Resumo: Vila Bela da Santíssima Trindade, primeira capital de Mato Grosso – Brasil, foi desocupada pela elite branca em 1835, quando Cuiabá passou a exercer aquele posto, ficando sob o controle social e político negro por mais de 100 anos. Sem poder contar com a presença de padres, a vida religiosa católica restou aos leigos, que reuniram suas festas em um único período do ano, dando origem à festança: quatro celebrações, que incluem a do Divino, São Benedito, Mãe de Deus e Santíssima Trindade. A década de 1980 inaugurou um inédito interesse externo. A presença de jornalistas, pesquisadores, técnicos do patrimônio teve como efeito um processo que a conduziu da condição de “abandonada” para a de símbolo de Mato Grosso. Esse relato analisa o impacto desse movimento sobre a festança, o congo e o chorado, além de analisar os debates que opuseram as lideranças locais aos diversos agentes da política patrimonial.
Palavras-chave:FestaFesta,Patrimônio imaterialPatrimônio imaterial,Populações afro-brasileirasPopulações afro-brasileiras,AutenticidadeAutenticidade.
Abstract: : Vila Bela da Santíssima Trindade, the first capital of Mato Grosso – Brazil, was abandoned by the white elite in 1835, when Cuiabá started to exercise that post, being under black social and political control for more than 100 years. Without being able to count on the presence of priests, the Catholic religious life was left to the laity, who gathered their feasts in a single period of the year, giving rise to the festança: four celebrations that include the Divine, Saint Benedict, Mother of God, and Holy Trinity. The 1980s inaugurated an unprecedented external interest for the locality. The presence of journalists, researchers, technicians of the heritage had the effect of a process that led her from the condition of “abandoned” to that of a Mato Grosso symbol. This report analyzes the impact of this movement on the main local expressive forms, congo and chorado, in addition to analyzing the debates that opposed the local leaders to the various agents of patrimonial policy.
Keywords: Festival, Intangible Patrimony, Afro-Brazilian populations, Authenticity.
Artigos
“Festança" de Vila Bela: tradição, autenticidade, conflitos
“Festança” of Vila Bela: tradition, authenticity, conflicts
Recepción: 29 Septiembre 2020
Aprobación: 29 Marzo 2021
Com o final do século XX, entre os usos sociais e políticos que sofreu o conceito de cultura, foi a noção de patrimônio cultural que mais se ampliou, resultado no Brasil da concretização de um anseio antigo, identificável nas iniciativas de Mario de Andrade, Ricardo Melo Franco de Andrade, e, depois, nas de Aluísio Magalhães, para democratizar a perspectiva “pedra e cal” – elitista, monumental e lusa – e alcançar a riqueza cultural das classes populares. No horizonte de alguns desses intelectuais estava ainda a ideia de que o patrimônio cultural poderia atuar na construção de um sentido de nação que, acreditavam, não existia no Brasil[2]. Com a Constituição de 1988 e sua regulamentação (Decreto 3551/2000), formula-se o Inventário Nacional de Referências Culturais, com base na noção de referências culturais, tributária, simultaneamente, do conceito antropológico de cultura e da noção de identidade, e assim se elaboram os instrumentos jurídicos para o reconhecimento e salvaguarda de bens de natureza intangível, cujo principal desafio é respeitar sua dinamicidade.
Vários méritos dessa política pública são destacados (Cavalcanti, 2019; Giumbelli, 2014; Tamaso, 2005): viabilizar a inclusão da cultura ameríndia e afro-brasileira na narrativa da nacionalidade e estimular o fortalecimento dessa via para a sustentabilidade dos segmentos sociais envolvidos. As medidas de apoio à salvaguarda das manifestações culturais desses setores sociais, alçadas a uma visibilidade social historicamente inédita, tiveram impacto, inclusive, no combate ao racismo e na atribuição de uma dignidade pública, que incidiu positivamente na autoestima desses segmentos comumente marginalizados.
A extensa literatura do tema (Abreu; Lima Filho, 2012; Tamaso, 2005; Tamaso; Gonçalves; Vassallo, 2019) também identificou desafios: questões éticas e políticas envolvidas com procedimentos que definem critérios e selecionam aspectos com vistas a elaborar listas classificatórias, que hierarquizam as culturas, para indicar quem obterá o reconhecimento do registro nos livros do patrimônio e a vulnerabilidade social e consequente acesso diferenciado que os grupos têm às agências públicas.
Este relato situa historicamente a antiga capital e oferece uma descrição breve da festança, destacando o material e o imaterial como características indissociáveis na produção de significado; analisa as mudanças decorrentes da ação conjunta de políticas públicas patrimoniais e das mídias sobre o cenário cultural em Vila Bela, processo resultante das apropriações locais dos conceitos de cultura e patrimônio para fins de obtenção de direitos políticos e sociais e que alçou a “vila perdida da mineração”, de “abandonada” na década de 1980, a berço da cultura mato-grossense. Ao final, alguns desafios éticos e políticos são identificados na condução do INRC, a partir de conflitos deflagrados por uma publicação correlacionada e examinados à luz dos compromissos éticos.
Vila Bela, uma cidade de 17 mil habitantes, no oeste mato-grossense, foi fundada em 1752 para ser a capital da capitania de Mato Grosso, depois de seu desmembramento da capitania de São Paulo. Em 1835, transferida a capital para Cuiabá, a cidade ficou sob o controle político e social de pequeno contingente de negros libertos para o desamparo, que não conseguiram acompanhar a viagem da elite administrativa branca e seus escravos com destino a Cuiabá.
