Resumo: O artigo debruça-se sobre um fato empírico recente, a consulta pública e posterior aprovação em abril de 2021 pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (CONITEC), vinculada ao Ministério da Saúde, da inclusão do implante subdérmico de etonogestrel na prevenção da gravidez não planejada para mulheres em idade fértil no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). No entanto, paradoxalmente, tal inclusão não se deu de modo universal, a todas as usuárias do planejamento reprodutivo do SUS que assim o desejarem, respeitando-se uma premissa cara ao nosso sistema público de saúde. Ela foi implementada condicionando-se tal oferta a programas específicos voltados a mulheres “em situação de vulnerabilidade”, ou seja, em situação de rua, com HIV/AIDS, privadas de liberdade, trabalhadoras do sexo, em tratamento de tuberculose, enfim, a mulheres reconhecidamente pobres, negras, socialmente privadas do acesso regular às políticas públicas de saúde, de educação, de desenvolvimento social. Argumenta-se que os efeitos sociais decorrentes da incorporação destas tecnologias contraceptivas reversíveis de longa duração de modo seletivo pode acirrar o racismo institucional implícito em tais práticas de saúde. A supressão temporária da capacidade reprodutiva de mulheres “indesejáveis” viola princípios de cidadania e infringe prerrogativa constitucional.
Palavras-chave: Contracepção Reversível de Longo Prazo, Biotecnologias, Racismo, Reprodução, Sistema Único de Saúde.
Abstract: The article focuses on a recent empirical fact, the public consultation and subsequent approval of the etonogestrel subdermal implant inclusion in the prevention of unintended pregnancy for women in childbearing age in the scope of Brazilian Unified Health System (SUS), in April 2021 by the National Commission for the Incorporation of Technologies in the SUS (CONITEC), linked to the Ministry of Health. However, paradoxically, such inclusion did not happen universally, to all SUS family planning users who so wished, respecting a premise dear to our public health system. It was implemented by conditioning this offer to specific programs aimed at women “in a vulnerable situation”, that is, people homeless, with HIV/AIDS, deprived of liberty, sex workers, undergoing treatment for tuberculosis, in short, the admittedly poor, black women, socially deprived of regular access to public health, education and social development policies. It is argued that the social effects resulting from the selective incorporation of these long-acting reversible contraceptive technologies can intensify the institutional racism implicit in such health practices. The temporary suppression of the reproductive capacity of “undesirable” women violates principles of citizenship and violates constitutional prerogatives.
Keywords: Long-Acting Reversible Contraception, Biotechnologies, Racism, Reproduction, Brazilian Unified Health System.
Dossiê
Contracepção reversível de longa duração para mulheres "em situação de vulnerabilidade": racismo institucional no Sistema Único de Saúde (SUS)
Long-acting reversible contraception for women “in a vulnerable situation”: institutional racism in the Brazilian Unified Health System (SUS)
Recepción: 15 Octubre 2021
Aprobación: 03 Mayo 2022
O artigo se deterá no exame minucioso da consulta pública nº 01/2021 feita à sociedade brasileira pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde – SUS (CONITEC), em janeiro e fevereiro de 2021. Essa iniciativa subsidiou a decisão recente da Secretaria de Ciência, Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégicos em Saúde do Ministério da Saúde (SCTIE/MS), favorável à incorporação do implante hormonal subdérmico no SUS a mulheres adultas entre 18 e 49 anos, sob dadas condições. Assim, foi publicada a Portaria SCTIE/MS nº 13, de 19 de abril de 2021 (Brasil 2021a), a qual
torna pública a decisão de incorporar o implante subdérmico de etonogestrel, condicionada à criação de programa específico, na prevenção da gravidez não planejada para mulheres em idade fértil: em situação de rua; com HIV/AIDS em uso de dolutegravir; em uso de talidomida; privadas de liberdade; trabalhadoras do sexo; e em tratamento de tuberculose em uso de aminoglicosídeos, no âmbito do Sistema Único de Saúde – SUS.
Aborda-se a inclusão de um determinado tipo de método contraceptivo de longa duração (Long-acting Reversible Contraception) no SUS, o implante subdérmico hormonal, um pequeno bastonete plástico flexível (4 cm), contendo 68 mg de etonegestrel, cuja ação contraceptiva dura até três anos, devendo ser implantado por profissional de saúde treinado no braço da usuária, sob a pele. Ao findar seus efeitos contraceptivos, o dispositivo deve ser retirado e, eventualmente, substituído, também por profissional de saúde, caso a mulher deseje continuar sua utilização.
Compreender os interstícios que subjazem a tal decisão política, aparentemente apoiada em critérios clínicos neutros e cientificamente embasados, nos faz retroceder a algumas iniciativas no âmbito do governo federal, em articulação com o Ministério da Saúde, que pautam as ações públicas no tocante ao planejamento reprodutivo no Brasil. Sem dúvida, essa não é uma intervenção social isolada, mas muito bem articulada no contexto de retrocessos políticos que vimos assistindo nos últimos anos. Recorrentemente, quando se mencionam no debate público as gravidezes “não planejadas”, “indesejadas”, “precoces”, as alternativas cogitadas têm gravitado em torno da proposta de abstinência sexual pelos adolescentes e jovens como modo de enfrentamento do problema (Cabral e Brandão 2020). A campanha do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos (MMFDH), em parceria com o Ministério da Saúde (MS), deflagrada em 2020, cujo slogan era “Adolescência primeiro, gravidez depois”, e a recente discussão em torno do Projeto de Lei nº 813/2019 (São Paulo 2019), conhecido como “Escolhi esperar”, apresentado à Câmara de Vereadores do município de São Paulo, para criação de um programa de “prevenção e conscientização sobre gravidez precoce”, com a realização de palestras, exposições e outras atividades para “disseminar informações sobre medidas preventivas e educativas” acerca do assunto, cuja votação estava prevista para o mês de junho de 2021, atestam a força da penetração de um ideário religioso, oriundo de uma aliança estratégica entre católicos e evangélicos, na formulação de políticas públicas. A estratégia política do MMFDH de apoiar a constituição de políticas públicas de cunho familista no país (Mioto et al. 2015, Moraes et al. 2020), por meio de editais e recursos públicos, eximindo-se de discutir as desigualdades de gênero, raciais, étnicas ou de classe social que se interpõem nas trajetórias de vidas das mulheres pode ser outro exemplo claro do cariz religioso e conservador das intervenções públicas no campo do desenvolvimento social[1]. Em seu trabalho etnográfico sobre o movimento “Eu escolhi esperar”, Terrasi Hortelan (2018) nos apresenta como a aspiração da felicidade no casamento está entrelaçada ao ideário do amor romântico e de uma gramática de gênero que reifica os papéis tradicionais da mulher na família, suprimindo o sexo antes do casamento como solução para alcançar uma relação heterossexual saudável. Como a autora expressa: “por meio de tecnologias de si, as quais visam o autogoverno ‘da carne’: príncipe e princesa são, dessa forma, indivíduos aptos a se autogovernarem em prol de seus projetos de realização amorosa” (Hortelan 2018, 273).
