Resumo: : O objetivo deste artigo é analisar os processos de descoberta da sexualidade e identidade de gênero das “manas trans” destacando como e em que contextos aprenderam as categorias de identificação sexual e de gênero e também entender as suas subjetividades. Mostro que alguns sujeitos aprenderam a nomear suas identidades sexuais e de gêneros ao longo do tempo de acordo com as fontes de informação que tiveram disponíveis, tais como através da rotulação pela sociedade, mídia e pesquisando na internet. Outros aprenderam suas identificações quando passaram a frequentar uma organização LGBT que busca institucionalizar os termos, os conceitos e as expressões que promovem as melhores formas de falar sobre identidade sexual e de gênero. Para nomear as minhas interlocutoras que fizeram transição de gênero de masculino para feminino, cunhei a expressão “manas trans”. Porém, argumento que as “manas trans” compartilham um gênero com as mulheres, constroem seus corpos, identidades e suas vidas na direção do que consideram femininos e articulam signos femininos dispostos na cultura moçambicana, mas reconhecem que não são biologicamente iguais às “mulheres”. A pesquisa é de carácter etnográfico e baseou-se na observação participante e conversas informais.
Palavras-chave:MoçambiqueMoçambique,GêneroGênero,Identidades sexuaisIdentidades sexuais,Identidades de gêneroIdentidades de gênero,“Manas trans”“Manas trans”.
Abstract: The objective of this article is to analyze the processes of discovering sexuality and gender identity of “manas trans”, highlighting how and in which contexts they learned the categories of sexual and gender identification and also to understand their subjectivities. I show that some of the subjects learned to name their sexual identities and gender over time according to the sources of information that were available such as by labeling by society, media, and searching on the internet. Others learned their identifications when they joined an LGBT organization that seeks to institutionalize the terms, concepts, and expressions that promote the best ways to talk about sexual and gender identity. To name my interlocutors who transitioned from male to female, I coined the expression “manas trans”. However, I argue that " manas trans " share a gender with women, build their bodies, identities, and their lives in the direction of what they consider feminine and articulate feminine signs arranged in Mozambican culture, but recognize that they are not biologically equal to "women". The research is ethnographic in nature and based on participant observation and informal conversations.
Keywords: Mozambique, Gender, Sexual identities, Gender identities, “Manas trans”.
Dossiê
Mapeando as autoidentificações a construção das identidades e as subjetividades das “manas trans” da cidade de Maputo
Mapping self-identifications, the construction of identities and the subjectivities of the “manas trans” of the city of Maputo
Recepción: 11 Octubre 2020
Aprobación: 09 Febrero 2021
As pessoas que têm expressões de gênero distintas da cissexualidade, em nível pessoal, sempre me despertaram curiosidade; e a experiência de convivência (embora de pouca familiaridade) com elas, no meu mestrado (Mugabe, 2015), aguçou o meu interesse em compreender esse fenômeno, que para mim era designado, de forma simplista e redutora, como “travesti” (para as pessoas não operadas) e “transexual” (para as pessoas operadas). No entanto, ao começar a investir no estudo do fenômeno da transição de gênero (masculino para feminino) no contexto moçambicano, me deparei – no mesmo sentido que a socióloga portuguesa Saleiro (2013) – com um “duplo vazio” acerca da temática.
Por um lado, um “vazio social” acerca da temática na sociedade moçambicana, que se nota pela marginalização das “pessoas trans”; inexistência de dados oficiais, seja sobre estas pessoas ou sobre o próprio fenômeno, presença minoritária do “T” no movimento associativo LGBT moçambicano, LAMBDA[1]; e presença rara do fenômeno de pessoas que têm expressões de gênero distintas da cissexualidade na comunicação social e nos espaços públicos moçambicanos. Por outro, um “vazio sociológico”; ausência do fenômeno de pessoas que têm expressões de gênero distintas da cissexualidade na produção científica nacional, tanto nas áreas psico-médicas como nas áreas das ciências sociais e humanas, com exceção das recentes etnografias da socióloga moçambicana Judite Chipenembe (2018) e do antropólogo brasileiro Francisco Miguel (2019), que abordam tangencialmente as vivências das “pessoas trans”.
Neste artigo discuto os processos de descoberta da sexualidade e da identidade de gênero das pessoas com transição de gênero (masculino para feminino) destacando como e em que contextos aprenderam as categorias de identificação sexual e de gênero e também a entender as suas subjetividades[2]. Para investigar tais objetivos, apoiei-me no trabalho de campo e em conversas informais com pessoas trans residentes na cidade de Maputo, durante um período de 11 meses.
No redesenho da minha pesquisa doutoral, eu tinha em mente que procurava pessoas na cidade de Maputo que se autodenominam “travestis”, porque no meu trabalho de dissertação do mestrado encontrei pessoas que se autoidentificam como “travesti”. Por ocasião daquela pesquisa, porém, assumi o vocabulário “travesti” como dado, sem indagar como o adotaram e o que significava para as pessoas que assim se nomeavam.
No entanto, no decurso do trabalho de campo doutoral, devido à multiplicidade das identificações que encontrei; ao fato de que algumas pessoas que no período do meu trabalho de campo da graduação e do mestrado se identificavam como “gay” passaram pelo processo de transição de gênero, se identificando como “travesti” e em seguida foram ensinadas a se identificar como “mulheres trans”, redefini a identificação do meu objeto de pesquisa ̶ inspirado pela proposta de Barbosa ̶ para “pessoas que foram assignadas como nascidas do sexo masculino e se engajaram em práticas de transformação de gênero de forma a construírem o que consideram feminino em seus corpos” (2010, p. 5).
Barbosa (2010) é enfático ao defender que uma das máximas do trabalho antropológico é a suspensão das categorias ao definir seu objeto e considerar que o caminho mais rentável para a análise é não delimitar de antemão o objeto de pesquisa. Assim, ecoando esse adágio antropológico, ao longo da minha pesquisa doutoral busquei centrar uma parte das minhas análises nos processos de interação social através dos quais os indivíduos se autoidentificam e são identificados pelos outros.
Assim, neste texto mostro que as minhas interlocutoras, de acordo com as fontes de informações que tiveram disponível ao longo do tempo, assumiram variadas autoidentificações. Na infância ainda na casa dos parentes, devido ao fato de elas se sentirem confortáveis com as brincadeiras do universo feminino, aos seus trejeitos e por exercerem papéis sociais associados ao universo das “meninas”, nas brincadeiras infantis eram chamadas pejorativamente de “maria-rapaz”[3], “marica” e “bicha”[4], devido à transgressão ao binarismo de gênero. A maioria, porém, não se identificava com esses termos, por entenderem ser pejorativos e estigmatizantes.
Em contrapartida, na fase da adolescência (uns ainda vivendo em casa dos parentes, outros já tendo deliberadamente saído da casa dos parentes) tomaram conhecimento do termo “gay”, ora através das telenovelas brasileiras, informações conseguidas via internet e dos programas de chats de TV que passavam em canais televisivos moçambicanos; ora quando entraram em contato com a associação LAMBDA e conheceram os significados de algumas terminologias LGBT. Dessa forma, elas adotaram os termos “gays” e “homossexuais” como “adequados” para nomeá-las e passaram a se autoidentificar pela via sexual e erótica como “gay” ou “homossexual”.
Aquelas que, na adolescência, nos meados de 2010, já tinham deliberadamente saído de casa e conheceram pessoas mais velhas em pleno processo de transição de gênero (masculino para feminino), foram morar com essas pessoas e aprenderam, através da observação, convivência e conversas, as técnicas de modificação corporal e passaram gradualmente a modificar sua forma de se vestirem e a aparência para se adequarem ao que são internamente. No entanto, quando saíam para espaços públicos vestidas com roupas femininas, eram rotuladas de “transveste”/“travestis” pelas pessoas e, nesse processo de rotulagem, passaram a assumir o termo “travesti” como identitário e adotaram esse termo para se nomear.
Em meados do ano de 2018, parte das minhas interlocutoras que se autodefiniam “travestis” passaram a frequentar a associação LAMBDA e nos encontros direcionados às pessoas trans foram paulatinamente ensinadas pelas ativistas trans da associação a se autoidentificarem com o termo “mulheres trans”, visto como mais eficaz e adequado. Nesse processo de assimilação da categoria “mulheres trans”, passaram a reconhecer o termo “travesti” como ofensivo e inadequado. Também recebiam lições morais e um aprendizado paulatino de comportamentos “respeitáveis” que deviam passar a ter, com vista a adquirirem respeitabilidade social.