Aquele período havia sido o suficiente para engajar os negros escravizados no catolicismo, uma vez que as irmandades de algumas devoções os acolheram e ampararam como membros ativos que, nos festejos, assumiam papéis de destaque. As irmandades foram um importante veículo de integração dos negros na sociedade da época (Bandeira, 1988, p. 113), fato ao qual se atribui sua perenidade, desde inícios do século XIX, caso das irmandades de São Benedito e Divino Espírito Santo, até hoje (Silva, 2015, p. 30). Os padres acompanharam o séquito administrativo em sua partida, fazendo-se presentes apenas uma vez por ano. O vasto calendário de festas cívicas e religiosas, a que estava submetida como capital, findou na agregação dos festejos principais, e demais sacramentos católicos, reunidos em setembro e transferidos pela prefeitura, na década de 1980, para a segunda quinzena de julho, ocasião das férias escolares, facilitando a presença de antigos moradores e de turistas. Daí o nome festança ao conjunto, que variou de cinco festividades (Bandeira, 1988) antes década de 1980, reduzida a três festejos antes da revitalização, quando Bandeira (1988), primeira antropóloga a fazer trabalho de campo na localidade, entre 1982 e 1986, lá esteve: Divino, São Benedito e Três Pessoas, o padroeiro do município. As irmandades religiosas são responsáveis pelo evento, quatro atualmente ativas, das quais a do Divino e a de São Benedito, fundadas na primeira metade do século XIX, não têm muitas atribuições, além de definir os membros responsáveis pelas tarefas festivas e controlar o regulamento religioso.
Em um retrato sintético, salienta-se o nexo intrínseco entre materialidade e imaterialidade nos dois festejos mais prolíficos em significados, apresentando-se a festa do Divino e a de São Benedito em um diálogo mútuo. São narrativas compostas com as histórias devocionais, palavras, objetos, gestos, afetos, símbolos, sons, cores, cheiros e sabores, bem como de ocupação espacial, movimento. Combinando esses artefatos, os festeiros constituem tanto sua concepção de sagrado quanto o que entendem por festivo, sem, contudo, opor esses sentidos: uma característica da religiosidade popular.
A festa do Divino, cuja ação é enquadrada por suas bandeiras – rica e pobre – coloca os representantes coletivos, imperador e imperatriz, para circular pela zona rural e urbana, recolhendo donativos. Com a materialidade, a coletividade comunica a mensagem da “generosidade do santo”: a bandeira rica é pesada, de adereços mais caros e perenes; pertencente à imperatriz, e transita apenas na área urbana. A bandeira pobre, do imperador, é mais leve, de ornamentos mais simples, dado que circula tanto na área rural quanto na urbana, demanda recomposição anual e expressa a “humildade do santo”. Como se vê, a sensorialidade material é empregada para comunicar mensagens de teor simbólico e espiritual, o que expõe a indissociabilidade do material e imaterial do patrimônio (Gonçalves, 2005). No uniforme de gala da equipe da bandeira – roupa branca e lenço na cabeça amarrado nos quatro cantos, à moda de marinheiros – associa-se uma referência a marujada, extinta na cidade, mas que lega um traço material como um indexador de memória da diáspora: a travessia marítima da África ao Brasil. O esquecimento atua junto com a rememoração, como ressaltou Gonçalves (2015).
Imperador e imperatriz possuem subjetividades intrinsecamente ligadas a dois objetos preciosos e mágicos – a coroa e o cetro, respectivamente – ambos em prata de lei, expressões vivas do Divino, herança legada pelo catolicismo. Conclui-se que, embora não prolíficos em discursividade sobre a categoria patrimônio, não é estranha aos seus protagonistas. Tanto a coroa e o cetro quanto as bandeiras recendem poderes divinos, que demandam tratamento solene. Com esses objetos nas mãos, os festeiros seguem com a bandeira à frente, por extensos caminhos de terra na zona rural, criando um elo entre o Divino, a bandeira e aquela paisagem, em parte, um território de pequenas propriedades do povo indígena chiquitano, católico e parceiro matrimonial preferencial dos vilabelenses, fato que faz a identidade negra local problemática aos seus próprios olhos: os negros são um pouco indígenas.
Por meio dessa devoção, constituem-se inúmeras e ressoantes mediações, como ressaltou Gonçalves (2005), entre céu e terra, urbano e rural, nós e os outros, homens e mulheres, ricos e pobres, uma característica enigmática das festas, ao associar, indefinidamente, pares de opostos e compor uma ordem cósmica. Esse trabalho centenário modelou um tipo diferente de territorialidade, que não define territórios exclusivos, mas possibilita o trânsito e o usufruto de recursos compartilhados entre negros e esse povo indígena. Ser festeiro é resumido na frase “o Divino quer experimentar o festeiro” – o que traz a religiosidade para o âmbito da experiência, onde serão testados e incorporados os valores religiosos.
Enquanto essa celebração se dirige a cultivar uma relação com o outro próximo, a de São Benedito, lócus de grande parte da reafricanização, possibilita, atualmente, o intercâmbio com o outro mais distante: as autoridades políticas e os turistas. Enquadrada pelo Congo e organizada pelos membros da centenária irmandade de São Benedito, alude a um vínculo antigo com o significado de ser negro. Ao final da tarde de domingo, quando a celebração ao Divino se conclui, o batalhão segue com o embaixador de bamba, o secretário de guerra, o rei do congo e seu filho, príncipe canjinjim, em visita às autoridades (prefeito, delegado, juiz e juíza de São Benedito), em busca da “chave” da cidade, quando obtêm autorização para instaurar o reinado simbólico do congo.