Não é casual que o Brasil esteja fortemente comprometido como nação na defesa da retórica antigênero, com foco nas campanhas para proibição do debate sobre sexualidade e gênero nas escolas públicas, bem como nas campanhas antiaborto, que se alimentam de uma restauração do lugar tradicional e subordinado da mulher na hierarquia social, restrita ao casamento, à família e à maternidade. A assinatura da Declaração do Consenso de Genebra[2], celebrada em outubro passado, reitera as relações diplomáticas entre países que pressupõem o direito à vida e a unidade familiar conjugal heterossexual como pilares da sociedade, restringindo assim as escolhas sexuais e reprodutivas das mulheres e subordinando-as à sociedade conjugal (Brasil 2020e). As recentes dificuldades interpostas pelo Ministério da Saúde ao atendimento do aborto legal previsto em lei e o debate contrário à salutar iniciativa de teleatendimento em saúde para orientação dos procedimentos para o aborto legal em domicílio, durante a pandemia de covid-19 no Brasil, somente reiteram as disparidades sociais que provocam sofrimento e mortes às mulheres usuárias do SUS.
Como veremos adiante, desta vez a aprovação da oferta de método contraceptivo reversível de longa duração (LARC) no SUS vem envolta em narrativas técnicas de gestores públicos e de profissionais de saúde do MS que abraçam a defesa dos direitos reprodutivos e da premissa do empoderamento feminino como justificativas para tal incorporação. Se assim fosse, não seríamos o país no topo do ranking de mortes maternas associadas à pandemia de covid-19 (Santos et al. 2021), o que atesta a cabal desassistência em saúde sexual e reprodutiva, o abandono das ações de pré-natal, parto e pós-parto que ceifaram vidas jovens, de modo absolutamente desnecessário. Como acreditar na mobilização circunstancial e oportunista de um discurso favorável aos direitos das mulheres, se não temos direito a debater questões relativas ao gênero e à sexualidade nas escolas? Se não tomamos a violência sexual como uma questão prioritária de governo? Se dificultamos as práticas de saúde que visam apoiar e promover o aborto previsto em lei?
Se tomamos o discurso familista, a restauração do ideal do amor romântico (via abstinência sexual feminina), o desprezo ou ódio de classe e raça/etnia, herança colonial, a supressão da capacidade reprodutiva de mulheres cuja sexualidade tem sido considerada errática, desviante, destoante desta ética moral familista, faz todo sentido a aprovação desta portaria. Distinguir quais grupos de mulheres merecem ter direitos (consequentemente, filhos) e quais são os grupos descartáveis ou desprezíveis (desaconselhados de reproduzir), integra o ideário da família conjugal nuclear moderna, branca, heterossexual, considerada a base da sociedade por esta retórica bíblica.
Desvendar esse jogo de palavras entre precariedades e vulnerabilidades, presentes no imaginário social contemporâneo que alimenta tais proposições políticas, nos ajudará a ter mais clareza de como essas categorias são mobilizadas para retroceder direitos, em consonância com o desmonte mais amplo do SUS.
O trabalho apoia-se em pesquisa etnográfica sobre a circulação social de dispositivos contraceptivos reversíveis de longa duração (LARC) no Brasil, em especial, os implantes subdérmicos hormonais (etonogestrel), com ação contraceptiva de três anos, comercializado no país como Implanon NXT®, e os sistemas intrauterinos hormonais (levonorgestrel), cuja ação contraceptiva alcança cinco anos, popularmente conhecido como DIU hormonal ou DIU Mirena®, seu nome comercial. Percorrendo a entrada e os deslocamentos destes artefatos sociotécnicos na rede pública de serviços de saúde, enredados em redes de atores e instâncias institucionais que reúnem corporações médicas, empresas farmacêuticas, gestores públicos, profissionais de saúde e de assistência social, autoridades jurídicas, agências multilaterais, venho buscando compreender os sentidos que recebem e os usos sociais destes dispositivos LARC nas políticas públicas de saúde.
As fontes utilizadas reúnem um acervo documental que venho compilando por meio de noticias na mídia eletrônica; portarias, decretos, projetos de lei, protocolos de orientação aos profissionais de saúde, emanados dos poderes executivo, legislativo ou judiciário, material advindo de empresas farmacêuticas, para divulgação de tais produtos, guidelines internacionais produzidos pelas agencias multilaterais como Organização Mundial da Saúde (OMS), Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA), associações cientificas médicas nacionais e internacionais, organizações da sociedade civil organizada, agências regulatórias, entre outros. O conjunto do material empírico pode ser acessado pela internet, em fontes públicas de acesso aberto. Para este trabalho em especial, incluí também a audiência pública realizada na Câmara Federal pelas Comissões de Defesa dos Direitos da Mulher, de Legislação Participativa e de Seguridade Social e da Família, em 16 de julho de 2021 sobre “Debate sobre o implante subdérmico de etonogestrel para casos específicos, na prevenção de gravidez não planejada para mulheres em idade fértil,” disponibilizada no canal do Youtube da Câmara[3].
