Dossiê

Apresentação do dossiê “Entre ‘precariedades’, ‘crises’ e o ‘colapso’: perspectivas antropológicas sobre o “desmonte” do SUS"

Lucas Freire
Fundação Getulio Vargas, Brasil
Rosana Castro
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil

Apresentação do dossiê “Entre ‘precariedades’, ‘crises’ e o ‘colapso’: perspectivas antropológicas sobre o “desmonte” do SUS"

Anuário Antropológico, vol. 47, núm. 2, pp. 75-92, 2022

Universidade de Brasília

Recepción: 21 Junio 2022

Aprobación: 21 Junio 2022

As ideias de que o projeto do Sistema Único de Saúde (SUS) nunca foi plenamente implementado e que ele luta para se consolidar desde a sua criação são quase unânimes entre acadêmicos que discutem questões relativas ao campo da saúde no Brasil. Ao evidenciar as faltas e filas crônicas em diferentes regiões do país – fruto da desproporção da oferta de equipamentos, de recursos investidos e da quantidade de profissionais atuando nos territórios –, diversas pesquisas apontam que a precariedade dos serviços e a desigualdade para acessá-los é uma questão perene na saúde pública brasileira. “Ilhas de excelência” – como são retratadas poucas unidades públicas de saúde – e hospitais nos quais há carência não somente de itens básicos como dipirona, paracetamol, iodo, gaze, esparadrapo, papel higiênico, sabonete etc., mas também de equipe para o atendimento da população, existem simultaneamente no mapa sanitário brasileiro desde muito antes do início do processo de idealização do SUS. No entanto, parte dos pesquisadores, ativistas, especialistas, políticos, gestores e profissionais de saúde contemporâneos, notadamente nos campos da Antropologia e da Saúde Coletiva, argumenta que vivemos atualmente uma grave, inegável e inédita “crise da saúde” no país. Nesse sentido, associada à histórica reflexão crítica sobre os dilemas e as ambivalências da concretização de um sistema de saúde público e universal, a ideia de que o Brasil enfrenta, desde meados de 2015, sucessivas crises de diversos tipos – financeira, política, institucional, sanitária, de representatividade, entre outros – vem sendo debatida por diferentes atores e setores (Reis et al. 2016, Machado 2016, Maluf 2018, Paim 2018). A situação fundamental que marca esse processo é o golpe sofrido por Dilma Rousseff e a transformação aguda sofrida pelo campo das políticas e direitos sociais a partir dos governos de Michel Temer e, posteriormente, de Jair Bolsonaro, eleito em 2018. De modo geral, é sobre “crise”, “precariedade”, “escassez” e “desmonte” que se fala quando o assunto gira em torno das avaliações, preocupações e projetos para a área da saúde no país nos últimos anos.

Levando em conta esse contexto, consideramos a publicação do dossiê Etnografias do “desmonte do SUS”: precarização de serviços e vulnerabilização de sujeitos em contextos contemporâneos uma oportunidade ímpar de observar e refletir antropologicamente acerca de como os acontecimentos recentes representam e implicam rupturas, continuidades e transformações no que diz respeito ao direito à saúde no Brasil e às condições concretas de acesso aos serviços e tecnologias de saúde por diferentes grupos e sujeitos. Compreendendo que, de fato, vivemos um momento de aprofundamento das inflexões que relativizam, fragilizam e comprometem as políticas e os direitos relacionados à saúde, procuramos, neste dossiê, reunir contribuições da antropologia para uma caracterização e problematização do campo das políticas e práticas de saúde a partir de distintos contextos locais. Procuramos, ainda, lançar luzes sobre os modos diversos de intensificação e diversificação das lógicas e processos de vulnerabilização de populações, grupos e sujeitos atendidos no SUS ou com impedimentos para acessá-lo, mediante processos crônicos e agudos de “desmonte” do SUS.

Nesse sentido, nosso objetivo central foi reunir artigos que explorem etnograficamente as particularidades dos cenários contemporâneos no que concerne a conexões entre desigualdades sociais, raciais, regionais, de gênero e outras; políticas de precarização do SUS e acesso à saúde, com especial atenção aos modos de caracterização, naturalização ou negligência de uma “crise”. Procuramos burilar discussões e contribuir para o urgente debate sobre o processo de “desmonte do SUS” a partir de pesquisas antropológicas e etnográficas que exponham e interpelem as práticas de governo que cooperam para sua fragilização, bem como os múltiplos obstáculos, possibilidades e caminhos percorridos por diferentes sujeitos, grupos e/ou populações na busca pelo acesso aos serviços e tecnologias de saúde.

Esse conjunto de questões, vale ressaltar, contempla nossas próprias preocupações de pesquisa e, nesse sentido, nos associa em um propósito ético-político de reflexão e ação relativas às diversas e complexas disputas que constituem a história do SUS, bem como diante da conjuntura política particularmente crítica e cruel que atravessamos nos últimos anos. Na pesquisa de doutorado de Rosana Castro (2020), a noção de precariedade foi constantemente acionada por médicos-pesquisadores, profissionais da indústria de pesquisas farmacêuticas e participantes de experimentos para caracterizar o SUS e, por contraste, para identificar os estudos clínicos como espaços excepcionais de atendimento e acesso a tecnologias de saúde. Por outro lado, centros de pesquisa brasileiros e os negócios a eles associados prosperavam na medida em que convertiam as “precariedades” crônicas do SUS em oportunidades de recrutamento de sujeitos em busca de tratamento, sobretudo pessoas negras em contextos urbanos. No caso da pesquisa de Lucas Freire (2019), por sua vez, a produção discursiva da “crise” do sistema de saúde no estado do Rio de Janeiro a partir de 2015 ressoava em um conjunto de práticas burocráticas não de gestão da escassez na área da saúde, mas uma administração pela própria escassez. Em conjunto, tais operações constituem uma necrogovernança, na qual regimes de morte são configurados mediante diferentes ações e omissões sistemáticas do Estado que fazem morrer determinados grupos sociais de um modo legalmente justificado e, de certa forma, silencioso.

