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“ELAS”, de Stephane Ramos (24 minutos, 2017)
Thais Valim
Thais Valim
“ELAS”, de Stephane Ramos (24 minutos, 2017)
Anuário Antropológico, vol. 43, núm. 1, pp. 463-468, 2018
Universidade de Brasília
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Resenhas

“ELAS”, de Stephane Ramos (24 minutos, 2017)

Thais Valim
UFRN, Brasil
Anuário Antropológico, vol. 43, núm. 1, pp. 463-468, 2018
Universidade de Brasília
Ramos Stephane. “ELAS”. 2017. Brasil. 24

Ambientado entre as cidades pernambucanas de Recife, Olinda e Paulista, o filme “Elas”, de Stephane Ramos, dialoga diretamente com sete mulheres que tiveram filhos nascidos com microcefalia no contexto da epidemia do Zika Vírus. A escolha por esses três locais não é aleatória: o Estado de Pernambuco concentra, segundo os boletins epidemiológicos divulgados pelo Ministério da Saúde (MS), a maior proporção de casos de microcefalia confirmados no Brasil, somando 16% dos registros totais (BRASIL, 2018). Inclusive, a Secretaria Estadual de Saúde de Pernambuco (SES/PE) foi a primeira instituição a notificar oficialmente o MS sobre a elevação dos casos de microcefalia congênita no país, em outubro de 2015.

Após o alerta da SES/PE e com a contínua progressão do número de casos, o Ministério da Saúde alçou a epidemia, em novembro de 2015, à categoria de Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN), através da Portaria 1.813. Em seguida, em fevereiro de 2016, foi a vez da Organização Mundial da Saúde (OMS) promover a questão para uma categoria emergencial, caracterizando-a como um fenômeno de importância global. Esses dois marcos oficiais foram responsáveis por uma ampla visibilização da epidemia que resultou num contexto de efervescência e grande comoção.

A mídia adotou a pauta da microcefalia quase imediatamente e foram feitas muitas matérias sobre o cotidiano das famílias diretamente impactadas, produzidas pelos mais variados agentes de imprensa, desde pequenos jornais locais até veículos internacionais como a britânica BBC (Diniz, 2016). Naquela época, o Governo Federal também firmou parcerias com diversos hospitais e institutos terapêuticos no intuito de acompanhar o desenvolvimento dos recém-nascidos.

Do quadro de efervescência inicial, no entanto, seguiu-se um arrefecimento dos interesses pela epidemia. Com o processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff e os jogos olímpicos, sediados no Rio de Janeiro no ano de 2016, a mídia distanciou-se da pauta (Porto; Moura, 2017). Aos poucos, também, as taxas de incidência de microcefalia foram declinando e, em maio de 2017, o MS anunciou o fim da Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional em decorrência do Zika. Esses elementos, concatenados, teceram uma atmosfera de aparente controle sobre a epidemia: afinal, a biomedicina já havia (parcialmente) assimilado e traduzido a Síndrome Congênita do Zika Vírus para seu corpus teórico, os casos não mais figuravam um quadro de imprevisibilidade e os números estavam não só estáveis, como decaindo. E, assim, pouco a pouco vários atores foram saindo de cena: os repórteres deixaram de circular com as mulheres por entre ônibus e ONGs, as visitas de prefeitos e outras figuras políticas a hospitais tornou-se cada vez mais um evento pontual e até mesmo as doações que as famílias recebiam de outras pessoas sofreram uma queda com o sumiço da epidemia da agenda nacional.

É nesse contexto de apagamento e invisibilização que se insere a produção de Ramos, gravada e finalizada no ano de 2017, dois anos após o período que ficou demarcado como o início da epidemia. O filme foi rodado no espaço doméstico de cada uma das sete interlocutoras: é possível ver algumas na cozinha, na sala, outras optaram por fazer a conversa no quintal. É um contraste com as imagens geralmente associadas à epidemia que tendem a focalizar a relação das mulheres com os hospitais, a terapia, os profissionais de saúde. A presença de Ramos também é ocultada da edição, preservando o ambiente de ênfase nas figuras individuais de cada uma das interlocutoras. O filme segue um roteiro semiestruturado de perguntas que ficam implícitas na construção do vídeo, de modo que é a partir do agrupamento de certas respostas e da interpretação do espectador que as perguntas podem ser pensadas.

