Resumo: Com o ingresso crescente de indígenas nos cursos de pós-graduação em antropologia, está-se gestando uma ala de intelectuais indígenas que, portadores de seus próprios saberes, têm grande potencial de desafiar as certezas da disciplina e influir no traçado de seus rumos. Espera-se que a adesão indígena ao campo antropológico contribua para expor ilusões, falácias, cegueiras e contradições e tirá-lo de seu atual estado letárgico, provocando uma guinada para uma “antropologia ecumênica”, capaz de acolher e se beneficiar de saberes que atualmente são apenas matéria-prima para teorias nem sempre pertinentes.
Palavras-chave: Educação Superior, estudantes indígenas, Antropologia Ecumênica.
Abstract:
The growing number of indigenous students enrolled in graduate programs in anthropology is spawning a grouping of indigenous intellectual who, bringing their own knowledge to academia, have great potential to challenge the discipline’s convictions and open new vistas. One hopes the arrival of indigenous scholars in anthropology will expose its illusions, fallacies, blind spots, and contradictions and retrieve it from its present lethargy. The diversity of indigenous knowledge ought to provoke a shift toward an “ecumenical anthropology” willing to embrace new knowledge forms and contents, and benefit from them on equal terms rather than continuing to use them as mere raw material for often idle theories. Higher Education; indigenous students; Ecumenical Anthropology.
Keywords: Higher Education, indigenous students, Ecumenical Anthropology.
PPGAS 50 Anos
Intelectuais indígenas abraçam a antropologia. Ela ainda será a mesma?
Recepción: 21 Marzo 2022
Aprobación: 15 Diciembre 2022
Este texto é menos um produto da minha imaginação antropológica do que do meu entusiasmo por aqueles que, durante mais de um século, amargaram o papel de meros objetos de estudo da antropologia. Refiro-me aos indígenas das Américas em geral – o Grande Continente Abya Yala – e, mais especificamente, do Brasil. Embora outros contextos do continente me inspirem muito, focalizo a situação atual da intelectualidade indígena neste país, em particular, no campo da antropologia. Defendo a proposta de que, como sujeitos plenos no campo antropológico, os indígenas “indigenizem” a antropologia, contribuindo para a sua urgente renovação. E não falo apenas da formulação de novas abordagens – muitas vezes pomposamente chamadas de teorias – ou de novas problemáticas empíricas e espaços de investigação. Falo também da possibilidade de os indígenas antropólogos provocarem no establishment acadêmico novas atitudes, olhares desarmados e disposição para a construção do que tenho chamado de antropologia ecumênica (Ramos 2014) e que Paul Little descreve como intercientificidade (2010, Bergamaschi 2014). Uma antropologia ecumênica seria aquela que se faz com a heterogenia de fundamentos epistemológicos. O ecúmeno antropológico conteria o acervo de ideias acumuladas sobre a alteridade, desde a criação do que Trouillot denominou de savage slot (1991) até as mais recentes releituras sobre como interpretar o mundo humano e, data venia, o não humano. Mas, e mais importante, abrigaria a grande constelação de pensamentos humanos sobre o mundo, em igualdade de condições, pois não é porque o conhecimento gestado na academia se autodenomina ciência que ele é superior, mais abrangente ou mais universal do que aquele gerado nas aldeias indígenas há muito mais tempo do que a invenção do savage slot.
Por sua vez, a intercientificidade, cunhada por Little, ao agregar as “formas de interação entre os sistemas de conhecimento tradicional e o sistema da ciência moderna” (2010, 20), enfatiza o elemento ciência, que é sistematicamente negado aos indígenas quando seus conhecimentos são curiosamente chamados de “ciências do concreto” (Lévi-Strauss 1962), ou de cosmologias, termo habitual nas “exo-etnografias”, aquelas produzidas por antropólogos não indígenas.
À espera do ecúmeno
Se consultarmos o Google, encontraremos esta caracterização de ecumênico: “princípio utópico, que crê ser possível a convivência fraterna de todas as identidades que constroem a oikouméné”. Na Grécia antiga, o termo significava o mundo conhecido habitado e habitável, quer dizer, um espaço reconhecível como humano. Se, com alguma licença poética, aplicarmos essa noção ao espaço da antropologia, veremos que todo ele é habitado por humanos, humanos diferentes, mas equivalentes em sua humanidade. O ecúmeno antropológico, por ora utópico, refere-se, portanto, à “convivência fraterna de todas as identidades” que ocupam esse espaço. Ou seja, a convivência, nem paterna nem materna, mas fraterna, de todos os saberes desenvolvidos nessa grande espaço de alteridades equivalentes.
