Resumen: Há mais de cinco anos, quando a autora começou a elaborar esse texto, do qual participo na condição de um de seus interlocutores, a nossa relação, que se desdobrou posteriormente em vínculo de orientação de doutorado, estava no início. Começávamos ali a discutir acerca da chegada de indígenas na antropologia pela porta da frente da disciplina, enquanto estudantes de programas de pós-graduação em busca por um diploma e pela expertise característica dessa disciplina.
Abstract: More than five years ago, when the author began to draft this text, in which I participated as one of her interlocutors, our contact, just started, became a student-advisor relationship for my doctoral research. Back then, we began to discuss the issue of indigenous scholars entering anthropology through its front door as students in graduate programs, seeking a degree and anthropological expertise.
Keywords: Indigenous Anthropology, debate, Alcida Rita Ramos.
Palavras chave: Antropologia indígena, debate, Alcida Rita Ramos
PPGAS 50 Anos
Antropologias indígenas e a questão da posicionalidade
Indigenous anthropologies and the issue of positionality
Antropologias indígenas e a questão da posicionalidade
Recepción: 28 Julio 2022
Aprobación: 19 Septiembre 2022
O argumento principal do texto apresentado nesta edição do Anuário está centrado na reflexão sobre como a antropologia pode se renovar a partir da entrada de seus íntimos outros (povos indígenas) na condição de pares em igualdade de elaboração de conhecimentos e interpretações sobre o mundo humano e não humano. A autora aborda, com franqueza, a temática em voga na atualidade, versando sobre, por um lado, as suas expectativas quanto ao teor e conteúdo do que os intelectuais indígenas podem contribuir para a produção antropológica e, por outro, a dimensão política inerente à entrada em um campo de disputas, de sujeitos que foram, no passado, meros objetos de pesquisa. Essas duas dimensões, se assim quisermos situar a problemática elaborada por Ramos, são da maior importância para a efetivação do que a autora trata por ecúmeno antropológico e, embora estejam intimamente relacionadas, arriscaria dizer estar a primeira subordinada à segunda.
De antemão, parece-me que a tentativa de tentar definir a priori como viria a ser uma produção de indígenas antropólogos, em sua forma e conteúdo, arrisca cair naquilo que tanto criticamos acerca das malogradas generalizações antropológicas em torno de um pensamento indígena substanciado, quase sempre reforçando as projeções, fobias e anseios do mundo branco em torno de seus Outros. Logo, tendo a acreditar que debater as condições políticas para que a presença indígena possa se materializar, de forma eficaz, nas universidades e na antropologia já seja, por ora, de grande valia. Não estou me referindo apenas às condições estruturais mínimas para que indígenas possam frequentar cursos de antropologia (bolsas, políticas de ingresso e permanência), mas também e, sobretudo, às condições políticas que dizem respeito à constituição de campos científicos, com a devida ênfase nos desafios de romper com os aspectos da cultura (ou habitus)[1] dos antropólogos em voga nas universidades e entre os nossos pares. O passo inicial, que já foi dado, muito lentamente, rumo ao ecúmeno antropológico, é neste momento menos sobre o que está escrito nas etnografias e copiosas teses, dissertações e nos artigos e mais sobre ações concretas dentro desse campo social que segue, como em todo campo social, impregnado por antigas relações de poder e manutenção de estruturas de privilégios. Refiro-me, a exemplo, sobre o modo como coalizações de forças de ordem geopolítica e histórica se encontram refletidas na distribuição de recursos escassos entre programas de pós-graduação em antropologia, o que corrobora com a continuação de desigualdades regionais acumuladas. Ou sobre como as percepções acerca da ciência e da Universidade enquanto lugares de “excelência”, onde um certo modo de escrever e um certo tipo de conhecimento é valorado, subscrevem diretamente os privilégios de indivíduos cujas trajetórias estão relacionadas ao acesso a certas instituições de ensino, ao passo que distanciam aqueles cujas histórias e/ou vinculações étnico-raciais caminharam por projetos educativos e societários de outras ordens.
