Dossiê
De tutsi a inyenzi: humilhações, desprezos e violências na experiência interétnica ruandesa
From Tutsi to Inyezi: humiliation, disdain, and violence in the interethnic Rwandan experience
De tutsi a inyenzi: humilhações, desprezos e violências na experiência interétnica ruandesa
Anuário Antropológico, vol. 46, núm. 3, pp. 149-166, 2021
Universidade de Brasília
Recepción: 10 Febrero 2021
Aprobación: 03 Agosto 2021
Resumo: O artigo analisa antecedentes que culminaram no Genocídio Tutsi em Ruanda em 1994, por meio da literatura das sobreviventes deste evento. O foco são as práticas de humilhação, ódio e desprezo na construção da diferença entre hutus e tutsis. Partindo do exame da literatura de testemunho de quatro sobreviventes, me pergunto quais são as afinidades entre a experiência colonial em Ruanda, humilhação, inimizades e os modos de se fazer morrer no genocídio. Em diálogo com as contribuições de Mbembe sobre a questão colonial, o texto argumenta que, por meio da tese hamítica, foram organizadas narrativas que contribuíram para o domínio colonial. Essa tese não só estimulava a etnização da sociedade ruandesa, mas o fazia por meio da cristalização étnica e de inimizades advindas da elitização dos tutsis. Por meio da literatura de testemunho das ruandesas Scholastique Mukasonga, Immaculée Ilibagiza, Marie Béatrice Umutesi e Yolande Mukagasana, é possível perceber parte de algumas transformações do tecido social ruandês, como o antitutismo, violências e humilhações em consonância com o processo discursivo de animalização dos tutsis ao longo da segunda metade do século XX. Processo que culminou nos modos de se fazer morrer no genocídio. Finalmente, o texto aponta para essa literatura como espaço privilegiado para a elaboração do trauma dessas mulheres que narram, por meio de lembranças e da memória, a complexidade emocional impressa por um genocídio nas suas biografias.
Palavras-chave: s: Ruanda, Genocídio, Colonialismo, Humilhação, Etnia.
Abstract: The following article analyzes changes that led to the 1994 Tutsi genocide in Rwanda through the literature produced by survivors. We focus on the practices of humiliation, hatred and disdain in the construction of ethnic difference between Hutus and Tutsis. Starting with a review of the writings of four survivors, we reflect on the affinities between the colonial experience in Rwanda, humiliation, animosity and the ways of making death in a genocide. In dialogue with Achille Mbembe’s discussion of the colonial situation, this article argues that, by way of the Hamitic hypothesis, colonial discourses not only contributed to European power. They also stimulated the ethnicization and fragmentation of Rwandan society by exploiting animosities borne out of the creation of a Tutsti elite. Reading the work of Rwandan witnesses, such as Scholastique Mukasonga, Immaculée Ilibagiza, Marie Béatrice Umutesi and Yolande Mukagasana, transformations in the Rwandan social fabric, such as anti-Tutsi violence and humiliation, appear. These resonate with the long ideological process throughout the 20th century that compared Tutsis to animals, which culminated in the ways of making death during the genocide. Finally, we suggest a reading of these works as privileged spaces where the emotionally complex trauma of genocide can be given form through the recollection of lived memory.
Keywords: Rwanda, Humiliations, Genocide, Colonialismo, Ethnicity.
Introdução
O genocídio ruandês pode ser compreendido como fenômeno social de alta complexidade. Analisá-lo exige o reconhecimento de que dimensões econômicas, políticas, históricas, agrárias e subjetivas se coproduziram para sua formatação. Argumento que abordagens a partir do caráter eminentemente processual do genocídio são fundamentais para se perceber como retóricas políticas, adesão popular nas mortes e narrativas de intolerância passam pela via dos sentimentos. Esse campo é privilegiado para entender também altas cifras e os modos que se fez morrer tutsis neste evento.
Os conflitos políticos, o problema da posse de terras, a questão econômica que assolava o país, e outros temas relacionados, foram abordados por Chrétien (1997; 2003; 2017), Des Forges (1972; 2011; 1999), Mamdani (2002), Newbury (1988; 1995; 2003) e Prunier (1995). Esse conjunto de autores apontam para aspectos plurais no estudo do genocídio, e também dão ênfase a análises historicizadas sobre este evento. O genocídio ruandês, objeto ainda tímido em abordagens da antropologia brasileira, se insere num campo referencial maior, reconhecido como antropologia da violência, da dor e da guerra, temas com os quais Das (2000), Cho (2008) e tantas outras intelectuais têm contribuído profundamente. Esse tema também se insere num vasto campo de estudos do genocídio, da memória e da violência.
Este texto é parte de uma pesquisa maior, que resultou em uma dissertação de mestrado em antropologia social (Mendonça, 2021). Seu objeto de estudo foram as obras escritas por mulheres ruandesas sobreviventes do genocídio. Meu interesse era compreender esse evento a partir de uma perspectiva cotidiana, na qual sentimentos, ferramentas, instituições, memórias, corpos e concepções étnicas ajudam a dar inteligibilidade aos atos que modularam esse evento, no qual 800.000 pessoas foram mortas[1]. Também argumentei que certas práticas e ações coloniais foram fundamentais para ideologizar e potencializar a ideia de diferença étnica em Ruanda, sendo importantes, portanto, para fomentar diferenças étnicas atravessadas pelo desprezo e ódio.
Expandindo as análises do material literário, há aqui uma ênfase no tema da humilhação e desprezo, não apenas como um efeito, mas como organizadores da experiência dos sujeitos. Essas duas categorias também expõem a complexidade do fator temporal na formatação do genocídio. Há reatualizações importantes no período do genocídio sobre narrativas e imaginários que o colonialismo europeu realizou em Ruanda, tal como a teoria hamítica, concepção etnocêntrica central desse regime que elevou tutsis como etnia privilegiada num primeiro momento. O processo de feitura do genocídio, expresso por meio das trajetórias das escritoras sobreviventes, demonstra como humilhações e desprezos foram fundamentais para a formatação das mortes tutsis em 1994.
Parto de reflexões de Mbembe sobre o problema colonial para pensar as relações interétnicas. Neste momento penso essa questão ancorada naquilo que Seyferth (2005, p. 5) sugere: refletir sobre etnicidade carece evidenciar as formas pelas quais os pertencimentos coletivos são compreendidos e mobilizados por meio de similaridade e diferenças; ou como a cultura enraizada na vida cotidiana tem valor na categorização das identidades étnicas, cultura essa que se alia a outros conceitos, como território e história, tão importantes para que as fronteiras intergrupais sejam socialmente construídas.