Assim sendo, o imaginado ecúmeno antropológico tem a propriedade de conectar num mesmo espaço virtual, mas não apenas imaginado, a coletividade de antropólogos não indígenas e indígenas (falar de antropólogos indígenas é quase uma redundância), cujo denominador comum é a busca de compreensão de si e dos outros. A exemplo da lusotopia, um ecúmeno que agrega os lugares geograficamente dispersos onde se fala português (Pina-Cabral 2010), poderíamos designar, mesmo ferindo a elegância estilística, como antropotopia, esse campo americano – que, do ponto de vista geodésico, é rigorosamente ocidental – de pensar e viver a alteridade e a autoalteridade, esse aparente oxímoro (como em “os gritos do silêncio”) que aflige quem se sente estranho quando em terra estranha. É ver-se a si mesmo sendo visto pelo Outro e gerenciar as impressões recebidas, à moda de Erving Goffman (1959), se quiser criar algum vislumbre de rapport interpessoal e intercultural. Nessa imaginadíssima comunidade (mais imaginada do que a imaginada por Benedict Anderson [1983]), tanto por ainda ser apenas pensada, quanto por ser altamente desejada, não haveria objetos e sujeitos de investigação, ou melhor, todos seriam potencialmente objetos e sujeitos de investigações de todos os outros. Como uma imensa sala de espelhos, essa província antropotópica seria habitada por indígenas e não indígenas, com suas respectivas tradições intelectuais. Nessa arena comum, eles se mirariam, se estranhariam e debateriam diferenças e semelhanças numa contínua rotação de perspectivas, como já havia dito o sábio Florestan Fernandes (2009, 36) há mais de meio século. Posso entrever, num belo exercício de wishful thinking, um constante exercício de argumentações cruzadas, desafiadoras e (…) democráticas, como soe acontecer entre os povos indígenas, célebres praticantes da política do consenso, enxertado no pomar da academia.
Essa utópica antropotopia pode nunca chegar a existir, mas, enquanto potencialidade, ajuda-nos a criar um horizonte de possibilidades. Chama a atenção, por exemplo, que, nos últimos anos, no Brasil e em outros países da América do Sul, o movimento de indígenas em direção às universidades tem suscitado análises alentadas sobre o que representa a presença de intelectuais indígenas na academia (Zapata Silva 2005, 2007, 2008, 2013). Ávidos por dominar o instrumental das ciências não indígenas, muitos o utilizam pragmaticamente em prol de suas comunidades, enquanto outros o tomam como modo de desvendar as razões e “desrazões” das sociedades que os dominam. Já outros, insatisfeitos com as imagens criadas, principalmente, por antropólogos e historiadores, tomam a si a tarefa de desafiar o status quo acadêmico. Por exemplo, na antropologia, não é raro encontrar comentários como este de Jósimo Constant, indígena puyunawa que cursou a graduação em ciências sociais na Universidade de Brasília: “Muitas coisas que professores achavam que sabiam sobre nós, indígenas, não eram bem assim” (2017). A antropologia é rejeitada por uns, que a associam ao colonialismo, e eleita por outros, que veem nela um dispositivo útil para divulgar corretamente o conhecimento sobre os povos indígenas e que poderá levá-los à autoafirmação e à busca por justiça interétnica.
Minha aposta é que a adesão indígena à antropologia terá o efeito de transformá-la, arrancá-la da sua zona de conforto, fazê-la ver suas ilusões, falácias, cegueiras e contradições, mostrar-lhe os inconvenientes e a redução da vida intramuros e os méritos do campo aberto, intellectual commons, como disse Mary Louise Pratt (2011, 55) numa brilhante conferência em Buenos Aires em 2009.
A caminho da universidade
No que tange a antropologia, é como se, do “ponto de vista nativo, (…) a etnografia fosse por demais importante para ser deixada nas mãos dos etnógrafos” (Ramos 2008, 476). Lancei esta provocação em 2008. Naquele tempo, há uma década e meia, os indígenas no Brasil começavam a frequentar o ensino superior. Enquanto em outras partes do mundo, há tempos eles já percorriam o caminho universitário (por exemplo, no México, Canadá, Estados Unidos, Nova Zelândia), no Brasil, esse escandaloso atraso na formação escolar – que, aliás, não se limita aos indígenas – deve-se a séculos de negligência e desprezo públicos pela educação universal de qualidade. Muito tardiamente, um número crescente de indígenas, mesmo enfrentando enormes obstáculos, passou a exercer o magistério nos níveis básicos do sistema escolar e, num prazo que me parece bastante curto, ingressavam nas universidades.
Se os analfabetos no Brasil correspondem a quase 9% da população adulta, entre os indígenas, essa taxa é três vezes maior. O número exato de indígenas no país nunca foi realmente acessado, estimando-se entre 750.000 e 900.000, ou talvez um milhão, os membros dos mais de 230 povos falantes de 180 línguas (Lima 2007, 1-2). Representam meros 0,4% dos 207 milhões de brasileiros (dados anteriores à pandemia de Covid-19, que matou mais de 680 mil pessoas entre 2020 e 2022). Apesar de demografia tão desproporcional, os índios brasileiros ocupam um espaçoso lugar no imaginário do país. Imagens, estereótipos, fantasias, amor e ódio constituem um tipo de indigenismo que faz jus ao epíteto de orientalismo brasileiro (Ramos 1998). Esses índios, que uns querem segregados na selva, outros querem assimilados à dita “comunhão nacional”, raramente, se tanto, tiveram sua voz ouvida sobre assuntos que lhes dizem diretamente respeito. Afetando igualmente os indígenas e as massas de brasileiros despossuídas, a falta de acesso à educação de qualidade tem sido o recurso centenário mais eficaz dos donos do poder para manter todos eles numa estratégica ignorância sobre os seus próprios direitos.
