidiano”. No entanto, como veremos, o caso aqui não replica a célebre fórmula dumontiana de uma “ilha de igualdade em um mar de hierarquia”, já que o casamento reflete problemas que a hierarquia impõe; tampouco significa que estamos totalmente isentos de alianças baseadas em regimes egocentrados como as vistas em boa parte da Amazônia (Viveiros de Castro, 1993). Tudo isso, aliás, é um ponto cego no plano mais geral da conexão entre este “problema da hierarquia” no Rio Negro em meio a uma paisagem francamente igualitarista que se vê em toda uma etnologia de inspiração clastreana (por exemplo, a partir de Viveiros de Castro, 1986). Ponto este que, desde já, alerto que nem chegarei perto de qualquer resolução, que espera ainda um voo que dê conta das relações entre esta região específica e os vários desdobramentos da “teoria da afinidade amazônica”.
Considerando estes pontos, encampamos aqui o fato de que na terminologia são observadas simetrias que operam em sintonia com uma terminologia dravidiana, e onde há “precisamente a ausência da hierarquia entre as unidades exógamas que impede o estabelecimento de um sistema de troca assimétrico, habitualmente acompanhado de diferenças estatutárias entre doadores e recebedores de esposas. O esquema ternário descontínuo patrilateral aparece como a solução mais natural para um sistema de unidades múltiplas e equiestatutárias ligadas pela troca restrita” (Viveiros de Castro & Fausto, 1993:155 [tradução minha])[6]. No entanto, a pergunta que gostaria de jogar sobre este mapa é se efetivamente a hierarquia entre sibs não causa nenhuma inflexão sobre o sistema mais amplo de trocas. No limite, então, é disso que este artigo trata.
A dúvida partiu de um interlocutor que considero privilegiado para discutir essas questões, um professor de tukano[7], bastante ciente das “armadilhas” e dificuldades de tradução entre o tukano e o português (inclusive para o termo “hierarquia”, com uso bastante corrente em português). Ele foi o principal informante de H. Ramirez para a elaboração da gramática tukano, nos anos 1990, que, por sinal, dedica um espaço em seu final ao glossário de parentesco. Conversamos sobre terminologias, regras, e, também, como hoje “ninguém mais respeitava nada”, todas as regras eram “quebradas”, e, inclusive, como ele mesmo foi um certo caso “desviante”, ainda que “não muito”, pois, localmente, ele se desviou de um ciclo, mas para realizar um casamento que em outros locais era além de “possível”, “provável”. Falava-se sobre “quebrar pê’yasé” –, a “linhagem de casamento”. Este sempre foi um ponto que retornava às nossas pautas: o desvio das “regras” de parentesco, e como isso se ligava a diversos contextos, como, por exemplo, os deslocamentos, a finitude de certos grupos, ao fechamento de “clãs maiores”, a um comportamento desviante de “clãs menores”. Ele próprio é de um clã, digamos assim por falta de termo melhor, “classe média” (Ye’Para Paresi). Pois bem: esse fator “não muito desviante” consiste, talvez, na hipótese central que irei levantar aqui: no alto Rio Negro (ARN) vemos, sobretudo em populações de maior número - como é o caso dos tukanos -, um compósito que simultaneamente aciona relações em múltiplas direções, formando sistemas híbridos. Assim, a hipótese aqui defendida diz respeito às interferências que aliança e hierarquia realizam entre si na produção desses sistemas.
Mas, antes de começar esta discussão propriamente dita, é preciso um esclarecimento sobre esta noção de “quebrar regras” que estou mencionando. Um sentido, que foi dado pelo próprio Sr. Fontes, é o de não seguir o casamento preferencial com a FZD, ou, ainda, aquelas pessoas que representam uma possibilidade de relação no interior de um círculo previsto como “afins próximos” (seguindo a grade dravidiana). Outro sentido, mais forte, talvez, e para o qual não terei condições de desenvolver a contento uma análise aqui, é o de “quebrar a regra” ao se casar no interior do próprio grupo (étnico), isto é, algo análogo ao incesto. Como se verá em dados colocados abaixo, isto ocorre e não é nada desprezível em termos estatísticos. No entanto, mesmo para se entender esta situação, seria preciso dar conta de uma dinâmica que trata da abertura e do fechamento dos anéis de alianças, da contração e da expansão tukana, que evidencia uma ocorrência híbrida de alianças elementares e complexas, que, por sua vez, parecem, inclusive, atuar numa anterioridade lógica em relação a este sentido “forte” do incesto.
