Dossiê
Recepción: 15 Octubre 2021
Aprobación: 10 Mayo 2022
DOI: https://doi.org/10.4000/aa.9714
Resumo: O recurso ao sistema de justiça potencialmente constitui possibilidades de lidar com experiências de enfermidades crônicas. No entanto, sugiro que os espaços de negociação em torno do que é devido pelo Estado em matéria de saúde têm se mostrado, ao longo dos anos, cada vez menos fluidos e mais constrangidos pela criação de infraestruturas burocráticas (na forma de protocolos, quesitos, laudos, perícias, comitês e assessorias especializadas, por exemplo). Mais, identifico um cenário de suspeição generalizada e desconfiança mútua que aparece como elemento fundamental na circulação de discursos, práticas, estruturas institucionais e tecnicalidades voltadas à burocratização das vias judiciais e à evitação (ou desjudicialização) das demandas, cujos efeitos não são homogêneos em relação a diferentes grupos e, especialmente, determinadas demandas de saúde. Com base em achados de uma etnografia sobre a luta de pessoas que convivem com enfermidades crônicas em situações de incapacidade e deficiência em busca de acesso a saúde, no universo da região central do Rio Grande do Sul, discuto a produção de biodesigualdades em um modelo farmacêutico e cada vez mais burocratizado de judicialização da saúde no Brasil.
Palavras-chave: Judicialização da Saúde, Vulnerabilidade, Suspeição, Crise, Biodesigualdades.
Abstract: Accessing the justice system potentially constitutes possibilities for dealing with the experiences of chronic illnesses. However, I suggest that the spaces for negotiation around what is owed by the State in term of the of health have, over the years, less fluid and more constrained by the creation of bureaucratic infrastructures (in the form of protocols, questions, reports, expertise, committees and specialized advisory services, for example). Furthermore, I identify a scenario of widespread suspicion and mutual distrust that appears as a fundamental element in the circulation of discourses, practices, institutional structures and technicalities aimed at the bureaucratization of judicial channels and the de-judicialization of demands, whose effects are not homogeneous in relation to distinct groups and, especially, certain health demands. Based on findings from an ethnography on the struggle of people living with chronic illnesses in situations of incapacity and disability in search of access to health, in the universe of the central region of Rio Grande do Sul, I discuss the production of bio-inequality in a pharmaceutical model and increasingly bureaucratic judicialization of health in Brazil.
Keywords: Judicialization of Health, Vulnerability, Suspicion, Crisis, Bio-Inequalities.
1. Crônicas (e) vulneráveis
“A medicação eu consegui bem fácil, graças a Deus. A maior dificuldade tem sido a internação, que eu não consigo. É demorado”, me disse Fernanda, uma senhora de 58 anos, esposa de Baltazar, um ex-ferroviário aposentado, de 65 anos. Baltazar foi diagnosticado com demência frontotemporal, além de doença de Alzheimer e acidente vascular encefálico isquêmico, sem possibilidade de recuperação. Após o insucesso de outros dois tratamentos medicamentosos, uma medicação antipsicótica foi indicada para contenção de agressividade do paciente.
Quando entrevistei Fernanda pela primeira vez, em sua casa, no bairro periférico de Nova Santa Marta, em Santa Maria-RS, Baltazar estava internado em uma clínica geriátrica privada, recebendo cuidados de sua equipe. Mas antes disso, a esposa era sua única cuidadora: “não aceita outra pessoa junto com ele”. Pouco acima de mil reais, a renda familiar proveniente da aposentadoria de Altamiro era insuficiente para custear a internação em clínica privada – estimada em cerca de três mil reais, em média, em 2018.
Ao ser questionada sobre quando Baltazar começou a desenvolver os primeiros sintomas, Fernanda respondeu que o ex-agente ferroviário sempre demonstrou agressividade e uso frequente de álcool. Relatou as várias situações de violência: “as portas, a pia (...) têm uns buracos de faca, (...) as crianças vinham me defender, ele se revoltava (...) Fugia para o mato com meus filhos (...) voltava pé por pé, para não acordar ele”. Contou que chegou a fazer registro de ocorrência das ameaças de morte, por parte de Baltazar, contra ela, quando moravam no município de Jaguari, há alguns anos. Algum tempo depois, retomaram a convivência. Contou que os surtos de agressividade o levaram a uma sucessão de internações e tratamentos, incluindo eletrochoques.
Sentindo-se sobrecarregada com os cuidados e sem atendimento especializado a Baltazar, Fernanda recorreu a internação em instituição privada de longa permanência, acumulando uma dívida significativa, objeto de seu pedido na Defensoria Pública da União em Santa Maria-RS. As condições de enfermidade, deficiência e dependência de Baltazar, o sofrimento pelo impacto financeiro de dívidas, o cansaço e a sobrecarga de cuidados na figura de Fernanda, sua esposa e curadora, o histórico de violência familiar (especialmente de Baltazar em face da própria Fernanda), a reclamação de demora do sistema de justiça, a carência de serviços públicos e a falta de suporte familiar são elementos que compõem um quadro complexo. Quadro este que é comum a milhares de pessoas que recorrem ao sistema de justiça todos os anos em busca de demandas de saúde das mais diversas, em especial aquelas que envolvem necessidade de acompanhamento multiprofissional de longo prazo para pessoas em situação de deficiência e/ou incapacidade.