No percurso da pesquisa, iniciado há alguns anos, tenho podido acompanhar alguns episódios que condensam, de modo extremamente exemplar, os muitos interesses sociopolíticos, financeiros, envolvidos nas propostas de inclusão de métodos LARC no SUS. Um traço em comum às diversas iniciativas repousa no fato de que tal debate ignora as instâncias deliberativas de participação social consagradas no SUS, a exemplo dos Conselhos Municipais, Estaduais e Nacional de Saúde. As usuárias potencialmente interessadas também se encontram alijadas deste debate público, que em geral ocorre após decisão final do rito que se cumpre. Debrucei-me sobre alguns destes eventos em trabalhos anteriores, tais como as primeiras consultas públicas (n. 35 e 36) instauradas pela Conitec no ano de 2015 para oferta de dois dispositivos contraceptivos às mulheres entre 15 e 19 anos: o implante subdérmico liberador de etonogestrel, com duração de três anos, e o sistema intrauterino liberador de levonorgestrel, com duração de cinco anos, a pedido da Federação Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia (FEBRASGO), com relatório final não recomendando tal incorporação (Brandão 2019); o acordo celebrado em 2018 entre Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul, com o Município de Porto Alegre (Secretaria Municipal de Saúde) e dois hospitais públicos, um deles universitário, e a empresa farmacêutica Bayer para a inserção de 100 dispositivos intrauterinos (SIU-LNG), com ação anticoncepcional por cinco anos, nas adolescentes em situação de acolhimento institucional sob tutela do Estado, revogado algum tempo depois após repercussão pública negativa sobre tal “termo de cooperação” (Brandão e Cabral 2021a). Por fim, o caso paradigmático do município de São Paulo, o qual vem antecipando muitas das práticas de saúde agora institucionalizadas para todo o território nacional (Brandão e Cabral 2021b). Não será possível me deter neste momento nas mútuas implicações entre a pandemia de covid-19 e o fortalecimento das iniciativas pró-LARC no mundo e no Brasil (Brandão 2022), mas certamente elas coproduzem um ambiente institucional mais favorável à incorporação destas tecnologias neste momento político no qual o Brasil atravessa um governo que infringe regras internacionais de proteção à saúde, negando a validade do conhecimento científico e a gravidade desta crise sanitária, ao desprezar a vida de milhares de pessoas. São muitas e difusas as estratégias genocidas, de cunho racista, que estão em curso no país. Creio poder demonstrar como a aprovação recente pelo MS da inclusão do implante subdérmico hormonal a mulheres adultas, entre 18 e 49 anos, “em situação de vulnerabilidade” pode estar sendo uma delas.
Alguns trabalhos etnográficos inspiram a abordagem metodológica aqui adotada (Fonseca et al. 2016, Vianna 2014, Ferreira e Lowenkron 2020), na direção de se problematizarem os interstícios da máquina pública que se consubstanciam em normas, procedimentos, diretrizes de governo que incidem sobre praticas sociais e de saúde, entre elas as práticas sexuais e reprodutivas, regulando condutas e enquadrando/normatizando corpos que se distanciam do parâmetro biomédico considerado “normal”. Essa dupla incidência, pelo Estado, via poder médico, e pelo gênero, regulando corpos que insistem em reproduzir, tem sido explorada na vertente etnográfica também por Fernandes (2019a, 2019b), Faya-Robles (2015), Corrossacz (2009), entre outras que abordam o tema da reprodução entre classes populares no país.
Pretendo abordar o evento da consulta pública sobre a incorporação do implante subdérmico hormonal a mulheres adultas de 18 a 49 anos no SUS, as nuances que a cercam, os mecanismos sociais que a engendram, para então compreender os efeitos sociais da decisão final do MS, ampliando para todo o território nacional práticas de saúde eticamente questionáveis, na medida em que alijam determinados corpos femininos materializando sua exclusão social.
Espero ter deixado claro na introdução que essa segunda tentativa de incorporação de métodos LARC no SUS, desta vez, exitosa, não ocorre de modo isolada. Na primeira tentativa, em 2015, quando a Febrasgo solicita ao MS a incorporação de dois dispositivos anticonceptivos para adolescentes de 15 a 19 anos, negada naquela ocasião, algumas ideias centrais que hoje fundamentam e justificam a inclusão do implante subdérmico a mulheres “em situação de vulnerabilidade” no SUS já estavam delineadas. A irresponsabilidade ou negligência feminina, que falha em seguir a prescrição médica do anticoncepcional oral diariamente, ou do injetável mensal ou trimestral, descontinuando o uso do método e colocando-se em exposição à gravidez e às infecções sexualmente transmissíveis (IST). A transferência deste cuidado contraceptivo da mulher para o staff médico, desobrigando-se desta “preocupação”. A menção aos custos elevados que o sistema de saúde arca em razão de cuidados com procedimentos relativos à gravidez, parto, pós-parto, pós-abortamentos, e com os recém-nascidos, entre outros, sempre amparados nos índices de gravidez não planejada constatados pelas pesquisas no país (Theme-Filha et al. 2016).
Outro evento correlato foi a solicitação de inclusão do implante subdérmico hormonal com etonogestrel (Implanon NXT®) para mulheres de 18 a 49 anos na Atualização do Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde cobertos pelas operadoras de planos de saúde da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) pela Schering-Plough Indústria Farmacêutica Ltda./MSD. A consulta pública esteve aberta em 2020, embora a ANS não recomendasse tal inclusão. Em sua análise técnica, a agência destacou:
O Rol já contempla o DIU hormonal e não hormonal contemplando a necessidade de contracepção através de dispositivo. As evidências indicam que o implante de etonogesterol apresentou mais eventos adversos relacionados a sangramento em comparação ao DIU. Há dificuldades em estimar a população elegível para utilização do implante subdérmico pois não seria exatamente a mesma que optaria pelo DIU, considerando a diferença entre os dispositivos, gerando incertezas relacionadas à avaliação econômica (Brasil 2020b).