Como um relicário da memória da ancestralidade afro-brasileira, com suas canções, algumas oriundas da extinta marujada, recheadas de palavras banto, o congo rememora a travessia do Atlântico. Em extensos percursos pelas ruas, com passos ambíguos, entre marcha e dança, integra, solenemente, ao seu cortejo, um a um, seus soldados, depois os festeiros, recolhidos na soleira da porta, em ordem hierárquica; por meio dos cargos, alinha, em ordem espacial as classes etárias, numa alusão ao “caminho” da vida: primeiro as ramalhetes (meninas e moças), depois juiz e juíza (adultos) e, finalmente, rei e rainha, cargos com os quais homenageia os idosos.
Ao final da missa, da qual não participa, o congo conduz os festeiros de volta às suas casas, em clima de diversão sob controle, por meio de um dispositivo de ocupação espacial: os participantes ficam à margem do cortejo, e invadi-lo é percebido como transgressão lúdica. O festeiro é recebido, com fogos de artifício e papel picado, por seus familiares, que ficaram em casa com esse objetivo. Essa atividade alude ao papel que ser festeiro tem na construção da pessoa, constituída interna e transversalmente aos quatro festejos. Há uma hierarquia de participação nos cargos, tipo uma carreira, que começa na infância, passa pela juventude, vida adulta, até a velhice. Quando completa, é verbalizada com satisfação. Embora ser festeiro seja uma tarefa cara e árdua, uma fila de anos se estende para conseguir um posto.
O cortejo para casa assume uma ordem hierárquica inversa, a começar da rainha. Outra característica significativa: rei e rainha andam, param e se sentam em uma poltrona disponível, em que ficam, por um tempo, sob a proteção de um guarda-sol, momento em que todo o cortejo se detém, menos o congo, que permanece em sua marcha ligeira, indo e vindo, até que, ao sabor do desejo dos reis idosos, a caminhada seja retomada.
Ao final da primeira missa, na segunda-feira, o congo encena uma batalha mítica entre os soldados do rei de bamba e o rei do congo. Para vencer a guerra, o rei do congo faz o breve, um amuleto, espécie de feitiço, em frente ao altar. Esse festejo, em particular essa encenação, tem muito apelo emocional junto a grande parte da população, sobretudo aos jovens, o que mostra a capacidade do congo e do chorado de evocarem as forças que lhes deram origem, a ressonância, como definiu Gonçalves (2005).
É a ordem cosmológica, social e natural que está em jogo no realizar dessa festa, na medida em que atua como uma ferramenta de sociabilidade para promover a produção e a inserção da pessoa na vida social e religiosa, que dota de sentido sua existência. Como um fenômeno de tipo “fato social total”, como apontou Mauss (2003), enraíza-se pela vida social e produz muitos efeitos, individuais e coletivos, inclusive corporais.
Depois de mais de uma centena de anos relegada ao desamparo pelas autoridades estaduais, a vila é redescoberta e, anos mais tarde, alçada a berço da cultura mato-grossense e símbolo da regionalidade. Trata-se de um processo em que a categoria patrimônio, junto com o trabalho de produção da memória, próprio das mídias, em sintonia com o anseio de reconhecimento local, atuou para gerar um movimento, simultaneamente criativo e destrutivo, de produção de uma autoconsciência individual e coletiva para fins políticos de obtenção de direitos (Gonçalves, 2015).
Um vestígio em nota de rodapé assumiu uma importância não imaginada à época da pesquisa de Bandeira (1988, p. 115): “[o interesse de agentes públicos] tem levado a camada mais jovem da população a redefinir esse comportamento em termos de assumir o passado escravo e a descendência africana”. A autora observou entre a população uma recusa, comum nessas comunidades, a falar sobre o passado escravo.
Bandeira (1988, p. 115) mencionou, também, ações da Fundação Pró-Memória e do Mobral: um desses órgãos estaria gravando vídeos do congo e do chorado, fatos que marcavam o início de um fluxo intenso de contatos de enorme impacto sobre a imagem que o círculo festivo fazia para si e para os outros, o qual se refletiu, sobretudo, em suas principais expressões culturais, a festança, o congo e o chorado. Como provas das ações daquele órgão patrimonial, restaram apenas as fichas de tombamento dos principais edifícios: o Palácio dos Capitães Generais e as ruínas da antiga catedral da Santíssima Trindade, tombados pelo governo do estado em 1984 e, na esfera federal, em 1988. Simultaneamente a essa presença, há registros orais, de que funcionários da Secretaria de Estado da Cultura estiveram na cidade e orientaram o prefeito e o secretário municipal de cultura – na época Tito Profeta e Elísio Ferreira de Souza, mandato entre 1981 e 1985 – a criar um grupo de chorado, o que produziu uma mudança crucial na forma como o chorado era fruído. Dois marcos temporais dessa transformação são mencionados: a primeira apresentação do grupo recém-criado no aniversário da cidade de Chapada dos Guimarães e o início da apresentação do chorado na porta da igreja no primeiro dia da festa de São Benedito, antes do congo, segundo evento da festança, com início sempre na segunda-feira.
O chorado – de uma forma de sociabilidade, uma atividade lúdica, espontânea, presente em vários momentos festivos do ciclo de vida, a qual reunia homens e mulheres em uma dança que, em certo momento, as dançarinas, equilibrando garrafas na cabeça, tiravam um lenço da cintura e atavam os homens, cuja liberdade, requeria pagar algum dinheiro para comprar bebida e, assim, continuar o festejo – assumiu características que o transformaram em uma dança para exibição, individualizada, com menor espaço na experiência vivida[3]. A isso, Handler (1988) define como tradição: um processo de recortar um elemento da cultura e dotá-lo de um conteúdo novo, de modo a representar uma regionalidade, nacionalidade ou etnicidade e, assim, costurar presente e passado. A participação masculina foi suprimida, gerando uma oposição entre congo, masculino, e chorado, feminino, anteriormente ausente. Apenas por ocasião da festança, os homens voltam a ser incluídos, mas são os políticos visitantes, que ocupam o lugar de serem enlaçados durante a dança.
