PPGAS/UnB – 50 anos
O memorial como o reverso do projeto: a trajetória acadêmica de Carla Costa Teixeira
Recepción: 03 Febrero 2022
Aprobación: 03 Febrero 2022
Comentar a carreira de uma pesquisadora produtiva e criativa como Carla Costa Teixeira não é tarefa fácil. Tive a honra de fazer parte de seu concurso para Professora Titular de Antropologia da Universidade de Brasília em 2020 e pude examinar seu memorial. Chama a atenção como ela pesquisou temas diferentes, ao mesmo tempo em que manteve algumas questões teóricas centrais em sua trajetória intelectual. Ela começou estudando mulheres, menores e afrodescendentes. A seguir, ao se mudar para o Distrito Federal, onde cursou o doutorado e depois foi professora da Universidade de Brasília, focou sua atenção no Congresso, estudando primeiro a bancada feminina e depois a questão do decoro parlamentar. Em Brasília ela desenvolveu a linha de pesquisa “antropologia política da saúde”. Depois pesquisou instituições como o IPEA (Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas), a Associação Portuguesa de Antropologia. O impeachment da Presidente Dilma Rousseff fez com que ela retornasse a questão do Congresso.
É interessante que a autora comece sua reflexão evocando a noção de “projeto”, como o encontro da vontade com o processo para, a seguir, dizer que um memorial é, a rigor, o inverso do projeto, na medida que implica uma “lanterna na popa”. Corre-se, é claro, o risco do que Bourdieu chamou de a “ilusão biográfica”. Mas Carla consegue evitar esta armadilha ao deixar claro que seu texto é um “traçado”. Nas suas palavras, “um traçado é sempre contingente, uma espécie de rascunho pontilhado em meio a outros possíveis; sugere, ainda, deslocamentos incertos, desvios de rota, tentativas de vida, como se fossem esboços desenhados aos quais o sujeito confere novas formas ao longo do tempo”.
O fio condutor de sua pesquisa inicial, realizada no Rio de Janeiro no final dos anos 1980, sobre o movimento feminista como um estilo de vida, foi o da “moralidade” e dos “valores” na política. Já na pesquisa sobre o Congresso Nacional na época da CPMI sobre o Orçamento, o que é examinado é a categoria regimental “decoro parlamentar” acionada nos processos de cassação de mandatos que ocorreram entre 1949 e 1994. O conceito com o qual ela dialoga é o de “honra”, como uma hierarquia de valores distinta da vida política. Ao desenvolver, a seguir, a linha de pesquisa “antropologia política da saúde”, ela reflete sobre a relação entre políticas de governo e a produção do “nojo” nas ações em saúde e saneamento, e as investigações sobre o exercício da participação social dos indígenas, seus limites e possibilidades, nas políticas de saúde que lhes são específicas. Ao criar o Laboratório Etnografia das Instituições e das Políticas de Poder no Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília, Carla desenvolve estudos em contextos institucionais e reflete sobre as especificidades metodológicas de pesquisar nesses contextos.
Ao pesquisar o Fórum Feminista do Rio de Janeiro, Carla partiu do ideário feminista de que “o pessoal é político” para se dar conta de quanto ele pode ser totalizador e homogeneizante, quando encarado pelo vetor contrário do político traduzido para a vida pessoal sob o valor da “coerência”. Restava a questão do papel dos homens neste contexto: seriam eles meros “aliados táticos”, ou havia uma busca de criar “homens sensíveis”? Analisando um fórum que rejeitava qualquer hierarquia na sua organização formal, ela percebeu que na verdade havia relações de poder que se expressavam através do domínio do poder e do prestígio adquirido pelas mulheres mais antigas, jocosamente chamadas de “fósseis”.
Passar do mundo do feminismo para o do parlamento brasileiro poderia parecer uma ruptura. Mas, na verdade, Carla persegue suas preocupações teóricas neste campo aparentemente distinto. Ela permanece interessada nas relações de poder e como elas se expressam. Detendo-se na noção de “decoro parlamentar” como um instituto original da política brasileira, ela retoma o conceito de “honra” como critério distintivo da política. Isto a leva a autores como Weber e à ideia de uma “personalidade política” na qual há uma indissociabilidade da responsabilidade individual e identificação entre indivíduo e grupo social.