No entanto, no contexto cotidiano, a maioria das interlocutoras deste estudo raramente se identificava com o termo de “mulheres trans”. Ao contrário, elas se referiam umas às outras e a si mesmas como “manas”, “maricas”, “bichas”, “travesti”, “trava” “puta” e “boneca”, mas não se fixavam em nenhumas dessas categorias, transitando entre elas de acordo com o contexto. Na interação, esses vocabulários locais ganham statusde vocativos recorrentes entre pessoas com uma intimidade e sentido de amizade ou coleguismo.
Recentemente, em escritos sobre diversidade sexual e de gênero em contextos africanos tem existido um apelo para que os estudiosos africanos abandonem as categorias e os conceitos ocidentais, pois em alguns casos dificilmente captam as experiências homoeróticas e homoafetivas nesses contextos. Ademais existem também estudiosos que questionam se os termos “homossexuais”, “LGBT” e “queer” podem ser traduzidos em idiomas africanos (Chitando; Mateveke, 2017, O’Mara, 2013, Tushabe, 2013; Kendall, 1998). Em um esforço de implantar categorias locais em escritos sobre diversidade sexual e de gênero em contexto africanos, optei por chamar as pessoas com as quais interagi neste estudo provisoriamente de “manas trans”. O termo surge da junção da expressão “manas” ̶ que é uma expressão que elas acionam com frequência para falar de si mesmas e de outras pessoas entendidas como suas semelhantes ̶ com o termo “trans”. Neste texto, o termo “trans” segue a concepção avançada por Sanger:
uma pessoa trans será qualquer indivíduo que se identifique com um género que não (exclusivamente) aquele que lhe foi atribuído à nascença. Isto pode significar alguém reconhecido como género masculino à nascença, mas que se identifica com o feminino ou vice-versa, ou identifica-se com as duas ou com nenhuma das categorias binárias de género comumente aceites (Sanger apud Saleiro, 2013, p. 15).
A expressão “mana” no contexto de Maputo é amplamente utilizada pelas pessoas para se referir à irmã mais velha. No entanto, no universo em análise, em particular entre os homossexuais e pessoas trans, a expressão “mana” é uma gíria que funciona como pronome de tratamento carinhoso ou acusatório e que revela a percepção das pessoas quanto à sua condição de pessoas homorientadas. Todavia, aqui neste texto, a categoria “manas trans” deve ser entendida como analítica para referir às pessoas que foram interlocutoras desta pesquisa, as quais, em diferentes momentos de suas vidas, intencionalmente ou não, desejam a transição de gênero masculino para o feminino. Contudo, no universo das “manas trans” estudadas existe uma diversidade de formas de ser feminina e de viver a condição feminina (Mugabe, 2019). Na seção seguinte busco contextualizar o local de estudo mostrando como no plano jurídico e social são encarados os LGBT moçambicanos.
A Constituição da República de Moçambique declara, no artigo 35, direitos iguais para todos os cidadãos. Como aponta Manuel (2012), na legislação moçambicana, inexistem entraves explícitos sobre a homossexualidade. No entanto, mesmo com a ausência de um entrave legal contra homossexuais, a Associação LAMBDA continua sem processo de registro, desde 2007.
O Ministério da Justiça veda o registro legal da associação, alegando que a homossexualidade é exógena aos hábitos culturais e viola os preceitos religiosos moçambicanos. Matebeni e Pereira (2014) afirmam acertadamente que a linguagem da religião, cultura e tradição é muitas vezes usada para falar contra a diversidade sexual e de gênero no continente africano. Porém, no contexto moçambicano do ponto de vista jurídico legal, a Lei do Trabalho é um dos dispositivos legais que protege o trabalhador homossexual, pois se proíbe a discriminação da pessoa pela sua orientação sexual.
Importa ressaltar que com a ajuda da campanha da Amnistia Internacional, o recente Código Penal promulgado em 19 de dezembro de 2014 revogou os dois artigos do Código Penal de 1886, que davam margem para a criminalização da homossexualidade através de medidas de segurança. No entanto, algumas pessoas LGBT em Moçambique lidam, no seu dia a dia, com preconceito, discriminação e violência nos diversos espaços sociais em que circulam, como bem documentam os estudos de Mendes de Souza (2015); Chipenembe (2018); Mugabe (2019) e Miguel (2019).
No contexto moçambicano, a Associação LAMBDA encontra abertura com Ministério da Saúde nas áreas da prevenção e educação ligada a VIH para homossexuais. Porém, essa abertura apenas só engloba homossexuais masculinos. No Plano Estratégico Nacional de Resposta ao VIH e SIDA de Moçambique (PEN III 2010–2014), incluem-se os HSH como populações em maior risco para o VIH em Moçambique decorrente de fatores socioeconómicos, culturais ou comportamentais (CNCS, 2009). Entre 2011 e 2012 foi conduzido em Moçambique, o primeiro Inquérito Integrado Biológico e Comportamental entre HSH nas cidades de Maputo, Beira e Nampula.
Como mostra Chipenembe (2018), nem todas as pessoas vulneráveis que pertencem a grupos sexualmente não conformes têm se beneficiado de políticas sociais e de saúde em todo o mundo e em Moçambique, em particular. No contexto moçambicano, verifica-se a exclusão das pessoas trans, lésbicas e bissexuais no desenho das políticas públicas na área da saúde, por exemplo. No contexto africano, Moçambique é um dos países tidos como aquele que tem uma população “tolerante” com a homossexualidade. No entanto, como diagnostica Miguel (2019, p. 29), “a suposta ‘maior tolerância’ em relação à homossexualidade em Moçambique, acionada tanto por sujeitos gays quanto por heterossexuais, ativistas e não ativistas, governantes e governados, o é sempre em relação a uma outra realidade”. Assim, para Miguel, a “tolerância” moçambicana é ambígua, pois:
Por um lado, os moçambicanos – com distintas práticas sexuais – apontam para as discriminações que sofreriam os LGBT, seja em casa seja pela sociedade mais ampla; por outro lado assumem que não vivem em uma sociedade que persiga, que encarcere ou que mate pessoas LGBT – como eles veem acontecer em estados nacionais vizinhos (MIGUEL, 2019, p. 347).
Minha pesquisa foi realizada na cidade de Maputo, o que me impede de fazer um exame mais detalhado das especificidades locais e regionais da temática LGBT em Moçambique no seu todo. Contudo, a novidade desta pesquisa no contexto moçambicano é de estudar as experiências de vida das “manas trans” moçambicanas, contribuindo deste modo para o campo dos estudos de gênero, sexualidade e transexualidade/travestilidades no contexto africano e moçambicano em particular. A seguir, mostro como encontrei as “manas trans” de Maputo que colaboraram com esta pesquisa.
Dado estar trabalhando com uma população escassa em termos numéricos e quase invisível socialmente, a estratégia de acesso aos potenciais sujeitos do estudo passou por procurar pessoas trans que foram minhas interlocutoras no trabalho de mestrado, que na altura se chamavam “travestis”, bem como procurar alguns sujeitos gays maputenses que foram meus colaboradores nas minhas pesquisas anteriores, mas que nos seus perfis de Facebook apresentavam transição da expressão de gênero e/ou se identificavam com o termo “travestis” em suas postagens[5]. Além disso, quando no início de 2018 tomei conhecimento do recrutamento das pessoas trans na associação LAMBDA, passei a frequentar a instituição para procurar interlocutoras e também as solicitei que me apresentassem pessoas semelhantes a elas.
Com o acionamento dessas estratégias, conheci e conversei com um total de 17 pessoas em transição de gênero (masculino para feminino) pertencentes a classes populares, nomeadamente: Eugênia, Ana Claudia, Kimberly, Jovanna, Thainã, Pamela, Quitéria, Lucia, Adneuze, Leonarda, Melissa, Lana, Brigitte, Astrid, Diandra, Mariana e Dalva[6]. Todas tinham, à época da pesquisa, idades compreendidas entre 20-30 anos. Importa frisar que não disponho de dados que me permitam calcular a proporção numérica representativa do universo das pessoas de expressão trans em Maputo, pois se desconhece a sociografia das pessoas trans em Moçambique e nas suas cidades. No entanto, mesmo com um número limitado de interlocutoras, foi possível dar conta de que a população trans é diversificada em termos de idade, de escolaridade, de profissão, de classe social e do seu grupo familiar.
Das 17 pessoas trans que colaboraram com esta pesquisa, dez afirmaram que eram trabalhadoras do sexo; uma estilista; quatro educadores de pares; uma secretária e uma responsável pelas mulheres trans. Estas últimas seis trabalhavam na LAMBDA, no momento do trabalho de campo, e recebiam subsídios pelos seus trabalhos. Em termos de escolaridade: cinco concluíram o ensino secundário; nove não completaram o segundo grau do ensino primário e duas não completaram o primeiro grau do ensino secundário[7].