Vale salientar que, embora o tema da judicialização da saúde contemple uma série de termos correlatos sujeitos a usos polissêmicos e que englobam fenômenos muito diversos, para os fins deste trabalho, privilegiam-se as práticas e experiências dos demandantes no acesso a diferentes instâncias do Estado e do jurídico, em detrimento de concepções jurídico-normativas. Dessa maneira, do ponto de vista analítico, assumo aqui a judicialização como o (crescente) recurso ao Poder Judiciário para a solução de demandas – e, por oposição, a desjudicialização como a (também crescente) busca por evitar a esfera judicial na composição dos conflitos, em favor de outras formas de resolução (como a administrativa, por exemplo). Por outro lado, aproprio-me do termo justicialização[1] para me referir tanto a práticas de mobilização do sistema de justiça (incluindo-se aí aquelas externas ao Poder Judiciário, como as polícias, as defensorias públicas e ministérios públicos), quanto à criação de procedimentos padronizados e estruturas institucionais de justiça (e saúde).
O recurso ao sistema de justiça constitui possibilidades de lidar com experiências de enfermidades crônicas. No entanto, sugiro que os espaços de negociação em torno do que é devido pelo Estado em matéria de saúde têm se mostrado, ao longo dos anos, cada vez menos fluidos e mais constrangidos pela criação de infraestruturas burocráticas (na forma de protocolos, quesitos, laudos, perícias, comitês e assessorias especializadas, por exemplo). Mais, identifico um cenário de suspeição generalizada e desconfiança mútua que aparece como elemento fundamental na circulação de discursos, práticas, estruturas institucionais e tecnicalidades voltadas à burocratização das vias judiciais e à evitação (ou desjudicialização) das demandas, cujos efeitos não são homogêneos em relação a diferentes grupos e, especialmente, determinadas demandas de saúde. Com base em achados de uma etnografia sobre a luta de pessoas que convivem com enfermidades crônicas em situações de incapacidade e deficiência em busca de acesso a saúde, no universo da região central do Rio Grande do Sul, discuto a produção de biodesigualdades em um modelo farmacêutico e cada vez mais burocratizado de judicialização da saúde no Brasil.
2. Judicialização da saúde no Brasil em quatro momentos
Em que pesem os adventos da Constituição Federal de 1988 e das Leis Orgânicas da Saúde – Leis 8.080/90 e 8.142/90, até meados da década de 1990, os pedidos judiciais em relação a demandas de saúde eram amplamente rejeitados pelos tribunais, com base na interpretação de que o dispositivo constitucional segundo o qual “saúde é direito de todos e dever do Estado” era norma meramente programática. Por volta dos anos 2000, notadamente a partir de reivindicações de movimentos sociais de pessoas com HIV/Aids e doenças raras, os tribunais superiores passam a proferir decisões concedendo plenamente pedidos de medicamentos (Gouvêa 2003, 7), em um segundo modelo da judicialização da Saúde no Brasil reconhecido por profissionais jurídicos como “tudo para todos”[2].
Com o consequente crescimento exponencial das ações judiciais pedindo serviços de saúde, em um ambiente jurídico-político no qual análises econômicas do direito ganham especial relevância na reinterpretação do direito à saúde, o Supremo Tribunal Federal (STF) passa, em um terceiro momento materializado em uma audiência pública realizada em 2009, a eleger três focos claros no então panorama da judicialização da saúde: a dispensação de medicamentos, a alocação de recursos e as relações entre os três Poderes (Machado 2014).
No entanto, nota-se a emergência de um quarto momento da judicialização da saúde no Brasil, marcado não apenas pela progressiva construção de critérios e parâmetros de decisão que pretendem conferir racionalidade e consistência às decisões em matéria de judicialização da saúde. Mas, sobretudo, pela proliferação de estruturas burocráticas de articulação do sistema de justiça, com o claro objetivo de “evitar a judicialização da saúde” (CNJ 2012). Essa recente tendência burocratizante se apoia em entendimentos do STF, sobretudo a partir de demandas de medicamentos, nas quais o tribunal sustenta que o Sistema Único de Saúde (SUS) “filiou-se à corrente da Medicina com base em evidências” e preconiza a formulação de critérios para a “análise detida e a consideração aprofundada das especificidades do caso concreto”, sob risco de “grave lesão à ordem e à economia públicas” (Mendes 2010b, doc. elet.).
Nesse processo de burocratização, porém, algumas iniciativas do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) merecem destaque. Dentre elas: a criação dos Comitês Estaduais da Saúde e de varas especializadas em saúde (CNJ 2016); fomento à atuação dos comitês de saúde dos estados e do Distrito Federal; criação do Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania (Cejuscon); fomento à criação e adoção dos Núcleos de Apoio Técnico ao Judiciário (NatJus); criação da plataforma e-NatJus e a realização frequente de eventos sobre o tema (Lima Jr. e Schulze 2018).