A conjuntura sanitária nacional foi atravessada e transformada, entretanto, por pelo menos dois grandes eventos críticos (Das 1995) que sucederam ao período de nossas pesquisas e intensificaram os diversos processos etnografados. O primeiro deles, consequente do golpe sofrido por Dilma Rousseff em 2015, foi a ascensão de Michel Temer à presidência da República e o estabelecimento de uma série de reformas que atingiram em cheio o financiamento e a organização do SUS. Dentre estas, destaca-se a aprovação da Emenda Constitucional 95 (EC 95/2016), que congelou investimentos nos campos da saúde e da educação por vinte anos. Dando sequência a este movimento de corrosão das condições de possibilidade de sustentação do SUS, a eleição de Jair Bolsonaro à presidência da República em 2018 implicou a intensificação de uma agressiva agenda neoliberal e excludente no campo da saúde pública (Paim 2018). O segundo evento disruptivo se trata da pandemia de covid-19, decretada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em março de 2020. Ainda em curso, o cenário se somou aos esforços de desmantelamento de uma série de políticas de saúde pública, por meio de ações e omissões, que colaboraram para o adoecimento e a morte de centenas de milhares de brasileiros (Duarte 2020, Ventura et al. 2021) – em especial, populações negras, indígenas e com baixa renda (Werneck et al. 2021).

Em vista desses aspectos, antes de passarmos a uma apresentação geral dos artigos que compõem o dossiê, gostaríamos de explicitar mais detalhadamente: 1. De onde partimos empiricamente para pensar o “desmonte do SUS”; 2. Com quais perspectivas a respeito de noções como “crise”, “precariedade”, “desmonte” e, eventualmente, e “colapso” estamos operando. Ressalvamos que não é do nosso interesse fazer um exaustivo levantamento de todos os programas, serviços e unidades de saúde que foram afetados pelos sucessivos cortes, bloqueios e contingenciamentos promovidos por chefes do Executivo nos três níveis da administração pública. Alguns exemplos detalhados serão encontrados justamente nos textos que constituem o dossiê. Por outro lado, salientamos que, nesse esforço, não pretendemos concorrer para o fechamento das possibilidades de reflexão sobre ou a partir dessas noções, mas, justamente, sinalizar algumas linhas de força pertinentes a conceituações contemporâneas sobre “crise”, “precariedade” e “desmonte” que se desdobram em uma multiplicidade de emergências de cenários críticos, iluminados por pesquisas etnográficas.

“Crise”, “desmonte e “colapso” do SUS: processos e categorias de gestão da saúde, da doença e da morte

A segunda metade da década de 2010 foi marcada pelo rompimento tanto da forma de gestão quanto do projeto político que estava sendo implementado na esfera federal não apenas no que diz respeito à saúde, mas em todas as áreas relacionadas aos direitos sociais. Tal ruptura se deu não por meio de eleições diretas, mas por conta do impeachment sofrido pela presidenta Dilma Rousseff e a imediata substituição de sua equipe de ministros capitaneada pelo seu sucessor (Castro, Engel, e Martins 2018). Com a deposição da presidenta e a ascensão de Michel Temer à chefia do Executivo, o político e empresário Ricardo Barros assumiu o cargo de Ministro da Saúde. No auge da crise político-econômica, a indicação de Barros foi anunciada com o objetivo declarado de “economizar” e “cortar custos”. De início, o governo federal determinou uma suspensão de R$ 2,5 bilhões dos gastos com saúde previstos no orçamento anual. Pouco tempo depois de ter assumido o ministério, Ricardo Barros concedeu uma entrevista na qual afirmou que, para reverter o quadro de crise, era necessário rever uma série de direitos previstos na Constituição Federal de 1988, dentre eles, o acesso universal à saúde. Em uma evidente evocação de uma lógica de “cidadania sacrificial” (Brown 2016), que “se expande de modo a incluir qualquer coisa relacionada à saúde de uma empresa ou nação ou, novamente, da nação como uma empresa” (Brown 2016, 9), segundo o então ministro, não haveria recursos suficientes para sustentar um direito tão “amplo e irrestrito” por muito mais tempo, de modo que era preciso encontrar um ponto de equilíbrio entre o que o Estado tem condições de suprir e o que o cidadão tem direito de receber.

Ricardo Barros deixou o Ministério da Saúde no início de abril de 2018. Na nota de avaliação oficial de sua gestão, o destaque são os R$ 5 bilhões economizados durante os dois anos em que exerceu o cargo. Expressões como “eficiência econômica” e “responsabilidade fiscal” aparecem no relatório como as principais qualidades que marcaram seu período à frente do Ministério. Seu substituto, Gilberto Occhi – que até então era presidente da Caixa Econômica Federal e não possuía qualquer experiência ou formação na área de Saúde Pública –, assumiu o cargo com a promessa de manter e ampliar as medidas formuladas pelo seu antecessor para tornar a gestão do SUS cada vez mais “eficiente”. Occhi ficou pouco tempo à frente do Ministério e sua atuação não se diferenciou de seu predecessor.