Ilumino a categoria humilhação em diálogo com Miller (1997) por entender que a experiência étnica ruandesa pode ser vista como inserida e coproduzida por um esquema emocional vexatório. Meu enfoque se dá através de alguns sentimentos hostis, ou dos complexos emocionais hostis evocados por eles (Miller, 1997; Coelho, 2010; Díaz-Benítez, 2019). Aproximo assim humilhação e desprezo da violência e desumanização na feitura das mortes, observando nos textos testemunhais das ruandesas a elaboração cotidiana dessas categorias na relação entre hutus e tutsis.
Trata-se, por isso, de uma análise mediada pela escrita e testemunho das mulheres sobreviventes. Gilbert (2013), ao realizar um exame da produção literária dos testemunhos das escritoras ruandesas, argumenta que as narrativas de maior impacto tendem a ser aquelas que traduzem a experiência do genocídio ao mesmo tempo como profundamente individual, mas que resumem, de modo satisfatório, uma experiência coletivizada. Elegi os textos de Scholastique Mukasonga, Immaculée Ilibagiza, Yolande Mukagasana e Marie Béatrice Umutesi pela acuidade com a qual elas exercem esse tipo de análise sobre o genocídio. Partindo do exame dessa literatura, me pergunto quais são as afinidades entre a experiência colonial em Ruanda, humilhação, inimizades e os modos de se fazer morrer no genocídio?
Para responder tal questão, este texto se organiza partindo da cristalização étnica e inimizades acionadas no colonialismo europeu, para em seguida mostrar como a humilhação demarcava hierarquia por meio da narrativa de que por serem hamitas, tutsis teriam a submissão dos hutus. Em seguida, o texto aborda experiências das escritoras em cenas e contextos de humilhação. Exemplifico brevemente os modos de se fazer morrer e sua relação com esses antecedentes. Finalmente, assinalo que os testemunhos dessas mulheres podem ser vistos como exemplar importante da literatura de trauma na África, na qual memória e lembranças acontecem por meio da escrita produzida pelas ruandesas.
Colonialismo, cristalização étnica e inimizades
Para Mbembe, “a raça sempre foi uma sombra presente na prática e no pensamento político ocidental, especialmente quando tentou imaginar a desumanidade e subjugação dos povos estrangeiros” (2017, p. 116). Em Ruanda não foi diferente. A divisão étnica radical gerida pelo colonialismo, principalmente o belga, que durou pouco mais de quatro décadas, tomou forma por meio de uma série de interpretações, representações, discursos e atos burocráticos responsáveis por subjugar e dominar os grupos dali.
Os exploradores alemães tiveram papel importante num primeiro domínio de parte do território ruandês, conseguiram a submissão de um mwami (rei) tutsi e ajudaram nas revoltas contra ele perseguindo lideranças não reconhecidas de 1887 até a Primeira Guerra Mundial.[2] Entretanto os belgas, entre 1914-1916, ao estabelecerem um novo protetorado colonial, iniciaram uma administração mais intensa e generalizada. Esses encontros, conflitos, eventos e relações foram zona de contato na qual, muitas vezes, a violência foi utilizada como meio para submeter ruandeses a uma condição de indignidade e humilhação (Mbembe, 2017).
É certo que a história de Ruanda não começa em 1858 quando um explorador europeu chega pela primeira vez no território que hoje pertence a este país[3], mas tudo que se sabe sobre o contato dos povos dali com esses “viajantes” aponta para o fato de que tal encontro e outros sequentes deram início ao que seria uma longa narrativa sobre o problema étnico ruandês. A sociedade Banyarwanda foi interpretada através da concepção tripartida dos grupos (às vezes etnia, classe ou casta) designados como hutus, tutsis e twas. As representações colonialistas sobre pertencimento dessas três etnias advêm dos usos e adaptações de uma teoria racista fundamental para o empreendimento colonial alemão e belga: a tese hamítica.
Essa teoria imaginada e defendida com afinco pela antropologia cânone da época[4], aplicada pelas missões católicas e aparato colonialista foi organizadora da racialização/etnização da sociedade ruandesa. Nela os tutsis foram definidos grupo superior por serem concebidos como descendentes de negros europeus (hamitas) e, por isso, portadores de características que os ligava à superioridade europeia. Sua origem egípcia/caucasiana comprovaria: eles seriam pastores invasores vindo do norte do continente e teriam dominado os outros grupos. Tutsis eram a minoria estrangeira que havia chegado em Ruanda através de um rio. Seus traços etíopes, narizes finos, sua altura, cor de pele, textura de cabelos e “cultura pastoril” comprovariam isso; os agricultores hutus compunham a população majoritária e formavam uma segunda etnia, autóctones em relação aos tutsis. Em algumas regiões se submetiam ao mwami tutsi, o que serviu de generalização na compilação colonial da sua condição de servidão. Hutus foram lidos como uma etnia inferior, também classificados pela definição racista de traços, estatura e cor da pele. Por fim os twas, outra minoria referenciada como “pigmeus da floresta”, também concebidos autóctones (Schebesta apud Seligman, 1930), eram uma alteridade primitizada, radicalmente distante daquilo que a interpretação europeia pressupunha por povos civilizados.
Taylor escreve que, no contexto ruandês, “o colonialismo não induziu o processo de etnogênese, mas contribuiu para deteriorar as coisas ao adicionar a ideologia do determinismo biológico à situação” (Taylor, 2011, p. 67). De fato, por meio da tese hamítica, um elitismo tutsi foi possível, este decresceu até a Revolução Popular hutu em 1959. Essa tese colaborou para a disparidade entre os outros grupos. Hutus e twas deveriam servir ao grupo que, por ser "superior”, os teria dominado e que, por sua vez, estava submetido aos colonizadores. Essa “concentração indireta do poder” aumentou distâncias sociais: vagas escolares e empregos eram majoritariamente destinados aos filhos da elite tutsi, um privilégio concedido pela Igreja Católica e administração belga.