Em 2021, o novo Rol de Procedimentos foi atualizado e divulgado pela ANS, não tendo incorporado o implante subdérmico como contraceptivo de longa duração. Embora o pleito da empresa farmacêutica fabricante do implante não tenha tido êxito neste momento, junto ao público usuário de planos de saúde privados, tal esforço evidencia uma ação coordenada em ambos os setores, privado e público, de saúde no país.
Neste sentido, a empresa Schering-Plough solicita em abril de 2020 ao MS a incorporação do implante subdérmico com etonogestrel em mulheres adultas de 18 a 49 anos, excluindo o público adolescente deste pleito, desta vez, considerado mais sensível e vulnerável segundo normativas éticas vigentes nas resoluções que regulam pesquisas com seres humanos no Brasil. No dossiê apresentado pela empresa farmacêutica ao MS (Brasil 2021b), uma série de estudos e experiências internacionais (Reino Unido, Suécia, EUA) são mencionadas, como o Projeto Choice (Secura et al. 2010)[4], e as recomendações de agências como OMS e Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia (FIGO) a respeito dos métodos LARC, além da Febrasgo (2016), no Brasil. O documento inclui duas cartas de apoio de dois renomados médicos ginecologistas e obstetras do país, no item designado “Posicionamento de líderes de opinião”, os quais ocupam cargos importantes em universidade pública do estado de São Paulo e na Comissão de Anticoncepção da Febrasgo, à frente de projetos de pesquisa para inserção de LARC em grupos de mulheres consideradas “vulneráveis”, respectivamente em Campinas e São Paulo[5]. Ambos publicam muito sobre a indicação de métodos LARC e têm parcerias com a empresa há muitos anos, atuando como consultores sobre o tema[6].
Interessante observar que o dossiê da empresa cita no tópico “Experiência no Brasil com utilização do implante de etonogestrel” (Brasil 2021b, 32–3) a existência de 37 projetos em execução no país, em parceria com órgãos públicos, até novembro de 2019, para utilização do implante subdérmico, “com protocolos definidos para população vulnerável e adolescentes”. Destes projetos, 19 concentram-se no estado de São Paulo, 7 no Rio Grande do Sul, 3 no Paraná, 2 em Minas Gerais, e o restante nos estados de Pernambuco, Mato Grosso do Sul, Ceará, Rondônia, Rio Grande do Norte, Santa Catarina, em geral, nas capitais, exceto Joinville (SC). Conforme o dossiê, a empresa oferta treinamento aos médicos e possui parceria com 15 centros de pesquisa e atenção à saúde no país para treinamento de profissionais em maternidades públicas municipais e estaduais, como também àqueles que atuam com as chamadas “populações vulneráveis” nos equipamentos de saúde como Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), Centro de Referência de Álcool, Tabaco e Outras Drogas (CRATOD), Centro de Referência e Treinamento em Infecções Sexualmente Transmissíveis e Aids (CTR IST/AIDS).
O documento da empresa farmacêutica ampara-se na Lei de Planejamento Familiar (Brasil 1996) e na Política Nacional de Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos (Brasil 2004) e menciona a baixa utilização do DIU de cobre no SUS, único método LARC disponível até então. Entre outras razões para esse uso reduzido, destaca-se a dependência de um médico ginecologista para a inserção do DIU, sendo que esse profissional não é encontrado em todas as regiões e cidades do país. Além disso, há a necessidade de exames prévios, em contraste com as facilidades de inserção do implante, que pode ser feito também por médico de família, além dos ginecologistas[7]. Também são elencadas no dossiê da empresa as “populações em situação de vulnerabilidade” (Brasil 2021b, 41) destinatárias que seriam “beneficiadas” pelo implante: “mulheres com menor escolaridade, residentes do Nordeste, mulheres que vivem com HIV, usuárias de drogas, mulheres que vivem em regiões afastadas de grandes centros urbanos, comunidades carentes, imigrantes ou inseridas no sistema prisional, mulheres com deficiência intelectual”. O uso recorrente dos adjetivos “carentes”, “vulneráveis”, “especiais”, “em risco social” aos substantivos mulheres ou populações vem sendo sistematicamente empregado em documentos que reafirmam a necessidade prioritária destes grupos sociais para receber métodos LARC, se comparadas ao conjunto das mulheres em idade reprodutiva.
Este dispositivo foi aprovado pela agência regulatória dos EUA, Food and Drug Administration (FDA), em 2001 e pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), no Brasil, em agosto de 2016[8]. Em abril de 2015, a OMS o incluiu na lista de medicamentos essenciais, a qual tem um caráter norteador aos demais países a ela filiados. Assim, o implante subdérmico tem sido utilizado em mais de 110 países de todos os continentes, embora apresente algumas contraindicações[9]. Como eventos adversos decorrentes do uso do Implanon NXT®, como citado no Relatório preliminar da Conitec (Brasil, 2021d, 18), as mulheres ficam suscetíveis a mudanças no padrão de sangramento menstrual que podem incluir alterações na frequência (ausente, menos frequente, mais frequente ou contínua), na intensidade (reduzida ou aumentada) ou na duração do sangramento. Reações adversas muito comuns relatadas em estudos clínicos foram infecção vaginal, cefaleia, acne, sensibilidade mamária, dor mamária e aumento de peso. Além disso, foram relatadas complicações no local do implante, como eritema, hematoma, equimose, dor e edema. O distúrbio do sangramento está entre as principais causas para a descontinuação de uso do implante subdérmico de etonogestrel, seguido por ganho de peso (Brasil, 2021d, 48).