Das minhas interlocutoras trans, sete no momento do trabalho de campo viviam em casa dos seus familiares e as restantes viviam fora do convívio familiar. No entanto, três das minhas interlocutoras com envolvimento no trabalho sexual se deslocam com frequência para outras cidades nacionais e outros países, como a África do Sul. A “rotatividade” pelos diversos espaços e territórios nacionais ou internacionais é valorizada entre minhas interlocutoras trans. Nas duas seguintes seções, apresento e discuto os resultados da pesquisa.
Como escreve Adelman et al. (2003), a criança é inserida nas práticas da sua família e da sua comunidade a partir da atribuição de gênero, e os processos de socialização de gênero são carregados de conteúdos normativos e diferenciados. Porém, para alguns sujeitos, os processos de formação das identidades sexuais e de gênero começam muito cedo e desde cedo também vão-se construindo como relações conflituosas de integração da pessoa a uma sociedade e a uma cultura (Benjamin, 1988; Chodorow, 1999 apud Adelman et al., 2003, p. 69; McLachlan, 2010).
Em certos contextos familiares moçambicanos e outros meios sociais, é desejável uma adequação de comportamentos e práticas esperados para “meninos” e “meninas”, o que implica que as pessoas devem aderir ao binarismo de gênero, ter uma concordância entre sexo, gênero, corpo e desejo; ainda assim, minhas interlocutoras em certos espaços sociais subvertiam o binarismo de gênero, contrariando aquilo que a sociedade exige do seu sexo anatômico e as expectativas em relação ao gênero masculino.
Por isso, a sensação de se “sentirem mulheres” ainda na infância é comum entre as interlocutoras deste estudo. Essa sensação vem marcada pelo interesse que tinham pelas brincadeiras e jogos pertencentes ao universo das “meninas” e detestavam brincadeiras e jogos infantis “dos meninos”. Algumas “manas trans” narram, em suas biografias, que nas brincadeiras infantis se sentiam confortáveis desempenhando papéis de “mãe”, “filha”, “irmã” ou “avó”. A identificação com papéis femininos na infância (a vontade de usar roupas femininas e de estar entre as “meninas”) é sempre ressaltada pela maioria das minhas interlocutoras. A esse respeito, as narrativas de Astrid e de Jovanna são esclarecedoras:
Nelson: Contem-me sobre a vossa infância. Quais eram as vossas brincadeiras preferidas? Com quem vocês brincavam? E como vocês se identificavam ou como as pessoas vos identificavam na infância?
Astrid: Eu me recordo que desde criança com os meus 6 ou 7 anos gostei de brincar de bonecas. Quando era brincadeira de mamã e papa eu queria ser mulher. Se nas brincadeiras era para desempenhar o papel de filhos eu preferia ser filha. Eu sempre preferia papéis femininos: mamã, filha e avó nunca pai, filho avô. Eu gostava de brincadeiras de meninas: neca[8], cheia[9] mathokosana[10], xitchuketa[11], nunca joguei futebol fora na escola porque lá nos dividiam em meninos e meninas (...) Como meus pais não podia me dar boneca eu tirava capim que tinha raízes finas fazia boneca com esse capim depois trança aquelas raízes do tipo estou a fazer mechas na boneca que era capim (risos). Nos meus 9 ou 10 anos, as meninas passaram às vezes a negar de brincar comigo dizendo que eu era menino e devia brincar com os meninos, então eu sugeria a elas que eu iria abrir um salão para lavar as bonecas delas e elas aceitavam. (...) Então acredito que pelas minhas brincadeiras e meu comportamento feminino as pessoas na rua chamavam-me de: “Seu marica” para debochar. Então eu era marica para as pessoas. Cresci aprendendo que eu era “marica”.
Jovanna: Desde criança eu me sentia mulher, praticamente nasci mulher. Isso dava para ver pelas minhas brincadeiras que sou menina. Eu brincava de bonecas, mathokosana, era a rainha de cheia, maflex[12], xitchuketa. Na altura minha mãe falava para eu não brincar com essas coisas porque são brincadeiras de meninas”, mas no fundo ela sabia que eu era diferente, minha mãe sabia que eu não era filho, mas sim filha. Podia não querer aceitar (...) Por razões familiares na criancice não podia colocar roupa feminina, vestia roupa masculina, mas sempre me sentia mulher. Quando brincava na rua e quando ia para escola como as meninas e o fato de que eu tinha tiques de meninas, as pessoas chamavam-me de “maria- rapaz”, “maricas” ou “boiola”, “bicha” essas coisas. As pessoas falavam essas coisas para me ofender. (...) Na altura, eu nem sabia o que era, praticamente eu fazia as minhas vontades e ouvia pessoas a falarem “maricas”. Eu sabia que eu sou “maricas” ou “maria-rapaz” e que eu quero ser mulher. Então isso aconteceu ainda na altura em que eu estudava em que eu ia à escola de calças afuniladas e tive muitos problemas por causas dessas calças porque na escola não aceitava. Parte da família criticava, “essas roupas são femininas” essas coisas e terminavam aí, sempre minha mãe reclamou, mas no fundo minha mãe sabia que o filho que tinha era diferente (Conversa com as “manas” de Nova Jersey, 2018).
Na narrativa de Astrid, depreendo que ela se sentia confortável com as brincadeiras infantis adequadas para as “meninas” e de forma tática criava estratégias para driblar a imposição de comportamento referente ao gênero masculino nas brincadeiras infantis. Porém, na escola Jovanna era exigida a obedecer ao binarismo de gênero, pois o espaço escolar organiza a estética do vestuário em função do sexo anatômico.
Na infância e adolescência vivendo com os familiares, as minhas interlocutoras eram obrigadas a vestirem roupas masculinas para cumprirem com as normas do vestuário socialmente atribuído aos “meninos”; por isso, muitas delas narram que na infância “vestiam-se a rapaz” como forma de obedecer ao binarismo de gênero imposto pelos familiares. É ainda na época da infância que elas começam a entender que são “diferentes” dos outros “meninos” e que isso é socialmente reprovável. Porém, devido à aparente incongruência do comportamento esperado para um “menino”, as pessoas ao seu redor as identificavam de “maria.rapaz” ou “maricas” devido a efeminação dos seus corpos.
Assim, na infância, algumas “manas trans” passaram a se autoidentificarem como “maria.rapaz” ou “maricas”, mas a maioria entendia esses termos como pejorativos, mais ofensivos do que identitários. Outras, devido às normas de vestuários adequados para os “meninos” e outros acessórios generificados que eram obrigadas a usarem na infância e na adolescência, identificavam-se como “gays” antes de agirem sobre o corpo, para que ele se tornasse feminino. Todavia, ao mesmo tempo em que minhas interlocutoras afirmam que sempre foram “mulheres”, os seus discursos admitem terem assumidos outras identidades ao longo do tempo.
Nas conversas sobre a infância, poucas “manas trans” me falaram que a atração homoerótica foi o aspecto mais importante no processo de autodescoberta e constituição como “travesti. e depois como “mulheres trans.. Ao contrário, na perspectiva delas, o aspecto relevante que as levam a construírem-se enquanto sujeitos femininos é o fato de subjetivamente se “sentirem mulheres” desde a infância. Elas concebem o gênero como uma dimensão subjetiva e persistente em dissonância com seus corpos biológicos. Jovanna foi enfática nesse sentido:
(...) Jovanna: É assim, comecei a me vestir de mulher e me comportar como mulher porque desde minha infância eu queria ser mulher, eu queria ser vista como uma moça, não tem nada ver com o fato de eu gostar de meninos, independentemente de desejar homens eu me sinto mulher. O quer ser mulher é algo que está comigo no coração e a cada dia que me comporto como mulher fico feliz e realizada. Eu gosto de ser mulher porque mesmo quando me vestia rapaz eu gostava de meninos, então o se sentir mulher não tem nada a ver com o desejo com homens.
Quando solicitava às minhas interlocutoras que analisassem seu passado em busca de indícios do que pode tê-las feito serem “manas trans”, o que aparece de maneira elaborada é o fato de elas gostarem de papéis de gêneros associados ao universo feminino e subjetivamente se “sentirem mulheres” desde a infância. E esse “sentir-se subjetivamente mulher” é percebido como atributo mental, sem ligação aparente com o desejo e a orientação sexual.