Após a criação do grupo, apenas as mulheres mais velhas participaram porque as jovens não quiseram e até debocharam daquele apego a uma prática, considerada uma lembrança de um passado infeliz. Decorre disso, que as jovens não podem mais compor o grupo, que agrega apenas mulheres maduras; esse fato talvez também tenha sido incentivado pelo interesse externo causado pela presença de idosas. Há iniciativas de preparar meninas para o chorado e meninos para o congo, contudo, não funcionam como projeto institucionalizado, não são sistemáticas em suas atividades e recebem poucos recursos.
Outras mudanças se sucederam: além da adoção do formato de associação com presidente, estatuto e centralização das decisões, o chorado, hoje, praticamente só é apresentado na porta da igreja no primeiro dia da festa de São Benedito, após a missa[4], além de que, uma disputa pelos lugares da tradição dentro da coletividade se tornou rotina, fato que Bandeira (1988) já observara. O grupo é controlado por uma família muito dedicada à “cultura” (Cunha, 2009) e que se diz detentora[5] dos direitos sobre as músicas do chorado e sobre o acesso ao grupo. Aliás, essa família controla praticamente todas as manifestações da cultura local, a ponto de o líder ser popularmente chamado de “dono da cultura”[6].
Como consequência, algumas mulheres se afastaram do chorado, alegando que não há mais decisão em comum, nem mesmo para o tecido do vestido que vão usar nas apresentações, nem para os locais em que vão se hospedar ou comer, quando viajam para apresentações. Os motivos alegados para determinadas decisões despertam suas suspeitas. As roupas mais bonitas do guarda-roupa, em geral brancas, pois os tecidos coloridos eram mais caros, foram substituídas pelo uniforme, que, no início, envergava estampas evocativas da vida campestre para, mais recentemente, assumir referências africanas. Esse uniforme tem um papel fundamental nos conflitos envolvendo a exclusão e a inclusão de mulheres no chorado[7].
As mudanças parecem ter incidido menos sobre o congo, que ainda mantém uma relação orgânica com o seu contexto histórico, a cosmologia da festa de São Benedito. Contudo, um relato atesta que também o congo não era composto de membros fixos, como hoje, e os componentes variavam anualmente junto com os festeiros. Atualmente, os postos no congo sofrem transmissão apenas quando o membro morre ou desiste, e se lhe dá o direito de decidir quem o substituirá, em geral um familiar. Uma fotografia do começo do século XX mostra o uniforme do congo consistindo apenas de roupas comuns para a época, calça social escura e camisa social branca. O capacete mantém-se até hoje, com as mesmas flores de pano coloridas e penas de aves, as quais Bandeira (1988) afirmou serem inspirações indígenas, dado os contatos com povos indígenas regionais. As estampas coloridas nas camisas são adoções recentes, indícios de reafricanização, influência recebida em contatos com o movimento negro baiano em encontros acontecidos em Cuiabá.
As letras das canções do congo são recheadas de termos de origem banto, os quais recebem sentidos genéricos, como aconteceu com um líder do congo, que os definiu como “palavras místicas”, cujos sentidos na língua original são desconhecidos e foram recuperados por Lima (2000) em dissertação de mestrado em linguística.
O congo, além de “escoltar” os festeiros pelas ruas em direção à igreja, realiza um auto ao final da missa, que evoca a luta entre dois reinos africanos. A história relatada recebe diferentes interpretações. Dentre elas, associa-se o tema da luta entre reinos africanos ao “caráter” da coletividade de propensão ao conflito. O congo, surpreendentemente, ainda guarda parte do nome de batismo original da rainha Ginga, Ana de Souza, o sobrenome, contudo, foi mudado ao longo do processo de transmissão oral: Ana Maria de Gouveia. Ao final da batalha, o rei do congo recebe os soldados um a um para um diálogo todo rimado, que se passa em clima de jocosidade e provocação, cujo tema preferencial é a política. Nesse aspecto reside outra mudança da prática, identificada por um antigo membro do congo e atribuída ao efeito deletério do “relacionamento do congo com a ‘cultura”: antigamente os versos dos soldados eram sobre São Benedito e não sobre política, atitude considerada desrespeitosa devido estarem em frente ao padre. Se os antigos repudiam essa alteração, os turistas a apreciam muito, enquanto os políticos presentes, atingidos pelas brincadeiras, por vezes não mais comparecem e desistem de apoiar a festança.
As investidas constantes de jornalistas[8] advindas durante a década de 1980, incitadas pela ideia de contato com uma comunidade negra, dotada de uma africanidade “pura” e “intocada”, produziram uma invenção, mais digna de nota, pelo fato de ser reproduzida com frequência pelos meios de comunicação de massa, por pesquisadores e por parte da população local, como se fosse um núcleo de costume transmitido intacto dos tempos da escravidão para o presente. Trata-se do mito de origem do chorado. Essa alegoria conta que o chorado foi criado por mulheres escravizadas para livrar seus maridos e filhos de penosos castigos; nessas ocasiões, imploravam aos senhores pelo livramento e faziam esse apelo por meio do chorado, uma dança, como dizem, em que dançavam chorando.