A Conitec, em sua 93ª Reunião Ordinária, realizada no dia 9 de dezembro de 2020, deliberou que a matéria fosse disponibilizada em consulta pública com recomendação preliminar desfavorável à incorporação do implante subdérmico de etonogestrel para prevenção da gravidez não planejada por mulheres adultas em idade reprodutiva entre 18 e 49 anos no SUS. Considerou-se que as evidências são favoráveis ao implante de etonogestrel, mas que a ampla população proposta pelo demandante juntamente com o impacto orçamentário estimado dificultaria a incorporação desta tecnologia no SUS. No entanto, em reunião anterior, em sua 92ª Reunião Ordinária, ocorrida em 4 de novembro de 2020, o tema constava da pauta e foi debatido também, embora não tivesse havido, nessa reunião, deliberação final a respeito. Presumo que embora a recomendação inicial da Conitec tenha sido negativa à incorporação do implante, tal como solicitado pela empresa, na abertura da consulta pública à sociedade, a estratégia de considerar uma parcela do público feminino em idade reprodutiva já estava sinalizada nas orientações do MS. Ou seja, a eleição de um perfil social específico de mulheres, tal qual ocorreu na recomendação final da Conitec (abril 2021) já havia sido antes prevista. Registra-se abaixo a recomendação que consta na ata da 92ª Reunião Ordinária (Brasil, 2020c) disponível no site[10], no item referente à incorporação do implante:
Recomendação: Os membros presentes deliberaram, por unanimidade, que a matéria não fosse disponibilizada em Consulta Pública antes que a Secretaria de Vigilância em Saúde e a Secretaria de Atenção Primária à Saúde delineassem um seguimento da população que mais se beneficiaria com o implante contraceptivo subdérmico de etonogestrel, caso este método fosse incorporado no SUS. O tema está previsto para ser apreciado novamente na próxima Reunião Ordinária da Conitec, no mês de dezembro de 2020.
Consultando a ata da 93ª Reunião Ordinária (Brasil 2020d), realizada em dezembro de 2020, a qual decide pela abertura de consulta pública à sociedade consta:
Inicialmente, foi informado que a pauta tinha como objetivo a apreciação da população em idade fértil que mais se beneficiaria com o implante contraceptivo subdérmico de etonogestrel, caso este método fosse incorporado no SUS, segundo delineamento realizado pela Secretaria de Vigilância em Saúde e pela Secretaria de Atenção Primária à Saúde, para uma posterior recomendação preliminar. De acordo com o levantamento apresentado, a população proposta seria compreendida por: usuárias de drogas; mulheres em situação de rua; mulheres com HIV; mulheres em uso de medicamentos com potencial teratogênico ou com grande potencial para serem prejudiciais ao feto; mulheres privadas de liberdade; e trabalhadoras do sexo. Foi informado também que o quantitativo desta população ainda não tinha sido enviado para o DGITIS/SCTIE, o que impossibilitou o cálculo de um novo impacto orçamentário[11].
Assim, parece que a abertura da consulta à sociedade, no período de 12 de janeiro de 2021 a 1º de fevereiro de 2021, cumpriu apenas um rito protocolar, pois as diretrizes emanadas pelas duas Secretarias do MS já consideravam previsível a oferta do dispositivo apenas a certos segmentos da população feminina em idade reprodutiva. Isso porque previa a redução que haveria nos custos orçamentários para aquisição do produto, não a todas as mulheres entre 18 e 49 anos usuárias do SUS, mas apenas àquelas consideradas “em situação de vulnerabilidade”. No relatório final da Conitec (Brasil 2021c), tal decisão aparece assim:
Análise de Impacto orçamentário de acordo com o seguimento populacional delineado pela SVS e pela SAPS: A Secretaria de Vigilância em Saúde (SVS) e a Secretaria de Atenção Primária à Saúde (SAPS) propuseram, na 92ª Reunião da Conitec, delinear um seguimento da população que mais se beneficiaria com a possível incorporação do implante subdérmico de etonogestrel. De acordo com o levantamento, esta população seria compreendida por: mulheres usuárias de drogas; mulheres em situação de rua; mulheres vivendo com HIV; mulheres em idade fértil e em uso de talidomida; mulheres privadas de liberdade; mulheres cis trabalhadoras do sexo e mulheres em idade fértil em tratamento com tuberculose e em uso de aminoglicosídeos (grifos originais).
Assim, a consulta pública pode referendar, a posteriori, algo já previsto sob alegação de restrições orçamentárias à incorporação da tecnologia de modo universal no SUS. Mas vejamos também as reflexões dela derivadas para compreendermos melhor alguns impasses ou equívocos que ela pode nos revelar.
A primeira consideração a ser feita refere-se ao fato de que a consulta pública, embora seja um instrumento de participação social e de relativa transparência das decisões que ocorrem no âmbito da Conitec, não garante efetivamente o debate público sobre o tema, como deveríamos ter em se tratando de questões atinentes aos corpos e à saúde de inúmeros sujeitos. A sua divulgação acaba ficando restrita a alguns segmentos escolarizados da população que circulam e atuam na área da saúde, além do prazo exíguo de vinte dias para a interação do público. Em vez de uma ampla maioria de usuárias e usuários do SUS, os quais serão os mais atingidos por tais decisões, entrarem em contato com o tema, serem provocados a pensar a respeito, conhecerem novas alternativas de tratamento em saúde e suas vantagens/desvantagens, o que temos é a ação política (lobby/advocacy) de determinados grupos sociais, com interesses envolvidos na referida consulta, que se mobilizam para responder os formulários e para contatar potenciais participantes em suas redes sociais[12]. Ao final, o consenso existente na comunidade médica sobre métodos LARC foi ratificado na consulta, sob justificativa social e de redução de danos – os participantes citam os problemas relativos à sífilis congênita, ao HIV, à prematuridade, etc. em nascimentos de parturientes “em situação de vulnerabilidade”. Vejamos então como a “sociedade” respondeu à consulta, os temas recorrentes e os argumentos arrolados pelos participantes.