A literatura histórica especializada de Des Forges (1972; 1999; 2011), Chrétien (2017; 2003; 1995) e Prunier (1997) indica que a consagração desta etnia a partir de uma abordagem racializante e racista para governar indiretamente o país durante décadas foi fundamental para a incitação à violência à época da independência do país na década de 1960. Carney (2014) assinala algumas dessas hostilidades antecedentes: de 1952 a 1962 as identidades hutu e tutsi se tornaram intensamente politizadas, essencializadas e associadas à violência política. Ele também destaca como massacres étnicos aconteciam em Ruanda em 1963-64, também em 1973 e no início dos anos 1990. Élie Mizinge, um hutu que tinha cinquenta anos no momento das matanças, explicou para Hatzfeld “Acho que a ideia do genocídio germinou em 1959, quando começamos a matar pencas de tutsis sem ser punidos; e desde então nunca a enterramos totalmente. De seu lado, os intimidadores e os manejadores da enxada tinham se posto de acordo” (Hatzfeld, 2005, p. 66).
Há, portanto, uma relação estabelecida entre colonialismo, cristalização étnica e inimizades gestadas no tempo. Como Mbembe (2014) considera, é na grande noite colonial que essa inimizade é gestada para os fins da lógica de controle e domínio de territórios, extrações de riquezas e manutenção do subjugo. Mesmo no “pós-colônia”, as dinâmicas de poder orbitam em torno de disputas internas. Para Mbembe (id.), a delimitação das fronteiras internas, as circunscrições administrativas, além de servirem para fins simultaneamente políticos e econômicos, também contribuíram para a cristalização das identidades étnicas.
Essa produção identitária permitiu o restabelecimento dos antigos reinos e chefarias, o nascimento de novos grupos étnicos, tanto pela separação em relação aos antigos quanto por amalgamação. Também originou conflitos violentos cimentados por inúmeras deslocações populacionais. Por fim, fomentou os irredentismos, designadamente nos países nos quais as minorias se sentiam excluídas dos benefícios materiais do poder (Mbembe, 2014, p. 153).
Em Ruanda, a ênfase nas diferenças étnicas no (con)texto da colônia passa a ser afirmada enquanto política de inimizade e hostilidade. Há uma elaboração do inimigo interno que, de elite, passa à condição de desumanizado. Ao longo de décadas, a presença do poder belga colaborou para criar espaços de desigualdades entre tutsis e hutus; e essas distinções são apontadas como motivadoras da Revolução Popular hutu, ecoando nos discursos anti-tutsi nos anos antecedentes ao genocídio. Por operações diversas, se transforma a diferença étnica em motor para essas políticas dos tutsis como traidores, altivos, arrogantes, culpados do pacto estabelecido pelas elites de sua etnia.
Ao longo do tempo, guardadas na memória, nas conversas, nos ditos populares, nas experiências familiares e espraiada no imaginário ruandês estava a ideia de que os senhores tutsis haviam explorado e obtido submissão de hutus por um período longo demais. A servidão, humilhação que os hutus sofreram deveria ter fim. Era hora de honrar o povo majoritário e fazê-lo pela via da subjugação dos tutsis. Esses termos moldaram o desprezo pela etnia que, logo mais, quase seria exterminada. Não se consegue produzir um genocídio sem uma gestão bem orquestrada, ao longo do tempo, de sentimentos como ódio e ressentimento. A fantasia de extermínio careceu de práticas de humilhação não só como emoções experimentadas particularmente pelos sujeitos, mas também como fato social que organizou a experiência política de todo um país ao longo do século XX.
Desprezos antecedentes
Em uma passagem de Surviving the Slaughter (2004), a escritora sobrevivente Marie Béatrice Umutesi chama atenção para como práticas de servidão que hutus prestavam aos tutsis eram cerceadas por humilhações e violências, muitas delas fundadas em instituições tradicionais que exploravam os hutus mesmo antes da chegada da colonização europeia[5]. Nascida em 1959 e pertencente a uma família hutu, ela narra que quando jovem sua tia foi maltratada pela família de sua senhora tutsi, chegando inclusive a receber um castigo público com chibatadas. Umutesi também registra que outros familiares e conhecidos chegaram a ser presos por desrespeito aos seus “mestres tutsis”[6] quando demonstraram descaso às etiquetas de conduta nesse sistema descrito por ela como servidão camponesa.
A memória familiar narrada pela escritora exemplifica que castigos físicos e práticas de distinção eram vivenciadas por hutus na vigência de um “elitismo tutsi”. A deferência hutu para com tutsis é uma referência encontrada não só em Umutesi, mas aparece também no texto cerne da chamada Revolução Hutu (1959-1961). Esse movimento tinha como reivindicação central a resolução do problema indígena ruandês e ficou marcado pela violência contra tutsis, exílios e centenas de mortes. Do ponto de vista dos hutus, era necessário não só a saída de uma Ruanda como colônia belga ancorada numa monarquia tutsi para uma república independente, como também a inversão radical do lugar da etnia hutu nesse esquema. Sua proposta para a transformação social baseava-se em termos como povo majoritário, autoctonia e fidelidade ao país. Trechos do documento conhecido como Manifesto Bahutu (1957) afirmam que a “mudança de mentalidade dos ruandeses” era necessária não somente no âmbito da política e das leis, mas, sobretudo, nos costumes[7].
A elite do grupo majoritário reivindicava não só o fim do sistema de servidão, mas especialmente das moralidades que o constituíam, sugerindo a superação das “funções sociais” e do servilismo hutu. Ele propunha uma moralidade mais moderna, livre do domínio europeu e, principalmente, livre do mando tutsi. Almejava-se que ela fosse democrática, particularmente para hutus. Isso significava abandonar a mentalidade dos “hamitas” como a elite do país. A mensagem possível a depreender desse Manifesto era que o povo majoritário, por meio de uma mudança radical, alcançaria o status e, em consequência, o respeito e a honra merecidos por eles.
Na prática, todo o movimento de independência se configurou em situações de extrema violência, perseguições e exílios para muitos tutsis. Os antigos senhores passavam a ocupar outro lugar social, milhares foram exilados, fugiram para países próximos. Os petit tutsis, em sua maioria despossuídos, que continuavam em Ruanda, passaram a experimentar gradualmente um antitutismo: termo que expressa a aversão manifesta socialmente contra os tutsis, agora reforçado por normas e direitos políticos.