Não é que não houvesse escolas para os índios. Desde a colônia, missionários católicos criaram o ensino nas aldeias, enfatizando o aprendizado da língua portuguesa e assuntos alheios à vida indígena, incluindo a proibição de falar em suas próprias línguas. Essa tendência continuou depois da independência em 1822, agora com a intervenção do próprio Estado, já brasileiro. Por todo o século XIX e boa parte do XX, o objetivo sempre foi integrar os índios à nação sob a tutela estatal (Lima 1995, 2007, Ramos 2000, Baniwa 2012). Foi apenas depois que a ditadura militar (1964-1985) chegou ao fim e com a nova Constituição Federal de 1988 que os indígenas começaram a ter acesso aos cursos de nível superior. A demanda por professores nativos nas aldeias levou um número crescente de indígenas a se preparar para a carreira de professor. Com a exigência oficial do curso de licenciatura para exercer o magistério, várias universidades abriram cursos dirigidos a esse público indígena. Como seria de esperar, a “ampliação da oferta do Ensino Fundamental e do acesso ao Ensino Médio resultou no crescimento da demanda pelo Ensino Superior” (Baniwa 2006, 162).
Em 2012, o estado brasileiro instituiu a Lei de Cotas que destinava um certo percentual de matrículas em instituições federais de ensino superior para negros e índios. A partir daí, o número de universitários indígenas cresceu a estimados 10 mil (Baniwa 2012), chegando, em 2019, a mais de 70 mil (Medaets, Arruti, e Longo 2022). Sem dúvida, as políticas de ação afirmativa muito contribuíram para esse aumento, pois “foram pouquíssimos os indígenas que acessaram universidades públicas antes de em algumas delas existirem cotas” (Lima 2007a, 19; ver também 2007b).
Antônio Carlos de Souza Lima, antropólogo do Museu Nacional do Rio de Janeiro, idealizador do Projeto Trilhas de Conhecimentos: O ensino superior de indígenas no Brasil, constata que os Programas de Educação Tutorial Indígena (conhecidos por PET-Indígena) chegaram tardiamente como iniciativas do Estado para compensar as deficiências educacionais impingidas aos indígenas. Apesar do número crescente de estudantes indígenas em todo o país beneficiado pelos PETs, é clara “a omissão sistemática e consciente de setores do Ministério da Educação (…) e de setores das próprias universidades” (Lima 2015, 8). Mesmo assim, os relatos dos próprios estudantes mostram que um pouco de esforço por parte da ordem pública pode ter resultados surpreendentes (Freitas 2015). O entusiasmo dos estudantes indígenas aparece claramente no comentário de Gersem Baniwa:
O interesse que os alunos indígenas apresentam pela sua formação acadêmica é sempre muito maior do que o interesse dos não índios. Eles querem ficar 4 ou 5 anos e aproveitar tudo que podem, porque têm na cabeça que tudo vai servir para ajudar a comunidade deles (2012, 140).
O ingresso nos cursos de pós-graduação seria apenas uma questão de tempo. A Universidade Federal de Goiás foi a primeira a adotar o sistema de cotas na pós-graduação ainda em 2015, seguida por várias outras, como a Universidade de Brasília, a Universidade Federal do Rio de Janeiro, de Minas Gerais, etc. Cinco anos depois, contavam-se 60 mil estudantes universitários indígenas (B. Baniwa et al. 2020), além de mais de duas dezenas de advogados indígenas, entre outros profissionais. É um número ainda modesto, mas, para esses milhares de indígenas, a sociedade nacional não é mais um mistério impenetrável e, sendo conhecida, pode ser, se não transformável, ao menos, gerenciável. A antropologia não foge a essa luta e eles sabem disso.
Antropologia na berlinda?
Nessa corrida à universidade, como anda a Antropologia aos olhos dos estudantes indígenas? Tudo indica que não sai ilesa, mas, paradoxalmente, atrai muitos deles. Neste ponto, passo a palavra aos intelectuais indígenas que gentilmente atenderam ao meu pedido para se manifestar sobre isso e sobre tópicos correlacionados.
Felipe Sotto Maior Cruz, indígena Tuxá do Nordeste brasileiro, doutor em antropologia pela Universidade de Brasília e professor da Universidade Federal da Bahia, é franco ao declarar que nas preferências dos estudantes indígenas,
a antropologia tem ocupado um lugar ambíguo, porque, de fato, ela tem sido um dos campos disciplinares mais intimamente relacionados com o passado, presente e futuro da “questão indígena”... [E]m muitos contextos, esses profissionais são criticados por irem às comunidades indígenas fazer suas pesquisas de doutorado e mestrado, indo embora depois sem oferecer quase nenhum retorno à hospitalidade e boa vontade de seus anfitriões. (…) Por conta dessa ambiguidade, na prática, a antropologia não parece ser vista como o caminho mais apropriado para se obter os fins emergenciais característicos das realidades das vidas indígenas. Entre os estudantes indígenas são privilegiadas as carreiras nas áreas de saúde, educação e direito (Cruz 2017, 98).
