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Por que ler (esses) “clássicos”?

Carla Costa Teixeira
Universidade de Brasília, Brasil
Raissa Romano Cunha
Universidade de Brasília, Brasil

Por que ler (esses) “clássicos”?

Anuário Antropológico, vol. 48, núm. 3, pp. 10-36, 2023

Universidade de Brasília

Recepción: 26 Septiembre 2023

Aprobación: 08 Octubre 2023

Resumo: Este artigo objetiva discutir a formação obrigatória ofertada nos Programas de Pós-graduação de Antropologia (PPGA) via o mapeamento documental dos “clássicos” indicados nas disciplinas obrigatórias teóricas do mestrado. O escopo da pesquisa reuniu o levantamento de dois mil e oitenta e dois títulos indicados em Clássicos I e II na UnB ao longo dos anos de 1972-2019, e novecentos títulos que compõem as ementas de disciplinas correlatas em vinte PPGA no Brasil. Ao analisar esse conjunto de dados visamos contribuir para o debate em torno da formação dos/as antropólogos/as brasileiros/as por meio de uma atenção especial aos documentos, nos quais a noção de clássico assume materialidade ao longo das décadas a partir de obras e autores. Em que pesem as crescentes disputas – em nosso país e alhures – em torno de quais autores e obras devem ou não constar na formação obrigatória, o processo de mapeamento documental evidenciou regularidades institucionalizadas nas inclusões e exclusões de autores e obras nos diversos PPGA em nosso país. Desta perspectiva, buscamos, por um lado, avançar na compreensão do contexto em que tal debate tem se dado mais recentemente; por outro, refletir sobre o uso das metáforas de “linhagens”, “ancestrais” e “pais fundadores” para pensar laços intelectuais e teóricos considerados centrais ao campo disciplinar e à formação antropológica dos neófitos. Por fim, esboçamos algumas possibilidades interpretativas considerando a relevância da experiência de ensino da antropologia.

Palavras-chave: Autores clássicos, Ensino de antropologia, Análise documental, Programas de Pós-graduação em Antropologia Social, Brasil.

Abstract: Abstract: This article aims to discuss the education offered in Postgraduate Anthropology Programs (PPGA) via the documentary mapping of the “classics” indicated in the theoretical mandatory subjects of the master's degree. The scope of the research brought together the survey of two thousand and eighty-two titles indicated in Classics I and II at UnB over the years 1972-2019, and nine hundred titles that make up the syllabi of related subjects in twenty PPGA in Brazil. By analyzing this set of data, we aim to contribute to the debate surrounding the education of Brazilian anthropologists through special attention to documents, in which the notion of classic assumes materiality over the decades based on works and authors. Despite the growing disputes – in our country and elsewhere – around which authors and works should or should not be included in mandatory subjects, the document mapping process highlighted institutionalized regularities in the inclusions and exclusions of authors and works in the various PPGA in our country. From this perspective, we seek, on the one hand, to advance the understanding of the context in which this debate has taken place more recently; on the other, reflect on the use of the metaphors of “lineages”, “ancestors” and “founding fathers” to think about intellectual and theoretical ties considered central to the disciplinary field and the anthropological training of neophytes. Finally, we outline some interpretative possibilities considering the relevance of the anthropology teaching experience.

Keywords: Classics authors, Teaching of anthropology, Document analysis, Graduating programs in Anthropology, Brazil.

Breve apresentação

A construção deste texto é fruto de um longo processo que merece ser explicitado. As reflexões que lhe deram origem foram inicialmente propiciadas pelas preocupações político-teóricas do Grupo de Trabalho Latino-Americano da Rede Mundial de Antropologias, que buscava analisar os mecanismos por meio dos quais a antropologia euro-americana ganhou proeminência e contribuir para a construção de uma comunidade antropológica transnacional mais igualitária e plural. O projeto “A Distributed and Collective Ethnography of Academic Training in Latin America Anthropology” (Restrepo e Lins Ribeiro s/d) focalizou a formação dos antropólogos em diferentes países da América Latina. No caso do Brasil, a escolha feita por sua coordenadora local foi mapear obras e autores considerados “clássicos” em três dos mais antigos Programas de Pós-Graduação em Antropologia (PPGAS): Universidade de Brasília, Universidade de São Paulo e Universidade Federal do Rio de Janeiro. Contudo, após seus resultados parciais serem discutidos no Fórum “O ensino e a formação em antropologia no Brasil”, no 31º Encontro Anual da Anpocs (2007), não se logrou produzir reflexões comparativas entre os três programas.

Desde então, tendo ciência de sua incompletude, a reflexão preliminar com os dados do levantamento documental feito no PPGAS/UnB teve circulação restrita. No entanto, o crescente interesse que esse texto tem suscitado fez com que buscássemos meios de retomá-lo. Tal oportunidade deu-se, finalmente, após a segunda pesquisa sobre o campo da antropologia no Brasil realizado pela Associação Brasileira de Antropologia (ABA, 2018).

Assim, este artigo visa contribuir para a compreensão da formação dos/as antropólogos/as brasileiros/as – temática tão cara a nossa comunidade e sobre a qual tantos colegas já se debruçaram[1]. Longe de termos a pretensão de consolidar respostas, buscaremos deslindar a complexidade da indagação “Por que ler (esses) clássicos?” por aproximações cuidadosas no detalhamento de dimensões até então exploradas quase que exclusivamente com perspectiva memorialista. Não almejamos, sequer temos condições de, responder o "Por que?" do nosso título. Em vez de mera propaganda enganosa, a escolha do título vale-se de elementos de intertextualidade ao promover uma alusão incitadora ao livro de Ítalo Calvino, Por que ler os clássicos (1981), visando mapear quais são os clássicos na antropologia brasileira. Na prática, ao tomar os documentos como foco de análise, não intentamos responder a “Por quês” e sim ao “Quem são?” – Quais autores e obras são autorizados e desautorizados do papel de clássicos na construção da formação antropológica brasileira.

Ao adicionar o “esses” ao título de Ítalo Calvino, estamos evocando um acalorado debate sobre a escolha das obras e autores que compõem a formação básica obrigatória na pós-graduação, uma discussão que tensiona os “pais fundadores”, as “linhagens” e a maneira de reflexionar a história da disciplina e o fazer antropológico. Tal disputa ultrapassa e perpassa as escolhas pessoais dos/as professores/as responsáveis pela disciplina. A seleção e construção de um programa de disciplina teórica obrigatória, ainda que marcada pelas preferências pessoais do/a docente, está atravessada pela dimensão institucional do ensino de antropologia na pós-graduação (Sigaud 2013), e pela interlocução (frequentemente conflituosa) com os estudantes em seus questionamentos sobre a história teórica da disciplina que está sendo contada. Compreendemos os documentos aqui analisados como terreno conflituoso, expressão de um campo de poder em disputa sobre qual conhecimento deve ser alçado à condição de fundamental na formação antropológica.

Delimitada a nossa ambição, o recorte etnográfico também merece ser explicitado: o foco é o mestrado e o acervo documental privilegiado são as disciplinas teóricas obrigatórias nos Programas de Pós-Graduação em Antropologia e em Antropologia Social (PPGA/S). A pesquisa aqui empreendida trabalhou com dois mil e oitenta e dois títulos indicados em Clássicos I e II na UnB ao longo dos anos de 1972-2019, e novecentos títulos que compõem as ementas de disciplinas correlatas em vinte PPGA/S, no levantamento realizado pela ABA. Respeitando o processo de construção da pesquisa, começaremos com o PPGAS-UnB e, a seguir, trabalharemos com o conjunto dos programas de pós-graduação, a partir das bibliografias das ementas das disciplinas coletadas na pesquisa feita pela ABA. Ao final retomaremos a concepção de crítica e reflexividade na representação da disciplina e da reprodução do conhecimento antropológico enquanto um processo de construção do consenso na dissenção (Bourdieu 2007, 27), “um campo de conflitos em que, se há sobreviventes, ninguém sai ileso” (Fonseca 2006, 152).

Parte I: Ajustando o foco – PPGAS/UnB

O mestrado no PPGAS/UnB, criado em 1972, estrutura-se e é apresentado, institucional e informalmente, como a etapa de formação teórica na disciplina em relação ao doutorado. É neste momento que se investiria para que o corpo discente adquira uma perspectiva da antropologia ao mesmo tempo ampla e específica a partir da combinação de disciplinas obrigatórias e optativas. Esta parece ser a orientação compartilhada pelo conjunto dos PPG em Antropologia no Brasil, tendência que vem sendo acentuada com a pressão das agências de fomento governamentais (CAPES e CNPq) pela diminuição do tempo necessário à titulação (dois anos para o mestrado e quatro para o doutorado)[2].

Também amplamente compartilhada é a composição do núcleo obrigatório das disciplinas no qual predomina uma mistura de história e teoria antropológica, frequentemente complementada com um curso de metodologia de pesquisa. Tal consenso (ou senso comum, nos termos de Sigaud 2013) nos introduz na trilha da qualificação do que Schwarcz chamou de a transmissão de “uma visão mais abrangente da área (a partir das matérias obrigatórias)” (Schwarcz 2006, 234) na formação da/o antropóloga/o na pós-graduação brasileira. Buscamos compreender em que consiste essa abrangência, suas fronteiras e pilares constitutivos[3]. Esse percurso será realizado a partir do exame de duas das três disciplinas obrigatórias no mestrado do PPGAS/UnB: História da Antropologia: Autores Clássicos I e II, em contraponto com as disciplinas similares no conjunto dos Programas no Brasil.

A ideia inicial era analisar todas as disciplinas obrigatórias do PPGAS/UnB. A pesquisa foi feita no arquivo da Secretaria do Departamento de Antropologia, a fim de buscar os programas dessas disciplinas desde a criação do mestrado em 1972 e do doutorado em 1981. Muitos desses programas estavam digitalizados; outros só existiam nos arquivos das disciplinas, enquanto alguns se perderam definitivamente com o tempo[4].