Em meio a isso, no ano de 1960 ocorreu o “exílio interno” de tutsis para a Região de Bugesera (Mukasonga, 2018) – a família da escritora Scholastique Mukasonga foi uma das deslocadas forçosamente. Um exame do seu livro Baratas descreve como, nos primeiros anos da República, proclamada em 1961, aconteceram ataques dispersos contra os tutsis e os grupos de perpetradores hutus saíam impunes. Mortes e perseguições aos tutsis aconteciam em altas cifras nos primeiros anos da saída dos belgas. Mukasonga conta: “Nossa situação agravou-se já em 1967. Desde o começo do ano, sentíamos aumentar a tensão, algo de ameaçador que se aproximava de nós. Entre os bageseras[8], os conselheiros comunais tinham reuniões misteriosas, às quais só eram convidados os hutus” (Mukasonga, 2018, p. 73).
A vida das mulheres tutsis que cresceram ao longo da segunda metade do século XX foi marcada por uma série de situações de violência e humilhações. Acontece uma coprodução importante entre desumanização, humilhação e violências nesse período, concentrando eventos de extrema importância para entender o engajamento popular no genocídio, bem como as narrativas e tipos de morte presentes nele. Entre o período que antecede a independência e a década de 1990, os tutsis passam a ser chamados de inyenzis. Em kinyarwanda, esse termo corresponde à palavra “barata” e foi utilizado com frequência para se referir às pessoas da etnia tutsi em Ruanda. Eles também eram referenciados como “serpentes” ou um “mal da nação” (Mukagasana, 2019, p. 27, tradução nossa)[9].
Esse tipo de mensagem verbal de invocação cria uma condição de desassujeitamento, de desumanização. Todos os tutsis são solapados ante esses termos, passando a serem indignos de seu reconhecimento como humanos. São reduzidos à sua etnia, e sua etnia é reduzida a essas designações. Essas “pequenas” humilhações sentidas e expressadas conformam também a possibilidade do genocídio. A violência e os modos de se fazer morrer, nesse evento, não só se alimentaram dessas narrativas existentes como as amplificaram. O relato de um homem hutu chamado Ignace ao jornalista Hatzfeld assinala isso: “os lotes de terra fecundavam o ódio sob as colheitas, porque não eram suficientemente grandes para as duas etnias” (Hatzfeld, 2005, p. 239). A experiência dos hutus para com os tutsis, em alguns casos, era de um ressentimento próprio da inimizade; em outros, de uma convivência tolerável, sempre abalada pela desconfiança e pelo cenário e acontecimentos de ordem política não só no país como nos arredores dele[10]. Daí, humilhar aquele que era conhecido —muitas vezes íntimo —, num país de vilarejos, significava articular sua “culpa”, seu lugar no esquema do tecido social ruandês, mesmo antes da ideia de uma eliminação total de tutsis.
Cabe notar também que a humilhação opera na maior parte dos relatos da literatura de testemunho do genocídio, como expressão de superioridade étnica. Em atos de hutus ou tutsis é possível interpretar qual era a etnia que gozava de poder pelo direcionamento de suas práticas de humilhação. A depender da etnia que ocupava o lugar de prestígio – ou, se preferirmos, de honra – poder-se-ia produzir ações mais ou menos eficazes, capazes de criar marcos de distinção, de diferenciação entre as pessoas das diferentes etnias. Inclusive a violência e o desprezo podem ser uma declaração de maior status, poder ou de tentativa de elevar seu status. No caso hutu, desprezar para se sentir não só moralmente superior a um outro, mas ontologicamente superior ao escarnecer e suspeitar da condição de humano de um tutsi. Portanto, é possível pensar como nos casos acima há uma “produção étnica” que passa por emoções e sentimentos. Jean Baptiste, um dos hutus condenados pelo genocídio, resume isso quando declara: “o tempo nunca secou esse rancor” (Hatzfeld, 2005, p. 239). Com isso, podemos pensar: como se deu, na experiência das escritoras tutsis, as humilhações nessa transposição de um lugar tutsi em Ruanda?
Humilhações cotidianas: o antitutismo e o “lugar” dos tutsis
Nascidas em regiões diferentes, com mais de quinze anos de diferença, duas mulheres sobreviventes do genocídio narram histórias marcadas por situações de intolerância étnica. Mukasonga e Ilibagiza cresceram assistindo a atos de hostilidade perpetrados contra tutsis, direcionados às pessoas das mais variadas idades. Parte das obras de ambas trata dos efeitos desses atos em suas subjetividades e trajetórias familiares.
Mukasonga conta que “os primeiros pogroms contra os tutsis estouraram no toussaint[11] em 1959” (Mukasonga, 2018, p. 13). Aos três anos de idade, ela presenciou as primeiras cenas de horror, durante o ataque à província de Butare[12], lugar no qual sua família residia. Rememorando esse episódio, ela conta como a mãe conseguiu salvar os filhos escondendo todos entre bananeiras de seu quintal. Dali eles assistiram a uma cena que se repetiria anos depois: um bando de homens hutus gritava, portando facões, armas e bastões; eles incendiaram a casa coberta de palha, o lar de sua família, e também queimaram os estábulos onde estavam os bezerros. Os homens ainda esvaziaram os celeiros cheios de provisões centrais na dieta ruandesa, tal como feijão e sorgo: “Não pilhavam, só queriam destruir, apagar todos os traços, nos aniquilar” (Mukasonga, 2018, p. 13).
Esses ataques às propriedades de famílias tutsis foram comuns desde o início da década de 1960, período entre a Revolução Hutu e a instauração da República. A destruição do gado não era fortuita, o prestígio dos tutsis como etnia estava ligado à posse desses animais. Sendo grupo referenciado como “pastores hamitas”, havia uma relação direta entre a destruição das vacas tutsis e de sua imagem. Nas obras das tutsis é possível entrever como o gado era elemento de prestígio naquela sociedade. A vida tutsi se organizava em torno dele, fosse pelo uso do leite ou pelas muitas utilidades do esterco. O gado também parecia ter a capacidade de “fazer funcionar o mundo dos homens”. Transações como casamentos, rituais de boas-vindas a recém-nascidos, reuniões familiares de ano novo, fabricação de alimentos e até mesmo os elogios dados às mulheres tutsis faziam uso ou referência a esse animal. A posse do gado era, por isso, um elemento imprescindível na socialidade tutsi, fosse pela sua provisão de alimentos ou pelo simbolismo que eles conferiam a essa “classe de pastores”. Mesmo antes, na “sociedade Banyarwanda ele não era produzido para o alimento, mas sim para manter um sinal de prestígio por parte dos monarcas (quanto mais gado, maior a posição social), os quais bebiam o leite e o sangue do gado” (Fonseca, 2016, p. 214). Desta maneira, os ataques de violência almejavam (e destruíram com frequência) esses animais, ícone dos tutsis.
