Obituário
Marc-Henri Piault (1933-2020)
Recepción: 16 Abril 2021
Aprobación: 23 Mayo 2021
Defendeu seu doutorado em 1966 na Universidade de Sorbonne, em Paris, sob orientação de Roger Bastide, com a tese Histoire Mawri, Introduction l'Étude des Processus Constitutifs d’un Etat. Realizou seus primeiros filmes, Yan Kassa, les enfants de la terre (1965) e Mahauta, les bouchers du Mawri (1967), em 16mm, nesse período. Passando a se dedicar com bastante empenho, a partir da década de 1970, à reflexão teórica e metodológica sobre a antropologia visual, publicou diversos artigos e livros, além de realizar dezenas de filmes no Niger, na Nigéria e na França.
Formado também no Comité do Filme Etnográfico, do Museu do Homem, em Paris, criado em 1952 por Jean Rouch, Edgar Morin, André Leroi-Gourhan, Claude Lévi-Strauss e outros, Piault assumiu sua presidência entre 2004 e 2010, alterando o nome do seu festival anual, até então chamado de Bilan du Film Etnographique, para Festival Internacional Jean Rouch, em homenagem a um dos seus fundadores e mais importante referência no campo da Antropologia Visual, Jean Rouch.
Durante sua presidência, Piault abriu o festival a novos públicos, incentivando, mediando e acolhendo muitos de nós nele. Lembramos com muita emoção quando Fabiene, ainda no início de seu mestrado, em 2006, teve um paper acolhido no colóquio internacional Du cinéma ethnographique à l’anthropologie audiovisuelle: bilan, nouvelles technologies, nouveaux terrains, nouveaux langages, que aconteceu na sala Jean Rouch do Museu do Homem, no âmbito do festival – um lugar tão cheio de significados para nós, antropólogas e antropólogos. Experiência que viveu novamente, três anos depois, já no doutorado (Gama, 2006; 2009).
Em seu país de origem, Piault esteve à frente da Association Française des Anthropologues, do Journal des Africanistes, do Journal des Anthropologues e publicou artigos e livros em francês, inglês, português, espanhol e italiano. Sua mais importante obra, Antropologia e Cinema, foi traduzida para o português e publicada pela Editora da UNIFESP em 2018. O livro, que já era uma referência no campo da Antropologia Visual no Brasil, apresenta uma reflexão histórica sobre as relações entre cinema e antropologia, suas principais questões, conceitos e debates, em especial sobre a ideia de reconstituição do real, a relação antropólogo-cineasta com seus interlocutores e os problemas relacionados à ideia de alteridade.
Piault também foi Diretor de Pesquisas do CNRS/França e atuou como professor nas Universidades de Paris X, Aix-en-Provence, Sorbonne e École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), onde orientou várias dissertações de mestrado e teses de doutorado. Dentre suas orientações de tese, estiveram os trabalhos de duas brasileiras que viriam, posteriormente, a criar importantes núcleos de antropologia visual no Brasil: Clarice E. Peixoto, em 1993, que fundou o Grupo de Pesquisa Imagens, Narrativas e Práticas Sociais (INARRA/UERJ) e Claudia Turra Magni, em 2002, que fundou o Laboratório de Ensino, Pesquisa e Produção em Antropologia da Imagem e do Som (LEPPAIS/UFPel). Na EHESS, com Jean Paul-Colleyn e Eliane de Latour, ele fundou o Centro Audiovisual da EHESS, que se tornou um importante centro de produções audiovisuais antropológicas.
Nos últimos anos, Piault viveu entre a França e o Brasil. Aqui, ofereceu cursos, oficinas e seminários no Departamento de Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, na Fundação Getúlio Vargas, do Rio de Janeiro, e na Universidade de São Paulo. Participou de debates, eventos, publicações, júri de prêmios, festivais de filmes etnográficos, colaborando com seus conhecimentos, mas também com suas redes de interlocução internacionais. Mediou a vinda de muitos pesquisadores ao Brasil e também a ida de muitos de nós à França. Nós fomos dois deles. Já aposentado, ele apresentou Fabiene a Jean-Paul Colleyn, que se tornou seu coorientador de doutorado, na EHESS.
