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Com os indígenas, uma antropologia mais atraente
Francisco Sarmento
Francisco Sarmento
Com os indígenas, uma antropologia mais atraente
With the Indigenous, a More Attractive Anthropology
Anuário Antropológico, vol. 48, núm. 3, pp. 73-77, 2023
Universidade de Brasília
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Resumo: Nos últimos anos, representantes de muitos povos originários têm surgido no cenário acadêmico das universidades brasileiras após muita luta, aliada a uma certa mudança na direção das práticas do estado, em termos de direito e acesso a políticas. Mas essa presença nas universidades, antes restrita aos indígenas, hoje chama atenção e provoca perguntas acerca dos mesmos e como as disciplinas que frequentam continuarão. Este é o caso nos inúmeros programas de diferentes disciplinas, entre os quais os de antropologia, em todo o país. E como se tem encarado esse processo é ao mesmo tempo similar entre todos no que diz respeito a questões históricas e políticas em geral, com imagens que a sociedade dominante tem dos indígenas e o tipo de estruturas das instituições, porém variável para certos grupos ou indivíduos devido às suas regiões, com o seu tempo e as formas específicas de contato. Assim, vindos de um mundo transformado pelo processo colonial, e sabedores disso, estes atores pretendem “indigenizar” os espaços e, à medida que criticam as relações de espólio e opressão pela sociedade ocidental, os contrapõem aos seus conhecimentos e também se apropriam dos instrumentos da disciplina, de maneira política e intelectual, enquanto interação e debate com o universo não indígena. Então a universidade é tomada como um palco muito propício a esta causa, pois nela parecem estar os possíveis ouvintes e interessados nas outras formas de estar no mundo.

Palavras-chave: debate, Antropologia indígena, Alcida Rita Ramos.

Abstract: In recent years, members of many native peoples have enrolled in Brazilian universities after a long struggle and state changes concerning their right to assess specific policies. Previously limited, the indigenous presence on university campuses is drawing attention and posing questions about these students and how the courses they take will be handled in the future by the programs nation-wide covering a vast range of subjects, including anthropology. In terms of general historical and political issues, this process has been likened to the images the dominant society still holds of indigenous peoples, and the institutional structures into which they are admitted, notwithstanding regional variations and specific histories of interethnic contact. Coming from worlds transfigured by colonialism, and deeply aware of it, indigenous scholars seek to “indigenize” university spaces. While condemning the Western-promoted plunder and oppression, they compare it with their own knowledge. On the other hand, they appropriate anthropology’s tools with the political and intellectual purpose of debating and interacting with the surrounding non-indigenous world. Hence, the university becomes a proper setting for their cause, as it includes the public that may be interested in other ways of being in the world.

Keywords: debate, Indigenous Anthropology, Alcida Rita Ramos.

Carátula del artículo

PPGAS 50 Anos

Com os indígenas, uma antropologia mais atraente

With the Indigenous, a More Attractive Anthropology

Francisco Sarmento
Universidade de Brasília, Brasil
Anuário Antropológico, vol. 48, núm. 3, pp. 73-77, 2023
Universidade de Brasília

Recepción: 15 Julio 2022

Aprobación: 19 Septiembre 2022

Nos últimos anos, representantes de muitos povos originários têm surgido no cenário acadêmico das universidades brasileiras após muita luta, aliada a uma certa mudança na direção das práticas do estado, em termos de direito e acesso a políticas. Mas essa presença nas universidades, antes restrita aos indígenas, hoje chama atenção e provoca perguntas acerca dos mesmos e como as disciplinas que frequentam continuarão. Este é o caso nos inúmeros programas de diferentes disciplinas, entre os quais os de antropologia, em todo o país. E como se tem encarado esse processo é ao mesmo tempo similar entre todos no que diz respeito a questões históricas e políticas em geral, com imagens que a sociedade dominante tem dos indígenas e o tipo de estruturas das instituições, porém variável para certos grupos ou indivíduos devido às suas regiões, com o seu tempo e as formas específicas de contato. Assim, vindos de um mundo transformado pelo processo colonial, e sabedores disso, estes atores pretendem “indigenizar” os espaços e, à medida que criticam as relações de espólio e opressão pela sociedade ocidental, os contrapõem aos seus conhecimentos e também se apropriam dos instrumentos da disciplina, de maneira política e intelectual, enquanto interação e debate com o universo não indígena. Então a universidade é tomada como um palco muito propício a esta causa, pois nela parecem estar os possíveis ouvintes e interessados nas outras formas de estar no mundo.