A pergunta colocada na consulta pública a meu ver não foi apropriada, gerando confusão e mal entendido entre os respondentes, como pude constatar. A pergunta era: “A recomendação preliminar da Conitec foi NÃO favorável à proposta de incorporação do implante subdérmico de etonogestrel na prevenção da gravidez não planejada por mulheres adultas em idade reprodutiva entre 18 e 49 anos. Você concorda?” Alguns concordavam afirmativamente, destacando a necessidade de disponibilização do implante no SUS, deixando claro que a questão havia sido mal compreendida. Um/a participante “interessado no tema” comentou a esse respeito no formulário para contribuições de pacientes (experiência ou opinião), em 29.01.2021:
Aproveito para salientar que a pergunta não está clara. Vocês perguntam se concordamos com a recomendação ou com a incorporação dessa alternativa? A frase está confusa e mal escrita, pois não se trata da incorporação do implante na prevenção, mas sim no rol de métodos ofertados. Além disso, gravidez não é doença (Brasil 2021f, 19).
O tema recebeu 191 contribuições, sendo 119 pelo formulário de experiência ou opinião e 72 pelo formulário técnico-científico[13]. Destes participantes, quatro se constituíam como pessoas jurídicas e 187 eram pessoas físicas. Dentre os 119 participantes que responderam pelo formulário Experiência ou Opinião, dois são pessoas jurídicas (associação de pacientes e sociedade médica), 14 se declararam como pacientes, 77 como profissionais de saúde e 25 como interessados no tema, tendo em vista as alternativas existentes para tal identificação. Deste grupo, 96 são mulheres e 21 homens, 83 deles brancos, 23 pardos e 6 pretos, com participação concentrada de pessoas residentes nas regiões Sul e Sudeste (98), estando o restante assim distribuído: 3 do Norte, 11 do Nordeste e 7 do Centro-Oeste. Dentre as 72 contribuições técnico-científicas, duas são pessoas jurídicas (empresa fabricante da tecnologia avaliada e sociedade médica) e as restantes pessoas físicas, em sua maioria profissionais de saúde. Destes 70 participantes, 48 são mulheres e 22 homens, em sua maioria brancos (apenas 8 deles se declararam como pardos), igualmente do Sul e Sudeste (58), com poucos participantes das outras regiões do país (2 do Norte, 6 do Nordeste, 6 do Centro-oeste).
Este perfil social dos participantes ilumina bem a parcela da sociedade que opinou a respeito. A grande maioria discordou da recomendação preliminar da Conitec, citada acima, sendo favorável à incorporação dos implantes hormonais no SUS como mais uma alternativa contraceptiva disponível às mulheres adultas em idade reprodutiva (18 a 49 anos), embora muitos tenham também destacado a importância de inclusão das adolescentes[14]. Os argumentos mobilizados enfatizavam a defesa dos direitos das mulheres, destacando o necessário acesso aos direitos reprodutivos, a necessária redução dos custos do SUS com desdobramentos de gravidezes não planejadas, além da oportunidade de planejamento da gestação. Como o relatório preliminar da Conitec desaconselhava a incorporação da tecnologia de modo universal a todas as mulheres adultas em idade reprodutiva, alegando restrições orçamentárias, em geral os participantes discordavam deste posicionamento, criticando-o e enfatizando a defesa dos direitos sexuais e reprodutivos às mulheres. Decerto, a posição inicialmente contrária da Conitec gerou, dentre os participantes, considerações a respeito do público preferencial para receber tal tecnologia, na hipótese da impossibilidade de cobertura universal. Esses comentários ressaltavam a maior necessidade destes grupos, por razões relacionadas à condição de pobreza ou por razões de saúde que inviabilizavam o uso de outros métodos contraceptivos (como o DIU de cobre, por exemplo) ou implicava no uso de medicamentos teratogênicos ou ainda pelos eventuais problemas no recém-nato que tais gravidezes trariam. Na exemplificação de tais grupos de mulheres, os quais deveriam ser os beneficiários da tecnologia avaliada, incluíam-se diversas mulheres “em situação de vulnerabilidade”, como usuárias de substâncias, mulheres em situação de rua, portadoras do HIV, adolescentes, usuárias de certos medicamentos. Para se ter uma ideia da recorrência destes grupos como beneficiários prioritários para receber tal tecnologia, nos formulários técnico-científicos os termos “adolescente”, “vulnerabilidade/vulnerável”, “HIV” apareceram 23 vezes citados nas respostas, assim como “rua” 16 vezes e “drogas” 17 vezes. Nos formulários de experiência ou opinião, “adolescente/adolescência” e “vulnerabilidade/vulnerável” surgiram 25 vezes nas respostas, “HIV” e “rua” 11 vezes e “drogas” 12 vezes citados.
Pouquíssimos participantes (7) concordaram com a recomendação preliminar de não se ofertar a tecnologia avaliada, por ser um insumo caro, por considerar que os métodos contraceptivos disponíveis no SUS são suficientes, por conhecimento de experiências anteriores no país de incorporação de métodos LARC de modo seletivo a determinados grupos sociais de mulheres, entre outros. No relatório final (Brasil 2021c, 52), paradoxalmente um longo excerto do depoimento de uma participante (a autora) foi destacado, assinalando suas razões: “priorizar o implante de etonogestrel para população com maior vulnerabilidade envolveria questões éticas. Além disso, argumenta que as pacientes precisariam de outros cuidados, e não somente do contraceptivo”. Em seguida, citam literalmente a contribuição desta participante (a autora):
O tema dos métodos contraceptivos de longa duração (LARC), hormonais, têm sido abordado no Brasil de forma controversa, sem ampla discussão da sociedade civil organizada. Em um primeiro momento, em 2015, a FEBRASGO propôs à CONITEC tal incorporação para adolescentes entre 15 e 19 anos, já ressaltando naquela ocasião um público preferencial designado como “populações especiais” ou “grupos vulneráveis” como beneficiários destas tecnologias. Novamente agora, o fabricante do insumo, o laboratório farmacêutico Schering-Plough, propõe a incorporação do implante de etonogestrel para mulheres adultas na faixa etária de 18 a 49 anos, usando as mesmas justificativas anteriores, ao destacar “grupos vulneráveis” de mulheres (mulheres em situação de rua, em uso de substâncias, com HIV, entre outras condições) que se beneficiariam do método, sem qualquer constrangimento com o viés seletivo e discriminatório que tal abordagem implica. Sabidamente serão mulheres pobres, negras, com pouca ou nenhuma escolaridade as “eleitas” pelos serviços de saúde para receberem tal tecnologia de longa duração, sem garantia alguma de que seus direitos sexuais e reprodutivos serão preservados e respeitados. Além disso, como elas têm uma mobilidade grande no espaço urbano, não se discute o acompanhamento clínico no decorrer dos três anos, após a inserção, levando em conta tais dificuldades. A ampla oferta de métodos contraceptivos a todas as mulheres, sem exceção, é uma prerrogativa do SUS. Usar da desigualdade social estrutural vigente no Brasil para pleitear grupos prioritários a tal tecnologia é uma questão ética que precisamos evitar.