Ataques e ruínas nas casas tutsis são recorrentes na narrativa das sobreviventes (Mukagasana, 2019; Umutesi, 2004; Ilibagiza, 2012). Mukasonga (2017) explica como a construção da moradia tradicional ruandesa (o inzu) envolvia não só a família que iria residir ali, como também toda a comunidade de vizinhos e conhecidos. Ela era concebida como espaço capaz de conjugar várias experiências existenciais da família ruandesa tutsi, tida como um lugar de honra para a mulher, sobretudo para as mães. Ao redor do inzu, nos quintais, elas estabeleciam uma rede de socialidade reservada às meninas, mulheres já mães e às crianças pequenas. O inzu abrigava não só a família, como suas adjacências serviam de espaço para prestar pequenas oferendas aos ancestrais.
A destruição da casa de tutsis, que poderia dispor de estatuto quase sagrado, transmitia uma mensagem para além da violência imediata: o lugar no qual se “produzia pessoas”, alimentos, contavam-se as histórias, guardava-se os animais de referência aos tutsis, lugar por excelência de “fazer parentesco” (Carsten, 2004), não era um abrigo seguro para a etnia perseguida. Assim como a aniquilação do gado, a destruição das casas girava em torno da pauta de eliminar qualquer prestígio, qualquer imagem de valor possível de ser atribuída aos tutsis além, é claro, de tornar tutsis despossuídos.
Mas atos de hostilidade para com os tutsis não aconteciam somente em vilarejos e no exílio forçado, eles também eram percebidos em instituições educacionais nas cidades. Durante o período em que estudavam, tanto Ilibagiza como Mukasonga sofreram constrangimentos diversos por serem as poucas garotas tutsis na escola. A primeira delas, nascida em Kibuye e que residiu na aldeia de Mataba, no extremo oeste de Ruanda, narra como, aos dez anos, descobriu que as etnias existiam por causa de uma chamada étnica.
Apesar de ter perdido sua casa anterior em um ataque de um grupo hutu, sua família não tocava no assunto das diferenças étnicas ruandesas. Foi na escola que Ilibagiza aprendeu. As chamadas tinham intenção de humilhar, marcar lugares e tornar público para os alunos como etnia era uma questão significativa. Não pertencer ao grupo hutu poderia significar diversas dificuldades ao longo de sua vida. Ilibagiza exprime que ser uma tutsi estudante era motivo suficiente para produzir rechaço da maioria da turma e dos professores.
Como Mukasonga, ela era uma das poucas tutsi aprovada nas cotas reservadas a essa minoria. Ambas afirmam: o acesso não era obtido por mérito, mas por sorte, em um sistema de seleção excludente que imperava desde a Revolução Hutu. Se, por muitos anos, a disparidade provocada por uma educação quase exclusivista aos tutsis da elite imperou, na infância de ambas as escritoras, as cotas garantiam a ascensão do grupo majoritário hutu. O acesso quase restrito à educação era um estímulo para que hutus ocupassem espaços políticos importantes.
Portanto, durante a infância e adolescência das escritoras, uma pessoa poderia ter seu ingresso no liceu vetado só por ter a etnia paterna tutsi. E mesmo a estadia daqueles poucos tutsis estava sujeita à condição de excelência, acompanhada do dever de “passar o mais despercebido possível”, o que se mostrava difícil devido a referências feitas à aparência tutsi, como a altura, o tipo de cabelo e o formato do rosto, com especial atenção aos narizes tutsis tidos como “retos demais”. Não só isso, a produção da diferença acontecia por meio de pequenos gestos, posturas que pareceriam semelhantes para um olhar estrangeiro. Não raro se encontra na bibliografia sobre Ruanda como tutsis e hutus eram grupos semelhantes compartilhando a mesma cultura, a mesma língua e a mesma aparência. A dificuldade em “saber quem era quem” parecia ocupar as classificações burocráticas mesmo após a independência do país. Desde a década de 1930, carteiras de identidade foram adotadas como modo de “certificar” a etnia do portador. Mukasonga, Umutesi e Ilibagiza contam como esse documento poderia modificar posturas, significar violências ou hostilidade ao portador tutsi.
Como explica Mukasonga, mesmo as freiras brancas responsáveis pelo liceu exerciam, contra a jovem, expressões de antitutismo; elas “mudavam” o olhar ao saberem que ela era uma inyenzi. Como era uma criança, ela não conseguia identificar se eram direcionados a ela desprezo, desconfiança ou raiva. E ela conclui: se no exílio em Nyamata, ela e sua família haviam conhecido a perseguição violenta, ao ingressar no liceu Notre Dame de Cîteuax ela experimentaria cotidianamente humilhação e rejeição[13]. Aos doze anos parecia ainda mais difícil abandonar seu status de tutsi.
Por se sentir diferente, Mukasonga passou a ter vergonha de si mesma, do seu corpo; raspava o cabelo para que ele não “denunciasse” sua identidade. No internato, como todas as alunas eram responsáveis por atividades de manutenção do lugar, a direção dividiu todo o corpo discente em grupos. Na pequena equipe de limpeza de Mukasonga, todas as outras estudantes eram hutus. Isso levava a jovem a fazer todo o trabalho do grupo, pois, como ela explica, não precisava nem de ordens: ser a única tutsi lhe gerava uma “ética” da prontidão –“Como havia dito o burgomestre de Nyamata[14], os tutsis não tinham mais o direito ao orgulho” (Mukasonga, 2018, p. 88).
Para Mukasonga, no liceu, a hora das refeições era o momento mais difícil do dia porque todas as alunas conversavam, mas ninguém se dirigia a ela; os olhares “pesavam” sobre ela, denunciando sua aparência. A presença de uma inyenzi era repugnante para as jovens hutus daquele lugar. Em razão disso, ela passou a comer por último, se alimentando somente dos restos de feijão com caruncho que ninguém tocava. Como efeito desse conjunto de situações, a jovem tutsi chorava escondida, sentindo “uma estranha maldição” pesar sobre ela. Por não se sentir integrada nem aceita, ela acreditava estar no lugar errado: “Ainda que usássemos o mesmo uniforme, a distância entre mim e elas continuava intransponível” (Mukasonga, 2018, p. 93).