O argumento aqui desenvolvido procurará realizar isto em três partes: em primeiro, tentarei mostrar como o dualismo dravidiano, atravessado por uma preferência[8] patrilateral (casamento com FZD), quando somada à hierarquia (ou a um agnatismo hierárquico), gera uma tendência a ampliar as alianças em direção a um regime complexo. Num segundo movimento, pretendo mostrar como a hierarquia, quando age sobre o parentesco, estabelece uma tensão entre dois polos: entre classes “médias” que buscam expandir-se, e classes dos polos extremos (as altas e as baixas) que tendem a se fechar e contrair, e como isso se coloca retomando o problema inicial da aliança. Em terceiro, aciono um dispositivo da sociologia rionegrina, a figura dos “filhos de mãe” (primos paralelos matrilaterais, nem afins nem consanguíneos, e os dois ao mesmo tempo), para mostrar um freio à pulverização provocada pela tendência anterior, fazendo com que ela se redobre novamente em alianças restritas e retome uma bilateralidade elementar. Finalmente, pretendo sugerir que essas questões são pontos de partida para possíveis hipóteses e relações entre o parentesco e certas contingências rionegrinas.
Vejamos então, de maneira abreviada e sistemática, um primeiro sobrevoo em questões pontuais da sociologia tukana, retomando-as a partir da literatura.
Comecemos por um ponto mais ou menos consensual: a região é marcada por uma economia política de grupos recíprocos que opera com base em distinções que podem variar segundo o ponto de vista, embora a etnografia tenha dado certo peso às distinções linguísticas (talvez sem completa razão, segundo Chacon & Cayón, 2013). Tais distinções são a base para a exogamia, aplicando-se a noção de que nessa área [para os falantes de Tukano Oriental] em geral casa-se com quem é de fora do grupo. De uma maneira bastante abrangente, a literatura mostra que que o alto Rio Negro compreende, assim, 23 etnias falantes de três matrizes linguísticas, o Arwak, o Maku e o Tukano Oriental. Dentro delas, há uma série de distinções que pautam desde dialetos até variações mínimas (Jackson, 1983:171-177; ver também nota 2, supra).
Mas a variabilidade linguística é acompanhada por uma compatibilidade terminológica (e sociológica), mutuamente compreendida entre grupos Tukano. Por exemplo, o tenya barasana é compreendido como o tenyu bará e o pe’yagɨ tukano: [certos tipos de] cunhados. Apesar de vários linguistas apontarem para uma variação lexical maior do que se pensava entre os grupos, aparentemente o parentesco opera numa grade terminológica bastante consistente entre os diferentes grupos (talvez por ser o campo de maior interdependência? Não encontrei referências específicas a isto). A partir de algumas etnografias que abordaram este ponto com mais detalhe (C. Hugh-Jones, 1979; Århem, 1981; Jackson, 1983; Chernela, 1993; Cabalzar, 2009), podemos ver, de maneira geral, a “caixa” dravidiana com seus elementos típicos: neutralização dos afins em G+/- 2, distinção entre paralelos e cruzados em G0 e G+/-1, distinção terminológica relativa ao sexo de Ego, unificação terminológica entre termos cruzados e posições de afinidade. Tais parâmetros indicam, em termos categoriais, o “valor da afinidade” pela distinção entre consanguíneos e afins, com cálculo relativo a partir do ponto de vista de Ego. Mas não só isso, pois há distinções significativas no polo da consanguinidade que alteram a posição de Ego.
Vejamos, assim, primeiramente a terminologia dos afins tukano, sobretudo em relação à posição do “cunhado” (não há serviço da noiva, portanto privilegiaremos o cunhado em relação ao sogro), a fim de esclarecer um primeiro nível probabilístico de suas alianças. Ela segue um gradiente modulado entre próximo e distante: respectivamente, ele pode ser o basúkɨ .meokɨɨ no vocativo], literalmente o primo cruzado, preferencialmente o FZS; o pe’yagɨ, um cunhado não-primo, às vezes também um primo MBS, quando é o caso da própria mãe não ser filha de tukana, i.é, ela própria uma FZD; sukuá, um “sogro de filho”, i.é, fruto de um filho que não realizou o esquema FZD/MDB, e que ocuparia posição geracional e classificatória equivalente a de cunhado; e pe’sú, um “marido de cunhada” (concunhado, mas também com conotação de inimigo [informação Geraldo Andrello, 2015]), i.é., alguém que não é irmão de Ego e que casou com a irmã de esposa, que vai gerar “filhos de mãe” para os meus filhos, ou afins não-casáveis (voltaremos a eles; para Viveiros de Castro & Fausto (1993), eles correspondem aos “afins virtuais” que realizam um casamento com uma MBD classificatória [de todo jeito, seria interessante verificar por que na terminologia ocupam uma posição semelhante a de “inimigo”])[9]. [ver diagrama acima: dravidiano com MZCh]. Há ainda um termo genérico para cunhado, buhí-ba’akɨ, que pode servir para qualquer um que esteja no limite da “endogamia de relação” (e cujo significado também é “caçoar”), i.é., os “humanos casáveis”[10], como coloca Lévi-Strauss (1982). Finalmente, segundo S. Hugh-Jones (2013: 371), existe uma classe de cunhados hee-tenyüa, que não trocam mulheres: os cunhados ancestrais, que são acionados nas trocas de bens rituais.