Enfim, a decisão final da Conitec, publicada na portaria que tomamos como objeto de estudo, reflete, sem dúvida, a maioria das contribuições recebidas. Tal como consta no relatório final: “Por fim, conclui-se que as contribuições recebidas na consulta pública sobre o implante subdérmico de etonogestrel para prevenção da gravidez não planejada por mulheres adultas em idade reprodutiva, entre 18 e 49 anos, foram importantes e evidenciaram o desejo de que este método pudesse ser disponibilizado a um subgrupo mais vulnerável da população” (Brasil 2021c, 9)[15].
Importa-nos discutir essa ênfase na reivindicação do acesso ao implante subdérmico para “certas” mulheres, como uma defesa intransigente do direito ao planejamento reprodutivo. Por que tamanha preocupação, sensibilização e naturalização de tal “vulnerabilidade”? O que diferenciaria tal postura – a princípio ou aparentemente favorável às mulheres – do que vimos defendendo neste texto? Que dissensos internos ao tema do planejamento reprodutivo precisamos discutir como sociedade? Como uma demanda justificada pelo argumento de suposta proteção social pode ser um meio/modo para reificar exclusões sociais?
O entusiasmo que vem cercando a difusão dos métodos LARC no Brasil e no mundo tem uma longa história pregressa, relativa às pesquisas clínicas de tecnologias contraceptivas no contexto internacional. Controvérsias em torno desta tecnologia – o implante subdérmico hormonal – são documentadas por diversas pesquisadoras. Watkins (2010, 2011) nos mostra a peculiar trajetória do Norplant (primeiro modelo desta tecnologia) nos EUA, nos anos 1990, e seus usos para controle reprodutivo das populações pobres, adolescentes, usuárias de substâncias psicoativas, ou seja, como sua inserção passou a ser uma exigência para acesso das mulheres às políticas públicas de apoio à pobreza. Não chega a ser uma história muito distinta do que vimos ser atualizado hoje em dia. A retórica dos direitos, filtrada pela ênfase na escolha individual do método contraceptivo, obscurece a impossibilidade de muitas mulheres terem suas muitas necessidades de saúde atendidas. Como Watkins (2010, 105) menciona, “a retórica do controle populacional tem sido substituída pelo vocabulário da escolha individual”[16].
Analisando as controvérsias que cercaram o lançamento de tecnologias contraceptivas de longa duração, hormonais, Hardon (2006) argumenta, de modo brilhante, como as contestações feministas sobre tais métodos foram gradativamente sendo incorporadas ao subsequente desenvolvimento e renovação destes artefatos, transformando os scripts nos quais eles estavam inscritos. Ou seja, seus repertórios foram sendo atualizados e sua introdução cercada da retórica (neo)liberal associada aos direitos reprodutivos e ao empoderamento feminino. A associação recorrente entre a tecnologia (implante hormonal) e as mulheres potenciais beneficiárias da mesma parece ter agregado valor social ao dispositivo, recoberto assim por um véu humanitário. A estabilização e consequente aceitação social desta tecnologia incluiria assim sua finalidade social precípua.
A equalização do implante como uma alternativa de LARC para grupos sociais cuja reprodução tem sido discutível entre profissionais de saúde e leigos parece ter sido incorporada ao script desta tecnologia contraceptiva. Em outras palavras, a dimensão da “vulnerabilidade”, até então um atributo que qualificaria o sujeito à proteção social do Estado, torna-se biologizada, naturalizada, imiscuindo-se nas finalidades precípuas da tecnologia, consolidando assim sua justificativa social. O fato desta destinação quase “natural” da tecnologia a grupos sociais de mulheres cuja reprodução é socialmente questionada, parece contribuir para sua melhor aceitação e assimilação como tecnologia hormonal, desqualificando ou relativizando, assim, possíveis efeitos deletérios aos corpos femininos em razão do público fim e de se evitar um “mal maior” – a reprodução entre pobres e negros. A tecnologia hormonal mimetizaria assim o autocontrole que faltaria às mulheres destes grupos para regulação de sua fecundidade. Ao contrário de sujeitos razoáveis, responsáveis sexualmente, elas encarnariam a antítese do discurso da cidadania sexual (Brian et al. 2020, Brandão e Cabral 2021b).
Sem dúvida, essa é uma discussão delicada. Em artigo que analisa as políticas de planejamento familiar nos EUA, Patricia Hill Collins (1999) classifica três tipos ideais de mães que estão em jogo na avaliação moral sobre o que deva ser a “real. mother, ou uma “mãe de verdade”. Ela comenta as políticas existentes para mulheres/mães “aptas” (brancas de classes médias), para as “menos aptas” (brancas de classes trabalhadoras) e para as “inaptas” (negras das classes trabalhadoras) vivendo em situação de pobreza, as quais encarnam um modelo desviante de maternidade se comparadas às “real.mothers (mães de verdade.. Entre nós, Fernandes (2019a, 2019b, 2020) problematiza igualmente as imensas dificuldades para o exercício da maternidade entre mulheres residentes em territórios onde a violência do Estado impera, acusadas socialmente de serem mães “nervosas”, “agressivas”, “abandonantes” ou “negligentes”. A portaria do MS não estaria institucionalizando tal classificação racial, étnica, social e de subcidadania destas mulheres?