Ramos já havia tocado nesses problemas, de forma assertiva e antecipatória, em artigo de 2008, quando utilizou metáforas cênicas para pensar o protagonismo indígena na elaboração de etnografias ou autoetnografias, algo que ela vislumbrava como a realidade de um futuro não tão distante. Ali, seu argumento esteve centrado no debate sobre as posições ocupadas por pesquisador-pesquisado no processo de elaboração dos conhecimentos antropológicos, refletindo, desde então, sobre qual seria o lugar do pesquisador de campo tradicional em um contexto onde os sujeitos observáveis preferenciais estariam não apenas na Universidade, mas escrevendo sobre si mesmos (como fazem muitos de seus congêneres não indígenas), ocupando cargos políticos e exercendo empreendimentos políticos diversos para terem suas vozes ouvidas. Nesse contexto, seria talvez o momento ideal para que o etnógrafo tradicional se retirasse de cena, quiçá ajudasse nos bastidores, mas deixasse o palco indigenista para os próprios indígenas.
Tal debate sobre as posições ocupadas por sujeitos dentro do campo da antropologia segue atual e pertinente. Em seu já clássico “Descolonizando Metodologias” Linda Tuhiwai Smith (2018) sugeriu que existe entre os Maori a percepção de que eles foram exaustivamente pesquisados: “nós somos o povo mais pesquisado do mundo”, eles diriam. Enquanto indígenas, a ideia de ser pesquisado pode muitas vezes despertar a sensação de lisonja diante do interesse do Outro por aqueles aspectos mais corriqueiros e cotidianos de nossas vidas. Pode, ainda, despertar incômodo diante do escrutínio e da curiosidade alheia. Lembro-me, por exemplo, de quando estive no Rio de Janeiro, em março de 2019, participando de um seminário intitulado Indigenous Methods, que versava sobre metodologias colaborativas entre pesquisadores não indígenas e indígenas em diferentes continentes. Minha comitiva participou de uma atividade cultural chamada “Astronomia Cultural: Uma viagem, pelos céus indígenas”. Alguns indígenas participantes do evento faziam a cobertura midiática da cerimônia com registro audiovisual e, em certo momento, percebi que, quando um dos indígenas sacou a sua câmera profissional para fazer uma fotografia, Carlos Fausto, conhecido etnólogo, puxou a sua própria câmera para registrar o indígena registrando. Pensei comigo: “esta é a hora em que eu tiro uma foto do antropólogo fotografando um indígena fotografando”. “Quem enquadra quem?”. Lembrei-me dessa memória também quando uma amiga não indígena recém-ingressa em um Mestrado de Antropologia me disse que pensava em ter como tema de pesquisa “as pesquisas feitas por antropólogos indígenas”. Indaguei-me: “quando vamos pesquisar, os antropólogos não indígenas querem pesquisar a gente pesquisando?”.
Essa foi um pouco a minha sensação quando Alcida me convidou para uma entrevista suscitada pela escrita de seu texto. Como alguém com formação em antropologia, refleti sobre aquela situação, de maneira estrutural: “um indígena sendo entrevistado por uma antropóloga para uma análise”. As posições, portanto, me pareciam claras: pesquisador e pesquisado. Lembro-me de que, assim que lá cheguei, tentei equacionar nossas posições com uma proposição: “também quero entrevistá-la em breve, professora, para um artigo que estou fazendo...”. A sensação inicial, todavia, deu lugar a algo diferente, quando começamos a pensar sobre as possibilidades de diálogo que emergem entre antropólogos indígenas e não indígenas, e culminou no exercício que agora apresentamos.
A sua proposta para uma antropologia ecumênica, como ela mesma afirmou em seus textos, não é, de fato, algo novo (enquanto ideal), na medida em que o encontro de conhecimentos em pé de igualdade, seja na antropologia, seja nas relações interétnicas de forma mais ampla, é algo que, há muito tempo, vem sendo, antes de sonhado, demandado e exigido por sujeitos que tiveram suas realidades destroçadas pela expansão imperialista europeia. O que não é, de forma alguma, um demérito de sua proposição, pois as diferentes elaborações intelectuais sobre o tema são bem-vindas e apenas atestam a necessidade de afirmar que, não importa o nome que demos ao que hoje ainda parece utópico ou, pelo menos, distante, o ideal de uma comunidade antropológica horizontalmente diversa é algo sobre o qual vale a pena refletir. Atestam ainda a importância de pensar uma produção antropológica que seja menos pautada em quem pesquisa quem¸ ou na qual os polos da pesquisa etnográfica não sejam estanques, mas em uma constante dança das cadeiras.