Em entrevista, surgiu uma narrativa que indica uma elaboração criativa da escravidão e uma forma própria de experimentar o tempo. Uma das lideranças, um senhor septuagenário, professor de história, conhecido como o historiador da cidade, se afirmou como o inventor desse mito de origem. Discorreu, em seguida, que montou essa tese, em virtude da pressão contínua que jornalistas exerciam, em sua busca pelo autêntico e original, para que contasse sobre o surgimento do chorado. Com base nas narrativas ouvidas na infância, filmes, livros e em dedução a partir do que sugeria o nome da dança, concluiu que a versão descrita acima seria plausível para o surgimento da dança. Aquilo que ele havia sido impelido pela dor a esquecer, era agora obrigado a se lembrar.
Esse fato divide a coletividade. Uma parte das pessoas reproduz essa variante de forma naturalizada, como fazem os de fora da cidade. Outra parte verbaliza sua discordância, apenas informalmente, argumentando não ter vivido naquela época para saber como foi, com a seguinte afirmação de arremate: “os senhores de escravos não precisavam de ocasiões do chorado para violarem uma escravizada”. A versão desse segmento, cuja fonte é a memória oral, é conhecida como “dança das cozinheiras” e pouquíssimo difundida nas mídias. Diretamente vinculada à experiência da festança, na qual a dança era parte da sociabilidade, o chorado homenageava as cozinheiras, excluídas da festa por estarem na cozinha, às voltas com a preparação de alimentos.
Essa cena etnográfica mostra que a dimensão objetificada e individualizada da cultura, consumida pelas mídias e pelas agências públicas, convive em permanente tensão com uma perspectiva criativa, vivida e dinâmica, ligada, inclusive, à pessoa, ao corpo e à memória, em que a escravidão atua como uma metáfora inesgotável para a construção de referenciais identitários, à semelhança do que notou Nogueira (2014) entre os congadeiros de Ituiutaba em Minas Gerais.
Retomando a narrativa diacrônica, em 1993, um acontecimento deflagrado pelos meios de comunicação de massa, afinal, projetou a recôndita vila no cenário nacional e teve papel fundamental na produção da memória coletiva (Halbwachs, 1990) e na constituição de novas identidades locais. Joãozinho Trinta, ao descobrir a existência da liderança negra quilombola, Tereza de Benguela, antes de conhecimento restrito a historiadores, a elevou a tema da Escola de Samba Viradouro no carnaval carioca de 1994, desencadeando um processo de difusão dessa personalidade. O carnavalesco foi pessoalmente a Vila Bela em busca de uma mulher que representasse no desfile a rainha quilombola, posição que foi muito disputada e terminou levando várias para a Sapucaí.
Não foi somente o Brasil que descobriu Tereza de Benguela nessa época. Durante o trabalho de campo, em conversa com lideranças, professoras na rede pública do município, soube que a coletividade também tomou ciência da existência da rainha nessa ocasião. Rosa (2008) fez uma entrevista com uma senhora, expressiva liderança, considerada a de melhor memória na cidade, que afirmou não conhecer nenhum quilombo na região, mas que ouvira falar de um lugar chamado Benguela.
Semelhante ao que sucedeu no caso da Batalha dos Porongos, analisado por Salaini e Carvalho (2008), esses fatos evidenciam como história e memória se entrelaçaram, tendo uma produção midiática como potencializadora, ao constituir um quadro de memória mais amplo, de maior legitimidade, por meio do qual o movimento étnico de influência nacional consegue visibilizar a narrativa de uma protagonista negra da resistência antiescravista. Como um efeito secundário, talvez inesperado, alheio aos objetivos de quem a produziu, reacende uma memória localmente perdida e introduz aquela localidade periférica no conjunto mais amplo dos processos étnicos, que agitaram o país no período seguinte à participação afro-brasileira na Constituição de 1988.
Após essa descoberta, Tereza de Benguela passou a ser referência ativa na construção das identidades locais, sobretudo, das mulheres que associam sua imagem a rainha e a guerreira, que resistiu bravamente a escravidão. O fato de ter sido divulgado no samba enredo[9] que, no quilombo liderado por Tereza, existia a convivência pacífica entre negros, indígenas e caburés (mestiços), houve, como decorrência, a introdução no imaginário local da crença em um cariz condescendente com o outro nas identificações coletivas. Após esses acontecimentos, Vila Bela foi incluída no circuito nacional das referências do movimento negro, que convergiu para uma reafricanização refletida principalmente na festa de São Benedito.
Assim, em conversas com pessoas ligadas à festança, aparecem indícios evidentes de investimento criativo da coletividade, em frequentes comentários como “fui eu que dei o nome de africanos aos biscoitos de reza”[10], “eu queria que os membros da bandeira do Divino usassem a farda de marujo em homenagem à marujada que agora acabou”, “fui eu que dei início a servir o sopão nas alvoradas”, enfim um intenso processo criativo investido sobre a festança, em que convivem as dimensões culturais da experiência e de sua utilização para efeitos de representação, reconhecimento e acesso a direitos (Gonçalves, 2005)
Na missa cantada da festa para São Benedito, propícia como lócus de reafricanização[11], dado que é enquadrada simbolicamente pelo congo e pelo santo negro, as mulheres e os padres usam, frequentemente, referências africanas, nas estampas dos tecidos, nos debruns e modelos dos vestidos e turbantes. O momento da oferta, protagonizado pelas mulheres do chorado, que entram dançando e oferecendo produtos típicos da cidade, é associado por alguns interlocutores à oferenda do candomblé, num esforço de associar a prática a um registro considerado mais africano, embora na localidade haja uma antiga e profunda rejeição a esses segmentos.