Esse achado contrasta com o que estudiosos de outros contextos e períodos apontam como força motriz que faz com que algumas pessoas se tornem “travesti” ou “transexual”. Certa literatura brasileira que estudou as pessoas trans em determinado período e contexto explica que é o desejo e a disposição para a prática sexual homoerótica ainda na infância bem como o gosto pelas roupas e jogos das meninas um dos argumentos essenciais, na perspectiva das travestis, para que elas possam construir-se subjetivamente enquanto sujeitos femininos (Benedetti, 2000; Kulick, 2008; Pelúcio, 2009).
Tal como demonstram outras pesquisas que recorrem às biografias das pessoas trans, é recorrente, entre as pessoas trans estudadas, uma visão essencialista sobre o gênero e que o sentimento de pertença ao gênero “oposto” ao que lhes foi atribuído à nascença as acompanha desde que têm consciência de si (Benedetti, 2000; Pelúcio, 2009; Rodrigues, 2010; McLachlan, 2010; Saleiro, 2013; Santos, 2014). Em alguns casos, as biografias assemelham-se bastante, e a mais corrente é que “desde criança eu me sentia mulher, praticamente nasci mulher”, como me afirmou Jovanna.
Apesar das persistentes censuras feitas pelos parentes e outras redes de pessoas na infância e principalmente na adolescência, para que elas deixassem de ter comportamentos de “maria-rapaz”, na medida em que cresciam não desistiam de mostrar aquilo que sentem subjetivamente para as pessoas. Por isso, a adolescência foi o momento em que algumas “manas trans”, ainda em casa dos familiares, começaram a vestir, de forma esporádica e escondida, roupas femininas das irmãs, mães e tias; outras abandonaram o ensino primário do 2. grau devido ao preconceito e conheceram pessoas que as levaram para o mundo do trabalho sexual. Kimberly, uma “mana trans”, me disse:
Kimberly: eu vivi primeiro com minha irmã na província de Gaza, porque eu estudava lá, mas na 7a classe comecei com as brincadeiras (...) e minha irmã me transferiu para estudar em Maputo e passei a viver em casa do meu pai. Vivia eu, ele e minha tia, mas os dois viajam muito. Eu às vezes levava roupa da minha tia, os cremes, os perfumes dela e usava, como ela não ficava em casa e meu pai voltava tarde, eu ficava sozinha em casa de capulana e blusas da minha tia. (....) Então um belo dia quando tinha 16 ou 17 anos, uma senhora da zona viu o meu jeito de ser e ela disse-me: “vai para Baixa da cidade”, ela me deu dica de vida...
(...) Eu virei prostituta a viver em casa do meu pai. (...) Um belo dia meu pai me reuniu e perguntou o que estava a acontecer comigo, não falei nada. Fui ter com a vizinha que me disse para ir à Baixa e pedi para ela fazer chegar à informação ao meu pai que eu gostava de homens e era trabalhadora do sexo porque o meu pai passou a pensar que eu estava a roubar para conseguir as coisas que eu tinha. A senhora veio para minha casa, falou com meu pai e disse o que eu era. Meu pai não me mandou embora, eu saí porque queria a minha independência (...) eu saí de casa do meu pai quando conheci a mana Carmen Miranda. No dia em que fui a casa dela nem quis voltar porque eu me sentia à vontade, vestia a mulher à vontade, embora no início eu me vestia de mulher de noite e me vestia a gay de dia.
Em sua dissertação sobre experiências vividas por pessoas trans no desenvolvimento de sua identidade transgênero no contexto sul-africano, McLachlan (2010) mostra que algumas das suas interlocutoras viviam sua identidade feminina em segredo, vestiam roupas femininas que as faziam se sentir confortáveis quando outros não estavam por perto, tal como minha interlocutora Kimberly. Todavia, minhas interlocutoras relataram diferentes reações dos familiares à descoberta da orientação sexual, identidade de gênero e do trabalho sexual. Algumas “manas trans” passaram por diferentes formas de repressão no ambiente familiar, principalmente foram alvos de tratamentos de cura para que se comportassem de acordo com o gênero esperado, o masculino.
Em alguns contextos moçambicanos existe uma percepção de que pessoas homossexuais e pessoas trans são possuídas por espíritos e que ao serem submetidas aos trabalhos ritualísticos dos curandeiros e das igrejas podem ser curadas[13]. Jovanna e Melissa no encontro sobre adolescência, exclusão das “mulheres trans” no seio familiar e sua entrada no mundo do trabalho sexual, organizada em meados de maio de 2018, por Lucia (ativista e responsável pelas questões trans da Lambda) revelaram que foram submetidas aos processos de cura. Elejo aqui a narrativa de Jovanna como ilustrativa:
Jovanna: Eu vestia roupa unissex, calças apertadas, sapatilhas, esticas. Então, como eu estava sozinha, ninguém podia reclamar porque eu dependia de mim mesma e não tinha encarregado. Daí comecei a explodir: fiz tranças de linhas e minha avó logo ligou para minha mãe. Então fizeram reunião familiar para me fazerem mudar, mas eu já sabia o que eu queria. Minha mãe e meu pai vieram. Era antes do meu pai falecer. Recordo que minha mãe desmaiou, foi trauma para ela, mas no fundo, no fundo ela sabia só que ela não esperava que fosse virar mulher, ela sabia que o filho que tinha não é homem (...) Então foi um choque, concentrou-me ali, cortou-me o cabelo, as unhas, levou minhas roupas, as bolsas e coisas femininas que eu lá tinha. Recordo que essa atitude dela me chateou muito na altura e eu desabafava com minhas amigas: “mas ela não está boa de cabeça, ela acha que me cortando unhas e cabelo resolve, levando sapatos, cabelos e vestidos resolve, ela está muito enganada porque unhas crescem”.
Na altura eu criava as minhas próprias unhas, recordo que ela me cortou duas vezes eu a chorar. Com tempo, minha mãe tomou conhecimento de que além de me vestir de mulher, sou puta. Acredito que minha mãe estava conformada de eu ser mulher, mas quando soube que vou para Baixa me prostituir foi um choque grande. Veio para cá com meu pai. Então ela convenceu-me a passar uma temporada em Inhambane (...). Chegado lá fomos à casa de uma curandeira. Deixei a curandeira fazer o trabalho dela, cortou-me as unhas, os cabelos e deu-me banho com folhas e remédio para tomar. Na altura falei comigo: “esse remédio não vai servir”. Porque era o remédio para me curar de ser mulher.
Para minha mãe eu tinha um espírito do sexo feminino que me obrigava a ser como uma mulher e a curandeira podia me curar (...). Tive que vestir roupa de homem praticamente todo o tempo em que fiquei lá. Quando chegou o momento de eu voltar no penúltimo dia, fui à mala da minha mãe, fiz rancho de roupa, escolhi as peças que gostei porque o remédio que ela me deu comigo não funcionou, eu queria ser mulher. Praticamente aquele remédio era um combustível que me deu força. Quando cheguei a Maputo, virei mulher de verdade e fui para Baixa. Comecei a ter sucesso e comecei a organizar a minha vida, e ela foi vendo que este aqui não vale apenas é mulher e acabou aceitando.
Com a narrativa de Jovanna, depreendo os conflitos com tentativas de curas rituais que teve com a sua mãe, mas também as agências que Jovanna acionava para driblar as cobranças da mãe. Devido à persistência de Jovanna em mostrar a sua subjetividade feminina, sua mãe se conformou com a aparência da filha. As minhas interlocutoras que ainda vivem com os pais explicaram-me que é comum que com o tempo, os parentes se conformarem com a sua identidade de gênero. Miguel (2019, p. 282) observou também que quando pais, mães e avós moçambicanos descobrem que seus parentes são homossexuais, ocorrem certos conflitos, mas que no fim, os familiares se conformam.
As narrativas das minhas interlocutoras mostram ainda que as práticas ritualísticas de curas tanto nos curandeiros como nas igrejas a que foram submetidas resultaram em fracasso. Algo que também é documentado nas etnografias de Chipenembe (2018) e Miguel (2019). Na sua tese doutoral, Chipenembe (2018) descreve casos de lésbicas/mulheres bissexuais que foram submetidas a práticas ritualísticas de cura realizadas por curandeiros e líderes religiosos.