Isto, aliás, reflete o quadro de preferências da sociedade majoritária para quem a antropologia ou é totalmente desconhecida, ou é um campo esotérico de erudição ociosa. O próprio Felipe expressa suas objeções à vida acadêmica: “A Universidade é um ambiente que divide e individualiza. Cria competição. Uma das piores experiências que passei na Universidade diz respeito aos processos seletivos, nos quais, por exemplo, tive que disputar uma vaga com outros parentes” (Entrevista, 30/06/2017). A faca de dois gumes do conhecimento antropológico não lhe passou despercebida. Por um lado, aprecia “a riqueza da experiência humana no mundo“; mas, por outro, deplora que “o denominador comum dessas histórias (…) é o potencial destruidor, altericida, genocida e etnocida do homem branco” (idem). Tendo nascido e crescido num contexto de espoliação exacerbada, Felipe vive intensamente a ambivalência do conhecimento antropológico e não esconde sua mágoa e frustração. Sobre o aprendizado de antropologia, diz:
Pode nos distanciar de nossas tradições e fazer com que nos voltemos contra o que nos foi ensinado em casa. [Mas, ao mesmo tempo], pode também nos fornecer ferramentas para que nós mesmos sejamos armas dentro da constante luta com os brancos (…) Eu quero que um dia em minha comunidade precisemos cada vez menos de serviços prestados pelos brancos. Que quando tivermos relações com os brancos seja mais por opção do que por necessidade (idem). E que os brancos ao dizerem que apenas o seu conhecimento é verdadeiro acabam por fazer coisas horríveis conosco violando nossas lembranças e direitos. Por isso entrei na Universidade (idem).
Ou seja, para combater o inimigo, nada melhor que usar as armas desse inimigo.
Quatro anos depois de Felipe me conceder essa entrevista, vemos um quadro de teses e dissertações defendidas por estudantes indígenas no país. De 15 disciplinas computadas, a antropologia surge no topo da lista com 28 diplomas, seguida de linguística e literatura com 21[1]. Para quem sustenta que a escrita é um entrave fatal à comunicação intercultural indígena, nada como a lógica cartesiana da estatística para provar o contrário!
Francisco Sarmento, do povo Tukano, é doutorando de antropologia na Universidade de Brasília. Ponderado, Francisco traz consigo a marca da sabedoria e sensatez de seus ancestrais. Sobre a resistência que estudantes indígenas teriam à antropologia como possível carreira universitária, disse ele em entrevista à autora em agosto de 2017:
ainda pode ser vista hoje em diversos lugares como aquela que sempre retira, saqueia ou rouba as coisas dos indígenas, entre estas estão os conhecimentos mais caros para estas sociedades, que depois irão ser divulgados para o mundo de fora e enriquecer mais ainda suas ciências e culturas e, ainda, sem nenhum ganho para os povos dos quais foram retirados.
Porém, Francisco pondera:
a etnologia pode me fazer conhecer o que os ocidentais pensam ou buscam quando estudam os povos indígenas. Pode dizer como eles enxergam os indígenas (…) Por outro lado, (…) podemos também conhecer melhor nossas sociedades e ao mesmo tempo conhecer outras sociedades, como a eurocidental e demais. Pois parece ser [da natureza] de toda sociedade querer conhecer o Outro e, para mim, a etnologia não diz respeito somente aos povos indígenas (Entrevista 30/06/2017).
O lado redentor da antropologia seria para Francisco o fato de
ela e seus representantes demonstrarem ser os mais sensíveis do humanismo para buscar compreender as sociedades indígenas e quando estas estavam indicadas para serem eliminadas completamente, [os antropólogos] foram (…) dos poucos que resolveram estar do lado dos povos indígenas e acreditar que podiam continuar (Sarmento 2018, 130).
Por isso, o modo como as relações interétnicas se deram na história exige que os povos indígenas “busquem a antropologia acadêmica. É importante saber de si próprio, mas é importante também saber do outro”. Portanto, Francisco vê a antropologia como capaz de se tornar, de possível predadora de realidades indígenas, a redentora de si mesma ao gerar conhecimentos apropriáveis pelos próprios indígenas. Em suas próprias palavras, “ela tem uma grande oportunidade de enriquecer e avançar. Pois é uma disciplina que pode criticar a si mesma” (Sarmento 2018, 13).