Esta grade parece ainda não ser suficiente para se entender, em primeiro lugar, essa restrição aos co-afins, e uma consequente expansão do sistema de aliança em busca de outras variáveis, considerando que, pelo menos em termos probabilísticos, a posição de cunhado se estende até muito longe; e, em segundo, como desdobramento deste primeiro ponto, porque uma simples distinção nós/outros aparece, mas não é suficiente para sustentar a afinidade em termos plenos, o que implica numa contração em direção às alianças preferenciais (esp. FZD). Como veremos, a separação entre consanguíneos e afins é atravessada pelo princípio agnático, tomado como descendência corporada (p. ex. Goldman, 1963). A Sugestão de Andrello (2013) é que se trata de um sistema de “ascendência”, antes de uma “descendência”. Em um sentido parecido, Jackson (1984) argumenta que se trata de algo como uma corporação invertida, já que o sib é o centro da identidade (ritual),[11] flertando com um sociocentrismo, como se houvesse uma espécie de “feição australiana” no modelo (Viveiros de Castro, 2002:112). Ainda assim, os limites desse modelo estão no fato de que, apesar do agnatismo criar uma postura de “classe”, ele não se revela exatamente claro no cálculo dos afins, talvez por uma série de razões. Há informações contraditórias na literatura: por exemplo, para Chernela (1993) é absolutamente imprescindível que se case numa mesma classe de status. Para Jackson (1984), é praticamente impossível se ter certeza da classe relativa dos membros de um grupo exogâmico diferente. A hipótese aqui é que não há uma única solução para isto, como veremos ao longo do artigo.
De certa maneira, a etnografia tem ressaltado que a maior parte dos grupos (etnias) Tukano estabelece uma preferência por 2 ou 3 grupos exogâmicos de onde se estabelecem as alianças de casamento. Às vezes, isso se prende a sibs específicos da outra classe exogâmica, às vezes, não. De todo modo, estatisticamente, estes dados se sobressaem na maior parte das regiões onde predominam o isolamento de comunidades locais, em que a troca tende a se restringir entre grupos vizinhos, compostos de alguns grupos de sibs e, às vezes, um ou outro afim próximo. Este, por exemplo, é o caso dos Bará vistos por J. Jackson (1977; 1983), dos Barasana vistos por C. Hugh-Jones (1979), dos Wanano vistos por J. Chernela (1993), e em parte dos Makuna vistos por K. Århem (1981) e dos Tuyuka analisados por A. Cabalzar (2009). Mas não é exatamente assim com a rede de Iauaretê estudada por G. Andrello (2006), ou os casamentos que começavam a ocorrer “quebrando a regra” na cidade de São Gabriel, estudados por C. Lasmar (2005). Parece que os tukano em parte também se situam nesse último caso, ainda que idealmente se pense “na regra”.
A preferência, como foi dito, é com o casamento patrilateral (FZD)[12], ou melhor, como um bi-FZD (Viveiros de Castro & Fausto, 1993), visto que em várias esferas (nominação, cerimonial, econômica, por exemplo) a geração alternada se encarrega de acentuar o aspecto restrito da reciprocidade (o que, como veremos a seguir, não se faz sem tensões). Há, então, uma recorrência sobre o fato do casamento bi-patrilateral, com trocas restritas, enumerar largas vantagens: alianças mais seguras; integração em esferas cerimoniais e econômicas; e, talvez principalmente, o fato de que a esposa “volta” para o grupo da mãe, acentuando aí uma tendência ao cognatismo. Por isso, imagino que o minimalismo rumo à endogamia de classe esbarra nos seus próprios limites: a exigência de ao menos 3 grupos para o ciclo FZD funcionar até seria o de menos (porque, como veremos, no fundo esse ciclo se desdobra em multilateralismo, como sugeriu Viveiros de Castro (1990)[13], e é isso que se vê acontecer na estatística a grosso modo).
De certa maneira, a ideia de que a reciprocidade só se completa na geração seguinte (prerrogativa do ciclo FZD) é o que entra em combustão com a hierarquia, sobretudo em função de uma competição interna ao grupo de irmãos com suas prerrogativas hierárquicas. Existe uma forte tensão nativa em esperar o “retorno”. Numa descrição deste problema em Jackson (1984), ela aponta como entre seus informantes buscar alternativas para “variar” as alianças é uma forma de burlar os limites temporais da troca[14]. Outra descrição me foi dada pelo Sr. Fontes, quando perguntei sobre as diferenças etárias entre cônjuges. O que ele respondeu é que há muitos casos de homens de uma geração acima que resolvem se casar com mulheres de um grupo que eles sentem que está “devendo”. Normalmente isso se transforma em conflito, inclusive causando divórcio de uma eventual parente “doada” a um filho ou sobrinho (cf. também Jackson, 1984:163).