Com a vitória de Jair Bolsonaro nas eleições presidenciais de 2018, o processo de contingenciamento orçamentário foi mantido para diversos setores da seguridade e previdência social. Luiz Henrique Mandetta, alçado ao cargo de Ministro da Saúde nos primeiros anos do governo Bolsonaro, nunca questionou o montante recebido por sua pasta. Quando indagado acerca das dificuldades enfrentadas pelo setor da saúde no país, ele alegava sempre que o problema não era a falta de recursos, mas a má administração do dinheiro por parte das prefeituras e governos estaduais. Adicionalmente, conforme denotado em seu discurso de posse, em 2 de janeiro de 2019, Mandetta justificou sua adequação à posição de ministro acenando que “não se chega a um cargo de tamanha responsabilidade primeiro sem ter um compromisso muito grande com a família, com a fé, com o país, com a noção de pátria”. Tais referenciais, ressaltou, marcaram, por sua vez, a eleição de Bolsonaro; em suas palavras: “um candidato que vence a presidência da República calcado em princípios, em valores, em conduta. Não em detalhamento de programas de governo, mas em valores e princípios que calam muito fundo na alma do homem brasileiro”[1].

Nesse cenário, além da asfixia orçamentária, diversos programas e serviços do SUS foram sucateados e/ou alterados por uma patente mudança de diretrizes morais, políticas e técnicas de seu funcionamento. Dando sequência a mudanças no modelo de financiamento da atenção básica instaurados no governo Temer, em 2019 foi lançado o programa Previne Brasil, que extinguiu as lógicas de repasse de recursos do governo federal aos municípios segundo o tamanho da população adscrita – comprometendo significativamente o princípio de universalidade – e estabeleceu uma forma prioritária de pagamento por desempenho, dentre outras diversas mudanças que caminham na direção de uma focalização e mercantilização da atenção básica (Massuda 2020, Morosini, Fonseca, e Baptista 2020). Em uma postagem no Twitter realizada em novembro de 2021, o atual ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, descreveu orgulhosamente os rumos neoliberais assumidos pelo programa:

“E o Previne [Brasil] é uma nova estratégia que o @minsaude adotou para melhorar a qualificação da assistência, lá na ponta. Quem atender e cumprir os indicadores receberá mais recursos. Estimular a concorrência dos municípios garantirá melhor eficiência nas nossas políticas públicas”[2] (Tuíte do ministro Marcelo Queiroga, em 10 de novembro de 2021 – Grifos nossos).

No âmbito nacional, uma das graves mudanças ocorreu no início de 2019 com a publicação da Nota Técnica nº 11/2019 do Ministério da Saúde. Instituindo o que seus formuladores chamaram de “nova saúde mental”, esse documento se coloca frontalmente contra os princípios que nortearam o movimento da Reforma Psiquiátrica Brasileira. De acordo com Weiller (2019), a proposta enseja o resgate de leitos em hospitais psiquiátricos – favorecendo um modelo de atenção baseado não no cuidado nos territórios, mas na internação dos pacientes – e reconhece as chamadas Comunidades Terapêuticas – muitas delas baseadas em princípios religiosos – como dispositivos das Redes de Atenção Psicossocial (RAPS) habilitadas a receber financiamento público via SUS. Outro ponto afetado por essa nota está relacionado à Política Nacional de Álcool e outras Drogas. Passada para as mãos do Ministério da Cidadania, comandado na época por Osmar Terra, a perspectiva da redução de danos que orientava as ações no setor foi substituída pelo incentivo à abstinência e à proibição do consumo de substâncias (Cruz, Gonçalves, e Delgado 2020). Segundo especialistas, tais situações permitem caracterizar “um processo acelerado de desmonte dos avanços alcançados pela reforma psiquiátrica” (Delgado 2019, 1).

Outras políticas nacionais de saúde também foram ameaçadas pelo Governo Federal durante o primeiro ano de mandato de Bolsonaro. Uma iniciativa do Ministério da Saúde pretendia extinguir a Secretaria Especial de Saúde Indígena. Com isso, a intenção era desresponsabilizar a esfera federal pela manutenção e financiamento do Subsistema de Saúde Indígena, que teria suas ações transferidas para a gestão municipal. A pressão dos movimentos indígenas e de outras áreas de gestão do SUS fez com que diversas ações que compunham o projeto de “desmonte da política de saúde indígena” fossem retiradas de pauta (Magalhães 2022, 17). O Departamento de Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST), AIDS e Hepatites Virais, por sua vez, não conseguiu reverter a ofensiva governamental. Ponto marcante do “desmantelamento” da historicamente notória resposta brasileira à “crise da aids” (Parker 2020) em maio de 2019, a estrutura institucional da área foi rebaixada no organograma do Ministério da Saúde – e, portanto, seu orçamento e autonomia foram reduzidos – a uma coordenação dentro do Departamento de Doenças de Condições Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis. Em uma acelerada descontinuação de uma série de ações informativas, educativas e sanitárias, “em apenas dez meses de governo, o ‘modelo brasileiro’ que havia sido tão elogiado internacionalmente se tornou vítima não somente de valores morais conservadores, mas de uma onda de populismo de direita que tomou o país nas eleições de 2018” (Parker 2020, 18).