Todavia, pensar uma antropologia em que as posições pesquisador-pesquisado estejam superadas, ou que tais posições deixem de carregar consigo seus velhos significados estigmatizantes, justamente por não mais serem estáveis, só será possível, por mais paradoxal que pareça, se jamais perdermos de vista o debate posicional e os vínculos dos diversos sujeitos no mundo social. Em sua sociologia dos intelectuais, Gramsci (1981) já havia apontado que, dentro do debate pautado nas vinculações de classe que lhe interessavam, tanto o intelectual tradicional como o intelectual orgânico estariam ligados por vínculos de lealdade à sua própria classe social. O que os distinguiria não seria o pertencimento a classes específicas e sim à posição que suas respectivas classes ocupavam dentro da produção de aparatos ideológicos responsáveis pela manutenção de relações sociais ditadas pela hegemonia. Isto importa para pensarmos que a constituição de uma antropologia internamente diversa precisa considerar um passo importante que esbarra na própria separação entre o que seria uma antropologia indígena e uma antropologia não indígena, pois haveria alguma antropologia que não fosse, de certa forma, indígena? Ou melhor dizendo, não temos que partir do pressuposto que todo mundo é indígena de algum lugar ou, pelo menos, de alguma forma? Se não o é em termos de uma relação originária com um território saqueado pelo imperialismo europeu, como o caso dos indígenas brasileiros, é nas vinculações de seu pensamento com sua matriz eurocêntrica de origem e de onde fala. Dito de outra forma: a antropologia não se sustentará como se, de um lado, estivesse um “nós” irreflexivo e, de outro, um “eles” compósito “alterizável” (indígenas, gays, negros e negras, quilombolas, periféricos, queer, populações tradicionais, etc.).
Posso dizer que a chegada de indígenas antropólogos traz consigo, inexoravelmente, o coletivo mais amplo que compõe esse campo de conhecimento (brasileiros; neoportugueses; descendentes de colonizadores?)[2] a se deparar com os desafios acerca de suas próprias posições na sociedade brasileira, cujas vinculações não serão perdidas de vista. Em um primeiro momento, percebi entre o grupo de indígenas antropólogos que, desde meados de 2010, encabeçaram uma articulação mais expressiva e crescente na disciplina, que localizar as posições dos sujeitos era parte de um processo necessário de críticas a serem feitas após décadas de relação com praticantes da antropologia. Hoje, dentro do debate que fazemos, a partir de outras inserções no campo, a exemplo da Articulação Brasileira de Indígenas Antropóloges (ABIA), e em diálogo com formulações conceituais como esta de antropologia ecumênica, insistir que nenhum sujeito é Universal e que todos devem ter a sua posição considerada, é o ponto de partida para qualquer tentativa de comunicação interétnica. Discutir as múltiplas posições dentro de suas respectivas sociedades e os vínculos sociais dos pesquisadores é importante porque tais elementos são cruciais para entendermos o que está sendo dito, como está sendo dito, e por que está sendo dito nesse ou naquele estudo. Por exemplo, sabemos que a dimensão da experiência é crucial para a etnografia, mas as possibilidades circunscritas pela etnografia a partir da experiência hoje se tornaram mais complexas na medida em que outros sujeitos se apoderaram dessa ferramenta com interesses diversos. Essa diferença não é de grau, “quem tem mais ou menos experiência com determinado tema/área etnográfica”, e sim de qualidade, que varia conforme as posições e os vínculos dos sujeitos. A experiência de “ter estado lá” é de um tipo, enquanto que a experiência de “ser de lá/fazer parte do grupo” é de outro.
Com o desafio posicional corrigido e colocado, não me parece haver espaço para temores sobre a prerrogativa etnográfica se tornar autocentrada, ou melhor dizendo, sobre o futuro da disciplina ser autoetnográfico. Na minha experiência enquanto um antropólogo do povo Tuxá, qualquer que seja o intuito indígena para com a sua jornada dentro da disciplina, parte-se da busca por diálogo, troca, escuta, mas também retorno, e nunca monólogos. Se os antropólogos estiverem certos e o etnocentrismo continuar sendo uma característica universal, a natureza específica da antropologia não é o ato de falar sobre os Outros, mas a constatação de que precisamos de muitos Outros para vermos melhor a nós mesmos. Como disse Saramago, “é necessário sair da ilha para ver a ilha”.