Se olharmos para as poucas estatísticas que foram feitas, e produzidas em sua maior parte com material coletado entre 1970 e 1995, em diferentes etnografias (sobretudo Jackson, 1983; 1984; Cabalzar, 2009; 2013; e pela FOIRN em 1992, com dados complilados por M. Azevedo, 2005), veremos que as alianças tendem a ser bem variadas, embora se predominem certos ciclos, dependendo do local. Algo que salta aos olhos é o desequilíbrio no rating entre grupos trocadores e receptores quando a aliança é mais intensa (i.é., envolve mais gente, e talvez mais sibs), e uma maior simetria quando ela é mais rarefeita. [Veja-se, abaixo, a diferença entre doadores e receptores em 3 casos: no Uaupés, onde estão comunidades mais isoladas; em Iauaretê, com maior concentração; e em São Gabriel {linha tukana ressaltada a partir dos diagramas de Azevedo, 2005}].
Legenda:
AR: Arapaso; BS: Barasana; BN: Baniwa; BR: Baré; CA: Karapanã; DE: Desana; JU: Yurutí; KO: Kubeo; MA: Maku (sem especificar qual grupo); MK: Makuna; MI: Miriti-tapuya; PI: Pira-tapuya; TA: Tariano; TU: Tukano (incesto); TY: Tuyuka; UA: Wanana
Ainda assim, é notável que as alianças nas regiões do Uaupés/Tiquié tendam a ser mais simétricas entre grupos trocadores, visivelmente para o caso tukano-desana. Em outros casos, o desequilíbrio no rating parece ser mais evidente, com alternâncias entre grupos trocadores que parecem explicar parcialmente um mecanismo compensatório. Uma segunda questão é se as trocas de tipo incestuoso podem ou não implicar assimetria, tanto em relação à quantidade de trocadores, quanto a sua posição na hierarquia; porém, esta é uma questão que ficará aberta, em função da falta de dados etnográficos para discuti-la. Outro elemento do “desequilíbrio aparente” pode ser explicado pelo deslocamento, que é um ponto que desenvolverei aqui, a partir de informações qualitativas, mas que, obviamente, necessita ainda de uma estatística confiável, pois a estatística acima não pega certos ciclos, que reportam a trocas indiretas que dificilmente são detectáveis.
Por ora, é possível juntar diferentes escalas a fim de elaborar hipóteses. Uma delas é que aqui tudo se passa como se estivéssemos globalmente em um sistema de troca generalizada, mas localmente respondendo a uma restrita. Isto porque há muitos grupos trocando, mas do ponto de vista de um grupo local talvez isso não apareça assim, “exceto sob certas circunstâncias”, conforme diria Sr. Fontes. Quais? Por exemplo, em movimentações muito acentuadas rumo à cidade. Note-se, por exemplo, que a quantidade de casamentos considerados como “incesto” em São Gabriel não era nada desprezível.
Outras circunstâncias, também importantes, seriam as inúmeras ações de uma “classe média” que tendem a embaralhar o jogo hierárquico, através da educação, da constituição de lideranças políticas, e, em parte, do xamanismo. Como se vê, nesses casos em que há uma ampla agência em torno da mudança e da transformação social, temos como efeito colateral o fato, inclusive, de que os clãs da “cabeça” se reforçam na posição de paladinos da tradição (idem, ibid.), estabelecendo um jogo duplo. Todo este cenário aponta, enfim, para o fato de que há duas dinâmicas que se entrecruzam, osciloscópicas, onde elementos tradicionais engendram mudanças, que ao se estabelecerem, sobretudo em certas posições (como a dos clãs intermediários), re-acionam a posição tradicional e “fechada” dos clãs superiores. Meu argumento, daqui para frente, é que no parentesco isso não é muito diferente.
Nesse caso, é preciso tentar explicar porque a aliança corre em uma órbita contínua que vai das elementares às incertas, e destas de novo às elementares. Mas, antes de instituir fatores externos (chegada dos brancos, etc.), gostaria de ao menos propor uma resolução para isto no interior do parentesco. Então aqui, talvez, o casamento FZD “com hierarquia” pode ser pensado diferentemente de uma solução bilateral e simétrica implícita no “retorno” das mulheres na geração seguinte. Ele próprio pode representar o protoplasma de abertura para uma dialética entre um sistema elementar e um complexo[15], e, ao mesmo tempo, ser o resultado do desgaste de aberturas anteriores que pulverizam os grupos a ponto de engendrar novas alianças minimalistas.[16]
Para não nos perdemos totalmente em um apego excessivo aos modelos, voltemos a ter na cabeça a ideologia nativa do crescimento, que, como se sugeriu de maneira sumária acima, aparece combinada ao problema da hierarquia. Crescer também pode significar um duplo movimento: se garantir nas trocas, e/ou diversificar. Então vejamos: de um lado, a garantia da diversificação tende a ampliar o ciclo dos trocantes (a diástole expansiva); de outro, o desequilíbrio gerado por este movimento em um plano diacrônico provocaria uma espécie de movimento de contração (a sístole contracionista)[17], dado que os ciclos de retorno “fechariam” de novo um anel elementar. Em ambos os casos, um contracenando com o outro, eles atuam como uma mesma força, em que a intensificação de um engendra a reação do outro.