Se no campo encontrei o caso de Jovanna e de Melissa, que tiveram conflitos referentes a curas rituais com os seus familiares quando iniciaram as suas modificações no modo de vestir e na aparência, encontrei outras interlocutoras que no momento do trabalho de campo viviam em casa dos familiares e que me contaram que não sofreram conflitos e nem discriminação no seio familiar. Isso se deveu em parte pelo fato de começarem os processos de transformação da estética corporal e o uso de roupas femininas tardiamente, ou seja, adultas, de forma estratégica e paulatina. E com o tempo, os parentes acabaram se conformando e aceitando a identidade de gênero das suas filhas. Dalva, Leonarda e Pamela apresentaram relatos similares. Por isso, escolhi a conversa com Dalva:
Dalva: Então eu ainda vivo em casa dos meus pais, e o meu processo não foi tão difícil nem tão chocante para os meus pais porque eu inicialmente sempre vestia roupas afeminadas meio gay. Passei minha adolescência vestindo-me meio gay, também na altura eu era mais gay do que trans. Mas definitivamente há dois anos eu comecei a vestir roupa de mulheres e me assumi como mulher em casa e os meus pais nunca me discriminaram porque eu comecei preparando a mente deles não agredindo do tipo aparecer de repente já a mulher. Fui pondo cabelo sábado ou domingo e tirava na segunda, eles viam que fiz algo diferente outro dia colocava uma blusa e às vezes camisetes masculinas ou uma camisa masculina e uma calça bem apertada, preparando a mente dos meus pais. Inicialmente fiz dreads, minha mãe reagiu mal, e lhe fiz entender que aquilo são dreads não tinha nada a ver (...) O problema de outras manas é que querem fazer a montagem de uma vez e acabam agredindo o ambiente familiar. Eu também sou uma pessoa independente, sempre tive espírito de trabalhar e me sustentar, é sabido de antemão que os familiares são interesseiros, sempre que tivesse algum dinheiro dividia ao meio, qualquer coisa que me pedem estou aí presente para ajudar, então eu acho que isso ajudou muito a eles me aceitarem como eu sou hoje.
Com o relato de Dalva, depreendo que ela acionou várias estratégias para ser aceita pelos pais. Uma delas foi iniciar as modificações da estética corporal e do vestuário de forma paulatina e discreta, preparando, de acordo com o ponto de vista dela, a mentalidade dos pais com vista a aceitarem sua nova aparência. Assim, para ela, aquelas “manas” que assumem as suas identidades de gênero de forma abrupta estariam agredindo e consequentemente desrespeitando os seus familiares.
No entanto, através das conversas com as interlocutoras que vivem com seus familiares, depreendi que as famílias aceitam a sua feminilidade porque algumas contribuem financeiramente com as despesas das casas. No contexto moçambicano, contudo, estudos são necessários para perceber se a independência financeira é importante para a tomada de decisão de as “manas trans” se “tornarem” definitivamente “pessoas trans”.
No que diz respeito à autoidentificação na adolescência, Dalva explicou que a televisão abriu novos espaços de compreensão de sua existência quando começou a acompanhar os chats de TV apreciando textos de mensagens via SMS que alguns telespectadores se identificavam como sendo gays e que buscavam parceiros do mesmo sexo. Esse programa permitiu a Dalva conhecer o termo “gay” e em seguida perguntou à sua prima o significado do termo “gay”. Passou assim a assumir o termo como identitário, em contraposição aos termos pejorativos de “maricas” e “bichas”:
Nelson: Você falou que na adolescência eras meio gay. Como tomaste conhecimento de que esse termo se refere a sua identidade.
Dalva: Na altura rolava chats na KTV, então eu só via pessoas que mandavam mensagens dizendo: sou um homem gay que busca relacionamentos com homens. Então rolou uma curiosidade e perguntei a minha prima e ela me disse que gays eram pessoas que gostam de namorar pessoas do mesmo sexo. Então como não gostava dos termos maricas, bichas, eu me identifiquei com o termo “gay”.
Dalva, mesmo sendo uma pessoa trans, inicialmente se identificou, via categoria sexual, como gay. A hipótese que tenho é que o termo “gay” para Dalva (e outras interlocutoras que ao longo das suas vidas passaram a se nomear como “gay”) funcionava como categoria de orientação sexual e de identidade de gênero. Ou seja, embora a maioria das minhas interlocutoras sempre gostassem de coisas femininas, algumas se classificaram como sendo gay antes de aderirem ao gênero desejado.
Por sua vez, Adneuze explicou que, antes de frequentar a associação LAMBDA, as pessoas ao seu redor lhe chamavam pejorativamente de “maricas” e na altura rejeitava essa rotulação como identitária, porém, através dos programas de chats de TV, tomou conhecimento de que o termo “gay” se refere aos homens que gostam de homens e, em contato com associação LAMBDA no ano de 2011 foi ensinada a se identificar como “gay”.
Em uma dinâmica semelhante a Adneuze, Eugênia explicou que na adolescência era chamada pejorativamente de “maria-rapaz” ou “marica”, devido a sua transgressão visível de gênero. Mas quando em meados de 2012 começou a frequentar a associação LAMBDA “descobriu” a se nomear como “gay” ou “homossexual”, assumiu o termo “gay” como identificação pessoal. Todavia, quando em 2015 começou a modificar sua aparência para incorporar signos femininos no seu corpo, passou a ser chamada pelas pessoas na rua de “travesti”.
Como observou lucidamente Chipenembe (2018), os integrantes da LAMBDA criam manuais, folhetos, programas de rádio e TV para capacitar os ativistas e seus membros, a mídia e a sociedade em geral a aprenderem os termos, os conceitos e as expressões que consideram adequadas para identificar pessoas LGBT e abordar questões referentes às minorias sexuais. Na mesma linha, Miguel (2019, p. 222) explica que “a LAMBDA seria um dos atores fundamentais para a inscrição de sujeitos potencialmente ‘LGBT’ dentro de uma nova episteme, que não só privilegia centralmente a sexualidade na identidade desses sujeitos como estabelece outras subclassificações”.
As interlocutoras que frequentaram a associação LAMBDA na adolescência e se beneficiaram das terminologias tidas como corretas começaram a assumir o termo “gay” e “homossexual”, por exemplo, como estável e que eles podiam usar e revelar a outras pessoas como suas identidades pessoais. Importa salientar que durante o período da minha observação etnográfica, duas interlocutoras me revelaram que mesmo sendo identificadas pelos outros com o termo “gays”, vivenciavam suas identidades pessoais como em oposição a uma identidade gay. Lucia foi enfática em sua narrativa:
Nelson: Quando te conheci em 2011, você se identificava como gay. Muitas das vezes você gritava “bichona” e mesmo atualmente você postas fotos em que na legenda vem “bichona”.
Lucia: Eu nunca me identifiquei como homem gay. Nesse momento eu tinha crise de identidade. Eu nunca tive uma identificação fixa, posso dizer que na altura era queer, mas agora eu sei que sou mulher não posso ocultar uma coisa que eu sou, pela falta de informação de saber o que eu sou, eu me identificava como mulher, nunca como um homem gay. Eu nem conhecia o significado do que era ser gay, simplesmente eu sabia que existiam gays, mas eu não sabia onde me enquadrar. As pessoas é que me chamavam de gay porque eu me relaciono com outros homens, mas eu nunca me identifiquei com gay, sempre que saía com minha mãe para comprar roupa, eu me identificava com roupa feminina, eu me identificava como mulher, mas não tinha informação do que é isso, e se fores a notar essa questão de transexualidade é algo que se está a falar agora, em Maputo ou em Moçambique não se falava disso.
A partir desta narrativa, entendo que Lucia, mesmo diante da incompreensão de si, considerava-se e queria ser vista como uma “mulher”; embora algumas pessoas presumissem que ela fosse “gay”, nunca se identificou como “gay” e se via diferente dos gays, pois ela se identificava como sendo subjetivamente uma “mulher”. Ela obteve a consciência da “transexualidade” quando assumiu o cargo de responsável sobre questões de “mulheres trans” na LAMBDA. Esta posição levou-a a pesquisar sobre essa temática e a construir um novo sentido dela mesma como “mulher trans”. O que mostra que a LAMBDA ajuda a normalizar as categorias de identidade sexual e recentemente de gênero como identidade pessoal que os sujeitos LGBT passam a usar para se nomear.