Como estratégia, para essas e outras humilhações diárias, e aqui considero humilhação tanto como um ato e, simultaneamente, como uma emoção (Decca, 2005; Díaz-Benítez, 2019), Mukasonga desenvolveu uma “solicitude exagerada”, esperando que bons resultados fossem sua proteção contra essa maldição de ser uma inyenzi. O fato de Mukasonga “escolher” se alimentar de restos, a necessária ausência de orgulho que ela deveria ter, demonstram como os valores anti-tutsi estavam presentes décadas antes do genocídio. Excluída das práticas alimentares capazes de conferir estatuto moral e, neste caso, produzir dignidade (Moreira, 2019), ela se sente rejeitada. Creio que a ausência de orgulho citada por Mukasonga pode ser entendida não por um viés negativo, como esse termo comumente é pensado, mas com o valor de “ser tutsi", com a própria ideia e honra de uma etnia.
O tema do orgulho tutsi aparece em outros testemunhos (Hatzfeld, 2005; Gourevitch, 2006; Ilibagiza, 2006) e ele atravessa a própria história interétnica ruandesa. Tutsis eram, desde a época que comandavam o país, estereotipados como arrogantes, altivos e presunçosos. Mukasonga no liceu tentava exercer atitudes opostas a isso.
As interações das tutsis com as meninas hutus são mediadas por atos de rejeição, traduzidos como distâncias intransponíveis e olhares “pesados”. Esse peso funciona aqui como sinestesia, conjugando não só a rejeição, mas a consciência dela. Por isso, muitas vezes, vergonha-humilhação são inseparáveis. Esses termos são recorrentes na narrativa de Mukasonga, que, por sentir/sofrer vergonha-humilhação, identificava uma espécie de maldição, uma falha moral tutsi contida no seu corpo, na sua altura, nos seus traços. Como considera Coelho (2012), o trabalho simbólico realizado pelos sentimentos de desprezo e compaixão demarcam status. As situações narradas pela escritora tratam disso. Ser ignorada era não participar de uma ordem social, era ser designada a ocupar um lugar. Assim como ser bem tratada pelas colegas hutus (episódio de outra passagem do livro) era uma espécie de “tolerância maldita”, ela também demarcava lugares e posturas, oscilantes num limbo entre o rechaço e a aceitação sempre frágil e provisória.
Miller (1997) considerou, ao escrever sobre a humilhação, que ela pode não só estar embaraçada com sentimentos de vergonha, mas também com um medo da humilhação; e isso pode ambicionar, nas pessoas, posturas que são em si pretensões estratégicas de distanciamento. No caso de Mukasonga, sua postura é ambígua. Ela é tanto o inverso disso, expresso por meio da prestatividade exagerada, de sua postura de prontidão, como se estivesse em dívida com as outras estudantes, o que pode ser visto como uma tentativa de aproximação, de forçar a entrada para uma posição mais humanizada; como também de evitação, ela “sacrifica o orgulho tutsi” do qual sua etnia é acusada e tenta, por estratégias diversas, existir no improviso e na insistência de um futuro mais digno – o liceu era meio para isso. Também passa a se excluir porque já era excluída, o medo de novos arranjos de humilhação a coloca numa situação que ela mesma enxerga como degradante, também autoimposta e socialmente aprovada. Para evitar um condensamento de práticas humilhantes, ela se dispõe a uma posição de humildade, de subserviência. Ela não precisava ser ordenada para realizar este autoflagelo, o reconhecimento social evocava isso porque a humilhação tutsi era um fenômeno social desde a Revolução.
Esse exemplo demonstra como há afinidades entre humilhação como um ato, emoção e como um fato social. Só é possível acontecer esse exercício de humilhação e desprezo em nível local das autoras porque estava em vigor um regime que produzia discursos e fazia circular narrativas e perseguições com este propósito. Era uma forma mais ou menos generalizada de se relacionar com a imagem tutsi, uma espécie de regra moral da coletividade hutu. Interessante notar como, na experiência entre os sujeitos, ela poderia se organizar tanto no sentido da humilhação ou da recusa em fazê-la. O que, por sua vez, dependia de fatores como redes de socialidade, posses, parentesco etc.
Como Miller (1997) aponta, se apresentar como humilde pode proteger os sujeitos contra várias possibilidades de humilhação, contra “zonas de vergonha”. Por isso, para Mukasonga, desempenhar a atitude de “serva”, “lacaia não oficial” das jovens garotas – que manifestavam um antitutismo que se estendeu por décadas até o genocídio – para evitar habitar a “zona de vergonha”, é uma postura servil que tenta dar conta do sentimento de inadequação experimentado por ela.
Cabe lembrar que essas humilhações cotidianas se somam às outras humilhações já experimentadas pela escritora e por sua família. Viver em um exílio forçado significava ter o cotidiano perturbado assiduamente pela privação e violência. Os militares em Nyamata “(...) estavam lá para lembrar, constantemente, que éramos: serpentes, inyenzis, baratas, que não tinham nada de humano, que um dia deveriam ser exterminadas” (Mukasonga, 2018, p. 69). Ataques de soldados contra as meninas quando elas buscavam água no rio, raptos e estupros de garotas consideradas bonitas, granadas lançadas na estrada pelas quais os tutsis transitavam entre vilarejos são destacados por ela como memórias de infância.
Mas o perigo não se dava somente fora de casa. Às vezes, os tutsis desterrados de Nyamata eram confinados por toque de recolher: “fechados dentro de casa, ficávamos paralisados de terror, não ousávamos nem mesmo conversar” (Mukasonga, 2018, p. 71). A perseguição podia interromper as missas de domingo, evento que reunia alto número de tutsis. Os bandos de homens hutus podiam se reunir quando qualquer evento de violência acontecia em outras regiões do país, ou mesmo em zonas vizinhas. As “autoridades comunais, [eram] bastante zelosas em manter o ódio e atiçar a violência” (Mukasonga, 2018, p. 72). Essas e tantas outras práticas se constituíam em repetições a ponto de se tornarem lembranças exemplares para Mukasonga e servem de exemplo da humilhação como um fato social. Elas também foram fulcrais para que fosse gestada a ideia de uma “solução final”.