O que imaginei, em termos tentativos, é que os tukano têm sistemas de aliança que combinam o patrilateralismo e o multibilateralismo (como sugere o modelo de Viveiros de Castro 1990:45-47)[18], e forças que jogam as pessoas rumo a saídas complexas, a partir da sobreposição da magnificação pessoal e a interferência da hierarquia no jogo das alianças. Mas não só: no momento em que as saídas complexas começam a tomar vulto cada vez maior, os aspectos restritivos dos “filhos de mãe” e de releituras da hierarquia começam a refazer alianças cada vez mais fechadas. No fundo, estes três termos, se combinados – preferências matrimoniais, hierarquia e os “filhos de mãe” – constituem um aspecto não tão explorado pela literatura, e por isso insistimos aqui em salientar tal imbricamento. O que gostaria de enfatizar, assim, é que há um aspecto circular e dialético nas alianças, quando atravessadas pela hierarquia[19].
Uma questão que fica como pano de fundo, e para qual certamente não terei uma resposta satisfatória, é por que os tukano apresentam esse quadro multidirecional, enquanto outros grupos (barasana, bará, etc.), menores, tendem a se fixar mais nas regras, estabelecendo alianças preferenciais e se mantendo seguros em um quadro mais “minimalista”. Mais à frente, procurarei esboçar um palpite muito parcial, em que pesem todas as contingências históricas, ainda que elas pareçam ter atingido esses vários grupos de maneira mais ou menos homogênea. Para tratar deste problema no interior do parentesco, creio que seja preciso recorrer a um tratamento da hierarquia – com toda a consciência de que estes são planos parciais, mas que podem auxiliar em outras etnografias. Vejamos, então, como é possível desenvolver esse argumento a partir do caso tukano, especificamente.
Algo para o que um outro interlocutor tuyuka chamou a atenção (proveniente da comunidade São Pedro, rio Tiquié), diz respeito aos diversos casos em que uma genealogia pode seguir um padrão de reiteração e em dado momento as relações podem vir a se espalhar centrifugamente: por exemplo, ele mencionou algo sobre uma comunidade do rio Tiquié, que seguia o padrão reiterado de casamentos entre tuyukas e tukanos, num caso comum de transações entre comunidades locais (beirando o sociocentrismo, portanto), e que, de repente, abriu uma outra frente com uma troca (deficitária do ponto de vista masculino, aliás) com desanas. Como resultado, alguns irmãos simplesmente buscaram outras alianças, por si, em outros locais, às vezes bastante distantes até. Por que? Além do fato de que havia uma pressão de trocas já estabelecidas entre tukanos e desanas que não foram desfeitas, é possível cogitar que os casamentos entre tukanos de alguma maneira resultaram, como efeito colateral, em um défcit do ponto de vista tuyuka. (ver tabela acima). Mas, curiosamente, somaram-se a esse argumento outros motivos, digamos, mais inusitados: porque fulano “gostou” de alguém “de fora”; porque quis sair da comunidade (a viagem é parte importante da vida rionegrina)[20].
Há mais motivos que ainda vêm à luz em outras etnografias: a comunidade poderia ter entrado em fissão, e se dispersado, não podendo sustentar mais a reciprocidade restrita (esta é uma história muito comum, está inclusive pautada na mitologia, conforme vemos na pesquisa em andamento de Raphael Rodrigues [comunicação pessoal]). Sem esquecermos do fato de que todos esses elementos estão atravessados pela ideia de crescimento, seria interessante notar como isso se espelha no interior das relações agnáticas, ou daquilo que se chama de hierarquia. Recorrendo ao exemplo do Sr. Alfredo Fontes (para o qual retornarei adiante), soube por ele próprio que estava em uma “posição desfavorável” (isto é, com chances pequenas de realizar um casamento “preferencial” e estabelecer-se formando um grupo residencial que cresça), e se casou com uma tariana, depois de um ciclo de trocas com desanas, realizadas pelos seus irmãos mais velhos. Além disso, sua genealogia remete a um outro ciclo de trocas não tão usuais, entre seu grupo e tuykas em G+1 e G+2. Pelo que ele me disse, a precedência da posição que os irmãos ocupavam foi um fator que o fez buscar uma aliança que não era comum entre seu grupo local, embora seja muito usual no repertório tukano em Iauaretê, para onde ele foi (ver tabelas acima). Mas o que seria essa “posição”?
A hierarquia, como dito acima, baseada no agnatismo, trata da noção que provoca uma divisão prototípica baseada na ordem de nascimento. Em todas as dimensões da vida social, as pessoas e os coletivos são classificados em “maiores” ou “menores”, novamente dependendo do ponto de vista de Ego/pessoa. A referência básica sob a qual se apoiam estas noções é a classe de germanos; assim, como dito acima, temos “irmãos maiores” e “irmãos menores”, e isto se espalha para além do grupo local, com sibs maiores e menores, etnias maiores e menores (ponto de maior controvérsia), etc. De certa maneira, podemos dizer que esta é uma moldura elaborada numa teoria nativa em que a humanidade saiu toda, através de seus ancestrais, em fila de um buraco de transformação que foi o destino final da viagem de uma cobra-canoa. Nessa viagem, os humanos passaram por uma série de outras transformações, e se estabeleceram nas calhas dos rios com uma ordem de precedência baseada na chegada ao mundo através dessa jornada.