Reforçando essa ideia, Gersem Baniwa, experiente antropólogo indígena que abraçou incondicionalmente a antropologia, declara: “Considero a antropologia como uma lente multifocal, multidimensional e multicósmica (…) [ela] pode oferecer aos indígenas um bem precioso e complexo que é o conhecimento sobre o mundo do branco” (2015, 234). Anos antes, em 2008, Baniwa declarou:
A antropologia me abriu horizontes de compreensão do meu próprio mundo baniwa, aprofundando-o, valorizando-o e vivendo-o com mais intensidade e diminuindo meus próprios pré-conceitos e com isso, ampliando minhas possibilidades de contribuir para o tão necessário diálogo entre culturas, entre civilizações (2008, 3).
A antropologia pelos caminhos que se bifurcam
Em 2008, eu advogava em prol do que chamei de autoetnografias, ao propor que o trabalho etnográfico realizado por um antropólogo indígena teria uma profundidade, sutileza e complexidade muito maiores do que poderia almejar um antropólogo não indígena, no espírito do que disse Jósimo, já citado: “Muitas coisas que professores achavam que sabiam sobre nós, indígenas, não eram bem assim”. Hoje eu talvez chamasse isso de etnografias próprias e defenderia a importância do olhar distanciado não indígena para revelar aspectos da vida indígena que muitas vezes, por hábito e introjeção, lhes passam despercebidos. Um dos exemplos mais contundentes da força analítica desse olhar distanciado são as repercussões do trabalho de Alexis de Tocqueville ([1835] 2003) para o autoconhecimento dos norte-americanos desde que esse nobre francês satisfez sua curiosidade sobre o que seria viver numa democracia, com seus prós e contras, sem a condução do povo por uma aristocracia, esclarecida ou não.
Mas, agora que assisto ao surgimento de uma crítica indígena da razão antropológica (Ramos 2018), vou mais além das vantagens que uma “antropologia indígena” pode trazer em termos de dar densidade e sutileza à etnografia. Veem-se cada vez mais menções ao possível impacto que os intelectuais indígenas podem ter no remoldar da antropologia. A começar pela própria presença física de estudantes indígenas num campus universitário, como aponta a doutora em Educação Maria Aparecida Bergamaschi:
Com o novo perfil de estudantes que “circulam” pelos campi (…) desde 2008, os olhares e as práticas vêm timidamente modificando o cenário acadêmico por meio desse convívio e da necessidade de aprender com o outro, instituindo assim outras formas de pensar e viver a academia (2014, 21).
Por sua vez, Felipe Cruz (2017) enfatiza a importância do espaço indígena construído no campus da Universidade de Brasília, a Maloca, onde os estudantes indígenas criam “verdadeiros laços de companheirismo” ao usá-lo como local de estudo, conversas, danças e músicas, o que não passa despercebido pelo resto da comunidade acadêmica. A mera presença cultural indígena já põe os não indígenas a pensar. Mas há dimensões mais transcendentes nos encontros entre intelectuais indígenas e não indígenas do que o companheirismo, por mais importante que este seja. Interessa pensar nas repercussões da atuação indígena para o próprio campo do conhecimento, neste caso, a antropologia.
Educação, por que a queremos?
Talvez a maioria dos estudantes indígenas almeje pôr os conhecimentos adquiridos na universidade a serviço de sua gente. Muitos são indicados pelas comunidades, justamente com esse propósito. Poderíamos ver aqui um tipo de intelectual orgânico, como proposto por Gramsci (1981). No entanto, Claudia Zapata, historiadora chilena que tem se debruçado com afinco sobre a questão dos intelectuais indígenas na América Latina, caracteriza-os como tradicionais, não no sentido gramsciano (o literato, o filósofo, o artista), mas “aquele cuja ação se desenvolve para dentro de sua comunidade” (2013, 71). Naturalmente, o caráter próprio da realidade indígena escapa à análise gramsciana, que focaliza o mundo profundamente desigual implantado na Europa. Mas enquanto modelo de análise, ajuda-nos a caracterizar e entender a formação dos intelectuais indígenas. Encontramos estudantes indígenas que expressam o desejo de construir uma carreira acadêmica independente das expectativas de seu povo, que estimula os jovens a estudar prioritariamente para lhe trazer benefícios. No entanto, o denominador comum que emerge de suas falas é evidente: estudar para defender; utilizar o instrumental da antropologia para penetrar na mente dos brancos; entender como o “branco” chega a conclusões sobre “nós”; entender o “branco“ como o Outro, assim como os indígenas são entendidos como o Outro dos brancos. Que caminhos mentais percorrem uns e outros ao tentarem se aproximar do nexo social desses seus Outros? Uns mais céticos que outros, os estudantes indígenas com quem tenho convivido parecem depositar grandes esperanças no poder da comunicação intercultural, na capacidade humana de transpor barreiras culturais, na vontade de ir além, de apreender o essencial das interações interétnicas a partir de suas especificidades culturais. Como afirmou Gersem Baniwa num dos Seminários do DAN (Departamento de Antropologia da UnB) em dezembro de 2018, a antropologia é fundamental para perseguir essas questões.