“Aqui a tradição é vivida”, afirmou a principal liderança do círculo católico, referindo-se ao fato de que há um engajamento cotidiano e emocional das pessoas com a festança, o congo e o chorado. Essa frase indica o modo como lidam com o acervo cultural de que dispõem: recupera o passado como escravizados e o associa à referência africana como inspiração; sem receio de perda de autenticidade, o reinventam, revelando um modo próprio de vivenciar o tempo.
Gonçalves (2002, 2015) associa o medo da “perda” a uma experiência de tempo ocidental moderna, progressivo, presentista, que confere ao passado um sentido irremediavelmente perdido, desvinculado do presente, onde o patrimônio, um símbolo desse passado, tornou-se objeto de fruição. Diferentemente, a forma como o círculo católico vivencia o tempo, sem medo da “perda”, pode ser deduzida do fato de que a festança, em vista da qual a comunidade investe todo seu esforço, é um evento de calendário litúrgico, que sucede dentro de um tempo mítico.
No caso da festa do Divino, o tempo é qualificado como “de renovação”, e a festa de São Benedito instaura, todo ano, um tempo de reinado do congo. Ambas estão interligadas à ordem cósmica, em relação à qual as pessoas se definem como tais. Dentro dessa cosmologia, passado, presente e futuro não estão ligados em forma progressiva.
O Decreto 3551, de 04 de agosto de 2000, desdobrou-se no Plano Nacional do Patrimônio Imaterial, dando instrumentos jurídicos e metodológicos para finalmente reconhecer direitos patrimoniais para segmentos sociais brasileiros, até, então, predominantemente excluídos da narrativa da nacionalidade, enquanto formadores da memória e cultura brasileiras. Ao mesmo tempo, a aplicação da política patrimonial enfrenta práticas discriminatórias, que, em face da realidade social configurada pela presença de um racismo estrutural (Almeida, 2019), poderiam ser mais abordadas na literatura, não fosse a sutileza de suas estratégias e o silenciamento que se impôs sobre o tema, responsável por produzir uma inabilidade social dos cidadãos para o enfrentamento da discussão.
Práticas de viés racista atuaram nos meandros das condutas de vários agentes, durante, por exemplo, o processo de registro e salvaguarda do samba de roda no Recôncavo Baiano, descritas em um tom quase de denúncia por Douxami (2015, p. 85). Essa autora francesa revela não só como a proposição democratizadora presente na concepção da política pode ser afetada pelos imponderáveis em sua aplicação, mas que entre esses está o racismo institucional e suas práticas, difíceis de flagrar, de registrar e de abordar. Dada a delicadeza do tema, algo construído culturalmente, na medida em que produz indivíduos e suas subjetividades dentro de um sistema calcado sob um racismo resistente, o tabu de se falar do assunto predominava até recentemente na cultura brasileira. Práticas tão naturalizadas que são reproduzidas inconscientemente.
Continuando com o fato que traz a autora, a direção nacional do IPHAN precisou reclassificar o patrimônio imaterial nas listas regionais de bens a serem contemplados, devido à maioria serem de natureza material, em relação aos imateriais, em que os beneficiados são os grupos indígenas e afro-brasileiros. Além disso, Douxami (2015) notou que as sambadeiras foram impedidas de, autonomamente, gerirem sua própria salvaguarda, o que revelou, acontece na maioria das ações de salvaguarda, sempre efetivadas em parceria com entidades com mais legitimidade reconhecida, como universidades ou igrejas. Alguns dos fatos presenciados em Vila Bela levam a crer que razões dessa natureza atuaram na interpretação dos dados do INRC local.
Em 2008, as lideranças católicas realizaram a segunda iniciativa em direção ao reconhecimento pretendido para a festança como patrimônio nacional, uma vez que a primeira, realizada por um fotógrafo, sequer consta nos arquivos do IPHAN. O Instituto Quiloa Congo, controlado por uma família influente de Vila Bela, obteve um recurso junto à Secretaria do Estado da Cultura para elaborar o INRC. E após a celebração por contrato de uma parceria entre o IPHAN, a Secretaria de Estado da Cultura e o referido Instituto, contrataram uma equipe composta por duas professoras da Universidade Federal de Mato Grosso e uma terceira, aposentada da mesma instituição. Entre as cláusulas do contrato, destacavam-se aquelas que preveem o sigilo dos dados, a que reserva a propriedade dos dados para a entidade contratante e outra que afirma que os dados somente poderiam ser divulgados com a autorização das entidades parceiras.
A coordenadora da equipe era doutora na área de Letras e as componentes eram também doutoras, uma em História da Educação e outra em Antropologia. Após a finalização dos trabalhos de pesquisa, passaram-se vários anos sem que o relatório final fosse entregue aos contratantes, fato cobrado pelas lideranças vilabelenses da coordenação de outro projeto – a Exposição Itinerante do Patrimônio Imaterial de Mato Grosso – quando esse fez sua passagem em Vila Bela, em 2012, do qual a autora desse relato era coordenadora.
Durante o trabalho de campo, surgiu a oportunidade de acompanhar o desfecho desses fatos[12], relevantes para a reflexão da complexidade que as disputas em torno do patrimônio podem assumir, exigindo que princípios éticos básicos, como a relativização dos valores dos antropólogos e o compromisso do inventariante com o grupo, não sejam esquecidos no trabalho de mediação que realiza o antropólogo entre os agentes envolvidos, conforme destacado por Tamaso (2005), em um trabalho, cujos impactos sociais são ainda maiores que os da área acadêmica (Silva, 2014). Fazer, afinal, o que Abreu e Lima Filho (2012, p. 40) recomendam: “saber que histórias os inventários estão contando”.