A expansão da assistência farmacêutica por via judicial se consolidou, assim, há décadas, como um modelo para toda a judicialização da saúde no Brasil. Embora os problemas centrais do SUS não sejam tidos como redutíveis aos temas da assistência farmacêutica e da alta complexidade, as discussões e jurisprudências em torno da judicialização da saúde no Brasil relegaram a um segundo plano estratégias coletivas de prevenção e redução de risco de doenças (Bisol 2009). Em outras palavras, não houve centralidade de enfoque no SUS (Bandarra 2009), mas em um modelo farmacêutico e individualista da judicialização da saúde no Brasil.
Em que pese o fato de 69% dos mais de quarenta mil processos que chegam à segunda instância da justiça brasileira em matéria de saúde incluírem pedidos de medicamentos, outras demandas atingem patamares próximos ou bastante elevados – órteses e prótese, 63%; exames, 56%; procedimento, 47%; leitos, 47%; insumos ou materiais, 33%; internação, 20% (Insper 2019). A questão que se impõe é: quais os efeitos desse modelo farmacêutico sobre pessoas cujas enfermidades não são apreensíveis por uma “lógica da bala mágica”[3] (Biehl 2011) e que apresentam outras demandas em saúde, especialmente aquelas que demandam cuidados multiprofissionais a longo prazo?
3. Muito além das decisões judiciais
Entre abril de 2018 e agosto de 2019, tive a oportunidade de desenvolver pesquisa etnográfica no sentido de acompanhar e analisar experiências e práticas de mobilização de justiça por parte de pessoas que sofrem de enfermidades crônicas incapacitantes. A pesquisa indagou como essas pessoas experimentam a luta por direitos nos órgãos burocrático-estatais – no universo do interior do sul do Brasil, na região de Santa Maria-RS, cidade tida como a capital brasileira da judicialização da saúde (Pozzobon 2019). Em se tratando de demandas que correm na justiça federal, Santa Maria é a maior cidade de um conjunto de 23 municípios da região central do Rio Grande do Sul, formando a subseção judiciária de Santa Maria na justiça federal. A partir de dados agregados, pode-se dizer que a população total desse conjunto é de cerca de 420 mil pessoas. Cabe assinalar que: o Brasil reconhecido mundialmente como um expoente da judicialização da saúde (Biehl e Petryna 2016); o Rio Grande do Sul é um dos estados que lideram o ranking de processos de pedidos de medicamentos no país (CNM 2013, CNJ 2017); Santa Maria registraria os maiores índices de judicialização do estado (Vasconcelos 2018 apud CNJ 2019).
Combinando as técnicas de observação, entrevistas em profundidade e análise de documentos médicos e jurídicos[4], a pesquisa abordou itinerações (Bonet 2014)[5] em busca de cirurgias, consultas, internações e home care (assistência domiciliar em saúde) por parte de pessoas que acessaram o atendimento da Defensoria Pública da União em Santa Maria-RS (DPU-SM). Isto é, pessoas que obtiveram assistência jurídica gratuita em uma instituição externa ao Poder Judiciário e que possui atuação consultiva, extrajudicial e judicial.
A partir de abril de 2018, passei a acompanhar presencialmente o atendimento inicial do núcleo da DPU-SM, de maneira a tentar captar histórias desde os primeiros atendimentos nessa instituição. Além disso, realizei observação como ouvinte no Seminário Internações e Home Care, promovido pelo Centro de Formação do Judiciário do RS (CJUD), em Porto Alegre, em 2018. Realizei entrevistas em profundidade mediante visita domiciliar nos municípios de Santa Maria, São Pedro do Sul e Dilermando de Aguiar, bem como contatos telefônicos e por WhatsApp, de maneira a complementar tais entrevistas. Dentre os documentos analisados, destaco laudos médicos, ofícios, inquérito civil público, decisões judiciais e notícias locais sobre a judicialização da saúde. Embora inicialmente demandas de outras áreas da seguridade social e mesmo outras demandas de saúde (como as de medicamentos) tenham sido abarcadas, aprofundei-me em demandas de cirurgias, internação e home care.
Se, por um lado, a judicialização pode aparecer apenas como a ponta do iceberg da tentativa de resolução de problemas e demandas; por outro, as decisões judiciais não devem ser vistas como ponto final dos conflitos jurídicos, como evidenciado na história de Heleno e Selena. Com 20 anos, 1 m de altura e pesando em torno de 25 kg, Heleno possui microcefalia e autismo, bem como diagnósticos de epilepsia, retardo de desenvolvimento fisiológico normal e paralisia cerebral. Em tutela antecipada, foi concedido o pedido de fisioterapia domiciliar três vezes na semana, enquanto comprovada a necessidade. Em setembro de 2018, o juízo intimou a autora, para que, com urgência, trouxesse três novos orçamentos para prestação do serviço de fisioterapia domiciliar, bem como atestado médico indicando a necessidade da continuidade do tratamento e o número de sessões semanais.