O programa Farmácia Popular, criado pelo Governo Federal em 2004 para promover o acesso a medicamentos por meio de subsídios, também foi alvo de intervenções. Em sua proposta original, o programa funcionava através de parcerias com os governos estaduais e municipais e contava apenas com unidades próprias, nas quais eram distribuídos gratuitamente ou vendidos a preço de custo cerca de 125 itens, dentre medicamentos, anticoncepcionais, preservativos e fraldas geriátricas. Em 2006, a expansão do programa foi chamada de Aqui tem Farmácia Popular e passou a oferecer esses itens também em farmácias da rede privada de varejistas. No início de 2017, o Governo Federal tomou a decisão de “reestruturar” o programa. De acordo com seus idealizadores, os grandes objetivos desse plano de reestruturação foram “combater as fraudes no sistema”, “aperfeiçoar o programa” e implantar “formas eficientes de controle na distribuição de medicamentos”. Na prática, a principal medida tomada foi estabelecer uma nova regra etária para o acesso a medicamentos. Ainda em 2017, o programa sofreu severos cortes e teve cerca de 400 unidades próprias fechadas. Em 2018, cogitou-se a possibilidade de rever as regras de repasse para os varejistas que aderiram ao programa, mas a proposta não avançou. Recentemente, o Ministro da Economia Paulo Guedes apresentou a ideia de extinguir formalmente o programa e direcionar seu orçamento para o programa Renda Brasil. Esse plano não foi bem recebido e também não prosperou (Freire 2019).

Destacamos o que aconteceu no nível federal da gestão da saúde nesse período porque foi nessa esfera que se desenharam – e ainda se desenham – os grandes cortes orçamentários do Ministério da Saúde e “reestruturações” de serviços que desencadearam crises locais em diferentes cidades do país. Tais reduções têm sua origem na adoção de uma política fiscal caracterizada pela austeridade e iniciada a partir da promulgação da EC 95/2016 que instituiu o chamado “teto de gastos”. De modo resumido, o texto do projeto propunha a “estabilização do crescimento” das chamadas “despesas primárias”. Na prática, uma das principais consequências de sua aprovação foi o congelamento dos recursos destinados para a Saúde e a Educação por 20 anos, fazendo com que seus orçamentos sejam corrigidos anualmente a partir da inflação medida pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA). Desde que entrou em vigor, a participação da União no financiamento da saúde pública brasileira tem diminuído. Em 2017, a esfera federal era responsável por custear 43,2% dos gastos do SUS. Em 2018, esse número caiu para 42,6% e, em 2019, para 42%. De acordo com dados presentes na página do Conselho Nacional de Saúde (CNS), em fevereiro de 2020 o SUS havia perdido cerca de R$ 20 bilhões em financiamento no ano anterior por conta do estabelecimento do teto de gastos[3].

Em suma, o que se verifica a partir da reflexão acerca do que vem acontecendo com as unidades e políticas públicas de saúde nos últimos anos é um fenômeno que Funcia (2018 e 2019) e outros especialistas têm chamado de “desfinanciamento do SUS”. Para o autor, a ideia de um “subfinanciamento crônico” não é mais capaz de caracterizar o período pelo qual o Sistema Único de Saúde passou entre os anos 2015 e 2020. Isto é, não se pode mais descrever a situação dos recursos do SUS apenas como fruto de um aporte insuficiente de longa duração. Nesse sentido, o que define o quadro atual inaugurado pela EC 95/2016 é o da redução contínua do orçamento da Saúde e o decorrente acirramento da precarização de serviços, caracterizado por diferentes ações de “desmonte” e com efeitos diversos e difusos e da vulnerabilização de determinados sujeitos.

A pandemia de covid-19, deflagrada no início de 2020, veio a explicitar e recrudescer uma série de ações, omissões e estratégias que fragilizaram ainda mais uma série de políticas e populações usuárias do SUS. Desde os primeiros meses do espraiamento do coronavírus no território nacional, os discursos e posturas do presidente Jair Bolsonaro, acompanhado por diversos de seus ministros e apoiadores, procurou subestimar os efeitos danosos da covid-19. Ao mesmo tempo, na medida que proposições de adoção de medidas denominadas não-farmacológicas para mitigação dos contágios e evitação do “colapso do sistema de saúde”, baseadas na restrição de circulação de pessoas (e, consequentemente, na redução de produção e consumo de mercadorias e serviços), ganharam adesão de gestores estaduais e municipais, o governo federal assumiu a postura de condenar e litigar o fechamento de escolas, universidades, repartições públicas e estabelecimentos comerciais. Nesse cenário, o vírus SARS-CoV-2 foi absorvido tanto como uma “força de mercado” (Cesarino 2020) quanto como um vetor da moral tradicional conservadora, que deveria restituir às famílias (sobretudo às mulheres) o papel de cuidado de sujeitos considerados tanto mais vulneráveis quanto descartáveis. Assim, a gramática neoliberal parece enquadrar o Sars-CoV-2 e suas consequências letais como parte dessa ordem natural, e medidas impositivas como o isolamento social como intervenções nessa ordem – e, portanto, atentados à liberdade dos indivíduos (Cesarino 2020).