Se uma parte das minhas interlocutoras teve o privilégio de mostrar o que sentem internamente através do uso de roupas femininas mesmo tardiamente no seio familiar, outras tiveram que sair deliberadamente de casa ainda na adolescência, quando conheceram outras pessoas que compartilhavam a mesma sensação de não pertencimento ao gênero atribuído. As que saíram de casa cedo tiveram o privilégio de modificar suas formas de vestir e sua aparência ainda na adolescência. Todavia, Astrid antes de conhecer outras pessoas com experiências parecidas contou-me que a adolescência foi um momento de aflição, de falta de compreensão de si, e consequentemente tentou se adequar aos comportamentos normativos esperados para os “meninos”:
Astrid: A fase mais chata para um gay é quando transita do ensino primário para o ensino secundário; essa é a fase que os gays que são afeminados deixam de estudar porque é no ensino secundário que os gays sofrem mais preconceito e discriminação. É na fase da adolescência que meus colegas percebiam que eu não tinha uma namorada. Eu até na adolescência entre 12 a 14 anos, eu neguei que era gay, tentei me envolver com meninas, mas não deu em nada, criei barba, decidi que queria ser forte, musculoso, eu empinava muito a bunda aprendi a andar com homem e fiz rap. Eu tentava fugir da minha realidade, mas em 2014, quando recebi muitos pedidos de amizade de alguns gays e conversei com eles, acabei me aceitando e descobrir que não sou sozinha, acabei me soltando ainda mais. Conheci Jovanna no Facebook, lá conversamos e ela me convidou para conhecer a casa dela. Então vinha sempre cá passar o fim de semana e ficava maior parte do tempo em casa da Jovanna, só ia dormia em casa do meu tio porque com elas eu tinha liberdade e fazia o que queria, mas ainda era gay não assumido e me vestia a rapaz enquanto elas já eram travas.
Então, quando tinha 17 anos, vim passar um fim de semana em casa da Jovanna e não quis voltar mais para casa da minha mãe. Um dia tive aquela curiosidade de se eu vestir roupa dela, de “como vai ser”? Até que ganhei coragem de vestir a roupa dela, fiz maquiagem, calcei sapatos e coloquei peruca dela e saí até o mercado Sahara. Nesse dia me senti a tal, porque muitos homens queriam a mim e as pessoas olhavam para mim. Então comecei assim, às vezes saía vestido de homem de dia, e de noite a mulher, com tempo e com a ajuda da Jovanna, decidi ser mulher todo dia (...)
Nelson: Por que vestias a homem de dia e a mulher de noite?
Astrid: Medo de me encontrar com familiares do meu tio, o próprio meu tio porque ele vive na mesma rua da Jovanna. Medo também da reação das pessoas. Mas quando saía de noite para festa, discoteca com elas eu pedia para pôr as roupas delas.
Conforme mostra McLachlan (2010), os papéis e as expectativas de gênero se tornam mais marcantes durante a adolescência, e a narrativa de Astrid mostra que o contexto escolar do secundário, que é frequentado na maioria das vezes por adolescentes, aparece como produtor e reprodutor da discriminação, mais do que o ensino primário do primeiro grau. Por causa da discriminação no contexto escolar, a maioria das minhas interlocutoras não concluiu o ensino primário do segundo grau.
Devido à incompreensão de si na adolescência, Astrid tentou comportar-se de acordo com o gênero atribuído, o masculino, aventurando-se a um relacionamento “heterossexual” que acabou fracassando[14]. Ademais, ela passou a manipular a sua forma de andar, a impostação de voz; e na escola passou a praticar esportes tidos como de “meninos”. No entanto, ter conhecido uma rede de “gays” através do Facebook trouxe alívio e ressignificação de si, começando a desprender-se do medo e da vergonha e a entender que existem pessoas semelhantes que desejam pessoas do mesmo sexo, e passou a frequentar o universo de socialidades dos “gays” e subsequentemente das “travestis”, àquela altura.
A literatura revela que os grupos de apoio são cruciais para as pessoas trans adquirirem um senso de pertencimento. Como demonstraram Adelman et al. (2003), em situação de falta de compreensão de si, o encontro com outros semelhantes oferece uma grande luz e possibilidades de novos laços de sociabilidade trazerem conforto, pois o sujeito passa a (res)significar sua existência e o seu estigma. Nesse sentido, a convivência com Jovanna, que naquela altura já tinha feito a transição de gênero e se autodenominava “travesti”, trouxe satisfação e alívio, aguçando a curiosidade de Astrid para se montar e buscar uma estética corporal e de vestuário em consonância com aquilo que sente ser subjetivamente. Porém, devido ainda à falta de coragem, ao medo da reação dos familiares e das pessoas em geral, inicialmente Astrid se vestia com roupas femininas durante a noite, e durante o dia se vestia com roupas masculinas não convencionais, isto é, suas roupas masculinas tinham certos traços de feminilidade (calças apertadas ou afuniladas e camisas unissex). Assim, Duque (2009) cunha o conceito de “montagem estratégica” para pensar um sujeito que participa, ao mesmo tempo, de redes de sociabilidades diferenciadas e que as pessoas se montam e se desmontam, não da forma como querem, mas fazendo frente às demandas e normas sociais.
Nesse sentido, a maioria das minhas interlocutoras na adolescência inicialmente usava roupas e acessórios femininos em determinados contextos e circunstâncias, principalmente durante a noite. Jovanna, por exemplo, contou que antigamente quando ia trabalhar na rua, saía desmontada do bairro e montava-se num espaço seguro fora do bairro; e quando voltava, desmontava-se para entrar no bairro. Em uma roda de conversa sobre a saída de casa, minhas interlocutoras explicaram-me as suas motivações e como se deu a saída:
Nelson: Thainã, você disse-me várias vezes que saíste de casa. Saíste por sua livre vontade?
Thainã: Em casa não me expulsaram. Eu quis sair para viver a minha própria vida, fazer o que eu queria porque lá não podia. Até agora me chamam para eu ir para lá e já sabem que eu visto roupa de mulheres e me encontro com as minhas tias, primas e primos (...) saí de casa quando tinha 15 ou 16 anos por aí. Eu saí quando conheci Solange e Cíntia e com elas conheci a Carmen Miranda e fiquei com ela. O que me levou a sair é a questão da liberdade, sentir-me à vontade. Eu me sinto mais à vontade com as manas e não com família. Na minha casa eu não tinha amiga, não contava minhas coisas para minha irmã. Lá eu não me vestia do jeito que eu queria. Eu, quando saí de casa para ficar com a Carmen Miranda, era gay. Quando comecei a me transformar, eu me encontrava na rua com meus primos e eles diziam: “volta para casa!” Eu dizia nada, estou à vontade onde estou (...)
Eugênia: Eu também comecei a me montar quando saí de casa, aí tinha liberdade de ser aquilo que eu sou, de ser dona do meu nariz. Comecei a gostar de pôr uma bolsa, uma carteira, colocar calcinha, coisas femininas, na altura eu não tinha gosto. Com o tempo fui descobrindo pelas amizades que existem pessoas que se vestem como eu. Fui viver em casa da Dunia, juntamente com a Pamela, lá eu tinha a liberdade que eu queria.
Nelson: A maioria de vocês só começou a se transformar quando saiu de casa.
Todas: Sim.
Thainã: (...) E como vivíamos em casa da Carmen Miranda, ela dava dica de roupa como vestir e saía conosco.
Nelson: Então a mana Carmen Miranda teve esse papel de ensinar.
Thainã: Carmen Miranda para mim foi como uma mãe porque eu vivia em casa dela, ela me dava roupa para vestir, saía com ela, me inspirava nela, ela foi nota 10.
Como consta nos relatos acima, Thainã e Eugênia saíram deliberadamente de casa para terem “autonomia”, “liberdade” e “independência” de ser o que sentem subjetivamente, pois nas casas dos familiares eram “gays”, isto é, já se viam como homossexuais, mas ainda não se vestiam com roupas femininas. Pesquisas realizadas em outros contextos e períodos apontam que um dos primeiros passos na construção da identidade para as pessoas trans passa pelo abandono, saída voluntária ou expulsão da família (Benedetti, 2000; Chipenembe, 2018; Kulick, 2008; Pelúcio, 2009; Rodrigues, 2010).
Como explica Benedetti (2000, p. 90), deixar o lar parece ser um momento crucial para o processo de construção da travestilidade. Com a saída de casa, prossegue Pelúcio (2009, p. 190), entra o papel de travesti mais velha ou mais experiente, que vê na novata o potencial para se tornar travesti. Com as mais velhas ou mais experientes, as minhas interlocutoras aprendem os cuidados corporais e cuidados com os vestuários para se adequarem ao gênero feminino e foram inseridas nos ambientes de socialidades próprias do universo trans.
Assim, por meio dos discursos de algumas “manas trans”, percebi que quando conheceram pessoas mais velhas com a expressão de gênero que desejavam para elas mesmas, voluntariamente saíram dos seus domínios familiares para viver junto às “manas trans” com quem poderia ter senso de pertencimento, compreensão e apoio emocional. Os arranjos familiares que diferem da família biológica que algumas pessoas LGBT desenvolvem no curso da sua vida são reconhecidos na literatura acadêmica como “família de escolha” (WESTON, 1991).