A seleção dessas disciplinas em detrimento de “Organização Social e Parentesco”, também obrigatória no mestrado, considerou que exprimem uma conformidade de opinião maior no campo da antropologia brasileira, pois, enquanto figuram em todas as pós-graduações, somente uma minoria postula obrigatoriedade para os estudos de parentesco (Schwarcz 2006). O foco no mestrado, por sua vez, nos remete a sua centralidade na carreira formativa dentro da pós-graduação enunciada anteriormente, bem como à constatação de que na medida em que alunos/as avançam na sua trajetória as disciplinas teóricas tendem a ter um conteúdo mais variado, vinculando-se aos interesses do/a professora – como é o caso da disciplina teórica obrigatória exclusiva do doutorado (Seminário Avançado em Teoria).

Nos termos do regulamento vigente na pós-graduação em antropologia da UnB, essas disciplinas são assim definidas:

História da Antropologia: Autores Clássicos I

O desenvolvimento da teoria antropológica, através da leitura de autores clássicos, focalizando as várias tradições que a constituem como disciplina.

História da Antropologia: Autores Clássicos II

Estudo intensivo de obras que influíram na formação teórica da Antropologia, abrangendo as principais tradições que têm marcado a disciplina.

Dois comentários merecem destaque com relação a essas ementas.

1. Embora haja uma relação de continuidade entre ambas – deve-se cursá-las sequencialmente –, não há uma ordenação cronológica linear entre seus respectivos conteúdos. As ementas sugerem uma divisão de outro tipo ao distinguir “Clássicos II” como “estudo intensivo de obras...”, apontando para um aprofundamento, um adensamento da leitura “abrangendo as principais tradições”, sem qualquer referência a que devam ser selecionados autores posteriores aos lidos em “Clássicos I”;

2. A concepção de história da disciplina não guarda afinidade com a abordagem historiográfica entendida como estudo de um problema ou temática ao longo do tempo. A noção de tempo predominante parece estar livre de certo naturalismo que caracteriza a demarcação de “fases” e “períodos” redefinindo-se a partir de outras categorias: “clássicos” e “tradições” articuladas no eixo da teoria antropológica.

Não é gratuito, portanto, que a longa denominação “História da Antropologia: Autores Clássicos I” (ou II) tenha sido reduzida simplesmente a “Clássicos I” (ou II) nas interações cotidianas entre professores/as e alunos/as (e não História I ou II ou uma sigla). O foco são autores e não processos históricos ou sociológicos de construção das teorias – que ficam para leituras introdutórias ou complementares e, principalmente, na voz do/a própria professora em sala de aula[5]. A análise desses programas nos permitirá, por meio de uma aproximação relativa, compreender, mesmo que ainda incipientemente, o modo como a definição disciplinar se inscreve na prática e vem se atualizando ao longo dos anos. Quem são os “clássicos”? Autores? Obras? Permanecem? Variam? Como? São algumas das questões que orientaram esta reflexão inicial.

A análise dos programas de Clássicos I e II (entre 1996 e 2019) revela uma diversidade considerável de professores/as a frente dessas disciplinas, que se encontram em diferentes momentos da carreira profissional: professores/as recém contratados/as, adjuntos/as, titulares e emérito/as. O que isso parece revelar é, mais do que um patamar de competência comum, um entendimento do conteúdo a ser enfocado amplamente compartilhado entre os/as professores/as. A investigação dos programas confirma essa relativa uniformidade na definição da teoria antropológica considerada imprescindível na formação dos recém-chegados à área – uniformidade reputada por alguns como “inércia do currículo” (Sprandel e Barreto Fº 2018)[6].

Comecemos pela leitura das apresentações dos programas no período entre 1996 e 2019. Selecionamos algumas para transcrição textual, procurando contemplar tanto a temporalidade quanto a diversidade de professores. Embora um pouco longas, avaliamos que são importantes para trazermos reflexões que orientaram a construção dos diferentes programas dessas disciplinas.

Apresentação dos programas: Clássicos I

“Este é um curso formativo. Muito do que pensamos ser antropologia advém de como entendemos sua história e tradição, mais ainda quando estas baseiam-se em autores e suas obras. Talvez fosse mais apropriado denominar um curso como este simplesmente de leitura de clássicos pois que tão centrado em textos e problemáticas estruturantes da disciplina. Uma “história da antropologia” suporia, ao menos, o estudo dos contextos sociológicos, políticos, econômicos e ideológico-culturais, atravessados pela prática da disciplina. Por outro lado, uma leitura antropológica da história da disciplina deveria ser menos canônica e mais diversificada, aberta a contradições, posições e produções divergentes (incluindo, aqui, as experiências fora das chamadas antropologias centrais) (...) Contudo, diante da impossibilidade de englobar todos os aspectos incidentes, optei por um recorte, arbitrário como outros, que combina a necessidade de conhecermos, dada suas centralidades na disciplina, monografias (as catedrais antropológicas), com outras peças menores mas de grande importância por assentar, mais além das grandes visões interpretativas, noções e conceitos fundamentais” (Clássicos I, 1999).

“O objetivo do curso é introduzir os clássicos da antropologia aos estudantes, permitir uma leitura direta de monografias consideradas centrais para a formação do antropólogo e, nesse processo, fundamentar uma avaliação das questões básicas que vêm marcando a disciplina. Criações necessárias em termos sociológicos e teoricamente indispensáveis, os clássicos permitem aos praticantes a identificação de histórias teóricas, que situam determinadas obras e/ou autores e estabeleçam linhagens, não só de etnógrafos, mas de perguntas e de questionamentos que as novas gerações herdam, procuram responder e legam modificadas a seus descendentes” (Clássicos I, 2006).

“A disciplina "História da Antropologia: Clássicos I" apresenta obras consideradas "clássicas", porque indispensáveis, para apreender a história teórica da Antropologia. O objetivo do curso é a leitura e discussão dessas obras desde a segunda metade do século XIX até as transformações pelas quais passou a Antropologia na primeira metade do século XX, acompanhada da leitura de alguns de seus comentaristas, interlocutores e críticos fora dos países tidos como "centrais" para sua consolidação, em particular na América Latina” (2008).

“O principal objetivo do presente curso será ler textos selecionados de autores (assim mesmo, no masculino, com exceção de Benedict) que ao longo do século XX foram entronizados como canônicos. O teor teórico dessas obras será examinado a partir de uma reflexão sobre (i) o processo de investigação próprio a cada momento e (ii) os caminhos narrativos adotados pelos autores” (2015).

“O curso pretende fazer uma visitação aos autores e debates considerados formadores da antropologia como a concebemos hoje e representa uma escolha entre outras possíveis. A ideia de clássicos está vinculada àquilo que é capaz de permanecer ao longo de tempo, ser utilizado no presente, que pode fazer sentido hoje. E bem é verdade que as propostas metodológicas, as visões de mundo e as conclusões de muitos dos autores que discutiremos durante o semestre não nos parecerão, talvez, tão atrativas ou sedutoras como o foram em suas épocas. Mas isso não as torna sem sentido ou irrelevantes. Elas, no mínimo, ajudaram e ajudam a construir e conformar o pensamento antropológico, mesmo quando este pensamento, insatisfeito, volta-se sobre si mesmo e questiona os fundamentos daquilo que diz. Toda a crítica tem este caráter ambíguo de se construir sobre o que já passou, o que significa, num certo sentido, incorporá-lo, e, ao mesmo tempo, reivindicar a sua superação. E, como veremos ao longo do semestre, esta atitude de permanente inconformidade está no centro do movimento da própria disciplina” (2017).

Apresentação dos programas: Clássicos II

“Continuando a incursão pelos autores clássicos da antropologia, neste semestre focalizaremos algumas problemáticas que foram abordadas por vários autores de maneiras diversas, de modo a ressaltar a diversidade de interpretações que sempre caracterizou a antropologia. Serão enfatizadas diferenças de tradição intelectual, método de investigação e de conclusões e como tudo isso foi incorporado ao acervo teórico/metodológico da disciplina. Seis obras serão lidas na íntegra (não contando com as já lidas no semestre passado) e em alguns casos serão complementadas com comentários” (1999).

“O curso permitirá aos alunos o contato direto com o trabalho de autores reconhecidos na disciplina como fundadores e clássicos, com o objetivo de estimular a reflexão sobre o vínculo entre pesquisa de campo, enfoques analíticos e teoria antropológica. As leituras incluirão monografias completas e artigos selecionados” (2003).

“Há, pelo menos, dois tipos de histórias da antropologia que, com seus objetivos diferenciados, desenvolvem estratégias específicas para focalizar um autor. A primeira é o relato da disciplina no estilo propriamente historiográfico, que enfatiza a noção de desenvolvimento, racionalidade e plausibilidade. A segunda é a história teórica, uma história interna à prática da antropologia, que indica a orientação e as questões centrais da disciplina, os refinamentos pelos quais passou e, não menos, os insights que, não tendo sido devidamente apreciados na época em que foram apresentados, inspiram a renovação de perguntas tanto empíricas quanto teóricas até hoje. Este curso enfatizará esta história teórica da disciplina, uma história que não é linear, mas espiralada, por meio do contato direto dos alunos com autores reconhecidos como clássicos, com o objetivo de estimular a reflexão sobre o vínculo entre pesquisa de campo, enfoques analíticos e teoria antropológica. As leituras incluirão monografias completas e artigos clássicos” (2008).

“Através da leitura dos clássicos, o curso pretende discutir a perspectiva antropológica à luz da tradição e da história da disciplina. Procurar-se-á discutir as questões que motivaram a obra destes autores e as que ainda motivam a sua leitura, assim como o tratamento que a elas foi dado. Neste sentido, os clássicos serão tomados como autores “vivos”, que ainda têm algo a dizer às questões cultivadas pela disciplina, e com quem podemos estabelecer um diálogo fecundo para iluminar nossos problemas de pesquisa” (2013).

“Estudo intensivo de obras que influíram na formação teórica da Antropologia, abrangendo as principais tradições que têm marcado a disciplina. O programa da disciplina organiza-se em torno de eixos conceituais e questões centrais à constituição da antropologia desde a segunda metade do século XX. Com ênfase na leitura de monografias etnográficas e a partir da apreensão da arquitetura do pensamento dos autores discutidos, propõe-se analisar perspectivas basilares da antropologia, sobretudo no que se refere às maneiras de relacionar etnografia e teoria” (2015).