Do ponto de vista mais infinitesimal, o que vemos como consequência é que, em tese, a humanidade está inteiramente colocada em fila, ninguém está no mesmo lugar: de sua composição em relação a um grupo de irmãos reais; da ordenação desses em relação a um sib; da ordenação de um sib em relação aos demais de uma etnia; e finalmente dos “índios” em relação aos demais, brancos e talvez, em alguns casos, os falantes de maku[21]. Percebe-se aqui que a amplitude desta noção de hierarquia, quase no nível da “fila indiana”, torna praticamente impossível o estabelecimento de uma “lista” que seja fiel ao retrato desta estrutura social. Aliás, pelo contrário, ela tem uma dinâmica intensa, o que de certa maneira questiona, inclusive, as tentativas etnográficas de se explicar o alto Rio Negro a partir da estrutura social. De certo modo, as variáveis das transformações a excedem.
Há uma série de elementos que afetam esta ordenação hierárquica. Mitologia/cosmologia, local de residência (se nas cabeceiras ou rios abaixo), vantagens econômicas, guerras históricas, demografia, estratégias de aliança/afinidade. Diria, inclusive, que são tantas variáveis que nem mesmo os próprios nativos estão exatamente seguros de uma visão global; entre outras coisas, o “mapa social” é alvo de certa controvérsia, e no jogo político que o envolve há um esconde-esconde de nomes, hierarquias internas, segredos narrativos, esquecimentos, feitiçaria, enfim, uma série de elementos que dificultam uma leitura holista. Contudo, também faz parte do jogo dar cartadas revelando as linhas da hierarquia: por exemplo, revelando a história de certos lugares, as narrativas de ocupação e dispersão de faixas dos rios, as lembranças de genealogias, entre outros elementos. É por aí que se consegue formular traçados, tornando a problemática das transformações mais inteligível, como bem tem demonstrado Andrello em textos mais recentes (2010; 2012a; 2016).
A partir dessa ideia de uma dinâmica no plano do parentesco, como vimos acima, o implexo de alianças pode suportar essas variações, produzindo um modelo compósito. No caso das relações agnáticas, também podemos contar com fatores de plasticidade, e a etnografia clássica percebeu que a hierarquia tem efeitos variados no cotidiano. Contudo, houve em parte daquilo que foi descrito entre anos 1960-1990 uma interpretação que vinculou a hierarquia a uma posição nas calhas dos rios: quanto mais acima nestes, mais abaixo naquela (Goldman, 1963; Århem, 1981; Jackson, 1983; Chernela, 1993), e isto foi ligado a uma noção de fundo que se baseava em vantagens econômicas. Ainda que exista um certo consenso de que ao mesmo tempo em que ela tem um enorme potencial de mobilização e controvérsia entre os nativos (Jackson, 1983, 1984), somente bem mais tarde uma série de fatores diacrônicos passaram a ser mais relevados: as dispersões, fissões e fusões bagunçam esse esquema, como uma tendência mais contemporânea tem mostrado (Århem, 2001; Andrello, 2006; Cabalzar, 2009). Mas mesmo em nível estrutural não seria possível enxergar esse embaralhamento? E qual seria a vantagem disso? Acredito que a combinação de todos esse planos contingenciais (que tenho a impressão que se tornaram o ponto forte das etnografias regionais atuais) às modalidades de alianças incertas (embora possíveis) que vimos acima, pode representar uma alternativa a projeções de nossas características da hierarquia (poder, vantagens utilitárias, etc.) naquilo que estamos chamando de hierarquia rionegrina, o que efetivamente pode ser realizado a partir de uma dimensão interna ao parentesco (mesmo com os riscos que uma indução desse tipo pode representar).
O que gostaria de adicionar a este esquema, nesse momento, é um suplemento que sugere como poderíamos conectá-lo ao modelo multilateral de aliança. Como foi dito acima, e com uma certa insistência durante o campo, ali se “quebram regras o tempo todo”[22]. E de quais regras se falava? Justamente das de hierarquia e casamento, as que estou tentando agora conectar para um desdobramento dos parâmetros que vimos acima, sobretudo a partir do modelo de C. Hugh-Jones (1979).
Novamente, é sabido que os sibs são unidades instáveis, a ponto de que um certo número de informações parece estar altamente desconectado. Por exemplo, para os tukano, se pegarmos “listas”, veremos “30 sibs” (Jackson, 1983); “50 sibs” (Fulop, 1955); “47 sibs”(Andrello, 2013); “35 sibs” (Rodrigues, 2012:98-100), e aí por diante. Não se trata de imprecisão de nenhuma das informações. De fato, dependendo de onde se está, se vê o “sistema” com um mapa particular e, sobretudo, a partir de informações que são coletadas por pontos de vista específicos em rituais onde ocorre um recital de informações sobre ancestrais, mapas de parentesco, enfim, a “coluna social” rionegrina. Nesse sentido, fazer um “mapa” definitivo é até inverossímil, o que corrobora a tese geral de Geraldo Andrello de que o sistema não tem como ser “resolvido” por uma fórmula. Aliás, segundo o próprio (comunicação pessoal, 2014) “pelo menos quem são os ‘da cabeça’ todo mundo sabe, i.é., os quatro primeiros que compõem o grupo dos ‘irmãos maiores’ (mamí). E pelo menos os últimos, os ‘preparadores de cigarro´ (servos, o’mãko’teka’rã kurua), se tem também uma noção mais precisa”. De fato, ao olharmos para as listas compiladas por Rodrigues (2012), fica claro que o maior desencontro está na “classe média”.