Ao integrar uma equipe que estudava os impactos das ações de saneamento na saúde, Carla desenvolve pesquisas sobre a percepção e o uso da água em comunidades rurais no sertão do Cariri cearense e no Maranhão. Assim, ela percebeu que os usos indevidos da água do açude que abastecia o sistema de água tratada do município, articulado com o forte gosto de cloro a ela atribuído, ocasionaram o não uso desta água para beber e cozinhar, contrariando o que as políticas de saúde preconizam. De forma semelhante, ao integrar uma equipe encarregada de verificar por que 30% do orçamento da Universidade de Brasília estavam comprometidos com o pagamento de água e luz, ela se dá conta que o desgaste das condições materiais, aliado à desconfiança quanto ao uso feito pelos frequentadores dos banheiros, gerava atitudes que degradavam as instalações num ciclo vicioso.
A partir da questão do saneamento, ela é levada a investigar o museu institucional e os manuais da FUNASA, fundação à época responsável pelas ações de saneamento e saúde dos povos indígenas. Dedicando-se aos manuais de formação dos guardas sanitários e visitadoras da Fundação Serviços de Saúde Pública e comparando dois momentos diferentes, ela assinala que se nos anos 1940, o manual priorizava as técnicas necessárias à construção de equipamentos sanitários, nos anos 2000 o foco estava no ciclo de transmissão de diferentes doenças relacionadas à falta de saneamento e no comportamento higiênico considerado inadequado de crianças e adultos indígenas. A categoria “nojo”, obviamente, remete à noção de “pureza” e “perigo” desenvolvida por Mary Douglas. Refletindo sobre esta categoria a partir do ângulo de suas conexões físico-político-morais, Carla assinala que “repulsa”, “repugnância” e “nojo” indicam a fronteira da diferença tolerada, na medida em que expressam sentimentos, emoções e sensações corporificadas.
A pesquisa de populações indígenas desdobrou-se em sua estada no Canada, ocasião em que foi visiting scholar na Simon Frazer University. Refletindo sobre os limites e as possibilidades da chamada “democracia direta”, Carla assinala que a autonomia dos povos indígenas nas políticas de saúde no Brasil, assim como em outras políticas setoriais, não passava pela construção de uma política de self-government ou de self-administration como a que é praticada no Canadá, evidenciando a violência simbólica que é praticada em relação a eles.
Passando à etnografia das instituições, Carla começou a concentrar-se em universos empíricos institucionais do Estado e problemas teóricos que articulavam práticas de poder, valores, emoções e linguagem em ação. Ela então se deu conta de que há um predomínio da etnografia de organizações em detrimento da etnografia dos processos de institucionalização e procura articular estas duas dimensões. Ela coordena uma equipe do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) que elaborou uma autoetnografia de sua instituição. Caracterizava o IPEA como um think tank que seria, ao mesmo tempo, parte das redes políticas e das acadêmicas e que manobra mediações distintas para se inserir em cada uma delas. Nas suas palavras, “sua força parecia advir não de uma ‘cultura organizacional’ coesa ou de uma unidade moral, mas sim do manejo das diferenças por meio do elogio à diversidade e da habilidade em não transformar tensão em confronto ou embate direto, possibilitando que criassem conexões diversas por meio de linguagens científicas e políticas”.
Dando continuidade a esta linha de investigação, Carla construiu um projeto sobre a institucionalização da antropologia em Portugal a partir da recém-criada Associação Portuguesa de Antropologia, tendo como comparação implícita a antropologia no Brasil.
É importante assinalar que Carla não desenvolveu sua rica trajetória sozinha. Ela reconhece que sua trajetória foi construída a várias mãos em diálogo com colegas, estudantes e que as reuniões de pesquisa, a organização de coletâneas e as coautorias de artigos e capítulos de livros foram fundamentais em sua vida acadêmica. Os interesses de pesquisa acabaram aparecendo nos cursos de graduação e pós-graduação em que ela lecionou sozinha e com colegas. Se cresceu individualmente durante seu percurso, ela ao mesmo tempo fez crescer a instituição na qual trabalha e a ciência que pratica. Neste sentido, é fundamental frisar o importante papel que ela tem na Associação Brasileira de Antropologia, da qual foi diretora e atualmente é outra vez secretária-geral. A generosidade em dedicar seu tempo a atividades de associações profissionais mostra como ela pratica esta dádiva.
A trajetória de Carla é um modelo para jovens pesquisadores. Trata-se de uma carreira que se dedicou a juntar a pesquisa etnográfica com preocupações teóricas densas e que mostrou que um itinerário individual pode se articular com projetos coletivos, sendo a dedicação ao desenvolvimento de instituições fundamental para ambos.