Dentre os eventos com os quais Piault se envolveu no Brasil, gostaria de destacar sua atuação em dois que nos são especialmente importantes: a Reunião Brasileira de Antropologia e a Mostra Internacional do Filme Etnográfico, evento idealizado por Patrícia Monte-Mór e José Inácio Parente (Interior Produções), no Rio de Janeiro. Piault esteve presente na 1ª Mostra Internacional do Filme Etnográfico, no Rio de Janeiro, em 1993, com seu filme Akazama (1985). E se envolveu em todas as outras edições do festival nos anos subsequentes. Em 1994, na segunda edição, realizou o workshop O cinema e a prática antropológica, uma capacitação que durou três dias, em encontros diários de três horas, do qual participou Emílio.
Dois anos depois, em 1996, fez parte da comissão de avaliação do primeiro prêmio de filmes etnográficos da Reunião Brasileira de Antropologia, que aconteceu em Salvador, um prêmio que viria a se chamar Prêmio Pierre Verger, alguns anos depois. Nesse mesmo ano, ele intermediou a vinda de Jean Rouch ao Brasil para a 3ª Mostra Internacional do Filme Etnográfico.
Em 1995, participou da criação da revista Cadernos de Antropologia e Imagem, fundada pelas Professoras Clarice Peixoto e Patrícia Monte-Mór na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, como membro da Comissão Editorial. A icônica revista, na qual Fabiene teve a honra de trabalhar como assistente editorial, dez anos depois, foi a primeira dedicada à antropologia visual no Brasil e atuou como formadora do campo no país. Durante muitos anos, traduziu uma série de textos importantes, tornando o debate da área mais acessível a estudantes brasileiros e brasileiras.
O primeiro número da revista, que contou com artigos de Pierre Jordan, Karl Heider, Peter Loizos, Clarice Peixoto e Patrícia Monte-Mór, além de uma entrevista de Jean Paul-Colleyn com Jean Rouch, apresentou também o artigo “Antropologia e a sua ‘passagem à imagem’”, de Marc Piault. O artigo se tornou referência em muitos cursos de formação na área da Antropologia Visual no Brasil, inclusive naqueles que Fabiene ministra hoje na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em especial no âmbito do Núcleo de Antropologia Visual, laboratório em que ele também teve importante influência na fundação.
Em 1999, alguns anos mais tarde, e em parceria com Patrícia Monte-Mor, Piault criou uma das mais importantes formações de cinema documentário no país, o Atelier Livre de Cinema e Antropologia, curso inspirado na oficinas criadas por Jean Rouch e outros colaboradores em Moçambique em 1978. Essas oficinas resultaram na criação dos Ateliers Varan, na França, formação na qual Piault também atuou. O Atelier era um curso de extensão produzido pelo Núcleo de Antropologia e Imagem, na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, considerado um oásis para quem sonhava em trabalhar com antropologia visual no Rio de Janeiro, no final da década de 1990, início dos anos 2000.
O curso, que nos formou na teoria e na prática no cinema antropológico, aconteceu até 2007, capacitando mais de uma centena de pessoas, resultando na produção de diversos vídeos documentários. Dentre eles está o nosso Família Tetra (2001), uma verdadeira experiência de pesquisa antropológica com imagens, desenvolvida através de um trabalho de campo compartilhado com jovens moradores do Cantagalo, uma comunidade popular do Rio de Janeiro, ao longo de um ano, que resultou em um longa-metragem.
Emílio, aluno das duas primeiras edições do curso, a partir da terceira edição passou a atuar na formação de estudantes. A primeira impressão que tínhamos de Piault fora da sala de aula, lembra Emílio, era de que ele era uma espécie de senhor Hulot, personagem de Jacques Tati, com sua simpatia e bom humor, sempre assobiando ou cantarolando algo. Mas sua aparência era de alguém saído do clássico filme hollywoodiano Easy Rider, sempre vestindo um colete de couro sobre uma camisa preta, que completavam o visual com a pulseira igualmente de couro que portava no pulso.
Desde seus primeiros anos no Brasil, Piault ministrava as aulas com um grande esforço em um português contaminado pelo forte sotaque francês. O interesse que despertava em nós, pelo conteúdo que compartilhava, mas também por seu jeito simpático e atencioso, sempre disposto a colaborar com nossos projetos, tornava-o cada vez mais fluente em nosso idioma.
E o nono andar da UERJ, ambiente que rapidamente se tornou nossa segunda casa – da Fabiene, na editoria do Cadernos de Antropologia e Imagem; e do Emílio, no Atelier de Cinema e Antropologia – Piault discorria sobre a história da imagem na antropologia e o surgimento do cinema no contexto da expansão ocidental; sobre o desenvolvimento do olhar científico e da ideia de objetividade; sobre a construção de um documentário e seus tratamentos, estratégias e roteiro; sobre o cinema etnográfico contemporâneo; sobre o trabalho de Jean Rouch, entre outros temas.