Apesar das diferenças de estilo e investimento na elaboração textual dos programas, sendo uns econômicos e diretos e outros mais longos e reflexivos, podem-se observar três eixos articuladores em Clássicos I: (i) a referencialidade temporal; (ii) o recorte de problemáticas articuladoras; e, principalmente, (iii) a ancoragem em autores e obras monográficas. Embora nem todas as apresentações façam menção explícita a esses eixos, a leitura da organização da bibliografia obrigatória selecionada expressa sua vigência mesmo quando implícita. Assim, verificamos que:

i) Há uma maior concentração de autores dos séculos XIX e início do XX em Clássicos I;

ii) Se a cronologia se faz presente sob a forma de ênfase, ou de enunciação de continuidade entre as disciplinas (I e II), a referência a “questões”, “problemas”, “diferenças e tensões” predomina, seja na apresentação dos objetivos do curso e/ou na nominação das unidades que o compõem, como por exemplo: “Evolução ou história”, “Tema com variações: religião e três clássicos” (Clássicos I, 2001), “Estrutura, função e a des-historicização”, “A cena africana e tradição empírica” (Clássicos I, 2008); e

iii) Observamos, ainda, a presença de programas estruturados em torno de “tradições” ou “escolas” expressas em títulos como “História antiga da Antropologia Britânica” (1996), “Antropologia Vitoriana”, “Antropologia Boasiana”, “Racionalismo Francês” (2007), “Antropologia Evolucionista”, “Antropologia Cultural Americana” (2014), etc. Essa configuração de programa apareceu em sete programas até 1996. Na década seguinte, observamos frequência similar com sete programas organizados dessa forma. Tais indicativos sugestionam que essa organização de história/teorias antropológicas permanece, embora com oscilações. Um olhar mais acurado revelou, ainda, que tais oscilações não correspondem a pertença dos/as professores/as a gerações diferentes (docentes mais antigos e mais novos adotaram tal abordagem em Clássicos I).

No que concerne aos programas de Clássicos II, é possível perceber que há maior concentração em autores de meados do século XX, com pouca presença de trabalhos de períodos posteriores. As ementas mantêm a característica presente em Clássicos I de abordar “questões”, “problemas”, “diferenças e tensões”, sendo recorrente a alusão ao curso anterior, marcando a proposta de “continuidade” - e não de contraste - entre as disciplinas.

Tanto os programas de Clássicos I (CI) quanto os de Clássicos II (CII) focam em autores e obras, estas de modo explícito anunciadas como preferencialmente monográficas (“as catedrais antropológicas”, CI 1999). Ao dedicar um olhar detido à apresentação dos programas, percebemos que tal característica é, sem dúvida, o elo de identificação maior entre eles, cabendo aqui um olhar mais acurado sobre estes “fundadores” e “clássicos”. No conjunto de dados, optamos por organizar os autores de acordo com sua presença nos distintos programas ao longo dos anos, ao invés do número de textos indicados[7]. Essa abordagem evita percepções equivocadas de predominância de determinados autores em detrimento de outros devido à relação entre obra integral e parcial.

Autores e obras: Clássicos I

A partir da análise dos dados que coletamos, encontramos linhas de concentração que indicam uma continuidade de autores e obras nos diferentes anos. No caso dos 42 programas de Clássicos I, é visível a grande importância dada, em ordem de maior presença, a Franz Boas (1858-1942) com 40 indicações, Bronislaw Malinowski (1884-1942) com 38, Émile Durkheim (1858-1917) com 35, A. R. Radcliffe-Brown (1881-1955) e Lewis H. Morgan (1818-1881) com 31 indicações cada, Edward. E. Evans-Pritchard (1902-1970) com 29, Marcel Mauss (1872-1950) com 27, James Frazer (1854-1941) com 26, Claude Lévi-Strauss (1908-2009) com 23 e Edward B. Tylor (1832-1917) com 19.

Além dos autores, algumas obras chamam atenção por sua presença contínua:

i) Os Argonautas do Pacífico Ocidental, de Bronislaw Malinowski – indicada desde 1974 sem solução de continuidade, fora substituída por outros trabalhos do autor apenas em nove anos da existência do mestrado[8];

ii) As Formas Elementares da Vida Religiosa, de Émile Durkheim – integra a bibliografia obrigatória desde 1981 de forma contínua (exceto em 1982, 1984, 2005);

iii) A Sociedade Primitiva, de Lewis H. Morgan – integra 31 programas dos 42. Contudo, a ausência está quase que exclusivamente concentrada nos últimos anos 20 anos[9]. Considerando a pluralidade de professores/as que ministraram a disciplina nesse período, pode-se inferir que, ao menos temporariamente, houve certo enfraquecimento do consenso em torno de seu nome como um cânone da disciplina; e

iv) O Ramo de Ouro, de James Frazer, constou em 26 programas de disciplina dos 42 analisados – sua ausência se concentra na década de 1980 (1982, 1984, 1985, 1986, 1987, 1988)[10].

No tocante a Franz Boas e Radcliffe-Brown, o primeiro e o quarto lugar do nosso “ranking”, chama atenção o pouco destaque dado aos seus relatos de cariz monográfico. O livro mais indicado de Boas é, em todos os anos, a coletânea Race, Language and Culture. Sua etnografia sobre os Kwakiutl aparece apenas quatro vezes[11], enquanto seu livro Anthropology and Modern Life ganhou espaço a partir dos anos 1990 (tendência intensificada nas décadas seguintes). Na primeira década dos anos 2000, o artigo “The study of geography”[12] apareceu cinco vezes, expressando a influência de George W. Stocking na qualidade de comentador[13]. No caso das obras de Radcliffe-Brown, a mais recorrente é, também, uma coletânea. Estrutura e Função na Sociedade Primitiva, presente desde os anos 1970, com menos intensidade entre 1980 e 1990, volta nos anos 2000 a ser bastante indicada em Clássicos I. Sua monografia The Andaman Islanders aparece em 1972 e 1973, desaparece e retorna no início dos anos 2000, desaparecendo novamente com retorno apenas em 2018[14].

Sobre presenças que se consolidaram apenas após o final dos anos 1990, dois autores do século XX merecem destaque em seu feito de “vir a ser” um autor de Clássicos I: Marcel Mauss e Evans-Pritchard. Mauss consta como coautor de Durkheim em Algumas Formas Primitivas de Classificação em treze programas entre 1983 e 2019, com última aparição em 2011. Já o Ensaio sobre a Dádiva aparece vinte e duas vezes claramente concentrado nos programas a partir dos anos 1990 – antes indicado apenas em 1982. Tal linha do tempo sugere a hegemonia de novos enquadramentos acerca do Ensaio Sobre a Dádiva, em especial sua “descoberta da ideia fundamental de reciprocidade”, na leitura feita por Lévi-Strauss (Sigaud 2007, 103). Assim, se inicialmente sua presença era condicionada à de Durkheim, a partir dos anos 1990 Mauss se consolida em “carreira solo” no panteão de autores de Clássicos I.

Evans-Pritchard, por sua vez, sem expressão em Clássicos I nos primórdios do programa, foi indicado consecutivamente a partir de 1991 com sua obra Os Nuer. Além disso, Bruxaria, Oráculos e Magia entre os Azande ganha força aparecendo em nove programas a partir de 1998. A linha do tempo do autor – com alternância entre ausência e presença nessa disciplina – atrela-se em parte ao fato de nos anos anteriores, especialmente nos anos 1980, ter aparecido com maior frequência em Clássicos II. O que indicaria uma “passagem” do seu lugar de cânone no recorte temporal das duas disciplinas.

Além de Evans-Pritchard, há outro autor que apresenta peculiaridade quando pensamos na relação entre as duas disciplinas formativas: Claude Lévi-Strauss. Apesar de alguns artigos sobre a pós-graduação em antropologia no Brasil marcarem a divisão entre antropologia clássica e contemporânea a partir de Lévi-Strauss (1909-2009), este aparece também nos programas de Clássicos I sobretudo como autor principal. São 23 aparições dentre os 42 programas, nos quais O Pensamento Selvagem e Totemismo Hoje estão marcadamente presentes nos anos 1980 e 1990 e a coletânea Antropologia Estrutural se localiza especialmente nos programas de 1970 e dos anos 2000. Na última década, contamos mais ausências do que presença do antropólogo francês em Clássicos I, constando apenas nos programas de 2011, 2013 e 2018. O que revelaria sua notória posição de “limiar” entre as duas disciplinas, oscilando sua presença ora em uma ora em outra.

Obras e autores contemporâneos de Lévi-Strauss constam mais residualmente nos programas de Clássicos I. Gregory Bateson (1904-1980), não considerado central no ethos consensual da disciplina, tem sua obra Naven presente nos anos 1990, com continuidade relativa nos anos 2000. Order and Rebelion, de Max Gluckman[15] (1911-1975), surge pontualmente nos anos 1980, quando também encontramos Marshall Sahlins (1930-2021) com destaque para Cultura e Razão Prática. Edmund Leach (1911-1989) aparece com seus trabalhos sobre Lévi-Strauss e como autor original com Sistemas Políticos da alta Birmânia, indicada esporadicamente desde os anos 1980 (1981 e 1983; 1991-2) e mais marcadamente nos 2000. Clifford Geertz (1926-2006) consta como leitor crítico de Lévi-Strauss e não com obras nas quais dialoga com seus dados etnográficos.

Como mencionado no programa de 2015 transcrito anteriormente – “textos selecionados de autores (assim mesmo, no masculino, com exceção de Benedict)” –, é notável a carência de antropólogas em Clássicos I. Poucas aparecem como comentadoras (10%) e menos ainda com obras “clássicas” (6%). As únicas obras escritas por mulheres com presença minimamente relevante, indicadas de forma irregular no decorrer dos anos, foram além de Padrões de Cultura de Ruth Benedict (1887-1948), Sexo e Temperamento . Coming Age in Samoa, ambas de Margaret Mead (1901-1978). No geral, pode-se considerar irrisória a presença de 83 textos escritos por mulheres quando se pensa nos 1148 de autores clássicos e seus comentadores[16], catalogados nos programas de Clássicos I: apenas 7%. Ainda acompanhando as reflexões elaboradas na apresentação dos programas, lemos que em 1999 o/a professor/a considerou que a disciplina deveria chamar-se “leitura de clássicos”, visto que uma “leitura antropológica da história da disciplina deveria ser menos canônica e mais diversificada, aberta a contradições, posições e produções divergentes (incluindo, aqui, as experiências fora das chamadas antropologias centrais)”. Dessa perspectiva, cabe observar que só encontramos um autor negro Michel-Rolph Trouillot, com sua obra Anthropology and the Savage Slot: The poetics and politics of Otherness, indicado quatro vezes. Retomaremos esse ponto mais adiante.