No entanto, a maioria das minhas interlocutoras me explicaram que quando saíam para os espaços públicos vestidas com roupas femininas, unhas pintadas, maquiagem e peruca passaram a ser rotuladas de “travesti”/“transveste” pelas pessoas da rua, e a partir desse momento assumiram o termo “travesti”/“transveste” como identitário. A conversa que tive sobre as identificações confirmam esse fato:
Nelson: Como vocês se identificavam quando começaram a vestir roupas e acessórios de mulher?
Jovanna: Antigamente antes de termos conhecimento de que somos mulheres trans, nós chamávamos de “travesti”, “transveste”, percebe? “Transveste” é o termo popular porque uma mana quando descobre que gosta de se vestir de mulher, as pessoas davam esse nome de “transveste” ou “travesti”, que é um nome conhecido e popular. Então quando fomos à LAMBDA para conviver e participar de algumas reuniões, lá ̶ você também estava (refere-se a mim) ̶ aprendemos que nós não somos travesti. Porque travesti são simplesmente homens que se vestem de mulher só para atuar e desempenhar algum papel e depois tiram a roupa enquanto nós não (...) Porque para ser trans, tens que ser mulher por dentro, você diz a si mesmo que eu sou mulher, agora transveste muitas das vezes acontece nos cinemas e nos teatros os homens vestem-se a mulher para atuar. Para ser trans, tens que se sentir mulher dentro de si e decidir que quer ser mulher, quer trançar, “quero fazer tudo o que as mulheres fazem”. “Travesti” são pessoas que se vestem de mulheres para atuar e fazer teatro.
Astrid: (...) As pessoas é que perguntavam quando passamos vestidas de mulheres, tu és travesti, eu dizia sim sou “travesti” e então foi aprendendo que eu era “transveste” enquanto era o errado sempre fui trans. Muita gente diz que a gente é “travesti” porque não tem conhecimento certo do que é “travesti” e do que é ser “trans”. Tanto que tanta gente acha que uma “mulher trans” é uma mulher operada com cirurgias.
Nelson: Agora uma mulher operada como se chamaria?
Astrid: Uma mulher operada é “transexual”. Nós somos “mulheres trans”.
Jovanna: Vai ser difícil para as pessoas nos chamarem de “mulher trans”. Vai levar anos porque muita gente pensa que somos “transveste”. As pessoas não têm conhecimento de que o termo correto é “mulher trans”.
Nelson: Agora a ideia de que vocês são trans foi em que ano que vocês tomaram conhecimento?
Jovanna, Thainã e Astrid (em coro): foi este ano (referem-se a 2018).
Jovanna: Desde que começamos a frequentar a LAMBDA.
Thainã: Foi nos meados do início de ano que nos ensinaram com Lucia e Cíntia que somos “trans” e não “travesti”.
Quando minhas interlocutoras começaram a modificar sua forma de vestir e a sua aparência, as pessoas ao seu redor as entendiam como “transveste”/“travesti”, e a maioria das minhas interlocutoras aceitou o termo “travesti”/“transveste” como identitário, pois a expressão “travesti” é a categoria pela qual as pessoas usa(va)m, no cotidiano, para nomear as minhas interlocutoras. No entanto, em contato com a associação LAMBDA foram ensinadas que “travesti”/“transveste” é um termo ofensivo e refere-se a uma pessoa que usa, em momentos pontuais ou por um tempo determinado, roupas e acessórios femininos, podendo não se identificar como mulher. Por isso, foram ensinadas que o termo adequado para elas se autodenominar é “mulher trans”, que se refere a uma condição de identidade de gênero permanente, isto é, uma pessoa se sente mulher internamente e vive essa sensação constantemente.
No entanto, algumas interlocutoras que ainda se entendiam como “travestis” resistiam à denominação de “mulheres trans”. Outras entendiam que o “trans” é sinônimo de “transexual”, isto é, localmente tratar-se-ia de uma pessoa operada. Consequentemente, uma e outra continuava a se nomear “travesti” por achar que é o nome com o qual a maioria das pessoas ao seu redor entende o seu significado, referente à transgressão do binarismo de gênero. Entre as interlocutoras do presente estudo, a identificação com o termo “mulher trans” está em processo de assimilação e tem pouca ressonância entre elas.
As nomenclaturas para identificar as pessoas que subvertem o binarismo de gênero no contexto em estudo estão ainda em disputa, e algumas das minhas interlocutoras transitavam entre elas de acordo com a situação. Muitas das vezes ao longo do trabalho de campo observei que a autoidentificação de “mulher trans” entre minhas interlocutoras ocorria em contextos institucionais, principalmente quando frequentavam os encontros na associação LAMBDA e em espaços de debates públicos. No cotidiano, os termos “mana”, “travesti” .boneca”, “bichas” “maricas” e “puta” são vocativos usados de forma não pejorativa dependendo do contexto em que circulam para falar entre si:
Nelson: O que significa o termo “mana”?
Kimberly: “Mana” somos nós “maricas”, “gays” e “travestis” que não temos cona[15], para não nos chamar de “maricas” criamos essa expressão de mana para nós chamamos. Agora usamos o termo de “mulher trans” porque já nos explicaram que não somos “travestis”. Nós usávamos o termo “travesti” porque não tínhamos conhecimento. Mas nós habituamos a nos chamar mana.
Thainã: (...) “mana” é um termo que generaliza toda a homossexualidade em uma única palavra que é “mana”. Do tipo quando digo vê-la aquela “mana” quero diz que é “marica” ou “gay”.
Nelson: Gays ativos também seriam “manas”.
Kimberly: Não, mas uma pessoa mesmo que seja musculoso basta levar [ser passivo] é uma “mana”. (...) basta sabermos que a pessoa é gay e leva [ser passivo] é “mana”. Um homem que leva e chupa é uma grande “mana” e puta (risos de deboche). Para te resumir bem, “mana” é um jeito carinhoso de chamar, mas também pode ser deboche. Por exemplo, a gente nunca vai chamar alguém que não sabemos se leva, chupa de “mana”. Mas por mais que alguém não usa roupa feminina, é discreto basta sabermos que leva [ser passivo] é uma “mana”, só que é uma “mana” discreta. Chamamos de homem aquela pessoa que não sabemos se leva ou chupa. Mas um homem que chupa e leva é “mana”.
Compreendo que a expressão “mana” conjuga a identidade de gênero e orientação sexual: pode ser chamada de “mana” uma (mulher trans, marica, travesti) e um homossexual (neste caso, gay afeminado, gay passivo). O que mostra que para ser “mana” precisa estar, de alguma forma, associada ao feminino. Entretanto, há casos que se usa a expressão “mana” como ofensa, no sentido pejorativo, para desqualificar pessoas distantes de suas redes de amizades que são penetrados/suspeitos de serem penetrados ou que apresentam traços femininos. Portanto, para as “manas trans”, são “homens” aqueles que, para usar as palavras de Pelúcio (2009), “reproduzem nos seus comportamentos valores próprios da masculinidade hegemônica”. Nesse sentido, a afeminação e principalmente ser penetrado no ato sexual são motivos, para usar novamente as ideias de Pelúcio (2009), de “desprestígio e de falha moral para os ‘homens’”, e consequentemente deixam de serem vistos culturalmente como “homens” para serem “manas”.
As travestis com as quais Kulick conviveu em Salvador também são taxativas em relação ao que definem como “homens”:
aqueles que exclusivamente penetram outras pessoas; aqueles que não viram mulher na “hora da verdade”. Homens são aqueles por quem as travestis se apaixonam e que instalam em seus quartos; aqueles que se tornam seus namorados. São os indivíduos do sexo masculino que são “homens” e podem fazer uma travesti sentir-se “mulheríssima” (Kulick, 2008, p. 228).
Importa também referir que existe um consenso entre as minhas principais interlocutoras, de que elas não são “mulheres”, embora reivindiquem uma subjetividade feminina ou, para usar as ideias de Kulick (2008, p. 243), “compartilham um gênero com as mulheres”. No entanto, em alguns contextos específicos, elas às vezes se autodesignam de “homem”, no sentido de que elas têm sexo masculino ou quando pretendem contrastar seu próprio modo de ver o mundo com o modo das “mulheres”.
Como mostrou Kulick, o contexto é importante para compreender de que modo as minhas interlocutoras utilizam a palavra “homem” e se reconhecem como “homem”. O emprego desse termo é relacional, ou seja, o significado exato de “homem” depende de quem está falando, do que se fala, de quem se fala e do que está sendo contrastado a “homem” naquele contexto específico.