É necessário observar que as prestações de contas e a renovação de orçamentos e laudos médicos são alguns dos principais mecanismos pelos quais a efetivação dos pedidos em matéria de saúde tem se tornado mais burocratizada, sobretudo em prevenção a fraudes, como as apontadas na Operação Medicaro[6]. Em processos como o enfrentado por Selena, tais documentos e comprovações foram exigidos por juízes e desembargadores como “contracautelas” fundamentadas em jurisprudência gerada a partir de demandas de medicamentos e calcada na “reserva do possível”, “com a finalidade de assegurar o juízo”. Com efeito, não raro a justiça federal tem determinado que o gestor estadual da saúde pessoalmente cumpra uma série de providências quanto a comprovações de gastos, à prestação de serviços e à devolução de eventuais diferenças de valores, “tendo em vista investigação criminal já noticiada na imprensa sob a denominação Operação Medicaro, envolvendo esquema de fraude na compra de medicamentos do Sistema Único de Saúde (SUS)” (juiz, cf. Pedrete 2019, 127).
No referido Seminário Internações e Home Care, a procuradora estadual lembrou que a responsabilização do Estado e as prestações de contas nos casos de home care são tarefas ainda mais complexas e demoradas do que o habitual em demandas de saúde: “são prestações de contas dificílimas, um calhamaço de contas. Você não tem conhecimento técnico. (...) Se o paciente vive 15 anos, são 15 anos de prestação de contas (...) Aí pede orçamento. Ninguém dá orçamento”. O desembargador mediador do evento salientou a investigação de máfias que obtêm vantagens a partir do recurso ao judiciário: “a judicialização da saúde [pode] servir como uma ponte para pessoas mal-intencionadas obterem vantagens indevidas. (...). Home care é um sinal: por que uma pessoa precisa de um tratamento de 50 mil, se no Hospital custa 20 mil?”.
Retornemos à história de Selena. Ela havia pensado em desistir da continuidade do processo, reclamando de um quadro de depressão e da dificuldade em conciliar os cuidados com o filho, o deslocamento em relação a consultas médicas e a obtenção de documentos. Ao me receber na sala de sua casa, Selena mostrou-me o filho, Heleno, deitado no sofá. Durante a visita, ele frequentemente resmungava, gritava e fazia movimentos repetitivos. Heleno não fala nem caminha. Selena me contou que se separou, em 2007, de Milton, pai de Heleno, dependente de álcool, e que não lhe presta qualquer apoio. A única fonte de renda familiar que declara se refere ao Benefício de Prestação Continuada (BPC) auferido pelo filho com deficiência, no valor de um salário-mínimo. Também afirma que as outras duas irmãs “trabalham e têm a própria vida” e não oferecem qualquer auxílio. Selena desenvolveu depressão desde 2010, a que atribui a problemas relacionados à dependência química de outro filho, falecido três meses antes da entrevista.
Questionada sobre as dificuldades envolvidas nas tarefas de cuidar, Selena destacou a dificuldade de locomoção e se sentir sozinha “na missão que Deus deu”: cuidar do filho. Disse que, em razão do peso de Heleno, é impossível carregá-lo no colo pelas ruas. Fez questão de me mostrar os mãos e pés atrofiados de Heleno. Enfatizou que o quadro de saúde dele é “muito mais grave, não é só a microcefalia”, chamando atenção para o autismo e os problemas renais. Selena mostra-se emocionalmente desgastada diante de todas as circunstâncias familiares: “é muito cansativo”, revelou. O desgaste de Selena não se revela apenas em relação aos cuidados, mas em relação às tentativas de obtenção de orçamentos de outros documentos necessários à luta pelo direito ao tratamento. Mesmo após a decisão judicial favorável ao tratamento – que pode parecer, à primeira vista, a parte mais difícil na luta pela garantia dos direitos –, Selena havia pensado em desistir do pedido judicial de garantia das três sessões semanais necessárias de fisioterapia.
Desde os primeiros encontros com as interlocutoras de pesquisa, passei a me dar conta de que o trabalho poderia ajudar a lançar luz sobre dilemas da judicialização que escapam e vão além de três características dominantes das grandes narrativas nos debates públicos sobre acesso à saúde por meio do sistema de justiça: o foco no Judiciário; o foco nos profissionais jurídicos; e o foco no acesso a medicamentos. Ou seja, minha pesquisa passou menos pelas “decisões solitárias” dos juízes e suas “escolhas trágicas” entre conceder medicamentos (por vezes, caríssimos) a pessoas em risco de morte ou privilegiar análises sistêmicas e econômicas do direito que alegam a “reserva do possível” em um contexto de escassez de recursos. E mais, pelos dilemas e dificuldades das próprias pessoas demandantes, que muitas vezes sofrem de enfermidades crônicas incapacitantes com sintomas pouco visíveis e precisam percorrer diversos serviços de saúde e justiça antes e depois das decisões judiciais para efetivarem o direito à saúde que buscam. Não raro, não está em jogo a expectativa de uma “bala mágica”, na forma da cura pela entrega de um medicamento ou outra tecnologia, mas cuidados multiprofissionais de longo prazo e de diferentes níveis de complexidade, como em casos de pedidos de cirurgias, home care e internação especializada.