Nesse contexto, a proposição de medidas como a “imunidade de rebanho” – que previa a aceleração da imunização por contágio daqueles que eventualmente sobrevivessem ao adoecimento por meio da livre circulação de pessoas, de mercadorias e do próprio vírus –associada à defesa ainda corrente de uso de medicamentos considerados cientificamente ineficazes – e potencialmente danosos – à saúde do chamado “tratamento precoce” fragilizaram em muito a assistência de usuários do SUS. Com baixa disponibilidade de testes e aposta em ações individuais de intervenção em casos de adoecimento, em detrimento de estratégias coletivas de prevenção, tivemos picos astronômicos de contágios e óbitos nos anos de 2020 e 2021. Diante desse cenário, a Comissão Parlamentar de Inquérito instalada no Senado Federal (conhecida como CPI da Pandemia) passou a investigar ações e omissões do governo federal na condução da pandemia e seus efeitos na morte de centenas de milhares de brasileiros. Durante o processo, identificou-se que gestores de diferentes ministérios ignoraram as tentativas de contato da farmacêutica Pfizer, fabricante de uma das vacinas então recém-disponíveis contra a covid-19, atrasando, de modo capital, o início da vacinação no país. Adicionalmente, quando a vacinação de fato foi iniciada no país, o presidente e diversos gestores federais antagonizaram com determinadas marcas de vacinas, ao mesmo tempo em que produziram uma série de discursos de suspeita sobre sua segurança e eficácia.

Nesse contexto, impossível não mencionar o caso de Manaus e de outros municípios do estado do Amazonas, identificado como a mais aguda situação de “colapso” do sistema de saúde. Diante de recuos nas medidas de isolamento social realizadas por gestores locais, em resposta a pressões de empresários, trabalhadores de setor varejista e outros setores da população, os casos e as internações por covid-19 subiram rapidamente, culminando na ausência de leitos, equipamentos e mesmo de balões de oxigênio para atendimento de pessoas adoecidas (Barreto et al. 2021). O caso ganhou a atenção da mídia nacional e internacional, diante de fatos absolutamente dramáticos e evitáveis de familiares de pessoas com falta de ar percorrendo diversos pontos da cidade e clamando por quaisquer possibilidades de auxílio nas redes sociais. A ideia de “colapso”, relacionada a uma complexa “necropolítica dos números“ (Pereira 2021) que organizava a gestão de leitos de UTI, hospitalizações e óbitos, tornou-se um modo crescentemente recorrente para se referir ao SUS – uma expressão que evocava os riscos da exaustão completa dos recursos já problematicamente disponíveis para atendimento de seus usuários.

Dada essa conjuntura, insistimos na importância de se analisarem criticamente os modos como são elaboradas categorias e demarcações temporais que definem determinadas situações como uma “crise” e/ou como passando por um processo de sucateamento, asfixia, desmonte ou mesmo colapso. A partir das ferramentas teórico-metodológicas das ciências sociais – com especial destaque para a perspectiva etnográfica – e da bibliografia acumulada sobre o tema, acreditamos no potencial das pesquisas antropológicas de contribuir com o debate sobre o movimento de constituição mútua que caracteriza as relações entre as “crises” e os “desmontes” das políticas públicas. Assim, ainda nesse primeiro momento da apresentação, pretendemos expor quais são propriamente as noções de crise, evento crítico, desmonte, precariedade e vulnerabilização que balizam nossas reflexões sobre o atual quadro das unidades e serviços públicos de saúde brasileiros. Nesse sentido, encontramos nos artigos reunidos do dossiê temas como os efeitos do desmonte das políticas de saúde mental no cotidiano de uma equipe que atua com usuários de álcool e outras drogas; o recurso ao aparato judicial como forma de obter acesso aos serviços e às tecnologias de saúde; ações comunitárias de produção e disseminação de informação, insumos e cuidados; estratégias de navegação e sobrevivência como as costuras entre diferentes serviços e instâncias de saúde; desarticulação de importantes políticas de saúde do país, como o Programa Mais Médicos (PMM); dentre outros.

De partida, consideramos importante ressaltar que um evento é enquadrado como crítico não só quando rearticula de modo radical as relações entre poderes, instituições e grupos sociais (Das 1995), mas também quando uma experiência como, por exemplo, o adoecimento, provoca uma fratura na expectativa de normalidade em suas dimensões temporal, espacial, coletiva e subjetiva (Das 2015). Assim, enquanto o enquadramento (Butler 2018) de uma crise coloca certos contextos, grupos e relações em evidência de modos particulares, situações de letalidade cotidiana (Povinelli 2011) passam ao largo do escrutínio, da comoção e do engajamento públicos, sendo vistos e tratados como situações normais, naturais ou inexoráveis. Os desafios de grupos e sujeitos que vivem em “condições de vida adversas” (Carneiro 2005), em especial, populações negras, indígenas, periféricas, LGBTQIA+ e outras, nesses contextos, tendem a passar despercebidos ou ser consideradas inevitáveis ou mesmo desejáveis sob a caracterização da precariedade do sistema de saúde.

Ao investigar como o conceito de “crise” é operado tanto pelas pessoas em sua vida cotidiana quanto na literatura acadêmica, Mbembe e Roitman (1995) e Roitman (2014) apontam que as crises vêm sendo tratadas como uma espécie de “momento da verdade” no qual é disputado e construído um modo particular de dar sentido aos acontecimentos e de narrar a história, seja ela pessoal (micro) ou geral (macro). Mais do que isso, os autores argumentam que conforme se consolida uma certa tendência de normalização da tautologia de “explicar as crises por elas próprias”, a crise converte-se em um idioma estruturador das experiências, de modo que seu significado passa a ser tido como dado.