O Atelier era estruturado em aulas teóricas, duas vezes por semana, sobre cinema e antropologia e práticas, tendo como exercício final a realização de um vídeo documentário. As turmas tinham, em média, vinte estudantes, das mais diversas áreas: ciências sociais, jornalismo, cinema, TV, entre outras. E o encontro era mágico. Em suas últimas edições, contava com duas câmeras super VHS que eram utilizadas por todas as equipes de filmagem. Geralmente eram cinco equipes com quatro alunos/as cada. Piault mostrava grande abertura para os temas e curiosidade sobre os assuntos que documentávamos. Via imagens do material bruto, comentava durante o processo de realização, nos dava dicas.
Em suas aulas, debatia filmes dos fundadores da antropologia visual, discutia o desenvolvimento da antropologia e do cinema, a montagem como linguagem, a antropologia compartilhada, o cinema como experiência vivida, a construção da realidade através do cinema, questões éticas do documentário, e a dificuldade inicial para o reconhecimento da antropologia visual pelas instituições acadêmicas, entre tantos temas.
Acompanhamos de perto o processo de trabalho de Piault, inicialmente orientados por ele, podendo Emílio, posteriormente, observar suas orientações como parceiro de formação aos grupos de alunos nas aulas, no trabalho de campo e na prática de realização dos vídeos. As experiências compartilhadas, especialmente nos dois anos em que pôde partilhar seu método de ensino em campo, na praia de Dois Rios, em Ilha Grande, para onde viajavam todos os participantes do ateliê para realizarem seus documentários, foram especiais. Lá, partilhava-se com ele todo o processo de pesquisa e filmagem, através de projeções e discussões ao final de cada dia.
Piault sempre demonstrou disponibilidade para contribuir com nossos projetos, fossem eles no âmbito do Atelier ou em outras formações. Ouvia sobre nossas impressões de campo, os desafios das filmagens, nossas primeiras experiências etnográficas, que frequentemente aconteciam em universos bem distantes da sua realidade, como foi o caso dos vídeos produzidos sobre o hip hop ou as favelas e periferias do Rio de Janeiro. Sempre atento, com grande respeito em relação aos temas e a nossas experiências, Piault vibrava e nos oferecia dicas sobre o desenvolvimento de cada projeto. Lembramos de uma das mais valiosas de suas dicas: a de nunca retirar as pessoas de seus contextos para realizar entrevistas formais, optando por conversar com as pessoas em suas ações cotidianas.
Ele sempre dizia que filmar é pensar, e que era importante, antes de apertar o botão para gravar, refletir sobre o que queríamos mostrar. Ele comentava que com o advento do digital, as pessoas saíam filmando aleatoriamente, sem pensar muito no que estavam produzindo, nos seus enquadramentos etc. O que, para ele, resultava numa grande quantidade de material desnecessário ao filme, e um enorme tempo perdido na ilha de edição. Pensar a filmagem também era uma forma de economizar dinheiro, pois não filmar demais significava comprar menos fitas, o que tornava o processo de realização documental mais acessível para estudantes.
Outra recomendação dada por ele era para exercitarmos constantemente nosso olhar, buscando pelas ruas possibilidades de filmagens e enquadramentos, utilizando o nosso olho como uma câmera. Suas dicas para realização de um filme etnográfico rapidamente interferiam em nossa produção antropológica, de forma geral. Foi com ele que aprendemos o que significava fazer uma antropologia compartilhada, a devolver nosso trabalho a nossos interlocutores, etc.
Em suas aulas, Piault tinha grande preocupação em nos mostrar quem eram os nossos ancestrais, tanto na Antropologia quanto no Cinema. Falava sobre os americanos e seu cinema observacional, tratando-os com admiração, mas tinha atenção especial aos franceses e, principalmente, ao cinema de Jean Rouch, que também o formou. Inspirado nele, Piault defendia que a câmera deveria ser como a extensão do nosso corpo. Por isso, não deveríamos utilizar o zoom das câmeras, mas nos aproximar das pessoas, interagindo com elas. Isso, para estudantes tímidos como nós, era um desafio. Mas nos lançou, com o apoio coletivo que a experiência no Atelier nos proporcionou, em uma direção sem volta, rumo a novos mundos e realidades, dentro e fora do país. Emílio, no cinema documentário, Fabiene, na universidade, seguimos com a certeza de que levaremos seus ensinamentos adiante.