Tanto quanto a trajetória de Fernanda, a história de Selena chama atenção para o fato de que “a vulnerabilidade não é somente uma questão de subjetividade, ela traduz também uma realidade objetiva que é por sua vez material, jurídica e social” (Fassin 2018, 54, tradução minha). Ao invés de um aspecto universal e inevitável da condição humana a partir de uma visão ontológica, a vulnerabilidade pode ser vista criticamente como uma categoria política relacionada a formas de poder e reconhecimento na esfera pública, à medida que é uma condição não apenas limitante, mas criadora de possibilidades (Petherbridge 2017). Desde a obtenção do diagnóstico de familiares enfermos até a viabilização do cumprimento de decisões judiciais, o reconhecimento público da vulnerabilidade está no cerne das trajetórias de pessoas como Fernanda e Selena.
Ao contrário de uma condição de precariedade (erradicável e ligada estritamente a carências, fraquezas ou exposição a danos), a experiência da vulnerabilidade implica “formas de relacionalidade, práticas ou instituições sociais nas quais ela não está em condições de evitar abusos de vulnerabilidade ou que minam o que ela considera ser importante para o seu bem-estar” (ibid., 166-7). Sugiro aqui que as duas histórias evocam condições de excepcional vulnerabilidade e (inter)dependência: com efeito, pessoas que demandam direitos ligados à saúde, como atenção domiciliar ou internações especializadas, muitas vezes o fazem com base na reivindicação, pela via do sistema de justiça, do reconhecimento de uma condição de peculiar dependência de cuidados profissionais em saúde.
4. “Evitar a judicialização” entre crises e suspeições
Especialmente em contextos como o do surto de Zika (Diniz 2016) ou a pandemia de Covid-19 (Biehl 2021), as conexões entre vulnerabilidades estruturais e a produção de desigualdades tornam-se especialmente evidentes. No entanto, cabe destacar, no Brasil contemporâneo, um contexto político mais amplo no qual narrativas de crise do SUS são dominantes e propulsoras de modos de governo (Freire 2019), e no qual se observa uma suspeição generalizada em relação a corpos e documentos de demandantes de direitos sociais em face da previdência e da assistência social (Matos 2018), mas também em relação ao terceiro pilar da seguridade social: o sistema de saúde. Faz-se necessário perceber, assim, as maneiras pelas quais a chamada “judicialização da saúde” é condicionada por um cenário de suspeitas, fraudes e desconfianças mútuas – um “ethos de suspeição”, para usar a expressão de Fassin e D’Halluin (2005), bem como os efeitos dessa articulação.
No universo da pesquisa aqui enfocada, as discussões em torno da capacidade ou incapacidade de o Estado prover a atenção à saúde num contexto referido como de “crise da saúde pública” (Antonello e Fontana 2015) se entrelaçam a controvérsias e conflitos em torno da justiça e da saúde que envolvem outras instituições além do Poder Judiciário. Evidências locais disso são a chamada Operação Medicaro – suscitada por denúncia da Procuradoria Geral do Estado (PGE) e alvo de investigações do Ministério Público Federal (MPF) e da Polícia Federal (PF), e o Inquérito Civil Público destinado à “verificação e acompanhamento sobre a longa espera na fila para a realização de cirurgias eletivas na especialidade de traumatologia/ortopedia no HUSM [Hospital Universitário de Santa Maria]” (MPF 2013) instaurado pela Procuradoria da República, que integra o MPF.
A Operação Medicaro foi instaurada por denúncia da Procuradoria Geral do Estado (PGE) e reuniu investigações do Ministério Público Federal (MPF) e da Polícia Federal (PF) sobre um esquema de superfaturamento da compra de medicamentos envolvendo servidores da Quarta Coordenadoria Regional de Saúde (4ªCRS), farmácias e advogados particulares. Afora o processo criminal em si, foram muitos os impactos da operação: novos inventários de medicamentos, processos e documentos foram realizados; processo administrativo disciplinar foi iniciado; diretrizes de segurança e controle foram reformuladas; e foi extinto o setor de atenção a processos judiciais da 4ªCRS. “A intenção é quebrar a cultura da judicialização” explicou o secretário da instituição (Zero Hora 2015).
Em síntese, os procedimentos se tornaram mais rigorosos (e demorados) por parte do Estado, tanto na esfera administrativa quanto na judicial (Antonello 2015, doc. elet.), seja para dispensação de medicamentos ou realização de qualquer serviço de saúde, como consultas e cirurgias. Pedidos de perícias judiciais, de atualizações de orçamentos (como na história de Selena) e de informações dos serviços de saúde – para que, em se tratando de cirurgia a ser financiada com recursos públicos, esgotar qualquer possibilidade de que o procedimento seja feito pelo SUS – passaram a ser frequentemente utilizadas em despachos e decisões judiciais da Justiça Federal em Santa Maria.
Em minha tese (Pedrete 2019), pude acompanhar algumas histórias de demandas de cirurgias, especialmente relacionadas à dificuldade em obtenção de consultas especializadas pré-operatórias, orçamentos e a falta de previsão de andamento nas filas de espera por cirurgias. Destaco muito brevemente duas: o montador e soldador de 50 anos, Hubert, já aguardava há 4 anos pela realização de cirurgia de artrodese, após encaminhamento e algumas recusas de hospitais e médicos em fornecer orçamentos. “Eu tô trabalhando à base de remédios”, me contou ele, acrescentando que sente muita dor nos pés. Outra demandante, Aida – uma senhora aposentada, de 82 anos, portadora de gonartrose – necessitava de uma cirurgia de artroplastia total de joelho esquerdo. Ajuizada a ação pela DPU, a juíza federal do processo ordenou ao HUSM a coleta de dados estatísticos sobre a então situação de pacientes que aguardam por procedimento do Setor de Ortopedia e Traumatologia. Com base nas respostas do hospital, a juíza concluiu que a fila de espera não estava andando e aceitou o pedido.