É nesse sentido que pergunto se a antropologia permanecerá igual a sempre, aferrando-se a jogos de poder – poder irrisório e ocioso – que décadas de treinamento teórico e prático não conseguem superar completamente. Colegas recalcitrantes – fiéis escudeiros de uma tradição que, se não mudar, definha – ainda se recusam a abrir debates com estudantes indígenas quando estes desafiam, por exemplo, a sabedoria de um James Frazer quando confrontada com a sua própria tradição milenar, que é milenar, justamente, porque soube se transformar; ou quando esses estudantes sugerem leituras fora do cânone antropológico, numa tentativa de provocar discussões sobre o peso opressivo de ideias recebidas e sobre os méritos da multifocalidade. A força da autopreservação dos hábitos acadêmicos parece proteger alguns antropólogos contra esses desafios. Isto não significa abandonar os clássicos da antropologia, pois sem eles não haveria um campo claramente identificado como antropologia com a vocação de abrir nossas mentes para a diversidade cultural. São os fundadores da disciplina, com seu trabalho de base há mais de um século, que nos permitem ampliar os horizontes ilimitados da experiência humana.
Não deixa de ser irônico que essa abertura sem reservas para compreender a razão do Outro seja cerceada por oficiantes míopes demais, conservadores demais, tímidos demais, capazes de admirar Lévi-Strauss (1993) sem, no entanto, levar a sério as implicações de sua famosa máxima sobre a abertura dos indígenas para o Outro. (Um pequeno aparte para dizer que essa abertura ao mundo tem garantido que as tradições indígenas milenares não caduquem, como ilustra Pacificando o Branco [Albert & Ramos 2000]). No outro extremo, há os que rejeitam as raízes epistemológicas da antropologia em nome de uma imaginada justiça social, propondo trilhar um caminho que pode levar a um beco sem saída.
Sem despender grande esforço mental, pode-se imaginar a riqueza que nos traria o intercâmbio intelectual sobre a prática da intercientificidade. Por exemplo, uma coisa que os antropólogos acadêmicos podem começar a fazer é questionar o hábito acadêmico de rejeitar repetições em nome de uma duvidosa elegância, parcimônia e economia, como reza o cânone linguístico que contaminou nossos revisores.
Deveríamos prestar atenção ao que diz o historiador indígena norte-americano Donald Fixico sobre os méritos da repetição para expandir o ato de compreender e, por conseguinte, aumentar as chances de se respeitar o que em geral se ignora. Reconhecendo que uma mensagem precisa passar várias vezes pelos circuitos cerebrais para ser compreendida, Fixico chama a repetição de método circular e define-o como
uma filosofia circular que focaliza um único ponto e usa exemplos familiares para ilustrá-lo ou explicá-lo. Garante que todos compreendam e que tudo seja levado em conta, aumentando, assim, a possibilidade de harmonia e equilíbrio dentro da comunidade e com tudo mais (Fixico 2003, 15-16; minha tradução).
Muitos dos males da méconaissance antropológica (Ramos 2015) advêm de equívocos devidos a leituras apressadas, desatentas e pouco generosas. Hábitos de vida como este da repetição, quando transpostos para a prática profissional, têm o potencial de retificar distorções derivadas de escolhas erradas ou enganosas. A restrição de espaço no meio escrito imposta por regras editoriais rígidas (Ramos 2012) obriga-nos ao redundante resumo, um sumário de ideias – em si mesmo uma redução redundante – que, muitas vezes, é também o sudário dessas ideias. A opção indígena pela repetição, embora não garanta o total entendimento, diminui muito os riscos de mal-entendidos.
Algo semelhante ocorre com o ouvir. A paciência dos ouvintes indígenas, que sempre me fascina, contrasta flagrantemente com a agitação que, nós, acadêmicos não indígenas, sentimos ao ouvir uma palestra, um debate, uma argumentação. Muitas vezes ouvimos com impaciência um colega expor suas ideias, já esperando o momento de intervir. Interrupções ruidosas até podem ser tomadas como medida de sucesso do evento, mas pouco contribuem para uma compreensão saudável do tema abordado. Por contraste, a partilha de ideias compreendidas adequadamente poderia tomar o sentido de cerimônia, como sugere Shawn Wilson (2008), intelectual Cree do Canadá. Ser cerimonioso não é apenas ser formal, seguir um rito de pompa e circunstância, mas também ser cortês, polido e respeitoso para com o interlocutor em qualquer contexto. Se a intercomunicação fosse sempre tratada como cerimônia, ela asseguraria que uma etiqueta da interação superasse os percalços advindos da compreensão involuntariamente incompleta ou distorcida, da má interpretação intencional e do desrespeito gerado pela ignorância, que, muitas vezes, chega a ser cultivada. Talvez a inibição de muitos indígenas para se expressar em meios não indígenas resulte de algum receio de serem atropelados pela nossa pressa para falar sem ouvir, pelo descaso com a quintessência da comunicação plena, que é a repetição, muito mais compatível com os ritmos do cérebro humano. Pensar que a repetição é uma necessidade da comunicação oral e que, adultos e alfabetizados, já não precisamos mais dela, é um erro, como provam as frequentes desculpas, como, por exemplo, “eu não quis dizer isso, fui mal interpretada!” Ou então, “me expressei mal!”.