A construção de um cotidiano composto das mais variadas violências anti-tutsi na trajetória de toda uma etnia devia muito às narrativas das quais foram feitos usos e abusos durante o domínio colonial, como a tese hamítica já mencionada. Creio ser possível sublinhar, por meio das trajetórias de Mukasonga e Ilibagiza, o caráter eminentemente processual do genocídio ruandês. Essas sobreviventes narram a construção temporal que se utilizou de narrativas e teorias racistas para justificar a eliminação dos tutsis. Suas biografias são marcadas por acontecimentos de violência e desumanização, como formulei: antes de um genocídio, precisam acontecer pequenas outras coisas violentas e que beiram a uma aniquilação, uma situação limite em menor escala (Mendonça, 2021). Essa literatura expõe isso, ao mostrar como ele foi “acontecendo”, como assumia diferentes dimensões e módulos a depender de qual província, de qual família e de quanta sorte se tinha a seu dispor.
Fazer morrer nos “100” dias de 1994
Após 26 anos, há um consenso na literatura especializada acerca da premeditação do genocídio. Ele foi organizado, gestado, projetado e experimentado ao longo dos anos (Des Forges, 1999; Mamdani, 2002; Chrétien, 1995). Acontecimentos anti-tutsi se corporificaram em práticas capazes de animalizar, desumanizar e contribuírem para um tipo de movimento: “transformar” um tutsi em inyenzi. Como expressão de rebaixamento, esse vocábulo era citado nas conversas cotidianas, transmissões de rádio, revistas e também estava nos discursos de autoridades hutus locais e militares, na altura do genocídio e antes dele, como demonstrei.
O termo se tornou uma referência para a perseguição étnica. O sentido imputado por inyenzi era de que tutsis, tal como esses insetos, eram astutos, se escondiam e, ao mesmo tempo, eram dignos de nojo, mereciam ser massivamente massacrados. Na altura do genocídio, Yolande Mukagasana, tutsi e uma das primeiras a escrever sobre o genocídio ruandês, escutou uma transmissão no rádio que dizia:
“Faça uso de seus facões!”, grita o apresentador. “Coloque barreiras”. Nenhuma “cobra deve escapar do seu alcance”. “Você está trabalhando para o futuro e a glória de seu país. Aprenda como reconhecer e eliminar nosso inimigo interno; aquele que nos roubou e nos escravizou por séculos” (Mukagasana, 2019, p. 15, tradução nossa)[15].
Mukagasana e seu marido temiam por suas vidas e pela vida de seus três filhos. Ela foi a única sobrevivente e escreve que, de certo modo, era esperado um massacre da sua etnia. Seu relato e das outras tutsis apontam para uma governabilidade do genocídio (distribuição de armas, reuniões políticas de planejamento do genocídio etc.). Mukagasana, em boa parte de seu livro Not my time to die (2019), narra como em torno dos meses do genocídio aconteceu também uma espécie de socialidade das matanças na qual os hutus eram convocados, estimulados, reunidos e cobrados de “trabalhar nos campos”, eufemismo para eliminar tutsis.
O tempo presente do evento do genocídio foi marcado por mutilações, assassinatos cruéis, modos lentos de se fazer morrer ou deixar vivo em sofrimentos para que se pudesse morrer, estupros de mulheres e meninas. Suas marcas, ainda se fazem presente nas lembranças de muitos sobreviventes. As marcas de violação dos corpos, a indiferença aos corpos empilhados em valas coletivas ou em rios – continuavam ali como prova do trabalho dos homens hutus, em muitos casos também espalhados ao longo das estradas. Jogar corpos nos rios parecia cumprir a promessa das propagandas anti-tutsi de lançar fora os invasores, de despachar os hamitas pelo mesmo lugar no qual eles supostamente tinham chegado em Ruanda.
A mensagem enunciada por meio dessas e de tantas outras práticas contidas no genocídio era que “o tutsi não deveria apenas morrer, mas morrer no tormento”. Em alguns relatos dos homens hutus entrevistados por Hatzfeld (2005), a caçada e a morte de tutsis parecem gerar prazer. O rebaixamento das vítimas sugere uma postura em êxtase de alguns hutus envolvidos no genocídio. Havia um regozijo por parte de muitos homens. Hatzfeld (idem) demonstra que isto podia pendular entre uma banalidade da rotina das mortes e o prazer/avidez pelas mortes. Tão logo, os sujeitos utilizavam táticas como gritar nomes dos conhecidos, lhes prometendo falsamente salvaguarda. Quando se capturavam alguns tutsis, eram cortadas partes específicas dos corpos: pés e mãos – isso servia duplamente para impedi-los de fugir e para “diminuir” a estatura daqueles reconhecidos como os altos e esguios.
Embora trate de contextos diferentes, Araújo (2012, p. 224) escreve sobre dois significados do simbolismo de mortes violentas: destituição da humanidade de quem morre e a posição de juiz ocupada por quem mata, definindo os modos de matar. Esse modo de fazer morrer visava demonstrar uma “força hutu”, cujo sentido vai além de uma dimensão material e física, inclui também uma ambição de fazer desaparecer do social qualquer imagem de quem se mata: partir os tutsis, desmembrá-los, torná-los irreconhecíveis.
Durante o genocídio, um cunhado de Mukasonga, antes de ser morto, foi ferido e depois recebeu cuidados para que não morresse; posteriormente seus pedaços foram sendo arrancados pouco a pouco (Mukasonga, 2018). Uma morte que provoca altos níveis de dor e produz uma mensagem: a de que o homem tutsi não detém mais o próprio corpo, ele pertence a outro, a uma outra etnia que lhe deseja sofredor, que lhe coloca humilhado. É certo que execuções “rápidas” também aconteciam, mesmo elas dispunham de uma proximidade pelo uso do facão. Mesmo tão próximo, haviam distâncias intransponíveis entre o hutu e o tutsi. Eram inimigos no sentido que Mbembe imputa a este termo: “remete para um antagonismo supremo. No seu corpo, na sua carne, é aquele a quem se pode provocar a morte física porque ele nega, de modo existencial nosso ser” (Mbembe, 2017, p. 82).