Outro catalisador de documentos, histórias – dentre elas, a de Aida – e narrativas sobre a crise na saúde em Santa Maria-RS foi o Inquérito Civil Público destinado à verificação e acompanhamento sobre a longa espera na fila para realização de cirurgias eletivas na especialidade de traumatologia/ortopedia no HUSM (MPF 2013) instaurado pela Procuradoria da República, que integra o Ministério Público Federal (MPF). O inquérito foi criado após a Justiça Federal em Santa Maria expressar, em ofício, sua preocupação com a situação crítica da fila de espera por procedimentos cirúrgicos traumato-ortopédicos para pacientes do HUSM, cujo reflexo seria uma excessiva judicialização de demandas em busca de tais procedimentos.
O inquérito reúne uma série de ofícios e atas de reuniões realizadas entre agentes públicos e fornece diferentes visões, porém alguns dados parecem ali consensuais: a dificuldade na efetivação do cumprimento de decisões judiciais (por motivos tais como a pouca agilidade do Estado do RS e da União Federal em buscar alternativas para a realização das cirurgias) e a desorganização administrativa do órgão regulador (4ªCRS) frente ao aumento das demandas de saúde e às fraudes verificadas no âmbito da Operação Medicaro. Por outro lado, o dissenso em torno da responsabilidade pela regulação das filas de espera por cirurgias eletivas – atribuída ora à 4ªCRS, ora ao HUSM – evidencia um jogo de delegação ou dispersão de responsabilidades (Hull 2012, Lowenkron e Ferreira 2014).
Vale dizer que as diversas operações investigativas conduzidas por instituições externas ao Poder Judiciário – com destaque para a chamada Operação Medicaro – se articulam a um ethos de suspeição, que paira sobre a judicialização da saúde. Contudo, chamo atenção para o fato de que, ao lado das desconfianças mútuas entre as instituições – tal qual observado no referido inquérito – a suspeição tem como alvo não apenas os demandantes, seus corpos e suas experiências, mas a própria judicialização da saúde, que passa a ser vista mais e mais como um problema público e como uma prática a ser evitada.
Assim, a suspeição aparece como mais um elemento que impulsiona discursos, práticas, estruturas institucionais e tecnicalidades voltadas à burocratização das vias judiciais e à desjudicialização das demandas. Dessa forma, a suspeição ajuda a constituir a judicialização da saúde como ponto nodal de uma economia moral em torno da questão social acerca de como, a quem e o que efetivamente garantir serviços e materiais em termos de direito à saúde. Em apropriação do uso que Didier Fassin faz do conceito de economia moral – conjunto formado pela produção, circulação, apropriação e contestação de valores, afetos e regimes de verdade historicamente constituídos em torno de uma questão social e em relação a maneiras como a vida é considerada e tratada (Fassin 2018) –, creio ser possível afirmar que se verifica no Brasil a formação de uma economia moral da (des)judicialização da saúde que sistematicamente produz desigualdades. Mas que desigualdades são essas?
5. Múltiplas e desiguais judicializações da saúde
Quando sua mãe, Darlene, encaminhou o pedido de home care à DPU em Santa Maria, Laura, uma menina de apenas 10 meses estava em internação hospitalar para uso de ventilação mecânica e nutrição enteral percutânea. O laudo da médica assistente fez constar que a criança necessitava de home care com ventilador mecânico, cuidados de enfermagem e de fisioterapia diários. No entanto, por via de advogada particular, o pedido principal efetuado em nome da bebê, com diagnóstico de atrofia muscular espinhal tipo I, foi pelo fornecimento de seis ampolas do medicamento Spinraza. Embora tenha reconhecido que ainda não há evidência científica de benefício do tratamento para casos semelhantes em suas especificidades, a decisão liminar se apoiou na extrema urgência do caso e direitos fundamentais particularizados da criança para, 39 dias depois do ajuizamento, ordenar o depósito de R$ 2.187.395,88 em conta destinada ao custeio de um ano de tratamento.
A concessão judicial de medicamentos de custo elevado (e de grandes margens de lucro para a indústria farmacêutica) traz à tona a discussão da relação entre judicialização e isonomia. A percepção de que a judicialização da saúde no Brasil reproduz a desigualdade social e desvirtua o princípio de equidade no SUS é partilhada na mídia, nos estudos em saúde pública, e nos tribunais. Mesmo em votos do STF, é comum encontrar a visão segundo a qual a transferência de recursos do SUS para o cumprimento de decisões judiciais “prejudica sobretudo os mais pobres, que constituem a clientela preferencial do sistema” (STF 2016). Nas palavras de um ex-ministro da saúde, “fazem tirar recursos da população mais pobre para beneficiar os que têm mais recursos” (Colucci 2014).