Como dissemos antes, o tempo da consulta é muito restrito para permitir um debate mais qualificado do tema entre diversos segmentos sociais que atuam neste campo, ou seja, conselhos de saúde, grupos organizados da sociedade civil, feministas, associações científicas, pesquisadores, etc. Isso sem considerar um contingente imenso de usuários do SUS sem acesso às ferramentas digitais que viabilizam tal participação popular. Na audiência pública convocada na Câmara Federal, após a portaria ser divulgada, representantes dos movimentos sociais organizados de trabalhadoras sexuais, portadoras do HIV, organizações feministas, dentre outras, puderam ser ouvidas, além dos representantes do MS. Um Projeto de Decreto Legislativo de Sustação de Atos Normativos do Poder Executivo (PDL 176/2021) foi apresentado em 26/04/2021 por um conjunto de deputadas dos partidos PCdoB, PT e PSOL, aguardando tramitação. O debate parece só estar começando entre nós.
Além do documento apresentado pela empresa fabricante do implante hormonal mencionar vários locais do Brasil com projetos para inserção deste dispositivo em adolescentes e mulheres consideradas “em situação de vulnerabilidade social”, como acima destacado, pudemos analisar de modo mais detido o caso do município de São Paulo, com protocolos específicos para estes grupos sociais (Brandão e Cabral 2021b). Na consulta pública, vários profissionais de saúde dela participantes destacaram também experiências consideradas por eles exitosas nessa direção. Os seguintes municípios foram mencionados: Gravataí, Porto Alegre, Xangri-lá (RS); Bauru, Ribeirão Preto, Taboão da Serra, São Paulo (SP); Belém (PA); Salvador (BA); Curitiba (PR); Uberlândia (MG), com referência às vezes às universidades participantes.
Uma prática que se iniciou com protagonismo de gestores estaduais ou municipais no país, em aliança com médicos e associações científicas, a exemplo do Projeto Gravius em São Paulo (Nascimento 2020), agora se expande por todo o território nacional, ampliando assim a institucionalização deste regime de exclusão social. O antropólogo João Biehl (2021, Schuch 2016) designa como “regimes de invisibilização” ou “tecnologias de invisibilização” quando consideramos a vulnerabilidade estrutural como um componente subjetivo, negando a cidadania política ao institucionalizarmos uma cidadania biomédica seletiva. Assim, tornamos a exclusão social em matéria do ordinário, regrada e contabilizada por meio de artefatos tecnocientíficos de inclusão. Na concepção de Sueli Carneiro (2005), temos os dispositivos de racialidade, que aliam a biopolítica ao racismo, tornando corpos de mulheres negras aptos a dispositivos médicos, suporte para treinamento de profissionais de saúde e para experimentos clínicos, pesquisas biomédicas. A história do Norplant entre nós confirma essa estratégia global (Watkins 2010, 2011, Pimentel et al. 2017). Mulheres racializadas expostas a “condições de vida adversas” nas ruas, em territórios periféricos ou sob violência policial, em serviços públicos precários, seriam muito mais objetos de intervenção do Estado, via ciência médica, do que sujeitos de direitos. Como Carneiro (2005, 72) salienta,
nessa biopolítica, gênero e raça articulam-se produzindo efeitos específicos, ou definindo perfis específicos para o “deixar viver e deixar morrer”. No que diz respeito ao gênero feminino, evidencia-se a ênfase em tecnologias de controle sobre a reprodução, as quais se apresentam de maneira diferenciada segundo a racialidade [...].
Os cálculos que contrastam os custos de vidas precárias, de gravidezes mal vistas pela sociedade e de recém-nascidos que potencialmente teimam em resistir, pela vida renovada de suas mães, engendram uma economia política da saúde e da doença, como Castro (2020) nos ensina, que privilegia os gastos com dispositivos LARC, ao invés de acolhimento e inclusão social às mulheres.
Quem são essas jovens mulheres a que a Portaria analisada se destina? Que responsabilidades nós temos como sociedade pelo lugar social que elas ocupam na estratificação de classe e raça que persiste absurdamente desigual no Brasil? Por que apaziguar nossas consciências estendendo a mão do Estado para regular sua fecundidade? Ao menos perguntamos o que elas desejam? Sonham em ter na vida?
Por que insisto na contramão de um certo consenso científico e social sobre a adequação dos métodos LARC a tais mulheres? Sabemos que a tecnologia em si não significa muito, mas importa fundamentalmente os modos sociais como ela é apropriada e difundida entre distintos contextos socioculturais. Nosso dever é inquirir sobre responsabilidades públicas, afirmação de direitos sociais a despeito de quem seja o/a beneficiário/a no âmbito do SUS. Não estaríamos diante de uma versão/visão racializada para habilitação aos direitos?
A naturalização destas práticas de saúde como práticas que afirmam direitos, em especial, direitos sexuais e reprodutivos precisa ser contemplada como reificadora de discriminações e estigmas. Não se trata de tecnologias demandadas por tais mulheres, elas sequer foram ouvidas ou consultadas a respeito, não há um movimento social organizado com tais reivindicações, são decisões tecnocráticas de Estado apoiadas no olhar biomédico sobre a utilidade social de tais artefatos. Não deveríamos primar por uma ética do cuidado (Biehl 2021) que valorize o outro em sua dimensão subjetiva e existencial como ser humano? Inspirada pelo autor (2021, 346), busco entender o processo de expansão dos métodos LARC entre nós como uma dada “produção de microdispositivos humanitários” tomados como “tecnologias de salvação”, os quais aprofundam as muitas desigualdades sociais e fortalecem nossos sistemas de controle e monitoramento de corpos/vidas precárias, nas palavras do autor “o triunfo encoberto da lógica neoliberal e tecnocrática” nos tempos atuais.
Não sabemos, do ponto de vista etnográfico, o que significará para tais mulheres essa “oportunidade de salvação”, mas decerto precisaremos estar atentas para observar os múltiplos desdobramentos desta experiência no SUS não a partir da voz daqueles que a implementam, mas a partir daquelas que aceitam, duvidam, indagam ou recusam tais dispositivos. Será necessário nos mantermos vigilantes em período de retrocessos políticos e desmonte do Estado democrático de direito no país.