O primeiro bloco de respostas consiste numa breve apresentação das interlocutoras: revelam seu nome, idade, cidade de origem e local atual de moradia. Nessa introdução inicial à vida das mulheres, é possível notar que ter um filho com microcefalia não é a única correspondência entre elas. Conforme contam sobre suas trajetórias, torna-se evidente como essa epidemia passou por um forte recorte de classe, tendo atingido especialmente mulheres pobres. As dificuldades decorrentes do contexto econômico vão se delineando na narrativa das entrevistadas.

Rosana, por exemplo, conta, nesse primeiro bloco, que nasceu em Recife, mas, ainda menina, mudou-se com a mãe para Olinda. Lá se casou e formou família. Teve sua primeira filha aos dezoito anos, e, sete anos depois, deu à luz Maria Clara, diagnosticada com a Síndrome Congênita do Zika Vírus. Disse que a vigilância sanitária lhe advertiu para que saísse de sua casa: “Eu tinha que se mudar de qualquer jeito, porque a minha casa, de frente da casa passava um esgoto e a vigilância mandou eu sair por causa da menina e aí eu mandei minha mãe procurar casa e ela achou essa aqui e eu vim pra cá” (1m48s).

As percepções do contexto econômico também vão aparecendo na narrativa em pontos que, à primeira vista, não estão relacionados a essas questões. Quando perguntada sobre a felicidade, por exemplo, Vanessa, a mulher mais velha a aparecer no filme, com 46 anos, descreve que ser feliz é ter uma casa, ter o que comer, ter uma TV para assistir. São pequenas informações que ajudam a compreender melhor o dia a dia de cada uma dessas mulheres. A técnica de Ramos, nesse sentido, é interessante por permitir que cada uma conduza a conversa da maneira que lhe aprouver. Desse modo, o diálogo segue a direção do que mobiliza as mulheres naquele momento, o que torna o filme um importante veículo para a escuta e compreensão de suas demandas.

Um dos temas mobilizadores que atravessa o filme é a questão da solidão e do desamparo familiar: “Eu não tive aquilo que queria da minha família, né? Eu queria ter um pai presente, um pai que me aconselhasse, me orientasse (…) mas eu tenho um pai e ele só sabe julgar e condenar” (4m06s) desabafa Vanessa. Na mesma toada, Zana, uma jovem negra de 27 anos, confessa que em sua família ninguém lhe estendeu a mão para a criação de Luana, sua filha, também diagnosticada com a Síndrome Congênita do Zika Vírus: “a única coisa que eles disseram pra mim, quando eu tava de resguardo, foi que eu me virasse aqui sozinha em Recife, com as três filhas, porque se dependesse deles eles não iam fazer nada por mim” (3m50s), finaliza, abaixando os olhos. O apoio que não encontrou na família consanguínea, no entanto, foi descoberto em laços construídos com outras mães e cuidadoras em meio às terapias, as reuniões de Organizações Não-Governamentais voltadas para crianças nascidas com a síndrome e outros eventos relacionados à microcefalia.

Muitas das semelhanças percebidas no filme entre essas mulheres advêm da biossociabilidade desenvolvida em torno do diagnóstico comum de seus filhos, ou seja, são mães que partilham de uma especificidade no cuidado de seus rebentos. Essa identidade materna foi basicamente a única imagem propagada dessas mulheres durante o auge da epidemia e quando ainda havia atenção da mídia sobre a questão. O filme de Ramos tenta dialogar com esse imaginário, desconstruindo-o. A escolha da diretora de se ausentar das cenas, a ausência das próprias crianças ao longo do filme, tudo isso aponta para o recorte que realmente interessa a Ramos: pensar na vida dessas mulheres para além da redução da “mãe de uma criança com microcefalia”.