Formou-se na literatura sobre judicialização de saúde no Brasil um debate altamente polarizado sobre esse assunto (Garcia 2018). Uma série de autores (Silva e Terrazas 2011, Wang 2013, Ferraz 2009, Chieffi e Barata 2009, Vieira 2008) tende a corroborar o diagnóstico de que o Brasil vivencia uma explosão de litigância na qual os tribunais agravam as desigualdades no acesso à saúde. Nessa visão, o modelo brasileiro de judicialização da saúde tem sido caracterizado pela predominância de “pedidos individuais demandando tratamentos médicos curativos (mais frequentemente medicamentos) e por uma taxa de sucesso extremamente alta para o demandante”, atribuída a uma interpretação jurídica dominante de que o direito à saúde é um direito individual à satisfação das necessidades em saúde mediante os mais avançados tratamentos disponíveis, a despeito dos custos (Ferraz 2009).
Por outro lado, outros pesquisadores salientam as potencialidades do modelo brasileiro de judicialização da saúde na redução da desigualdade de acesso à saúde. Alguns autores afirmam que a judicialização promove a equidade em saúde ao corrigir omissões e falhas da política em saúde, como ao permitir que pessoas pobres e idosos obtenham tratamento diante das frequentes falhas no fornecimento de tratamentos previstos nas listas do SUS (Biehl et al. 2016). Outro argumento é o de que a criação de novas bases institucionais de incorporação de tecnologias em saúde (incluindo-se aí novos medicamentos ao SUS), de uso da expertise de profissionais de saúde e de colaboração entre instituições contribuem para um sistema de saúde mais eficiente e justo (Borges 2018). Autores sustentam que a judicialização é um fenômeno complexo e heterogêneo, que deve ser visto como parte integrante das democracias – afinal, “não há resposta simples para o que a judicialização é ou faz; e casos suportando ambas as visões podem ser encontrados” (Biehl et al. 2018, 3, tradução minha).
Além de peculiaridades das demandas de home care e internação, os dados levantados pela DPU em Santa Maria-RS demonstram importantes discrepâncias entre demandas de cirurgias e medicamentos, bem como algumas variações quanto às características dos demandantes (Koech et al. 2019, Pedrete 2019). Ainda que haja diferenças entre o perfil etário (com média de idade 10 anos superior, em se tratando de demandantes de cirurgias) e um perfil de renda mais empobrecido (81,7% dos demandantes de cirurgias possuíam renda familiar inferior a três salários-mínimos; contra 68,4%, em se tratando de medicamentos), as maiores discrepâncias na comparação entre as demandas de medicamentos e cirurgias referem-se ao próprio fluxo extrajudicial e judicial das demandas.
O tempo médio de entrega da documentação completa nas demandas de cirurgia foi cinco vezes maior do que nos atendimentos referentes a medicamentos. A distância temporal entre o atendimento inicial e o ajuizamento das ações de cirurgia foi cerca de três vezes maior do que o observado nas demandas de medicamentos. Na fase judicial, o descompasso segue proporção semelhante: os demandantes de cirurgia aguardam 135,1 dias, em média, até a primeira decisão (seja ela em antecipação de tutela ou sentença); contra 47 dias, em ações de medicamentos. Os dados também revelam uma chance de sucesso (total ou parcial) bastante inferior nas demandas de cirurgia (34,7%), do que naquelas de medicamentos (80,1%). Assim, além de heterogênea, múltipla e dinâmica, a judicialização da saúde é também desigual em seu fluxo e resultados, de acordo com as demandas apresentadas.
6. Considerações finais
Histórias como a de Fernanda, Selena, Aida, Hubert e Darlene evocam a reflexão sobre como o acesso à saúde é ou não viabilizado pelo Estado. Outras vezes “mais fácil”, cada vez mais frequentemente – a cada nova “contracautela” criada para “assegurar o Juízo”, por exemplo – observa-se um acesso experimentado como “muito cansativo” e “demorado”. Mais, evidenciam que as lutas jurídicas para efetivação de direitos relacionados à saúde não se iniciam e não se esgotam no Poder Judiciário, ainda que utilizando o sistema de justiça. E que as necessidades e demandas das pessoas com enfermidades crônicas frequentemente requerem acompanhamento (médico e jurídico, muitas vezes) de longo prazo e diferentes níveis de complexidade na atenção à saúde. Como consequência, dificuldades e entraves significativos emergem em um contexto de justicialização da saúde no qual convivem, de um lado, a intensificação e diversificação da judicialização da saúde por parte dos cidadãos; e de outro, a burocratização e a desjudicialização da saúde, promovidas por práticas, dispositivos e instituições de governo orientadas por narrativas de crise e suspeição.
A seu modo, a presente pesquisa corrobora o entendimento de que que “se há um problema distributivo relevante no debate sobre judicialização, ele não parece estar na origem de classe dos usuários que recorrem ao Judiciário” (Medeiros et al. 2013, 1096). De fato, longe se significar um privilégio exclusivo a elites socioeconômicas, o sistema de justiça tem sido acessado por demandantes pobres, idosos, analfabetos, habitantes de municípios rurais do interior etc.; o que evidentemente não implica ignorar que também as camadas médias, a indústria farmacêutica e diversas associações e entes privados e públicos mobilizem ativamente a justiça brasileira para demandas de saúde.