Por fim, cabe sintetizar o que esse conjunto de dados informa acerca do “modus operandi” da disciplina de Clássicos I. Primeiro, o olhar detido nos textos selecionados indicou uma ruptura com o imaginário recorrente de que “priorizamos a leitura de obras completas”: essas configuram somente 35% dos textos. Os outros 65% estão dispostos principalmente em “partes selecionadas” e uma pequena minoria de artigos. É importante destacar que essa porcentagem pode refletir a coexistência de tipos distintos de formular os programas bem como certo deslizamento entre a reflexividade compartilhada sobre a relevância das leituras de etnografias para a aprendizagem do conhecimento antropológico e as possibilidades práticas de implementar a leitura integral de uma obra. A grande maioria dos/as professores/as mescla obras completas de poucos autores com uma gama variada de partes selecionadas, coletâneas e comentadores. Poucos são os programas que primam por incluir majoritariamente e quase que exclusivamente obras completas, observamos, ainda, que esses não indicam um número de obras para leitura integral "acima" dos demais (em torno de 10 obras).

De toda forma, o Gráfico I, apresentado a seguir, demonstra que a predominância entre integral ou parcial na seleção de leitura tem marcas bem definidas dependendo do autor. Alguns parecem requerer a imersão em sua obra completa ou, nas palavras do programa de 1996, “merecem que lhe demos essa atenção, pois nos ensinaram a exercitar o olhar distanciado, marca registrada da Antropologia”; enquanto outros mereceriam atenção a contribuições mais pontuais acessíveis em alguns capítulos. Outra hipótese de ordem mais pragmática para a leitura integral ou parcial refere-se à obra ter sido traduzida ou não no referido ano – uma investigação relevante a ser feita e, sem dúvida, complexa se pensarmos em série histórica.

Gráfico 1: Dez autores mais indicados em Clássicos I por tipo de obra selecionada (parcial e integral) – 1972-2019

Autores e obras: Clássicos II

A disciplina Clássicos II surge na UnB em 1985. Recuperamos o total de 29 programas dos 35 ofertados desde o seu surgimento[17]. Consideravelmente mais heterogênea e descontínua quando comparada a Clássicos I, traz algumas continuidades com a disciplina que a antecede. Dentre as continuidades mais notáveis entre ambas, encontramos Claude Lévi-Strauss (1908-2009), o autor mais lido de Clássicos II, que aparece 22 vezes como autor principal entre os 29 programas analisados, com praticamente as mesmas obras dos programas de Clássicos I (em ordem de maior presença: Totemismo Hoje, O Pensamento Selvagem e Antropologia Estrutural).[18] É notório, como mencionado antes, o lugar intersticial ocupado por Lévi-Strauss no que concerne à divisão entre as duas disciplinas e perceptível a relevância conferida a suas obras. É, de fato, um caso à parte, pois a maioria dos autores que se destacam em Clássicos II – Edmund Leach, Clifford Geertz, Louis Dumont, Marshall Sahlins e Victor Turner – não são autores principais em Clássicos I.

Leach, além de estar atrás apenas de Lévi-Strauss com 19 indicações, tem a etnografia mais lida (e de forma integral) em Clássicos II: Sistema Políticos da Alta Birmânia. A presença de Geertz, por sua vez, inicia-se com pouca consistência e apenas na qualidade de comentador de Lévi-Strauss e Evans-Pritchard – similar ao observado em Clássicos I. É somente no final dos anos 1990 que a produção de Geertz passa a ser valorizada na disciplina, sendo desde então presença frequente nos programas com Interpretação das Culturas, Saber Local, Observando o Islã . Negara. Tais indicações tornam Geertz o terceiro mais lido em Clássicos II, com 15 indicações nos programas.

Dumont passa a ser significativo também a partir dos anos 1990, com Homo Hierarquicus indicado em quinze programas e Individualismo em outros cinco[19]. Turner torna-se um dos mais indicados um pouco mais tardiamente, na virada dos anos 1990 para os 2000, quando sua obra Schism and Continuity in an African Society: a study of Ndembu village life, lida desde 1990 ano-sim-ano-não, passa a ser indicada consecutivamente – seguindo-se o movimento de “alternância” e “indicação consecutiva” até o presente. Além dela, também encontramos a presença intensa de Floresta de símbolos: aspectos do ritual Ndembu[20].

Marshall Sahlins (com 14 indicações) possui uma trajetória peculiar em Clássicos II: sua presença é marcada a partir dos anos 2000 e quase exclusivamente com Ilhas de História . Historical Methapors and Mythical Realities – anteriormente apareceu apenas no programa de 1994. Considerando sua longevidade (1930-2021) e as mudanças que marcaram suas produções, percebemos que há uma linha do tempo nas obras indicadas como “clássicas”. Se nos anos 1970 e 1980, o autor apareceu em sete programas de Clássicos I com as obras Stone Age Economics, Culture and Practical Reason . Evolution and Culture; nas quatorze indicações de Clássicos II, encontramos Culture and Practical Reason apenas em 2005[21].

Observando as expectativas de maior “atualização” que a disciplina de Clássicos II carrega em relação a sua antecessora (uma vez que incluiria clássicos historicamente mais recentes), a ausência de antropólogas intriga mais do que em Clássicos I: são 74 textos de mulheres em um total de 786. Mary Douglas (1921-2007), Ruth Benedict (1887-1948), Veena Das e Marilyn Strathern (1941--) são as mais indicadas como autoras principais, somando 22 presenças nos programas[22]. Mary Douglas se destaca com nove indicações, sendo sete delas da obra Pureza e Perigo. Em seguida temos Marilyn Strathern com seis indicações muito mais “plurais”: The gender of the gift. Out of context. O Efeito Etnográfico e Property, Substance and Effect. No caso de Veena Das e Ruth Benedict, as quatro indicações que cada uma recebeu foram unânimes em selecionar Critical Events da primeira e Padrões de Cultura da segunda. Para efeito de comparação, se estabelecermos como linha de corte as quatro indicações que Veena Das e Ruth Benedict receberam, encontraremos outros quinze nomes masculinos que não foram anteriormente mencionados[23].

É sintomático que o máximo de “consenso” alcançado por antropólogas, nos 29 programas, seja as nove indicações de Mary Douglas; e mais ainda, que esse feito seja sem-par considerando as demais antropólogas que povoam Clássicos II. Apesar disso, é possível apontar uma lenta e gradual mudança em direção ao aumento da inserção de antropólogas em Clássicos II nos últimos anos da disciplina, em relação às duas primeiras décadas desde sua criação: 57% das indicadas o foram nos últimos dez anos.

Em relação à distribuição de leitura parcial e integral das obras, notamos mudanças em relação à disciplina antecessora. Há um aumento na indicação de obras completas, que contabilizam 55% das indicações dos “clássicos”. Evans-Pritchard sobressai como autor lido quase que exclusivamente de forma integral, com as mesmas obras que o consolidaram em Clássicos I nos anos seguintes. Mary Douglas, Sahlins, Victor Turner, Dumont e Leach também marcam maior presença com obras completas. Lévi-Strauss guarda distribuição semelhante a que manteve na disciplina antecessora e Geertz recebe, aqui, maior atenção as suas obras monográficas. Outra tendência não observada em Clássicos I é a maior indicação de artigos em Clássicos II, em detrimento de “partes selecionadas” de obras.

Gráfico 2 - Dez autores mais indicados em Clássicos II por tipo de obra selecionada (parcial e integral) – 1985-2019

Compete destacar, por fim, que a maior heterogeneidade observada em Clássicos II não corresponde necessariamente a uma ruptura com o ethos consensual acerca de quem são os cânones da disciplina. As continuidades são menos marcadas mas não deixam de existir, considerando que os nomes que sobressaem permanecem aqueles que representam a consolidação da antropologia a partir da produção dos países chamados centrais, hegemônicos ou do norte – incluindo comentadores e historiadores. Embora encontremos desde os anos 2000 programas que explicitam a necessidade de incluir a “leitura de alguns de seus comentaristas, interlocutores e críticos fora dos países tidos como "centrais" para sua consolidação, em particular na América Latina” (2008), na análise dos dados das duas disciplinas o peso de autores como George Stocking Jr. e, menos frequentemente, James Clifford pode ser um indicador de que a antropologia considerada legítima não é apenas produzida nos países centrais, mas também refletida a partir desses lugares.

A escassez da antropologia brasileira

Fazemos essa pausa para refletir um pouco sobre como a presença de antropólogos/as brasileiros/as nos programas das duas disciplinas nos pareceu desproporcional diante de uma produção nacional há muito considerada relevante dentre os países latino-americanos[24]. Florestan Fernandes, Roberto Cardoso de Oliveira, Júlio César Melatti, Eunice Durham e Mariza Peirano estão entre os poucos nomes que aparecem na lista de autores e obras, mas quase que exclusivamente com trabalhos sobre autores “clássicos” ou com reflexões sobre as condições de produção do conhecimento antropológico. Somente em dois programas, Clássicos I em 1999 e Clássicos II em 2005, foram dedicadas uma unidade à antropologia brasileira e propostas a leitura de obras e artigos conceituais elaborados a partir de pesquisas etnográficas originais. De Cardoso de Oliveira encontramos os livros O Índio no Mundo dos Brancos, Urbanização e Tribalismo, Os Diários e suas Margens, e o artigo “Aculturação e ‘Fricção’ Interétnica”; de Florestan Fernandes, A Função Social da Guerra na Sociedade Tupinambá; de Gilberto Freyre, Casa Grande & Senzala; de Darcy Ribeiro, Os Índios e a Civilização e A integração das populações indígenas no Brasil moderno; e de Eduardo Galvão, o artigo “Encontros de Sociedade Tribal e Nacional”.