Em fins de 2015, uma cópia da capa de uma obra, que se afirmava ser o inventário, começou a circular entre pessoas ligadas ao Instituto Quiloa Congo. O sentimento das pessoas era de que haviam sido enganadas, quando os resultados do INRC foram publicados em obra de autoria da equipe. Um trecho, em particular, do segundo capítulo, de caráter histórico, dividiu a coletividade. Nele, a autora, historiadora da educação, denunciava um dos principais patriarcas[13] da cidade pela prática de “escravizar” um segmento da coletividade, que incluía suas irmãs “ilegítimas” por parte de pai e parte dos chiquitanos, durante o Ciclo da poaia, tendo como fonte as entrevistas realizadas no INRC.
Esse período da história local, com fatos dessa gravidade, foi apresentado em meia página do capítulo, que acrescenta ainda citações de outra obra, na qual o autor, um comerciante de obras de arte e relíquias históricas, menciona o tal mandatário como seu fornecedor de relíquias da igreja, que estiveram sob sua guarda, como fiel depositário do bispo. Esse fato é transposto de forma ingênua para a narrativa, como se, pelo simples fato de estar registrado em uma publicação, fosse verdade, desconsiderando a heurística regida na crítica das fontes históricas, que requer uma série de perguntas dirigidas ao documento e a verificação da posição e interesses de quem fala por meio daquela fonte. Um fato se torna histórico mediante uma questão histórica que é dirigida não a um único documento, mas a uma série, com vistas a reconstruir um contexto (Rüsen, 2001). Embora seja um motivo de rumores localmente, esse fato, venda das relíquias, não se coloca no contexto das temáticas historiográficas da região, servindo exclusivamente para reforçar estigmas, reacender conflitos internos e dificultar a ação de pesquisadores porvindouros.
Os comentários locais eram de que uma “ferida” havia sido reaberta. Uma parte da comunidade se sentiu reparada, em face de que o registro da exploração sofrida, presente na obra, figuraria como uma prova das injustiças sofridas; a outra, ficou indignada com a mancha lançada sobre a reputação de seu patriarca. Rumores de que a filha do referido mandatário fizera pressão junto a suas primas e primos, os que supostamente fizeram declarações em entrevistas, para que fossem na reunião desmentir-se com as autoras, começaram a se espalhar; a outros parentes a liderança pedira que não fossem à reunião chamada para que as autoras se explicassem perante a comunidade, de modo a esvaziá-la e deslegitimá-la.
Com isso, a reunião aconteceu com um pequeno número de pessoas. Não havia a presença de nenhum representante do IPHAN ou da Secretaria de Estado da Cultura, também parceiros na ação. A coordenadora do inventário expôs suas justificativas. O ofício, exibido na tela do computador, sem assinatura ou carimbo de recebimento, serviu como prova de que teriam solicitado a autorização do IPHAN para publicar o livro, já que o contrato de parceria entre os órgãos previa o sigilo e propriedade dos dados e o IPHAN figurava como o guardião do cumprimento do contrato. Depois, um parecer elogioso da obra, expedido pela Fundação de Amparo à Pesquisa de Mato Grosso, ao selecioná-la para publicação, com vistas a legitimar a atitude, foi apresentado. Para as autoras, o fato de elas terem obtido recursos para a publicação, dava-lhes o direito à primazia para a publicação dos dados.
A reunião finalizou com uma fala do Presidente da Associação das associações das Tradicionais Irmandades de Vila Bela que autorizou a distribuição da obra pelas autoras e proibiu o IPHAN de comparecer na cidade sem a presença do Ministério Público Federal. O procurador do MPF, um aliado da coletividade, tem estado presente nas festanças e usado sua influência para tornar efetivo o apoio do IPHAN, da prefeitura, da Câmara e do governo do estado à festança.
Os livros foram distribuídos ao final da reunião. A coletividade ainda não conhecia todo o conteúdo e as polêmicas não haviam terminado. Dias depois, encontrei várias pessoas indignadas com dois outros pontos da obra. Primeiro, o modo como o chorado foi retratado: “o chorado parece uma roda de cachaceiros”, uma falha advinda da não realização da etapa de interpretação dos dados com a comunidade, um processo imprescindível para que a política patrimonial cumpra seus efeitos.
O segundo ponto dizia respeito a uma passagem em que Tereza de Benguela era mencionada como uma “líder cruel, que enterrava os traidores vivos”. Esse dado foi retirado dos Anais da Câmara de Vila Bela, sem qualquer tratamento como fonte histórica. Esse fato, registrado por vereadores escravagistas, entre os anos de 1734 e 1789, deve ser interpretado conforme a posição social e política desses agentes. Ao assumir esse ponto de vista, sem questionamento, a autora do capítulo reproduziu o ponto de vista escravagista sem qualquer crítica. Esse olhar identificado com essa perspectiva pode ser interpretado como um viés racista. Não houve uma relativização da posição da rainha quilombola em sua missão de manter o quilombo Quariterê a salvo das investidas dos escravagistas que, quando puderam, eliminaram a resistência, sem qualquer compaixão.
Ao se examinar o modelo do manual de aplicação do INRC (Fonseca, 2000, 2009), percebe-se que a participação da coletividade não é um ingrediente descartável. Nela reside a alma dessa política pública, na medida em que, de inspiração antropológica, demanda o envolvimento com, ao menos, aquelas pessoas que representam alguns dos posicionamentos possíveis da coletividade. Quando a memória e manifestações culturais estão em jogo, conflito e disputa são parte integrante, que reclamam uma das habilidades que o antropólogo supostamente detém: sua capacidade de mediador de conflitos e de tradutor de conceitos.