Uma espécie de humilhação contra a negação dos hutus se aplica aos tutsis; generaliza-se o ódio contra a etnia que gozava de honra, poder e prestígio no passado. Isso exigiu manipular memórias e histórias sobre as etnias e sobre o futuro que se projetava no genocídio. Esse etno-horror não começa no evento; o medo da morte e de como se poderia morrer também não. Tratava-se da “criação de mundos de morte” onde o corpo que era morto entraria para um sistema de significado (Mbembe, 2017); é a transformação de uma economia do inimigo interno, em que ódio, desejo de vingança e da humilhação se tornam projeto político (idem).
Isso fica explicito nos modos de fazer morrer deste evento, que estão relacionados com o que desenvolvi ao longo deste texto sobre modalidades possíveis de humilhação, tanto uma situação emocional dos sujeitos, como uma .hostilidade aberta” e socialmente tangível. O que expressaria mais o rebaixamento do que aniquilar a diferença e pretender eliminá-la de sua visão? É o plano político da humilhação no seu limite, a humilhação generalizada e definitiva. Por meio dela, vítimas precisavam ser “reduzidas”, seja pelos atos de violência física, discursiva ou simbólica[16].
Podemos, por isso, argumentar que houve exercício cotidiano e espraiado de violação do senso de integridade dos tutsis, fundamental para a formulação do evento e para seu “estilo” das mortes. Mas hutus “sabiam” que os tutsis que eles caçavam eram humanos e não baratas e, por isso, os torturavam: queria se revelar aos tutsis que eles não sabiam quem eram. Miller (1997) chamou isso de prazer perverso. As nomeações faziam pastiche das atitudes tutsis. “São andarilhos excepcionais”, se movimentam a noite como o inseto que lhe dá nome: baratas. Como animais invasores, a Frente Patriótica Ruandesa (exército de exilados tutsis responsável por “tomar” o poder e “finalizar” o genocídio) minava as fronteiras daquele país.
Por isso argumento que a constituição e demarcação das etnias em Ruanda pode ser pensada também a partir de atos de hostilidade dirigidos, pois havia uma socialidade por meio da produção da humilhação e do desprezo. A humilhação era um dispositivo de hierarquização, que atualizou e ativou dinâmicas de violência étnica; conjugada com outros sentimentos hostis, ela foi fundamental para a elaboração dos modos de se fazer morrer. Como apontei, há uma importância da condição colonial para alguns arranjos e inimizades, pois um genocídio precisa não só de um cenário de hostilidades no seu tempo presente, como também de uma produção contínua de desconfianças e desavenças, muitas vezes motivadas pela produção cotidiana de rebaixamento, desprezo e rancor entre hutus e tutsis. Cabe destacar também uma intensa relação entre processos de humilhação, desumanização e violência, como explicitei na experiência das escritoras e dos assassinos. Importante notar como esses três termos se confundem, condensam e às vezes são exercidos em conjunto numa certa situação. No genocídio, os limites entre esses termos não se encerram apenas no exercício da morte, porque mesmo depois dela ainda há a intenção precisa de humilhar e violentar os corpos mortos: valas, latrinas coletivas e pilhas de corpos eram vistas ao longo das estradas que ligavam vilarejos e cidades. Rebaixar no momento da morte, humilhar além da morte.
Considerações finais
A literatura de Mukasonga, Ilibagiza, Umutesi e Mukagasana contribui para abordagens de aspectos menos retratados acerca do cotidiano em Ruanda. Algumas lacunas sobre cotidiano étnico e experiências pessoais são preenchidas pela escrita dessas mulheres: as dificuldades do exílio, o longo processo de construção do ódio, percalços do reconhecimento/identificação étnicos, boatos e tantas outras aparentes banalidades mostravam como, progressivamente, o cenário nas províncias e vilarejos de Ruanda foi se tornando inóspito a tutsis ou a qualquer um que demonstrasse apoio a eles. Dessas narrativas emergem diversos modos de lidar com a dor da perda, mas também com a “dor da memória” que resta somente a elas, as poucas pessoas que estão vivas de suas famílias antes numerosas.
“Um genocídio nunca é perfeito”, registrou Mukasonga (2018) justamente porque sempre sobra alguém para contar, alguém para testemunhar, uns vivos que contam sobre os mortos. O conteúdo dessa literatura é a evidenciação de algumas das vozes sobreviventes que atualmente se ocupam de relatar suas histórias atravessadas pelo genocídio. A escrita, para a maior parte das autoras aqui abordadas, significou “processo terapêutico”, forma de construção de si no mundo após o evento, e um modo de lidar com suas dores e também com suas memórias. Mukasonga (2017) confessa que escrever é tecer a mortalha para o corpo ausente de sua mãe, é viver uma parte importante do trauma. Mas esse movimento tão rico da literatura ruandesa, e tão potente em demonstrar as vicissitudes das interações entre etnias se encontra com outra tendência no continente africano, uma literatura de trauma na qual
a memória e a lembrança colocam efetivamente em jogo toda uma estrutura de órgãos, todo um sistema nervoso, toda uma economia das emoções, no centro das quais se situa necessariamente o corpo e tudo o que o extrapola. O romance mostra também como a lembrança pode ocorrer por meio da dança e da música, ou então do jogo de máscaras, do transe e da possessão. Não existe, portanto, memória que, num dado momento, não encontre sua expressão no universo da sensível, da imaginação, e da multiplicidade. Assim, em vários países africanos que enfrentaram o drama da guerra, a lembrança da morte está diretamente escrita no corpo ferido ou mutilado do sobrevivente e é a partir desse corpo e de suas debilidades que se recria a memória do ocorrido (Mbembe, 2018, p. 214-215).
Neste caso, a lembrança é registrada por meio da escrita, todavia, a lembrança da morte e de processos tão hostis não furtam das escritoras o ato de escrever como um exercício de vida. Nesse conjunto de narrativas elas fazem das recordações, impressões e memórias matéria-prima para ir além do luto. Elas recordam, reorganizam e contam através de seus textos aquilo que o longo processo de hostilidade tentou subjugar sua humanidade: “Eu continuo a reconstruir a vida sobre a morte!”, reflete Mukagasana (Donikian, 2010)[17].
A interpretação de um evento tão complexo me parece mais heterogênea quando nelas são inclusos os olhares, informados pela memória do trauma, das pessoas que relembram no seu corpo, lugar para o qual as mais variadas violências eram destinadas, o que era não só a morte, mas a vida em Ruanda. No caso da literatura dessas escritoras, mais do que um resultado, lembranças e memórias são a condição de narrativa e de possíveis reordenamentos de suas vidas.
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Notas