Sobre as barreiras da comunicação interétnica, ninguém se expressou de forma tão clara como Georges Sioui, historiador Huron do Canadá. Diz ele:
Sempre me surpreendo com as grandes dificuldades que têm os povos de culturas nativas ao tentar sensibilizar forasteiros sobre seus valores tradicionais. Também me pergunto por que há tanta falta de comunicação intercultural (...) e, sobretudo, como se pode criar uma vontade coletiva e individual por tal comunicação (Sioui 1992, xxi).
Cultivar a imagem do índio hiper-real (Ramos 1994) é um velho hábito que, certamente, custará a morrer. O hiper-realismo indigenista requer do “índio” que seja sofrido, abandonado, marginalizado, pobrezinho, muito humilde e eternamente grato pela bondade cristã de seus amigos “Cara-pálida”. Caricatura? Certamente! Popular? Sem dúvida! No entanto, o que esses estereótipos mais revelam não é a condição desvalida do “índio”, mas a empáfia e cegueira ética do “branco” protetor.
As dúvidas sobre a questão da comunicação intercultural ficam mais evidentes no contexto da educação indígena. Dois sistemas de transmissão de conhecimentos – a educação nacional e a educação intercultural – que não deveriam se anular mutuamente, ainda não foram propriamente assimilados pelos projetos de educação dita intercultural, sejam públicos, sejam privados e, muito menos, pela maioria dos educadores não indígenas. Sem esconder uma grande frustração, assim se expressa Gersem Baniwa ao mostrar que a
dificuldade de a escola indígena definir seu papel e sua função social ‒ se é formar um bom cidadão brasileiro profissionalmente ou um bom indígena ‒ tem gerado modelos administrativos e pedagógicos que operam à beira de uma escola ou de um processo educativo do “faz de conta”, com metodologias e epistemologias parciais ineficientes (2011, 254).
Ele vai mais longe quando declara que a “ideia de interculturalidade é bastante confusa, pouco clara e de difícil aplicação na prática pedagógica e consequentemente na vida das pessoas” (2011, 259). De fato, o termo educação intercultural opera no Brasil quase como um conceito-fetiche que mascara uma realidade escolar verdadeiramente esquálida.
Antropologia, para que te queremos?
Voltando à talvez quimérica Antropotopia, gostaria de revisitar algumas ideias que venho expressando há alguns anos (Ramos 2008, 2014). Admiro a verve com que o filósofo anarquista Paul Feyerabend emulava o trabalho antropológico, por sua capacidade de revelar sistemas de conhecimento alternativos e mais compatíveis com a compreensão do mundo do que a racionalidade positiva da ciência moderna. Lamentava o modo como a academia moderna rechaça em tom azedo a possibilidade de atribuir status de ciência às formas não ocidentais de conhecimento, especialmente, dos povos indígenas. Ao fim e ao cabo, dizia Feyerabend, o que fica de tanta racionalização não são métodos nem teorias, mas
juízos estéticos, juízos de gosto, preconceitos metafísicos, desejos religiosos, em suma, o que fica são nossos desejos subjetivos: a ciência em seu grau mais geral e avançado devolve ao indivíduo uma liberdade que ele parece perder ao entrar em suas partes mais pedestres (…) (1975, 285; grifo no original).
Ou seja, a pequena ciência reprime, a alta ciência liberta.
No entanto, o otimismo de Feyerabend com relação à etnologia só se justifica se o campo antropológico estender seu intellectual commons (Pratt 2011, 55), sua intelectualidade comum àqueles que deram suor e sangue para sobreviver a agressões que já levam mais de meio milênio, e sem os quais as análises antropológicas nunca teriam visto a luz do dia. Abraçar a intercientificidade é criar um ecúmeno antropológico. Com isto quero dizer que, mantendo suas características próprias, cada qual a seu modo e em interação, os conhecimentos acadêmicos e os indígenas em intercâmbio podem proporcionar uma troca frutífera, com ideias e perspectivas mútuas se interrogando continuamente. Esse exercício dialógico poderia também inibir a propagação de “teorias”[2] antropológicas pretensiosas e generalizantes com pouca potência heurística. Ao se submeter uma dessas teorias ao teste da crítica nativa, certamente, ela sofrerá reparos e ajustes, senão mesmo repúdio. Por sua vez, interpretações nativas não são imunes à crítica externa e os indígenas serão sábios em responder à altura desse desafio. A meu ver, este é um modo altamente proveitoso para o avanço da antropologia.