Timidamente, outros nomes da antropologia nacional começaram a aparecer em Clássicos II nos últimos anos. Em 2016, Viveiros de Castro foi indicado duas vezes com seus artigos “O nativo e o relativo” e “Perspectival Anthropology and the Method of Controlled Equivocation”. Em 2018, Antônio Carlos de Souza Lima teve sua etnografia Um grande cerco de paz: poder tutelar, indianidade e formação do Estado no Brasil indicada para leitura completa. Em 2019, dois nomes surgiram como indicações inéditas: Paulo Freire, com “Considerações em torno do ato de estudar”, e Luís Fernando Dias Duarte, com “O Culto do Eu no Templo da Razão”. Esses casos isolados não estavam representando, como nos programas anteriores, uma “antropologia brasileira” ou do “Sul-global”: Paulo Freire serviu para incitar reflexões sobre a importância da disciplina, papel que Calvino desempenhou em outras tantas ocasiões na abertura dos programas; Luís Fernando Dias Duarte, por sua vez, integrou o panteão como parte dos “grandes temas” que tão frequentemente orientam a construção das disciplinas de clássicos na UnB.

Ante esse quadro, a indagação "por que não nos lemos?" (Araújo Aureliano, 2010) ganha novas materialidades e contornos. A pergunta de Araújo Aureliano, que surge por percepções pessoais suas e de seus colegas de pós-graduação, tem como mote a baixa circulação internacional da antropologia produzida nos países da América do Sul e América Central – em contraposição à valorização, circulação e influência da produção dos colegas americanos e europeus. Com o conjunto de dados que levantamos, é possível não apenas corroborar essa “percepção”, mas ir além na pergunta: por que não nos consideramos clássicos? Em outras palavras, por que não consideramos fundamental a “antropologia brasileira” nas disciplinas formativas obrigatórias? Se em Araújo Aureliano (2010) há uma pertinente preocupação com a circulação das “antropologias periféricas”, sendo o “nós” da indagação mais amplo do que antropólogas/os brasileiras/os, aqui evidenciamos como é possível questionar o lugar que a nossa própria antropologia ocupa em sua “circulação interna” - uma vez que não possuímos cadeira cativa nos chamados clássicos quando professores/as brasileiro/as fazem a mediação necessária em sala de aula para a formação dos/as alunos/as.

Dito isso, é oportuno lançar o olhar para um conjunto de dados que nos permita verificar se o que mapeamos no PPGAS/UnB encontra ressonância nos demais Programas do país. Os dados que se seguem foram retrabalhados com base no material levantado pela ABA e abarcam o conjunto de 20 PPGA/S e 899 obras indicadas nas ementas de suas disciplinas teóricas obrigatórias – o que corresponderia ao Clássicos I e II da UnB.

Parte II: Abrindo a lente

A pesquisa da ABA cobriu o período de 2004 a 2012, quando, então, existiam 21 PPGA/S no Brasil – aos quais se somaram posteriormente mais 3 Programas (UFG, UFAL e FUFSE). O mais relevante a destacar, entretanto, é que em 2004 existiam 9 Programas e em 2012 totalizavam 21 – uma expansão com forte impacto na região Nordeste (6 mestrados e 1 doutorado). Tal introdução é relevante para dar noção do processo recente vivido, mas especialmente para refletir sobre o que tal expansão significou com relação às leituras definidas nas ementas das disciplinas teóricas obrigatórias do mestrado.

Outra ponderação importante a fazer é que não analisaremos os programas das disciplinas efetivamente ofertadas, mas sim as ementas informadas pelos Programas. Reconhecemos que as ementas são um texto orientador, congelado em um determinado tempo que sequer podemos precisar e, portanto, constituem apenas uma pista a ser seguida. Pistas que podem ser enganadoras, pois não sabemos se a literatura ali elencada expressa mais o perfil do docente responsável por sua escrita do que o “padrão geral” adotado nas disciplinas. De qualquer forma, as ementas são a face oficial das disciplinas curriculares e constam no regulamento dos Programas; dessa perspectiva é que serão consideradas aqui. Nossa tentativa de “ranquear” os autores em sua categoria de “Clássicos” terá como referência: (i) o número de PPGA/S que indicaram o autor, e não o número de textos geral[25]; (ii) as “ênfases” que foram dadas a determinadas obras; e (iii) a relação de número de escritos indicados para a leitura integral ou parcial no que concerne aos livros[26].

Dentre a gama de disciplinas obrigatórias sistematizadas, direcionamos o olhar para as ementas que poderiam ser consideradas correlatas de “Clássicos I” e “Clássicos II” da UnB, a fim de possibilitar uma análise comparativa. No total, o conjunto de dados da ABA possuía 899 textos e 219 autores indicados nas disciplinas teóricas obrigatórias do mestrado, distribuídos em 20 programas[27]. Sobre as ementas, mais da metade dos PPGA/S apresentaram uma seleção que gira em torno de 15 - 30 textos[28]. Sabemos que a variação de 15 a 30 textos não é pequena. Apesar disso, tal variação condiz com a média de textos que consta nos programas das disciplinas de Clássicos I e II da UnB. Ou seja, o que vemos por “ementas” poderia, sem apresentar grandes problemas, passar como “programas”, no que concerne ao número de textos e autores selecionados.

Um aspecto que merece destaque, como fizemos anteriormente, é a nomeação das disciplinas. A grande maioria dos programas define as disciplinas teóricas obrigatórias do mestrado como “Teoria Antropológica” ou “Teorias Antropológicas”, seguidas dos números romanos I e II. Embora a diferença entre singular ou plural possa indicar a intenção do segundo de enfatizar, no nome, a pluralidade do campo antropológico, na prática a bibliografia das ementas não expressa diferenças significativas[29]. O termo “História” surge em apenas quatro programas (UnB, UFPA, UFSC e UFPE) e o conceito de “Clássico/a”, por sua vez, emerge em cinco deles (UnB, UFMG, UFSCAR, UFF e UFRN). Apenas a UnB atrela o conceito de Clássico ao de História e aponta a “continuidade” (como aprofundamento) entre as disciplinas, ao passo que os demais programas contrapõem aquilo que definem como “Clássico” ao “Contemporâneo”.

Vemos, com isso, uma ampla preferência por relacionar o processo formativo básico ao termo “Teoria” e associá-la a marcadores de tempo como “Clássico”, “Contemporâneo” e “História”. A nomenclatura distinta, mais uma vez, não recai em propostas programáticas diversas que justifiquem a adoção deste ou daquele termo. Partindo do que vimos na UnB, observamos que há uma ideia explícita de que compreender a História da Antropologia perpassa o conhecimento de autores e obras consideradas fundadoras/fundamentais.

Há, assim, que se questionar quais são os autores considerados fundantes no processo formativo, seja por consagrar uma “teoria”, seja por sua capacidade de “encarnar” problemáticas “atemporais”. Antes de seguir com a nossa abordagem, cabe apresentar a maneira como os dados fornecidos pela ABA apareceram na coletânea de 2018[30].

Trajano Filho (2018) destacou a dificuldade na tratativa do material enviado pela coordenação de pesquisa da ABA, caracterizado por ele como imenso, interessante . complexo. Em virtude disso, optou por tecer apenas alguns comentários acerca dos autores mais citados: i) apenas um brasileiro constava na lista dos dez mais lidos, Roberto Cardoso de Oliveira; e ii) os 10+ lidos, retirando o brasileiro, contavam com seis autores considerados por ele como “clássicos” (definição justificada a partir da ideia de um reconhecimento existente desde a década de 1950), e quatro contemporâneos. Em ordem de maior presença, elenca como autores clássicos mais lidos: Claude Lévi-Strauss, E. Evans-Pritchard, Bronislaw Malinowski, Franz Boas, A. Radcliffe-Brown e Émile Durkheim. No que tange aos contemporâneos, a lista segue com Clifford Geertz, James Clifford, Marshall Sahlins e George W. Stocking.

Trajano segue apresentando os próximos nomes mais citados até atingir a posição trigésima[31], momento em que finalmente aparecem, segundo ele, mais dois brasileiros: Mariza Peirano e Viveiros de Castro. Perante essa classificação, ele redige dois apontamentos. O primeiro consiste na falta de popularidade dos autores brasileiros nos cursos formativos; o segundo, na compreensão de que há “leitura demais” de “autores clássicos”, ou seja, “gente cuja produção original basicamente ocorreu até a década de 1960 (17 autores)”. Nossa ousadia em tentar “tratar” esse conjunto de dados tão imenso, complexo e interessante acentua as preocupações de Trajano (2018) – além de “afinar” a discussão considerando novos critérios.

Ao trabalhar apenas com as disciplinas teóricas obrigatórias correlatas a “Clássicos I” e “Clássicos II” e com as tabelas refeitas por nós – algo que julgamos imprescindível para corrigir as problemáticas indicadas na nota 29 –, notamos que, mesmo adotando o número de indicações de textos como critério, não há nenhum brasileiro na lista dos dez mais lidos. Sequer na lista dos 15+ encontramos Roberto Cardoso de Oliveira: ele aparece apenas na 17ª posição. No caso dos 30+ lidos, novamente alguns apontamentos devem ser feitos: Peirano apareceu apenas quatro vezes e não entrou na lista. Viveiros de Castro é o único que aparece, ocupando a 25ª posição geral, como pontuado por Trajano.

Adotando o nosso critério de ordem de maior presença no conjunto de ementas dos 20 PPGA/S, encontramos a seguinte lista dos mais lidos:

● “Clássicos I” (e disciplinas equivalentes): Malinowski (17), Evans-Pritchard (16), Radcliffe-Brown (16), Durkheim (15), Lévi-Strauss (14), Boas (14), Mauss (13), Morgan (12), Ruth Benedict (11), Frazer (10); e

● “Clássicos II” (e disciplinas equivalentes): Sahlins (13), Geertz (13), Strathern (12), Dumont (11), Latour (10), Lévi-Strauss (9), James Clifford (9), Viveiros de Castro (8), Turner (8), Wagner (8).

Considerando o número de indicações por PPGA/S, encontramos a manutenção do que observamos nas disciplinas de Clássicos I e II da UnB: há um “consenso” maior em torno dos autores selecionados na primeira disciplina: o primeiro “top três” (Malinowski, Evans-Pritchard e Radcliffe-Brown) aparece, respectivamente, em 17, 16 e 16 (dos 20) PPGA/S, ao passo que o segundo “top três” (Sahlins, Geertz e Strathern) foi indicado apenas 13, 13 e 12 vezes, respectivamente. Além disso, todos os integrantes do “top 10” correspondentes a “Clássicos I” marcaram presença em ao menos metade do total de ementas analisadas, algo que apenas os quatro primeiros mais indicados conseguem alcançar essa marca em “Clássicos II”[32].