Em síntese, tal como as interlocutoras de Kulick, minhas interlocutoras usam a palavra “homem” com dois significados diferentes: 1) do sexo masculino – quando falam de si mesmas em contraste com a genitália e a “cabeça” feminina; e 2) homem – quando falam de indivíduos do sexo masculino que apenas penetram durante o ato sexual.
Em sua própria linguagem, elas se “sentem mulheres”, por isso compartilham os mesmos atributos comportamentais e estéticos de vestuários com as “mulheres”, tais como adotar nomes femininos, usar roupas femininas, usar pronomes de tratamento no feminino, fazer maquiagem, trançar mechas, usar perucas e cabelos de extensões e ainda articulam muitos signos femininos dispostos culturalmente, referentes aos cuidados estéticos corporais e aos cuidados com o vestuário, com vista a materializar o gênero feminino em seus corpos, que pode não prescindir da masculinidade (embora nunca uma masculinidade convencional), consoante o contexto em que estão inseridas[16]. Resumidamente, em termos culturais e sociais elas têm gostos, desejos e sentimentos femininos, mas reconhecem que não são biologicamente iguais às “mulheres”. A conversa transcrita abaixo é um exemplo disso:
Astrid: Uma coisa é querermos nos sentir mulheres, outra coisa é ser mulher. Há diferença, nós nos sentimos mulher, não somos mulheres. Letícia é que é mulher, ela é hétero, nós somos mulheres trans, no fundo, no fundo não somos mulheres, não temos mama, não podemos ter filhos. Nós no fundo, no fundo não temos órgãos femininos. Tudo bem que temos esses tiques, comportamentos de mulheres, mas não somos mulheres.
Kimberly: Mulheres é uma pessoa que tem sexo feminino. Mulher para mim é uma mulher que é hétero. Aquela que nasce mulher.
Astrid: É uma pessoa que tem tudo de feminino, tem órgão feminino, tem tudo de mulher. Uma pessoa que não tem caralho é mulher, por exemplo, a Letícia é mulher. Nós nos sentimos mulheres, mas nunca vamos deixar de ser homem.
Eugênia: Por mais que a gente faça plástica, colocarmos seios. Por mais que removemos o nosso sexo, nunca vamos deixar de ser homem. Tanto que as próprias mulheres gozam conosco dizendo que mesmo a gente se montando nunca seremos mulheres porque nunca vamos sentir cólicas.
Kimberly: Sim. Não vamos sentir o prazer de estar grávida, não vamos sentir cólicas, menstruação isso nunca. Por mais que a gente se transforme e monte cona isso nunca (risos) vamos ter esses sintomas.
Astrid: Mesmo tendo mama, já que existem países em que trans montam mamas mesmo isso acontecer aqui (indica o peito) nunca vai sair leite, vai sair água (risos). Isso é verdade, se montarmos mama vai ser um peito cheio de água (gargalhadas).
Kimberly: O único sítio que sai leite em nós é no pau [pênis] só (risos estrondosos).
Para as “manas trans”, “mulheres” seriam pessoas que têm genitálias femininas, que têm propriedades funcionais biológicas ligadas a sentimentos de maternidade e à reprodução (menstruar, engravidar e sentir cólicas). Os tons jocosos de Kimberly e de Astrid reiteram e chamam atenção para o fato de que elas não são e nunca serão “mulheres”. Elas apenas se “sentem subjetivamente mulheres”, e para tal adquirem trejeitos e hábitos femininos ou atributos corporais, comportamentais e estéticos do vestuário explicitamente femininos.
Quando as “manas trans” afirmam que não são “mulheres”, querem dizer que não nasceram mulheres e sabem que a sua genitália e outros órgãos do corpo determinam que sejam vistos como “homens” em determinados espaços sociais em que circulam. Por isso é que algumas pessoas na rua continuam a lhes chamar pejorativamente de “maria-rapaz” devido ao inconformismo do binarismo de gênero das minhas interlocutoras.
Hélio Silva (1993), em sua etnografia clássica sobre travestis brasileiras, mostra que as mesmas contemplam um feminino misturado com masculino, um “feminino diferente”, “outra possibilidade de feminino”. Por sua vez, Benedetti (2000) argumenta que as travestis, ao expressarem se “sentirem mulheres”, já trazem algumas pistas de como este feminino é concebido, construído e vivenciado.
Assim, o feminino das minhas interlocutoras não abdica das características masculinas no contexto doméstico, quando elas estão em casa e desmontadas, pois nos momentos de relaxamento e bate-papos em contexto doméstico e entre “manas trans” pude notar o que Hélio Silva (1993, p. 116), também observou no seu campo. Por isso, acompanho suas análises:
nos momentos mais relaxados as vozes se agravam e criam uma tessitura curiosa, mesclada de temas e observações femininas emitidas por vozes absolutamente masculinas. O repouso agrava a voz. A natureza reflui sempre, a exigir um constante combate.
A maioria das interlocutoras deste estudo articulam signos femininos dispostos na cultura moçambicana referentes aos cuidados estéticos corporais e os cuidados com o vestuário, com vista a materializar o gênero feminino em seus corpos, que pode não prescindir da masculinidade (embora nunca uma masculinidade convencional) consoante o contexto em que estão inseridas. Como venho demonstrando, em sua linguagem são subjetivamente mulheres e na esfera social desejam mostrar essa dimensão subjetiva. Ademais, como pude observar durante o período de pesquisa, elas sempre se chamam por formas gramaticais, pronomes e termos vocativos femininos, com exceção dos casos em que usam palavras, vocativos e nomes masculinos em certas situações com a intenção de brincar, debochar e satirizar umas com as outras.
Neste texto suspendi provisoriamente as categorias identitárias LGBT para entender que outras categorias locais são usadas para identificar as pessoas que subvertem e ao mesmo tempo reforçam o binarismo de gênero, por um lado, e ver a operacionalidade de certas categorias que minhas interlocutoras aprenderam ao longo da vida no cotidiano delas, por outro lado. Essa estratégia analítica permitiu-me compreender os processos subjetivos de descoberta da identidade de gênero, como elas aprenderam as categorias de identificação e entender a subjetividade das “manas trans”.
No texto mostrei que as minhas interlocutoras transitaram por várias identificações durante sua vida. Porém, a maioria relatou que se identificava como sendo subjetivamente uma “mulher” e algumas manas, na infância e adolescência, vivenciavam as suas identidades femininas em segredo. Assim, a inscrição de algumas identificações sexuais e de gênero se deu através da rotulação pela sociedade; outras interlocutoras aprenderam as identificações sexuais através dos programas de chats de TV; e outras ainda aprenderam nas formações e nos encontros organizados pela associação LAMBDA as identificações tidas como estáveis para enquadrar os seus desejos sexuais e identidade de gênero.
No processo de descoberta da sexualidade e da identidade de gênero, expliquei que as interlocutoras deste estudo desde a infância e adolescência se viam como “diferentes” dos “meninos”, embora não pudessem agir sobre o corpo para mostrar o que são subjetivamente devido aos familiares e falta de consciência de si. Destaquei ainda que a subversão do binarismo de gênero trouxe consequências para algumas “manas trans”. Entre elas, serem submetidas a rituais de cura, mas que na prática esses rituais resultaram em fracasso e que, com o tempo, os pais acabaram se conformando e aceitando a sexualidade e a identidade de gênero das minhas interlocutoras.
Mostrei também que outras “manas trans” na adolescência saíram deliberadamente de casa para terem “autonomia”, “liberdade” e “independência” de viver a sua expressão de gênero quando conheceram outras “manas” semelhantes a elas, que já tinham feito a transição de gênero e aprenderam os processos de transição e inserção ao gênero feminino. Porém, nos espaços públicos quando saíam em conformidade com o gênero desejado, eram rotuladas de “travesti” e nesse processo passaram a assumir o termo “travesti” como identitário.
Entretanto, em contato com a LAMBDA aprenderam a se identificar como “mulheres trans” e a rechaçar o termo “travesti”, entendido pelos integrantes da LAMBDA como ofensivo e inadequado para nomear as pessoas trans. Assim, as formas de autoidentificação entre as “manas trans” são bastante diversificadas, refletindo muitas vezes as redes e os circuitos de sociabilidades pelas quais circulam. No entanto, certos termos de classificação são usados de forma intercambiável, sendo a escolha dependente do contexto.
Por fim, argumentei que as “manas trans” compartilham um gênero com as mulheres, apropriam-se de signos femininos dispostos na cultura moçambicana referentes aos cuidados estéticos corporais e ao vestuário e desse modo replicam e desafiam taticamente a ordem do gênero vigente, mas reconhecem que não são biologicamente iguais às “mulheres cis”, pois estas são entendidas a partir de suas funções biológicas.