Creio que as razões para este fato são muitas. Mas, entre elas, está algo relacionado ao que estamos tratando: a série de alternativas na estratégia da aliança. Para entendermos melhor, vou detalhar mais o exemplo do Sr. Alfredo Fontes, que havia dito que ele próprio era um desses casos que não seguiu a regra. Sua história pode nos ajudar a explicar. Ele é o 5º irmão de uma família de 8, sendo que eram 6 homens e duas mulheres (três irmãos e uma irmã mais velhos, duas irmãs mais novas), de um sib que se situa nas posições mais altas do “segundo grupo”. Os irmãos mais velhos, ao menos os 3 primeiros, já não reproduziram a aliança dos avôs (que realizavam uma menos provável, mas possível aliança com grupos tuyuka na região de Pari-Cachoeira), casando-se com uma classe de irmãs classificatórias (entre si) de um mesmo sib desana. Ele era o 4º homem e seus pais entenderam que a situação seria difícil para ele, pois eles nem tinham mais filhas para “doar”, nem havia muita disponibilidade na rede de alianças estabelecida. Ele foi mandado, ainda adolescente, a estudar no internato salesiano, em Iauareté. Passados alguns anos, ele percebeu que sua trajetória não tinha mais muito espaço no local de origem. Gostou de uma tariana, e resolveram se mudar para a cidade de São Gabriel, onde se casaram. Esta aliança tukano-tariana é bem comum em Iauaretê, mas, do ponto de vista de Alfredo, foi inusitada, fugiu da regra (do seu grupo de parentes próximos). Ele me disse que histórias como essa eram muito comuns, e que nas gerações posteriores (ele tem aproximadamente 65~70 anos) era quase certo que só os primogênitos tendiam a ficar no seu local de origem, e que isso seria uma das causas do notável esvaziamento das comunidades e o inchaço da cidade, de 15 anos para cá.
De certa maneira, isso explicaria parcialmente como, no grupo doméstico, certas coisas se processam. A alternativa em sair fora do esquema de casamento preferencial está conectada com um movimento de dispersão e reaglutinação no polo urbano (cf. também Lasmar, 2005), onde a geração posterior pode ainda expandir mais o implexo de alianças. Contudo, a este fato devemos somar outros. Em primeiro lugar, com aquilo que Andrello chama a atenção como uma possibilidade de “um regime de alternâncias e reversibilidades” na hierarquia (2013:6), plasmado, sobretudo, pela “política econômica do crescimento demográfico”. Isto seria algo verificável desde o nível cosmológico (ou cosmopolítico, como ele define), em que se vê várias inversões na ordem de precedência de irmãos ancestrais[23], passando pelo alto grau de fissões e dispersões geográficas que tornam as histórias mais ambíguas, até finalmente desembocar em um problema das estratégias de parentesco e os problemas específicos da terminologia tukano[24].
De todo modo, penso que há mais um dado que franqueia a arquitetura dessa argumentação: de fato, as estatísticas tendem a mostrar, como já se colocava desde Århem (1981), que os sibs mais altos tendem a permanecer na mesma posição. Este é um dado que a maior parte das etnografias tende a reproduzir, talvez com a exceção de Cabalzar (2009), o que certamente merece ser levado em consideração. Por isso mesmo, não seria taxativo a ponto de estabelecer um modelo binário que mostra que os altos ficam onde se está, e os baixos mudam. Ainda assim, em parte, isso pode ser corroborado pela “confusão” que a “classe média” causa, e tenho a impressão que isso é particularmente aplicável aos tukanos, que são muito mais numerosos (cerca de 6 mil no Brasil) que outras etnias.
Por tudo isso, enfim, a ampliação das alianças pode ser vista de maneira combinada a uma estratégia de crescimento, com consequências na leitura que se faz da hierarquia. Ao mesmo tempo, é justamente uma posição confusa na hierarquia que galvaniza todo um setor de “classes médias” a buscarem alianças alternativas, e assim retroalimentarem o implexo que alimenta esse jogo.