Movimento semelhante foi também recentemente descrito por Fassin (2021), para quem o termo “crise” ocupa agora um lugar no vocabulário comum e amplamente compartilhado como parte do imaginário social contemporâneo. O autor sublinha também os perigos de fazer da crise uma palavra cuja acepção é autoevidente. Para ele, a banalização da ideia de crise gera riscos tanto de esvaziamento conceitual, em especial quando o termo é utilizado irrefletida e genericamente para descrever episódios dramáticos; quanto de ordem política, uma vez que a categorização de uma situação como uma “crise” demanda que se adotem respostas emergenciais que podem legitimar um estado de exceção mais ou menos permanente ou de prolongada duração.

Roitman (2014) afirma que há um ponto cego na produção das ciências sociais acerca da noção de crise. Segundo ela, parte da bibliografia especializada no assunto busca concentrar-se em refletir sobre as explicações e origens das crises, o que faz com que o questionamento da própria ideia de crise seja quase sempre deixado de lado. Isto é, ao tomar a crise simultaneamente como um dado e um problema sociológico cujo significado é autoexplicativo, os autores envidam esforços para discutir as causas, os culpados e, eventualmente, as soluções para diferentes crises. Desse modo, na medida em que a definição de algo como uma crise depende fundamentalmente do silenciamento de outras formas pelas quais uma mesma situação poderia ser compreendida, a literatura seria um elemento da própria produção do fenômeno por não questionar a existência da crise em si mesma.

Se a designação de uma crise funciona como um tipo de “diagnóstico do tempo presente” (Roitman 2014), sua operacionalização só é possível por meio da permissão e do estímulo para que certos questionamentos sejam feitos, enquanto outros são sumariamente obliterados e/ou bloqueados. No caso da crise da saúde, a disputa narrativa em torno da definição da “verdade sobre a crise” se dá entre variados atores, órgãos e instituições que possuem não apenas pontos de vista distintos – e até mesmo opostos –, mas também capacidades de articulação, de mobilização de capital político e de imposição de suas próprias perspectivas sensivelmente desiguais.

Levando isso em consideração, um primeiro exercício antropológico que precisa ser estimulado é ponderar quem e como estão construídos os episódios e fenômenos que funcionam como “indicadores” e o que está sendo entendido como um “desmonte”. Afinal, o desabastecimento de medicamentos básicos passou a ser visto como sinal de uma crise somente quando ele atingiu unidades de saúde localizadas nas capitais e regiões metropolitanas do Brasil. Nesse sentido, é fundamental que nos interroguemos se e quando os sinais desse desabastecimento surgiram em outras partes do país, como, por exemplo, nas áreas rurais e nos Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs), ou até mesmo se, em algum momento da história do SUS, esses locais foram de fato “abastecidos”. Em outras palavras, partindo de um olhar antropológico, cabe-nos perguntar por que situações análogas não escandalizam e não caracterizam uma crise quando se passam em certos lugares e/ou atingem majoritariamente determinadas populações. Dessa pergunta inicial, sucedem outras, como, por exemplo, qual é exatamente esse SUS que está sendo “desmontado” pela crise?

É importante destacar que formular perguntas como essas não quer dizer que o objetivo das pesquisas seja a produção de uma explicação particular para a crise ou chegar a uma conclusão do que exatamente significa “estar em crise”. Nossa intenção é estimular a investigação acerca de que tipo de trabalho político o termo “crise” faz ou deixa de fazer na construção de formas narrativas e enquadramentos, bem como pensar nos propósitos aos quais uma definição como essa serve. Segundo Koselleck (1999), “crise” e “crítica” são conceitos cognatos. Definir algo como uma crise pressupõe uma forma de narrar que visa determinar como as coisas deveriam funcionar e quais foram os desvios que geraram tal situação. Ou seja, na medida em que a crise é sempre o resultado da discrepância entre a “experiência vivida” e a “expectativa da história”, uma declaração de crise sempre engendra uma certa forma de crítica.

Atentos a esse aspecto, concordamos com a proposição de Roitman (2014) de que a crise deve ser observada a partir de uma perspectiva da política da crise, uma vez que a designação de uma crise é o primeiro passo para a elaboração de projetos de um “futuro novo”, os quais são muitas vezes revestidos de um imperativo moral incontornável. Isto é, a retórica da crise exige que se estabeleça um “futuro outro”, o que fundamenta diferentes planos e ações de caráter intervencionista. Como demonstrado na etnografia de Clara Han (2012), as iniciativas baseadas na contenção de despesas em nome de uma responsabilidade fiscal estatal tendem a (re)produzir a precarização de variados serviços públicos e transferir para os próprios sujeitos e/ou seus familiares o dever de cuidado. De acordo com a autora, esse movimento não só retira responsabilidades cruciais do Estado na garantia do bem-estar da população, mas também engendra uma perversa relação entre adoecimento e endividamento em regimes político-econômicos marcadamente neoliberais.

Ressaltamos, no entanto, que se a tarefa primordial da antropologia é desconfiar das categorias usadas recorrentemente e que aparentam ter significados e conteúdos autoexplicativos, também é necessário ter atenção aos problemas políticos e teóricos que podem decorrer de um exercício de relativismo irresponsável e capaz de produzir falsas simetrias. Assim, consideramos indispensável explicitar que, ao colocar a crise e o desmonte no centro da discussão, não pretendemos, de forma alguma, dizer que ela é algo fabricado ou que só existe em um plano discursivo. Pelo contrário, a crise e o desmonte se fazem presentes e palpáveis, e simultaneamente heterogêneas e particulares, no cotidiano das inúmeras pessoas que dependem do SUS, tal como é possível depreender dos artigos do dossiê.