No início dos anos 1980, as primeiras iniciativas de patrimonialização do órgão oficial do patrimônio conduziram Vila Bela a uma sucessão de mudanças no campo da cultura, em especial, da festança, a principal manifestação religiosa local. Deram conhecimento de sua existência como uma cidade em que negros descendentes de escravizados, "“abandonados" ” pela administração do estado na fronteira do estado de Mato Grosso, mantinham arraigadas tradições católicas em associação com "intocados" núcleos de costumes oriundos do tempo da escravidão, como o chorado e o congo foram e ainda são divulgados nas mídias.
A pesquisa revelou um quadro mais complexo do que aquele estereotipado reproduzido pelas mídias, pois se para o senso comum, a tradição é assim entendida, como um legado do passado transmitido livre de alterações e responsável pela identidade do grupo ou povo, para a Antropologia a cultura está sempre sendo reexaminada e ressignificada conforme os novos interlocutores e as questões do presente. O que chamamos de tradição é algo selecionado do imenso repertório do passado, segundo critérios, em geral, inspirados nas demandas de reconhecimento do presente, em diálogo com o movimento negro, as mídias e as políticas públicas de patrimonialização, para constituir laços de continuidade e, assim, compor uma imagem de que o grupo ou povo segue sendo o mesmo ao longo do tempo.
Além da importância patrimonial, a cidade se tornou alvo do interesse de um influente veículo midiático, a escola de samba Viradouro, que em consonância com a crescente influência do movimento negro pós-Constituinte de 1988, descobriu a recôndita vila, o quilombo Quariterê e Tereza de Benguela, alçando-os ao reconhecimento nacional e a símbolos da resistência negra. Essa ação incide na própria constituição identitária local, na medida em que a heroína quilombola estava esquecida na memória da coletividade, considerada sua herdeira. Disso decorreu a inclusão no imaginário local do que consideravam qualidades da rainha quilombola como traços de caráter da coletividade, bem como uma intensa ação de reafricanização que incidiu, principalmente, sobre a festa de São Benedito, propícia como lócus para a expressão dessa interlocução étnica, na medida em que já servira a esses fins, no período em que era capital do estado, quando a relação era entre escravizados e seus senhores.
O chorado, nesse processo, será ressignificado por meio de um mito de origem, como um instrumento de negociação entre escravizadas e seus senhores, uma forma de transmitir uma mensagem, uma solicitação de condescendência nas punições que, nesse novo contexto, assume o papel de fazer a comunicação com as autoridades políticas do estado de Mato Grosso. Esse é um dos resultados que mostra como as festas, rituais e formas expressivas se prestam como documentos vivos da cultura afro-brasileira, que, de caráter eminentemente oral, sem voz na documentação oficial, tem em expressões como a festança, no chorado e no congo, indícios de saberes, valores e habilidades de seus protagonistas para constituir e ampliar suas habilidades de vários tipos e aumentar sua área de influência política. Um fenômeno, por vezes, invisibilizado pela fragmentação a que o submete a política patrimonial.
A maior transformação de significado incidiu sobre o chorado, pois de uma forma de sociabilidade lúdica que envolvia toda a coletividade e era acionada em vários momentos do ciclo da vida local, passou a ser encenada por um grupo fixo de participantes, no formato de espectadores e atores, uma fragmentação acionada pelas políticas públicas, em vista de possibilitar exibições, consoante com a visão patrimonial moderna, que compartimenta a cultura em várias categorias. A valorização externa deflagrou ainda uma intensa disputa pela participação em todos os postos vinculados à tradição, inclusive, com apropriação familiar do controle sobre o chorado. Ambas as formas expressivas foram organizadas pelas lideranças em formato de associação com estatuto e diretoria, modelo que parece visto por participantes como obstáculo para decisões igualitárias.
Entre os principais problemas dos processos de patrimonialização local estão o não cumprimento de um requisito básico da política, a interpretação dos dados em conjunto com a comunidade, fundamento da noção de referência cultural e a interferência de objetivos alheios aos da coletividade na condução dos processos.
Conflitos e dissidências históricas emergiram no levantamento das referências, os quais não foram bem equalizados pelos agentes condutores da política na localidade, quando se verifica que os fatos surgidos na etapa de levantamento das referências foram interpretados pelos inventariantes como "presença de racismo" na comunidade, o que demandava um tratamento histórico apropriado, para o qual os instrumentos da política patrimonial não são adequados. Esse dado pareceu justificar para a equipe a publicação desses fatos à revelia, inclusive, com quebra de contrato, sem que o órgão patrimonial tenha eficazmente cumprido seu papel de fiscalizar a aplicação da política. Há, contudo, indícios de preconceito racial no olhar dos próprios inventariantes, identificados com o modo como os vereadores escravagistas definiram Tereza de Benguela, reproduzido sem distanciamento crítico, um viés que atua na aplicação da política e que é, ainda, pouco explorado na literatura e demanda mecanismos eficazes de controle nas instituições públicas, de modo que a política cumpra seus objetivos democratizadores.
Outro elemento importante a se considerar, destacado por Tamaso (2005), é a vulnerabilidade social, econômica e política de grupos como esse, que não têm acesso, nem contatos influentes, para serem visíveis nas instituições e obterem acompanhamento adequado e qualificado para fazerem valer os seus direitos. O próprio fato de que recursos públicos foram empregados em várias iniciativas patrimoniais, sucessivamente, sem que haja retorno para a comunidade, como foi o caso do audiovisual contratado para o INRC que foi pago, mas não realizado, mostra a vulnerabilidade dessa coletividade, sem poder para fazer valer as parcerias que órgãos públicos e empresas assumem com ela. Como afirma Arantes (2008), com os inventários estamos produzindo cultura, o que requer refletir sobre os impactos junto com a população atingida e com o acompanhamento das instituições responsáveis.