Por isso, reitero a pergunta do subtítulo: a antropologia continuará sendo a mesma, depois dos múltiplos desafios que nos chegam dos estudantes indígenas? Não está na hora de confrontarmos antigos hábitos da profissão, como poder acadêmico, hegemonia política, arrogância teórica? E se nos puséssemos no papel de atores coadjuvantes quando se trata de investigações in loco? Se, em vez de reduzir complexos sistemas de física, de ecologia, periodicidades cósmicas, estratificação do universo como meras “cosmologias”, começássemos a alongar nosso encurtado léxico, chamando-os, na ausência de termo melhor, CIÊNCIA? Porém, uma ciência construída nos moldes preconizados por Gregory Cajete, indígena Tewa do Sudoeste norte-americano: “uso ‘ciência nativa’ como metáfora para o conhecimento nativo e participação no mundo natural tanto em teoria como na prática”. E esclarece: “a ciência nativa não é física quântica, nem ciência ambiental, mas chegou a entendimento semelhante sobre leis naturais através da experiência e participação no mundo natural” (Cajete 2000, 14). Ou seja, se, para ser reconhecido em pé de igualdade com o ocidental, quiçá valha a pena traduzir o conhecimento indígena como “ciência” na língua que o Ocidente entende. Tal concessão pode gerar mais ganhos do que perdas e reduzir o C maiúsculo da ciência; ao se pluralizar em cs minúsculos, ela assumiria o tamanho que lhe cabe no mundo, como propõe Paul Little.
Retomemos o exercício de abrir caminhos que se bifurcam, à moda de Jorge Luis Borges, e perguntar, por exemplo, como reagiria a antropologia acadêmica se tomássemos narrativas do passado em que humanos e não humanos partilhavam do mesmo espaço, do mesmo tempo e do mesmo destino, não como os tais “mitos” de má fama (Ramos 2018, Sahlins 2022, 13) mas como expressões de uma consciência histórica própria, muito além do manual levistraussiano? Estará o crítico quéchua Ollantay Itzamná (2015) delirando quando desfere esta flecha contra os intelectuais não indígenas: “Que paradoxo: Eles dizem que têm filosofia e nós, apenas cosmovisão”[3]? Por sua vez, o povo aymara, num grito de altivez, declara: “Oprimidos, mas não vencidos!” (Rivera Cusicanqui 1984).
A consciência crítica dos indígenas cresce e culmina com a possibilidade muito bem-vinda de, mais cedo ou mais tarde, transformarem tais temas “teóricos” em letra morta, ou seja, quando os estudantes indígenas se apropriarem plenamente do saber antropológico e se lançarem num projeto etnográfico próprio sobre suas próprias sociedades e/ou as dos seus opressores históricos. Quando isso ocorrer, o que será do pesquisador de campo tradicional?
Numa reflexão ambígua, Claude Lévi-Strauss (1966) elogia os esforços dos defensores da salvage anthropology, imagina a entrada de intelectuais nativos na academia antropológica, mas vaticina que essa entrada levará a disciplina à destruição.
Quando praticada por membros da cultura que se propõe estudar, a antropologia perde sua natureza específica e se torna semelhante à arqueologia, história e filologia. Pois a antropologia é a ciência da cultura vista de fora e a primeira preocupação das pessoas conscientes de sua existência e originalidade deve ser reivindicar o direito de se observar a si mesmas, de dentro. A antropologia sobreviverá num mundo em mudança deixando-se perecer para renascer em novos moldes (Lévi-Strauss 1966, 126).
Ou seja, à moda de Missão Impossível, a antropologia se autodestruiria depois de cumprida a sua tarefa de resgatar culturas em extinção, passando o bastão para seus antigos objetos de pesquisa que sobrevivam ao holocausto cultural.
Mas não há que ter pânico! Se o protagonismo exclusivo no campo da etnografia não é mais prerrogativa dos antropólogos não indígenas, resta-nos nada menos que um universo inteiro de papéis a desempenhar dentro da própria antropologia. De saída, vemos que a antropologia tem resistido brilhantemente às incursões de antropólogos por suas próprias sociedades, sem alterar uma vírgula do seu perfil disciplinar. Isto significa que ela não precisa do “olhar distanciado” para manter sua integridade.
O investimento intelectual de toda uma vida (dos antropólogos) começa a frutificar entre aqueles (seus colaboradores nativos) que, afinal, tornaram possível esse investimento. Como um eco evocativo de um cargo cult melanésio (Worsley 1987), esse movimento dos antigos “objetos” de pesquisa pretende apreender a substância da etnografia, livre de etnógrafos e sob novas formas de erudição. A relação dialógica entre observador e observado, tão alardeada, mas, em geral, mantida num vácuo social pelos autores pós-modernos, pode muito bem se materializar como uma joint venture na qual o principal acionista não é mais o etnógrafo convencional.
Entre intelectuais indígenas, percebemos uma clara convergência de interesses em sua nova atitude para com o legado dos antropólogos. Autodefesa e autorrepresentação caminham juntas quando os índios, como todo mundo, se dão conta de que conhecimento é poder e que a escrita é uma poderosa tecnologia para acumular conhecimento. A pletora de livros escritos por mulheres e homens indígenas que enchem cada vez mais prateleiras da minha estante não poderia ser uma demonstração mais concreta da adoção da escrita por povos tidos como atados para sempre à oralidade. Por que, então, deixar a sabedoria de seu mundo unicamente em mãos forasteiras? Conversações, sim; monólogos, não! Lévi-Strauss pode descansar em paz, porque a antropologia não perecerá, apenas se tornará mais diversificada e atraente.