O dossiê

O dossiê é composto por um total de seis artigos. O primeiro deles, de Lucas Faial Soneghet, aborda o caso particular de Marília e de sua filha e cuidadora principal, Isabel. Usuária de um serviço público de atendimento domiciliar que realiza atendimento de pessoas em cuidados paliativos, sua trajetória entre diferentes modalidades de atendimento, de frustração com os serviços de saúde e de dificuldades para manutenção de tratamentos caros é etnograficamente descrita a partir dos encontros e conversas realizados em sua casa, junto de Daniele, psicóloga do serviço. Sensível à “fragilidade e vulnerabilidade da vida cotidiana”, tal qual apontada por Veena Das (2015), ao longo da escrita, o autor desenvolve o conceito de normalidade crítica, assentado sobretudo na proximidade da morte de Marília. Por meio dessa categoria, sinalizam-se as múltiplas formas de cotidianização de situações adversas, as quais são repetidamente tidas como “normais”, mesmo que eivadas por angústias, sofrimento e dor. Assim, ao passo que os serviços de saúde são instados a dar conta de faltas e expectativas de atendimento às metas nos atendimentos aos usuários, na vivência de Marília, “o que é cotidiano nem sempre é experimentado como ‘normal’ e nem por isso deixa de ser vivido como cotidiano” (Soneghet 2022). Seu artigo sinaliza como os modos de gestão cotidiana da saúde e do sofrimento, no espaço do atendimento domiciliar, redundam em situação de cotidianização da dor que, mesmo diante da inevitabilidade da morte, poderia ser evitada ou mitigada.

O artigo seguinte, de Leonardo do Amaral Pedrete, trata de como os sujeitos acionam o judiciário na busca pela efetivação do direito à saúde. Como destaca o autor, se o apelo aos tribunais consolidou uma importante via para a expansão da assistência farmacêutica a partir dos anos 2000, esse mecanismo também é responsável por delimitar, ainda que indiretamente, que demandas serão atendidas e que cuidados serão ofertados pelo poder público. Assim, a judicialização contribui para um fenômeno que autores como João Biehl (2009) e Joseph Dumit (2012) chamam de farmaceuticalização do cuidado, isto é, a ideia de uma terapêutica homogênea baseada no fornecimento pontual de uma tecnologia farmacêutica específica. Somam-se a isso o recrudescimento da burocratização e a suspeição generalizada em relação aos pedidos judiciais na área da saúde provocados pela deflagração de operações policiais que visam combater a “corrupção do setor”. Nessa conjuntura, a pergunta que articula os argumentos do autor é: o que acontece com pacientes que lidam com enfermidades crônicas e necessitam de cuidados de longa duração? Para responder a esse e outros questionamentos, Pedrete lança mão de dados etnográficos oriundos de uma pesquisa realizada entre os anos 2018 e 2019 em um núcleo de atendimento da Defensoria Pública da União (DPU) da cidade de Santa Maria, no estado do Rio Grande do Sul (RS).

Alvo de críticas de cunho xenófobo e racista da campanha eleitoral de 2018 de Jair Bolsonaro, o Programa Mais Médicos (PMM) foi fortemente atingido antes mesmo da posse do atual presidente da República. Após acusações e impropérios diversos contra médicos e contra o governo cubano, as autoridades deste país decidiram suspender sua participação no programa – posteriormente encerrado e substituído pelo errático “Médicos pelo Brasil”. Os impactos dessa abrupta interrupção do programa, que impactou milhares de municípios brasileiros com o reforço qualificado no atendimento médico, é o tema do terceiro artigo do dossiê, de Bruna Motta dos Santos. Sob a perspectiva do conceito de “evento crítico” (Das 1995) e o aporte teórico da antropologia das emoções, a autora aborda como os médicos cubanos que permaneceram no Brasil após o encerramento do PMM tiveram suas vidas profissionais, pessoais e familiares drasticamente alteradas. Acionando material jornalístico para etnografar as diversas perdas sofridas por esses médicos e suas estratégias para lidar com elas, Santos analisa as diferentes temporalidades agenciadas nas experiências e expectativas dos médicos a partir das categorias de tempo da medicina . tempo da sobrevivência. Trabalho, emoções e tempo são então articulados nos modos de referenciar um momento da vida que, narrado no passado, tanto contrasta com um presente de frustrações e estratégias para manutenção de suas vidas e suas famílias, com o sustento advindo de outras ocupações (como balconistas, garçons, cozinheiros, dentre outras), quanto delineia as perspectivas de um futuro caracterizado pelo retorno aos tempos de exercício da medicina no Brasil.