Há uma questão aqui para se pensar, a partir do fato de que a hierarquia pode ser tomada como um fator de impulso a alianças incertas: por que então o sistema todo não se pulveriza rumo a um quadro complexo? Com tantas pessoas e possibilidades, esta seria uma saída bastante plausível; aliás, ela de fato acontece em parte, e tenho a impressão de que a situação atual na cidade de São Gabriel reflete uma tendência rumo a uma paisagem desse tipo, o que só posso confirmar depois que trabalhar dados ainda brutos. Mas há uma máquina de contra-inicialização desta tendência, que induz um terceiro termo na equação entre consanguíneos e afins (C/A). Trata-se da figura dos “filhos de mãe”: como vimos acima, em nível genealógico, eles são os primos paralelos matrilaterais (MZCh), que nas categorias nativas configuram-se como “afins não-casáveis”. Esta é uma possibilidade que só acontece, de novo em nível genealógico, quando a irmã da mãe casa-se com alguém de grupo diferente daquele do pai de Ego. Os filhos desse casal serão irmãos-afins, uma espécie de grupo de transição entre a afinidade e a consanguinidade[25].
Mas o que aconteceria, então, se generalizássemos os casamentos não prescritos? De acordo com o Sr. Alfredo Fontes, o custo principal de um casamento desse tipo vai para o grupo da esposa (“quem não gosta muito é o cunhado, o sogro...”). Pensando isso dentro de um modelo probabilístico, ficou claro pelos exemplos dele, ao se casar com uma tariana que usualmente seria destinada a um ciclo de trocas com homens pira-tapuya, uma situação em que seus filhos seriam “filhos de mãe” para os primos deste último grupo. Ou seja, compreende-se que cada vez que se estabelece uma aliança complexa de um lado, se espreme o outro com uma proibição, gerando “filhos de mãe”.
Evidentemente, o alcance disso é relativo. Pode começar com um grupo local, mas dependendo das reiterações e do estabelecimento ampliado de ciclos de reciprocidade, a situação emerge para grupos incontavelmente maiores. Assim é que wananos e barasanas são, por exemplo, “filhos de mãe” de tukanos, e teoricamente não há casamento entre eles[26]. Note-se, então, que de um lado o sistema engendra uma força de pulverização, e ela própria cria sua contra-tendência, lançando mão de dispositivos como este. Por isto mesmo, minha hipótese é de que o alto Rio Negro vive uma situação ambígua, elementar e complexa ao mesmo tempo, sendo um a contraparte do outro.
No entanto, é preciso ter em mente que ambas as situações resvalam no mesmo princípio: como sabemos, inclusive com o que foi colocado por Mauro Almeida (s/d: 5), “o cognatismo (...) aponta, ao contrário, para a interconexão de todos para com todos através de laços de pessoa a pessoa”, e seria assim um traço do sistema complexo; ao mesmo tempo, o fechamento total e endogâmico nos faria também resvalar em um sistema cognático, e me pergunto, afinal, se esse não é um efeito colateral dos excessos de freios que “filhos de mãe” impõem ao diversificar demais os anéis de alianças. Isto seria, em princípio, uma hipótese a ser verificada, através de mais pesquisa, para os casos de incesto que mencionamos bem acima. Seriam as alianças inter-tukanas resultados de uma pressão pelo excesso de interdições que múltiplos filhos de mãe geram? Aliás, seria também o caso de se perguntar se diante de alianças incestuosas, a figura do filho de mãe ainda tem alguma relevância na terminologia e na sociologia nativas... De todo jeito, parece que como as forças agem uma sobre a outra, os dois vetores, elementar e complexo, talvez sejam uma chave parcial para se entender inclusive os limites do cognatismo rionegrino. E, nesse sentido, ela é parcial por conta do fato de que esse princípio é contraposto pelo vetor do agnatismo.
Concluindo, este modelo embaralha as duas tendências: se se amplia as alianças e se busca a simetria, ao mesmo tempo se mexe na hierarquia tentando revertê-la, assumindo assim que ela é um valor; e por isso mesmo, essa estratégia no limite é um redobramento de uma aliança elementar em outro patamar. Ou seja, para voltar ao problema colocado a partir de Mauro Almeida para a Amazônia dravídica, falamos em um modelo dravidiano e hierárquico ao mesmo tempo. Nesse sentido, gostaria de ressaltar que o Rio Negro parece oferecer, talvez divergindo do sul da Índia de Dumont, um caso singular em que não há separação entre o parentesco e a hierarquia, como domínios desconectados da realidade. Isto ainda fica mais interessante se considerarmos que a hierarquia, em princípio, se encontra plasmada em grupos de germanos, com transmissão de consanguinidade, mas, nem por isso, com transmissão certeira da aliança. Não podemos negar, assim, que o caso rionegrino oferece ao menos um certo desconforto quando colocado lado a lado com o oceano igualitarista e centrado na afinidade radical que o circunda pela Amazônia.
Evidentemente, precisaria de dados muito mais refinados para provar que empiricamente este modelo se sustenta, e isto é algo que demandaria um censo que só pode ser realizado institucionalmente. Seja como for, é preciso deixar claro que esta é uma tentativa de estabelecer uma discussão com etnografias maiores e mais bem preparadas, voltando ao tema do parentesco e da hierarquia, para se pensar em mais um ponto dos múltiplos conectores que os ligam aos processos políticos mais amplos.