Os objetivos da diretora não são depositados contra as interlocutoras à força. É possível perceber nas narrativas delas mesmas uma insatisfação quanto à cobrança excessiva do papel da maternidade. A rotina de Zana com Luana, sua filha, é intensa, e o seu tempo se volta exclusivamente para as atividades de cuidado: “casa hospital, hospital, casa” (6m10s), repete, cansada. Mesmo cumprindo uma agenda tão estrita de cuidados, Zana denuncia que muitas pessoas lhe cobram mais responsabilidade quando ela resolve sair ou tomar uma cerveja em casa com os amigos: “acham que eu tenho a obrigação de estar 24 horas trancada dentro de um hospital, trancada dentro de um quarto só porque eu tenho uma bebê especial” (6m28s), termina Zana, denunciando a força da perspectiva de maternidade como atividade integral e das exigências que esse modelo coloca para o exercício de uma boa maternidade. No contexto da epidemia, e com crianças deficientes em geral, os contornos dessas exigências parecem ficar ainda mais delimitadores, sendo cobrado um cuidado ainda maior da mulher que materna uma criança deficiente.

Paralelamente a isso, o filme também traz informações sobre as violentas asserções preconceituosas que são disparadas contra as crianças com micro. Ao mesmo tempo em que, por um lado, cobram da mulher que desempenhe o papel de mãe e assegure a proteção da criança, por outro, desumanizam essa mesma criança. Parece que a vida da criança só ganha importância para cobrar um papel da mulher. Nesses momentos, as mulheres precisam novamente reafirmar suas identidades enquanto mães para defender seus filhos de acusações e confrontações de desconhecidos.

A questão da maternidade se complexifica no contexto da epidemia e, à dupla jornada de mãe e trabalhadora, soma-se uma terceira jornada, a de mãe militante, que batalha por aceitação e inclusão (Longhi e Pinheiro, 2017). Ou seja, além de cuidarem de filhos que demandam um tipo de cuidado muito específico e realizarem as atividades domésticas, essas mães ainda precisam lidar com olhares de estranhamento e muito preconceito. Rosana dá apontamentos nesse sentido durante o filme: “Eles não são coitadinho, não são bichinho, não são doente. São normal que nem a gente (...) Esse povo trata como se fosse umas pessoas de outro mundo!” (8m40s).

Todos esses elementos que recaem sobre os ombros e sobre a responsabilidade da mulher são questões que perpassam recortes de desigualdade de gênero que, embora acentuados pela epidemia, são muito anteriores a ela. O filme permite captar essa dinâmica da interseccionalidade, e consegue passear pelas histórias dessas sete mulheres com destreza, respeito e dando espaço às elaborações individuais de cada uma. Além disso, muitas das respostas conduzem o espectador ao estado atual da epidemia, fator importante para que as conquistas, lutas e dramas dessas mulheres não caiam no esquecimento.

O documentário cumpre bem seu papel de informar os espectadores sobre a vida dessas sete mulheres, além de contribuir para o desenvolvimento de produções em antropologia visual. No contexto específico da epidemia, sugiro aos interessados que o assistam após assistirem o filme Zika, de Débora Diniz, gravado em 2016, no início do surto, quando muitas dessas mulheres ainda estavam grávidas. Pensados conjuntamente, os filmes se completam e permitem ao espectador ter acesso a uma linha do tempo interessante dos acontecimentos. “Elas” foi lançado em 2017 e pode ser acessado online.

Material suplementar
Referências
BRASIL. Secretaria de Vigilância em Saúde. Ministério da Saúde. “Monitoramento integrado de alterações no crescimento e desenvolvimento relacionadas à infecção pelo vírus Zika e outras etiologias infecciosas, até a Semana Epidemiológica 52 de 2017”. Boletim epidemiológico, volume 49, número 6. Brasília, 2018.
DINIZ, Débora. 2016. Zika: Do sertão nordestino à ameaça global. 1ª edição. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro.
LONGHI, Márcia; PINHEIRO, Diego Alano. 2017. “Maternidade como missão! A trajetória militante de uma mãe de bebê com microcefalia em PE”. Cadernos de Gênero de Diversidade, volume 3, número 2, -. 113-133.
PORTO, Rozeli; MOURA, Patrícia. 2017. “O Corpo Marcado: a construção do discurso midiático sobre Zika Vírus e Microcefalia”. Cadernos de Gênero de Diversidade, volume 3, número 2, pp. 158-191
RAMOS, Stephane. Elas. 2017. (24m). Direção, produção e fotografia: Stephane Ramos. Edição: Carlos Cezare. Recife/PE.
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