O artigo subsequente é de autoria de Elaine Reis Brandão. Seu trabalho aborda uma questão histórica nos campos de estudos e de ativismo da saúde reprodutiva no Brasil: a oferta de tecnologias contraceptivas reversíveis de longa duração do SUS. Remontando ao já conhecido caso do Norplant, experimentado em mulheres brasileiras nos anos 1980, e estendendo sua leitura histórico-etnográfica até o presente, a autora analisa como a proposta de oferta de contracepção por meio de um implante subdérmico, discutida no âmbito da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS, denota um projeto que articula tanto um ataque ao princípio de universalidade do sistema quanto uma intencionalidade de controle reprodutivo de um certo grupo de mulheres. O objeto de análise principal é a consulta pública feita pela Conitec a respeito da restrição da oferta da tecnologia para um grupo particular de mulheres cisgênero, dentre elas, aquelas em situações de encarceramento, moradoras de rua e usuárias de drogas, cujo maior contingente é formado por mulheres negras e pobres. A justificativa para tanto articula não somente o argumento de “custo-efetividade”, por meio do qual se sinaliza a escassez de recursos para oferta universal da tecnologia, mas também uma sistêmica retórica de teor racista, sexista e religioso que descreve como o público-alvo do implante aquele que deve ter sua reprodução mais eficazmente controlada pelo Estado. No centro da discussão de Brandão, encontra-se a categoria de “vulnerabilidade”, acionada nos documentos oficiais para descrever, ao mesmo tempo, a não reprodução de uma população indesejada e a “saúde” das finanças públicas – resguardadas na redução de gastos com a oferta de implantes e também na evitação de empenho em recursos que garantissem a assistência necessária para uma eventual gestação.

O próximo artigo, de João Balieiro Bardy, traz importantes contribuições para a dimensão cotidiana do desmonte da política de saúde mental voltada para pessoas que fazem uso de álcool e outras substâncias psicoativas no contexto da pandemia de covid-19. Baseado em uma etnografia conduzida ao longo de dezesseis semanas entre os anos de 2020 e 2021, o autor discute os efeitos psicológicos e emocionais que a precarização das condições de trabalho desmonte provoca entre os profissionais que atuavam no Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas Antônio Orlando (CAPS ADAO). Em diálogo com os conceitos de ecologias de cuidado (Das 2015) e de alternativas infernais (Stengers e Pignarre 2011), Bardy nos mostra como se deu a inversão de responsabilidades entre quem deve formular a política pública de saúde e as pessoas encarregadas de colocá-las em prática, fazendo com que, diante da ausência de diretrizes e protocolos, os profissionais tivessem que decidir caso a caso que tipo de cuidado poderia ser oferecido ou não. É atento a esse cenário que ele argumenta que o vírus se torna duplamente letal: ele mata não apenas ao contaminar pulmões e outros órgãos do corpo, mas também ao produzir fissuras na estrutura psíquica de quem estava na linha de frente do combate ao coronavírus.

Como mencionado anteriormente, o dossiê pretende abarcar não somente pesquisas que tratem do desmonte de programas e políticas de saúde vinculados ao SUS, mas também aquelas cujo foco está nas estratégias mobilizadas pelas pessoas para contornar ou mitigar os efeitos da constante precarização dos serviços de saúde. É esse o caso do último artigo que compõe o dossiê, de Stella Zagatto Paterniani. O texto aborda, como o próprio título sugere, a organização e os expedientes acionados por moradores de periferias urbanas e agentes comunitários de saúde para driblar o desmonte. A partir de um experimento etnográfico elaborado com base em uma pesquisa conduzida durante os anos de 2020 e 2021 – os mais duros e dificultosos no que diz respeito à realização de trabalho de campo tal como estávamos acostumados –, a autora trata de uma campanha nacional articulada por movimentos populares que reuniu habitantes das periferias, líderes comunitários, militantes e voluntários. Tendo como eixo central a solidariedade popular, a campanha mobilizou as pessoas reunidas em coletivos em prol de três atividades principais: a logística para recebimento e distribuição de doações; o apoio ao protagonismo dos próprios residentes na organização dos territórios; e a formação de agentes populares de saúde (em uma relação de continuidade e contraposição aos agentes comunitários de saúde). Recusando as narrativas que congelam os sujeitos dentro de categorias como “populações vulneráveis” e/ou “em situação precária”, Paterniani nos mostra, por um lado, como esses processos de vulnerabilização e precarização são, na verdade, continuamente atualizados e reforçados, a ponto de serem considerados como dados; e, por outro, a autogestão e as saídas criativas elaboradas pelos sujeitos para superar as adversidades e escapar dessas formas de classificação.

Por fim, enfatizamos que a proposição deste dossiê buscou provocar reflexões que abordem criticamente os modos de precarização do sistema de saúde, em especial as estratégias contemporâneas de seu sucateamento e privatização, bem como apontar para as formas sistemáticas de vulnerabilização de certos grupos e sujeitos. Ao enfatizar uma certa dimensão processual e relacional, frisamos como as pesquisas aqui reunidas tratam a “precariedade” e a “vulnerabilidade” não como estados fixados ou características intrínsecas aos sujeitos, serviços e instituições, mas sim como condições politicamente induzidas que são resultado de uma histórica distribuição desigual de recursos materiais e simbólicos. Apostando na potência da etnografia, os trabalhos deste dossiê contribuem para o adensamento de discussões antropológicas sobre os próprios modos de produção política, discursiva e material de “crises”, “desmontes”, “precariedades”, “escassezes” e “colapsos”.

Desejamos a todas uma boa leitura.

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Notas

[1] Discurso completo disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=-Fw7LLE81_U. Acesso em: 11 jun 2022.
[2] Postagem disponível em: https://twitter.com/mqueiroga2/status/1458476441985749006. Acesso em: 11 jun 2022.
[3] Disponível em: http://www.conselho.saude.gov.br/ultimas-noticias-cns/1044-saude-perdeu-r-20-bilhoes-em-2019-por-causa-da-ec-95-2016. Acesso em: 15 jun. 2022.
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