Da mesma forma, reforça-se a afirmação de que “o que aparece superficialmente como vulnerabilidade individual e demanda por cuidado reflete uma condição coletiva” (Biehl et al. 2018, 4, tradução minha). Porém, mais do que apenas a precariedade estrutural do sistema de saúde, evidencia-se uma clara contenção no acesso a direitos da seguridade social por meio da crescente burocratização da judicialização experimentada nos últimos anos, na qual as narrativas de crise e suspeição aparecem como elementos fundamentais às práticas estatais. Desse modo, na última década, protocolos, formulários, comitês, núcleos e seminários especializados – dentre outros novos arranjos institucionais – parecem ter complexificado o quadro da judicialização da saúde no Brasil, antes caracterizado por negociações limitadas “caso a caso” e “de baixo para cima”, em uma política improvisada, fluida e assistemática (Biehl 2013), embora ainda relativamente aberto e indeterminado em seus resultados.
Por outro lado, a justicialização da saúde aparece atravessada pela produção de desigualdades que, ainda que afetem indireta e heterogeneamente determinados grupos sociais em razão de condições socioeconômicos, é diretamente condicionada pelo tipo de demandas que apresentam. Ao menos no âmbito das histórias a que pude acompanhar, que de maneira alguma esgotam e representam a totalidade de experiências possíveis dessa temática, não tenho elementos para afirmar que certos grupos sociais são diretamente discriminados, abandonados ou deixados à morte pelo Estado por via da judicialização da saúde, de maneira totalizante. Por um lado, mesmo idosos, pessoas com deficiência e/ou em condição de extrema pobreza a que pude acompanhar e analisar seus processos tiveram grandes chances de êxito nas demandas de medicamentos, enquanto não tiveram a mesma sorte em outros tipos de demandas de saúde. A diferença entre os índices de celeridade e sucesso na judicialização da saúde ganham vivacidade na fala de Fernanda, que afirma ter sido fácil conseguir a medicação para seu marido; e que a maior dificuldade era garantir a internação em instituição de longa permanência.
Ao mesmo tempo, especialmente em demandas de maior complexidade, de longo prazo e de acompanhamento multiprofissional, afora os menores índices de pleno sucesso nos resultados das decisões judiciais (mesmo em se tratando de menores custos de tratamento), os obstáculos do cansaço, da sobrecarga, da demora e das dificuldades na obtenção de consultas, orçamentos e documentos em geral pesam significativamente nas trajetórias de tais pessoas. Ou seja, não importa apenas quem são os demandantes e o valor de suas demandas, mas o que eles demandam e como se dão as itinerações em busca de saúde e justiça. No contexto contemporâneo da judicialização da saúde no Brasil, uma demanda por (ou passível de ser tratada com) uma “bala mágica” (Biehl 2011) parece valer mais. Enquanto isso, demandas de cuidados em saúde que envolvam diferentes níveis de atenção, recursos infraestruturais e que demandem acompanhamento multiprofissional a longo prazo – formas de assistência em saúde que escapem às lógicas do modelo farmacêutica – permanecem pouco visíveis e pouco ouvidas.
As desigualdades – ou biodesigualdades, para usar a expressão de Fassin (2018) – provocadas pela justicialização da saúde não parecem, portanto, incidir sobre a garantia da vida em si, nem mesmo apenas sobre as vidas de pessoas conforme seus estratos sociais, mas sobre uma hierarquia de tipos de demandas sobre a vida. De certa forma, pode-se dizer que a judicialização da saúde opera como uma política da vida (Fassin 2006) baseada na biolegitimidade das demandas de tecnologias e serviços de saúde em um contexto de substituição de direitos sociais e econômicos, pelo direito civil e político à vida (Fassin 2010). De fato, no presente “processo de transformação do direito à saúde em direito à vida” (Flores 2016, 205), mais do que o direito civil à vida, são os direitos sociais (como saúde, previdência e assistência social, além da própria assistência jurídica gratuita) que estão em risco na articulação entre crise, suspeição e judicialização.
A proliferação de regulações jurídico-normativas, de requisições de laudos periciais e, ainda, de estatísticas, cifras e recomendações de medicina baseada em evidências no âmbito da judicialização da saúde evocam a necessidade e a atualidade das reflexões sobre o poder sobre a vida, seja no sentido de captar as correlações biopolíticas entre “mecanismos jurídico-legais, mecanismos disciplinares, e mecanismos de segurança” (Foucault 2008, 8) ou os significados, afetos, valores e práticas das políticas da vida que decidem “que tipo de vida pode ou não pode ser vivida” (Fassin 2006, 46, tradução minha). Tendo em vista que, em larga medida, a judicialização da saúde no Brasil responde simultaneamente a demandas sociais, interesses de mercado e novos arranjos burocráticos, mais do que nunca, o que está em jogo para “o biopoder não é reprimir pessoas, mas tornar populações produtivas. A vida e os seres vivos estão no coração de lutas políticas e do desenvolvimento econômico”, como notou Yang (2018, 1, tradução minha).
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Notas