Como o nosso levantamento no PPGAS UnB apontou, Lévi-Strauss é também no conjunto dos PPGA/S o “limiar” entre as duas disciplinas: o autor foi indicado em 14 PPGA/S em ementas referentes a “Clássicos I” e em 9 PPGA/S em ementas compatíveis com “Clássicos II”. Além do feito de ocupar um espaço de trânsito entre “clássico” e “contemporâneo”, apenas três programas deixaram Lévi-Strauss completamente de fora[33]. As obras mais indicadas são: Antropologia Estrutural; As Estruturas Elementares do Parentesco e O Pensamento Selvagem. Na lista também aparecem, em menor quantidade, indicações de sua Introdução à obra de Marcel Mauss.

Clifford Geertz, contemporâneo e interlocutor assíduo de Lévi-Strauss, marca presença significativa em “Clássicos II”, ao ser indicado por 13 PPGA/S[34]. As obras que se destacam são A interpretação das culturas e O saber local. Observando o Islã e Negara aparecem pouco, mas ainda são acionadas por alguns programas[35]. Na mesma medida, vemos Nova Luz sobre a Antropologia . Antropólogo como Autor serem indicados, mas com pouca expressividade.

Com a ausência total de Geertz em “Clássicos I”, vemos que a tradição norte-americana que aparece na primeira disciplina formativa manifesta-se na presença de Franz Boas (14 PPGA/S) e Ruth Benedict (11 PPGA/S). Se Benedict se destaca nas indicações com sua obra Padrões de Cultura, Franz Boas marca presença com duas coletâneas: Antropologia Cultural e Race, Language and Culture. Por sua vez, a tradição inglesa é massiva com indicações de Malinowski (18 PPGA/S) e Evans-Pritchard (17 PPGA/S) nas ementas de “Clássicos I”, com relativo esforço para leitura integral de suas obras: Os Nuer, no caso de Evans-Pritchard e Argonautas do Pacífico Ocidental, no caso de Malinowski.

Ante esse quadro, é possível ampliar as ponderações de Vega Sanabria (2005), sobre os 6 PPGA/S investigados por ele, acerca da contradição de lidar com uma vasta valorização da noção de “clássico”, ao passo que encontramos um núcleo relativamente pequeno de autores consensuais também entre os 20 PPGA/S aqui considerados. Tal núcleo, além de demasiadamente restrito, emerge entre mais de 200 outros nomes mencionados pelos 20 programas. Isso indica que o espaço para a circulação de outros nomes existe, mas quais? Verificamos, via esse conjunto de dados, que o número dos considerados clássicos ou canônicos nos permite também observar suas exclusões: antropólogas mulheres (representadas apenas por Benedict na primeira disciplina formativa e Strathern na segunda); e pesquisadoras/es brasileiros ou da América Latina; autoras negras/os. Ante o exposto, vale a pena um esforço final de interpretação de todo o material aqui abordado em torno da noção de “clássico”.

Tentativas finais

Analisando as apresentações dos programas das disciplinas na UnB, encontramos alguns critérios que podem ajudar no esboço de um campo comum de significados para a noção de “clássicos”, tão central no processo de formação dos/as jovens antropólogos/as. Dessa perspectiva, têm sido considerados “clássicos” autores e obras que, retomando nossa inspiração em Ítalo Calvino:

i.resistiram a modismos e persistiram ou que persistem como “rumor mesmo onde predomina a atualidade mais incompatível” (Calvino 1993, 15);

ii.construíram textos, problemáticas e questões estruturantes da disciplina, seja na afirmação de cânones seja por desafiá-los – “clássico é um livro que vem antes de outros clássicos; mas quem leu antes os outros e depois lê aquele, reconhece logo o seu lugar na genealogia” (idem, 14); e

iii.iluminaram o pensamento das sucessivas gerações de antropólogos por meio de um legado de indagações que estas procuraram responder e transmitir para as novas gerações (tradições e linhagens) – “clássico é uma obra que provoca incessantemente uma nuvem de discursos críticos sobre si, mas continuamente as repele para longe” (idem, 12).

Embora coerentes, para os clássicos da antropologia e da literatura, estes critérios soam algo tautológicos, pois as noções de persistência, estruturação e legado parecem resvalar o eixo da continuidade de certa forma naturalizada e o da descontinuidade consagrada. Ainda mais se considerarmos que os programas disciplinares são construídos por rede de atores em uma configuração institucional que despersonaliza e naturaliza as escolhas. A indagação que fica oculta, sob a ressalva de que todo recorte é arbitrário e que se trata de autores que ainda iluminam as gerações atuais, é como e quando um autor e, por vezes, uma obra é erguida à condição de fundadora ou clássica, e, principalmente, como tamanha unanimidade em torno de tão poucos autores vem sendo construída. Não estamos negando tais empreendimentos tampouco postulando que as disciplinas Clássicos I e II, ou as disciplinas teóricas semelhantes em outros programas, se transformem em cursos de sociologia do conhecimento, mas propondo que tomemos a sério a reflexão que as metáforas da “tradição”, dos “pais fundadores” e das “linhagens” aportam à reprodução da antropologia com horizontes de classicismo relativamente restritos como observado aqui e, como ressaltado por Peirano (1991, 13), alhures também. Trata-se de refletir sobre os “clássicos” como um problema antropológico. Tomamos aqui como inspiração Cardoso de Oliveira (2018), cientes de que nosso estudo é apenas um ensaio exploratório e circunscrito a algumas disciplinas obrigatórias. Tal ressalva é importante, visto que temos plena consciência de que a antropologia nas universidades é uma estrutura de conhecimento constituída por experiência em sala de aula, mas também por acesso a bolsas de pesquisa, livros, artigos, recursos da Internet, seminários departamentais, relacionamentos com orientadores, participação em grupos de pesquisa, entre outros.

Neste sentido, gostaríamos de ampliar novamente a nossa lente e agregar as reflexões de Vega Sanabria (2005), na ausência dos textos dos programas das disciplinas na pesquisa da ABA sobre os 20 Programas que compuseram seu universo de investigação. A partir de pesquisa documental e entrevistas em seis PPGAS[36], apresenta um mapeamento de tendências bastante similares às encontradas por nós: reduzido núcleo consensual dos cânones e combinações de alguns critérios evocados para definição dos clássicos. Tal como visto nos programas das disciplinas do PPGAS UnB, o critério temporal era constante, mas não suficiente. Aparecia combinado com: (1) a frequência com que o autor aparecia em diferentes espaços disciplinares, sob a ponderação de que não se pode deixa-lo de fora no processo de formação; (2) o contexto sócio-histórico em que a obra se insere, por exemplo, “escolas” ou “tradições” consideradas constitutivas da disciplina; e, sobretudo, (3) sua consagração por uma comunidade acadêmica ou uma geração – e acrescentamos, comunidade ou geração consideradas elas próprias consagradas ou hegemônicas (Vega Sanabria 2005, 34-40). Assim, reconhecemos também aqui, acompanhando Vega Sanabria, que os critérios de “classicismo” parecem combinar valor reputado como inerente à obra ou ao autor com parâmetros externos de diferentes ordens, considerados mais objetivos: profundidade histórica, recorrência de reconhecimento e “memória seletiva” – como disse um de seus entrevistados (Vega Sanabria 2005, 36).

Consideramos que esse tipo de classicismo gera efeitos de pelo menos duas tendências no campo disciplinar. Por um lado, o compartilhar de “tradições” e “linhagens” permitiria segurança e consistência teórica e a pertença a uma comunidade de comunicação internacional; por outro, o estreitamento destas tradições e linhagens pode limitar as possibilidades de diálogo criativo e inovador na transmissão disciplinar. Um estreitamento que parece estar se dando em várias dimensões:

i.na focalização em alguns polos de produção antropológica (Inglaterra, França e EUA) e dentro destes em alguns autores e obras – o que, por sua vez, reforça a divisão entre antropologias “hegemônicas” e “periféricas”;

ii.na exclusão no rol das questões “clássicas” da apropriação original feita deste legado por antropólogos brasileiros (e de outras tradições não hegemônicas) em suas pesquisas de campo, tão importante para o reconhecimento e efetivação de linhagens mais inclusivas e ou de geografias cognitivas ampliadas;

iii.no risco de enrijecimento conceitual, intrínseco às próprias noções de tradição e legado, pelo (a) privilégio do debate teórico nas disciplinas formativas que reafirme a repetição e (b) só tangencialmente traga transformações e dissidências ou, ainda, que (c) apenas aborde tensões já resolvidas no interior da disciplina, verdadeiros “cachorros mortos”; e, por fim, como alertou Otávio Velho (2006),

iv.na transformação dos “clássicos” em referências ritualísticas de evocação de autoridade disciplinar e não de reflexão epistemológica, com um peso significativo nas leituras de autores e obras até meados do século XX – como bem já havia destacado Trajano sobre os dados da pesquisa da ABA.

Ao destacar ser esse um problema antropológico, marcamos distância, já de início, da forma predominante como tem se dado o debate sobre os clássicos nos termos “ame-os ou deixe-os” com base em preferências e experiências pessoais[37]. Inspiradas no que observamos nas disciplinas teóricas aqui analisadas, nos parece que a busca por desnaturalizar os clássicos tem acontecido, esporadicamente, no PPGAS/UnB nos últimos anos – rápida consulta aos programas disciplinares em teoria no mestrado indica a mesma tendência em outros PPGA/S[38]. Tal pluralização tem se dado por meio da leitura dos “cânones consagrados” em diálogo com outros nomes, tradicionalmente apagados na construção disciplinar. Nomes como o de Zora Hurston, antropóloga negra do início do século XX, indicada em 2020 em Clássicos II, amplia o leque das “alunas do Boas” na formação obrigatória; assim como o de Edith Turner, indicada em 2019 e 2020, nos convida a conhecer a produção de antropólogas relegadas ao estigma de “esposas de” na tradição disciplinar (Corrêa 1997).

Nessa direção, David Price (2019), ao escrever sobre “contra-linhagens” na história disciplinar nos EUA, fez duas ponderações que gostaríamos de convidar nossos/as leitores/as a refletir. De um lado, alertou que considerar as tradições epistemológicas dentro de linhagens seria simultaneamente útil e limitante: a presença de ancestrais esclareceria relevantes conexões com tradições intelectuais, enquanto o espaço negativo dos excluídos informaria sobre limites, normas sociais e preferências teóricas. Por outro, incitou-nos a revisitar antropólogas/os ancestrais marginalizadas que enfrentaram contextos similares (disciplinares e políticos) aos vividos por nós, de modo que possamos escrutinar conexões com nossas inquietações e fazer avançar nossos trabalhos.

No caso do campo disciplinar brasileiro, essa desnaturalização parece ser mais um efeito da diversificação do perfil dos/as alunos/as, e em certa medida dos/as professores/as, do que das críticas produzidas a partir de/ou com relação aos contextos “centrais” – embora essas sejam inegavelmente relevantes. Referimo-nos a uma diversificação que se deu após mais de dez anos de a política de ação afirmativa ter se iniciado nos cursos de graduação e com as numerosas contratações de docentes realizadas desde meados dos anos 2000. A inquietação e curiosidade desses alunos/as com relação a antropólogos/as e cientistas sociais produzindo fora dos polos hegemônicos (centrais ou periféricos) e a valoração de um perfil mais diversificado de antropólogos (por gênero, raça e etnia) parece ter, essa é a nossa hipótese, o potencial de pressionar e suscitar diálogos mais plurais, não sem tensões[39]. Um exemplo disso é a criação de coletivos como Marlene Cunha no PPGAS/Museu Nacional e o Coletivo Zora Hurston, no DAN/UnB. Também o crescente engajamento dos antropólogos e antropólogas na esfera pública parece compor a configuração de valores que contribui para a aceitação desse tipo de demanda. Afinal, no Brasil é historicamente significativa a incidência dos/as antropólogos/as e da Associação Brasileira de Antropologia informando, com o conhecimento antropológico produzido em suas pesquisas, debates sobre direitos e pautas sociais – diferente de outros contextos nacionais onde a disciplina se institucionalizou (Price 2019, Mullings 2015, e Barofsky 2003).

O interessante nesse processo é que parece se dar via a inclusão de autores/as considerados/as “locais” (seja por sua inserção institucional ou pela área de investigação) ou considerados excluídos (por gênero, classe e/ou pertença étnico-racial), em diálogo com os “canônicos”. Essa inclusão é apresentada em alguns programas disciplinares como uma busca por explorar em ambos a tensão entre pretensões universalistas e contextos particulares de investigação que, afinal, qualifica a produção de conhecimento na antropologia. Digna de nota é também a aposta na capacidade de renovação do conhecimento que a diversidade de perspectivas geradas pela incorporação de pertenças pessoais outras pode propiciar. De tal modo que a crítica teórica pode se dar na reflexão sobre localizações, posições, interesses, mas também indagações e elaborações conceituais, a partir do confronto entre autores de tradições disciplinares múltiplas, com experiências incorporadas e horizontes de expectativas diferentes e não somente por meio de comentadores – eles próprios, como apontamos anteriormente, majoritariamente integrantes das antropologias “legítimas”. Teorias em antropologia são suposições construídas a partir da formação acadêmica e trajetória de vida do/a antropólogo/a, em diálogo com o contexto de pesquisa, que possibilitam melhor compreender o mundo investigado. São também elaborações que constroem um diálogo com o presente de seus autores (preocupações, descontentamentos e esperanças) e projetam, implicitamente, futuros possíveis. Suas perguntas e seus “esquemas mentais” foram moldados pelos obstáculos que buscavam ultrapassar – teóricos, metodológicos, epistemológicos e políticos –, mas estão longe de ser os mesmos que moldam os nossos atualmente. Entender esse movimento entre presente e futuro que marca, de forma mais ou menos explícita, a produção científica pode ser um caminho interessante para lidar com sua natureza paradoxal e por vezes trágica, em especial, quando se expressa na reprodução do conhecimento por meio da consagração de um passado disciplinar povoado de uns poucos “fundadores”.

No caso específico do conhecimento antropológico, uma das expressões mais tematizadas de sua natureza trágica talvez seja o anseio de compreender a diversidade a partir da perspectiva de seus sujeitos e o risco de nesse processo fazê-la sucumbir. Contudo, concordando com vários/as antropólogos/as que a essas reflexões já se dedicaram, nesse empreendimento o esforço de superar obstáculos é sempre tão importante quanto o resultado, tanto para nossas teorias como para nossas práticas – inclusive com relação às dos autores clássicos. Indo além, nos perguntamos em que medida (e como) tal abordagem crítica do ensino do ofício antropológico desempenha papel relevante num presente em que a comunidade antropológica se diversificou e inclui hoje parcelas crescentes daqueles que foram os “nativos” de outrora – diretamente como antropólogos e indiretamente como interlocutores legítimos de nossas reflexões, não apenas como inspirações. Talvez no presente o anseio crítico em torno da diversidade, essa é a nossa hipótese, tenha se desdobrado na direção de reivindicar a inclusão de novas epistemologias e autores desconsiderados na reprodução do conhecimento antropológico – e não mais no debate, por exemplo, sobre a “traição” que a metáfora do antropólogo como tradutor já suscitou. Daí adviria a combinação tensionada de autores “clássicos” e autores “das margens” que temos observado em algumas atualizações das disciplinas teóricas obrigatórias mais recentes - com a inclusão, por exemplo, de Silvia Rivera Cusicanqui (2010)[40] e Dipesh Chakrabarty (1992)[41]. Tal tipo de combinação nos sugere que estão em curso modificações nos usos sociais dos clássicos e não apenas nas escolhas dos autores assim considerados.

Tendo em mente o horizonte esboçado, pluralizar as disciplinas teóricas formativas significaria ampliar o leque de possibilidades de abordar um campo comum de problemas e mesmo redefini-lo, sem com isso reduzir os “clássicos” a metanarrativas desprovidas de valor no entendimento dos mundos culturais complexos que investigaram. Trata-se de buscar compreender o espaço-problema (Scott 2004, 3-4) em que esses autores e obras se inserem, simultaneamente espaço-cognitivo e espaço-poder: um contexto de disputa de argumentos e de intervenções onde em determinados momentos questões e sujeitos são considerados relevantes em detrimento de outros. Uma vez que o contexto mude, indagações que eram centrais se esvanecem, outras se impõem, cânones e clássicos são abandonados ou retomados, outros passam a ser assim considerados (como vimos nos gráficos aqui apresentados). Perceber esse dinamismo, a nosso ver, é central na construção do conhecimento e de sua crítica. Assumimos, portanto, o quão difícil é, ontem e hoje, teorizar em “tempo real” (Jackson 2017, 19), debater com os pares, com os sujeitos pesquisados e contribuir para o quê a antropologia tem a dizer sobre o mundo (com as perguntas e respostas que formos capazes de formular a cada contexto).

Tal perspectiva plural traria, para professores/as e alunos/as, o desafio de lidar com a diferença e a diversidade já na socialização teórica de formação do/a jovem antropólogo/a. Mais do que consumir comentadores, esse desafio exige um processo de maturidade e responsabilidade compartilhada que tensione autores e questões e não implique exclusões (seja por retóricas de acusação ou de celebração). Sobretudo, levaria, essa é nossa esperança, ao diálogo sobre o que significa ensinar antropologia e formar antropólogos e antropólogas. No sentido de, recuperando Eunice Durham e Ruth Cardoso (1961), descobrir caminhos para transformar o conhecimento acumulado em poder criativo. Como disse Yarimar Bonilla: “Eu não leio o cânone com os olhos voltados para o que ele me permite fazer, mas sim para entender o que ele permitiu que a antropologia fosse” (Bonilla 2017, 24)[42] e, acrescentaríamos, vislumbrar o que nossa disciplina pode vir a ser.

Colocar os autores clássicos sob a lente crítica aqui esboçada parece uma aposta promissora para engajar conhecimento e poder de forma mais complexa, recuperar a dimensão político-estratégica historicamente situada do debate teórico e da prática pedagógica: em conteúdo e forma, referencialidade e retórica, argumento e conceito, autores e formas de autoridade – deixando para trás a dicotomia empobrecedora entre críticos e defensores-dos-cânones e a falsa polêmica se devemos ou não ler os clássicos. A questão fundamental nos parece ser compreender o papel que os “clássicos” desempenham na organização do ensino da antropologia; quem são, em determinados contextos sociais e históricos, os autores e obras alçados a esse patamar; e os critérios implícitos e explícitos alegados na sua definição: certa temporalidade (linearidade e perenidade), espacialidade (geopolítica do conhecimento) e compartilhamento (“tradição disciplinar”). Os valores evocados por tais critérios e pelas metáforas naturalizantes mencionadas ao longo deste artigo indicam as dificuldades de inovação nas disciplinas formativas e na própria reprodução do campo da antropologia, ou seja, do conhecimento passível de ser passado de geração em geração.

É importante lembrar, no entanto, que enfatizar a relevância de considerarmos a política de produção de conhecimento e abordarmos criticamente os cânones que compõem a estrutura curricular obrigatória – as disciplinas do aluno compulsório a que se referiu Lygia Sigaud (2013) – não significa sugerir que todas as narrativas sejam iguais ou que a história e a ciência não existam. Tampouco se trata de desconstruir obras e autores ou desconsiderá-los sem ter se dedicado a lê-los atentamente e compreendê-los nas suas possibilidades e limites – como alertou Woortmann ao refletir sobre certos pós-modernos como um “novo populismo” (1995). O que vislumbramos no exercício de aproximação à reprodução disciplinar aqui realizado é o potencial das qualidades relacionais do conhecimento antropológico também para o ensino. Dito de outra forma, seria uma aposta no encontro de pontos de vista distintos (de estudantes e docentes; de linhagens e contra-linhagens) como trilha renovadora, encarando a sala de aula como uma experiência etnográfica capaz de mobilizar conhecimento por meio de um projeto conversacional que atualizaria em novo contexto a prática desenvolvida por nós na pesquisa de campo (Corsín Jiménez 2003, Vega Sanabria e Dias Duarte 2019).

Como o subtítulo desta parte final enuncia, essas são tentativas de ordenação do material mapeado até então, ou seja, dos documentos produzidos pelas instituições e sujeitos responsáveis pelo ensino formal do conhecimento antropológico na pós-graduação e, consequentemente, do cultivo de certo hábito disciplinar nos termos de uma integração lógica e cultural escolar (Bourdieu 2007). Referimo-nos ao consenso na dissensão, argumentado por Bourdieu quando pondera que o “desacordo supõe um acordo no terreno do desacordo” (Bourdieu 2007, 207). No que concerne às nossas reflexões aqui: o acordo seria o quanto é fundamental discutir autores e obras temporalmente distantes no aprendizado da teoria e da prática antropológica, o desacordo talvez seja como repensar o processo pedagógico – inclusive a pluralização desses autores – tendo em conta o novo perfil e as novas demandas feitas pelas/os estudantes. Embora cientes de que a relação professor/a-aluno/a não esgota o processo formativo e sequer a pós-graduação é o único espaço desta formação, avaliamos ser esta uma agenda relevante, visto que, sem dúvida, tais experiências são obrigatórias à legitimação da identidade de antropóloga/o em nosso país, bem como a via predominante na comunidade internacional.

Referências

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Notas

[1] Destacamos a coletânea que congrega os trabalhos produzidos a partir de eventos promovidos pela Associação Brasileira de Antropologia (ABA) ao longo dos últimos anos, como Grossi et al. (2006) e Tavares et al. (2010). Além disso, destacamos a dissertação de Vega Sanabria (2005) e o balanço publicado por Vega Sanabria e Dias Duarte (2019).
[2] Para uma abordagem comparativa dos diferentes programas de pós-graduação em antropologia no Brasil, consultar C. Rubim (1997), W. Trajano Filho e G. Ribeiro (2004), Veja Sanabria (2005), M. Grossi et al. (2006), e D. Simião e B. Feldman-Bianco (2018).
[3] Importante ressaltar, embora não seja nosso foco, a relevância dos PPGA na formação dos neófitos a partir do final dos anos 1960 e o efeito de hegemonia do campo institucional da antropologia: os programas mais antigos e prestigiosos (MN, UnB, Unicamp e USP, UFRGS) reproduzem-se nos demais (Rubim 1997).
[4] Da disciplina Clássicos I, foram examinados os programas de 1972 a 2019, com exceção dos anos 1975, 1977, 1978, 1979, 1997 e 2001. Da disciplina Clássicos II, consideramos os programas de 1985 a 2019, exceto os dos anos 1986, 1987, 1991, 1998, 2001 e 2009. Os programas não analisados correspondem aos documentos que não foram encontrados no arquivo impresso, tampouco no digitalizado.
[5] As aulas no PPGAS/UnB são semanais, com a duração de quatro horas, divididas por um breve intervalo (vinte minutos, variando conforme o professor). Em uma sala dentro do próprio departamento, denominada “sala de reunião”, os alunos sentam-se em torno de uma longa mesa, tendo à cabeceira o professor, e espera-se deles uma participação ativa na discussão da leitura proposta – os que chegam mais tarde ocupam cadeiras alinhadas tradicionalmente em fileiras.
[6] Além do conteúdo, os programas também compartilham estrutura em três partes, com variações de forma: apresentação do objetivo da disciplina, avaliação dos alunos e leituras obrigatórias, com as respectivas datas – com certa frequência também são sugeridas leituras complementares.
[7] O número de textos indicados é utilizado como dado somente na construção do Gráfico I, ao abordar a distribuição entre parcial e integral das obras indicadas de cada autor.
[8] Ausente apenas nos anos de 1972, 1973, 1975, 1982, 1984, 2003, 2012 e 2018.
[9] Ausente nos anos 2000, 2003, 2004, 2006, 2007, 2008, 2010, 2011, 2012 e 2017.
[10] Também Edward B. Tylor e Lévy-Bruhl têm presença irregular nos programas de Clássicos I. Essa irregularidade mereceria uma investigação mais acurada, entretanto o que podemos afirmar com base nos documentos aqui abordados é que tal movimento não pode ser compreendido apenas pela observação do docente responsável pela produção do programa em foco.
[11] Indicada nos anos de 1990, 1994, 2005 e 2017.
[12] Boas, Franz. 1996 [1887]. “The study of geography”. In Volksgeist as Method and Ethic: Essays on Boasian Etnography and the German Anthropological Tradition, organizado por George Stocking Jr. Madison: University of Wisconsin Press.
[13] Stocking integra 32 programas dos 42 analisados.
[14] Ainda com relação às monografias deste período inicial, destacamos a exclusão da obra We, The Tikopia de Raymond Firth (1901-2002), presente apenas em 1981.
[15] Gluckman apareceu nos primórdios da disciplina em 1976 com “Rituais de Rebelião no Sudeste da África” e novamente em 1999 e 2017 com “Análise de uma situação social na Zululândia moderna”.
[16] O uso apenas do masculino neste artigo é proposital. Evidencia que estamos tratando propriamente de homens quando evocamos os cânones de Clássicos I.
[17] Os anos a que não tivemos acesso foram: 1986, 1987, 1991, 1998, 2001 e 2009.
[18] Esporadicamente aparece a obra Mitológicas I (1992, 2005, 2019).
[19] O individualismo foi acrescido às indicações de Homo Hierarquicus nos cinco programas.
[20] Reforçamos a existência de programas que indicaram mais de uma obra do autor.
[21] Avaliamos que essa mudança acompanha a mudança de perspectiva do próprio autor que começa como “neoevolucionista”, dá uma virada “culturalista” (final dos anos 1960) e sob influência de Lévi-Strauss faz releituras do estruturalismo com reflexões originais sobre as relações entre cultura e história, sistema e evento. Uma boa entrada para os interessados em sua trajetória, especialmente a partir de seu diálogo com a história, ver a tese de doutorado de Oliveira (2017).
[22] Benedict apareceu tantas vezes em Clássicos II quanto Das (quadro indicações), em momentos parecidos (entre 2004 e 2013) – com exceção de Benedict ter sido indicada em 1990. Douglas apareceu nos anos de 1994, 1996, 2003, 2007, 2010, 2011, 2013, 2018 e 2019; e Strathern concentra suas indicações na última década (2007, 2010, 2016 e 2019).
[23] Pierre Bourdieu (11) Norbert Elias (9), Max Gluckman (9), Marcel Mauss (8), Gregory Bateson (8), Maurice Leenhardt (7), Raymond Firth (7), Lucién Lévy-Bruhl (7), Max Weber (7), Roy Wagner (6), Bruno Latour (6), Georges Balandier (4), Stanley Tambiah (4), Michel Foucault (4), Alfred Radcliffe-Brown (4).
[24] Sugerimos aos interessados nas reflexões sobre as antropologias “do sul” ou “não hegemônicas” consultar o e-journal da Red de Antropologías del Mundo – World Anthropologies Network (RAM-WAN) em http://www.ram-wan.net/e-journal/
[25] Tal escolha se justifica pelo fato de que o mesmo PPGA/S, com relativa frequência, indica mais de um texto do mesmo autor. Isso implica que não necessariamente a existência de ao menos cinco textos corresponde a presença em cinco programas distintos.
[26] A tabela da ABA foi inteiramente refeita com o intuito de sanar alguns problemas quanto à forma como os dados estavam dispostos. Em alguns casos, por exemplo, uma lista de obras era inserida na mesma célula, escondendo um conjunto de textos maior do que anteriormente imaginado.
[27] O levantamento da ABA não contém o programa da UFBA – Universidade Federal da Bahia. Não sabemos o motivo da ausência, mas intuímos ser devido à falta de envio dos dados por parte do programa.
[28] Dentre as 41 ementas analisadas, 25 estão dentro dessa variação.
[29] A adoção do plural ou singular não atende a critérios de longevidade dos programas: USP e Unicamp usam o plural assim como UFG, UFSCAR e UFPE.
[30] Simião, Daniel, e Feldman-Bianco, Bela (2018).
[31] Em ordem, Mauss, Strathern, Turner, Stocking, Dumont, Mead, Bourdieu, Bateson, Kuper, Latour, Benedict, Leach, Frazer, Morgan, Viveiros de Castro, Roy Wagner, Gluckman, Fortes, Peirano e George Marcus (Trajano 2018, 195).
[32] Observamos também que com tal refinamento dos dados há, em "Clássicos I", uma nítida inversão entre os mais lidos em relação à ordem apresentada por Trajano (2018), com os britânicos tomando a frente de Lévi-Strauss e Boas. Isso ocorre devido ao número de textos indicados de Boas e Lévi-Strauss ser maior (partes, capítulos, artigos), ao passo que Evans-Pritchard e Malinowski são constantemente indicados para leitura integral de suas obras, detalhe que conduzia ambos para o local mais afastado na lista dos mais lidos. Destacamos ainda que Lévi-Strauss não aparece entre os três mais indicados em nenhuma das disciplinas, mas ocupa um lugar cativo nas duas – feito que nenhum outro autor conseguiu conquistar.
[33] UFAM, UFPA e UFS. Não cabe associar a ausência meramente a um quesito regional, ao Norte-Nordeste, devido a, pelo menos, dois fatores: a proposta das ementas é relativamente distinta do padrão geral; e a UFPE é a maior entusiasta do antropólogo francês, especialmente em Clássicos II.
[34] Geertz aparece em Clássicos I em apenas 6 PPGA/S com 12 textos.
[35] A obra Observando o Islã foi indicada pela UnB, UFPI e UFPE. No caso de Negara, UFSC e UFSCAR.
[36] MN/UFRJ, UnB, UFPE, UFSC, UFRGS e USP; sendo que UnB e UFSC constaram apenas no levantamento documental.
[37] Cf. debate em Hau: Journal of Ethnographic Theory 7, nº 3: 1–38, 2017.
[38] Trata-se de um movimento tão recente que não teve expressão nos dados que trabalhamos. Além disso, tem ocorrido exclusivamente em Clássicos II no que se refere à UnB, mas nossa hipótese é de que um mapeamento cuidadoso em outros PPGA/S viria a confirmar tal tendência.
[39] Tem havido também um esforço desses estudantes em mapear os autores excluídos, tanto por gênero quanto por pertença étnico-racial, muitas vezes em oposição aos considerados clássicos. Ver Branco et al. (2018) e Venâncio (2020).
[40] Indicada em 2018 e 2019 nos programas de Clássicos II da UnB.
[41] Indicado em 2019 e 2020 nos programas de Clássicos II da UnB.
[42] “I do not read the canon with an eye toward what it enables me to do, but rather to understand what it enabled anthropology to be” (tradução livre).
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