Atenta a este acontecimento, Alcida Rita Ramos, em “Intelectuais indígenas abraçam a antropologia. Ela ainda será a mesma?”, enxerga esse cenário na antropologia e vê com esperança os indígenas como sujeitos plenos no campo antropológico, contribuindo para sua urgente renovação. Este campo seria, conforme sua proposta, um ecúmeno antropológico, onde se encontram e interagem diversos conhecimentos articulados e entendidos por diferentes atores indígenas e não indígenas, “cujo denominador comum é a busca de compreensão de si e dos outros”, para além da ideia que pretende abertura científica, mas que continua eurocêntrica quando qualifica seus cânones e arcabouço como ciência e nega o mesmo atributo ao conhecimento de outras culturas. Portanto, uma antropologia neste sentido seria intercultural e antropotópica, na qual não haveria objetos e sujeitos de investigação, ou melhor, todos seriam potencialmente objetos e sujeitos de investigações de todos os outros, num espaço habitado por indígenas e não indígenas, que cruzariam suas respectivas tradições intelectuais, debatendo diferenças e semelhanças. Aparentemente, tudo isso é utópico, mas podemos dizer que já é um desafio abraçado pelos indígenas. Pois se não o têm como realidade, o vivem como potencialidade!

A partir do texto da autora, pontuamos reflexões que nos estão mais próximas no momento. De início, devemos dizer que, em todo esse cenário, embora não seja geral, se percebe certo receio acadêmico em relação aos indígenas que surgem no campo antropológico. Aqui se trata tanto do temor de virem a confrontar a disciplina e, assim, as teorias e as pesquisas específicas como da desconfiança da qualidade e do rigor científico e da validade dos trabalhos e proposições que apresentam. Entretanto, devemos lembrar que a ciência só se renova quando passa por questionamento, confusão e revolução de suas estruturas. Então, e desde já respondendo à indagação presente no texto, que soa mais como uma provocação aos próprios antropólogos ocidentais e às estruturas da antropologia, podemos dizer que esta nova presença na disciplina, antes de ser uma ameaça, representa apenas outras possibilidades e, inclusive, em diálogo com o arcabouço instituído e em conjunto com os demais representantes. Quanto à qualidade de suas pesquisas, isso pode caminhar para se perceberem outros procedimentos ou modelos investigativos e de comunicação que possuem os indígenas, embora estes possam também comungar as maneiras próprias de suas epistemologias e igualmente utilizar as técnicas e teorias mais convencionais que acham devidas.

Evidente que existem aqueles que chegam na disciplina revoltados, devido ela ser um instrumento de investigação da sociedade que após invadir, massacrar, espoliar e proibir línguas e culturas, retorna às mesmas sociedades subjugadas, afrontando-as com o fim de estudá-las naquilo que ainda lhes resta, como uma continuidade da rapina. Porém, essa pode ser também uma visão míope das coisas. Porque o problema não está na antropologia propriamente, mas no reflexo que ela transmite, que é o eurocentrismo, existente de antes mesmo do início da disciplina. Mas vejamos que ela, à medida que se desenvolvia, tornou-se também humanista e sensível em compreender as perdas e violências cometidas contra as sociedades indígenas; e quando estas estavam para ser extintas completamente, os antropólogos foram dos poucos que resolveram estar do lado dos povos indígenas e acreditar que podiam continuar. Por isso, dizemos que ela é colonialista, mas é também capaz de olhar para si mesma, se renovar e ser redentora para realidades de muitos povos. Aqui está um dos porquês dos indígenas resolverem abraçá-la.

Desse modo, nenhum buscou apropriar-se da disciplina com o propósito inicial de desestruturar suas bases. Até porque não as conhecia e é de se levar um tempo para entendê-las. Diferente é reconhecer que os indígenas ao perceber o mundo escolar e acadêmico veem-no como interessante e possível de ser utilizado em vista de seus contextos. Por isso, como acertadamente percebe Alcida, os indígenas estão ávidos por dominar o instrumental das ciências não indígenas. E sim, uma maioria percorre a formação pensando-a pragmaticamente para suas realidades locais ou para pautas indigenistas mais amplas; outros, insatisfeitos com as imagens criadas pelos pesquisadores, tomam a si a tarefa de desafiar o status quo acadêmico; enquanto outros tomam-na como modo de desvendar as razões e “desrazões” da sociedade ocidental no trato com os povos indígenas; e por último, acrescento, há aqueles que pretendem dar a conhecer, por meio da disciplina, uma antropologia que seja indígena a partir das epistemologias de seus próprios povos.

Para os que resistem aos indígenas e também aos indígenas que resistem à antropologia, devemos dizer que a propensão ao conhecer e, entre este, o conhecer o Outro, é da natureza de todas as sociedades. As tradições indígenas demonstram que os antepassados já teorizavam acerca das relações interétnicas e das outras gentes, sejam humanos ou não humanos. E quando os europeus chegaram, também foram inseridos em suas ideias conforme aquilo que demonstravam na relação com os antigos. Desse modo, a formulação da antropologia acadêmica até pode ser europeia, mas à medida que se democratiza com os Outros, torna-se palco de outras possibilidades. Assim, não devemos temer o seu futuro. Ademais, ela já dá mostras de que são possíveis investigações e debates a partir “de dentro” e não só “de fora”. Vejamos que temos hoje pesquisas voltadas a certos campos da própria sociedade ocidental. De outro lado, temos etnografias e reflexões elaboradas por indígenas no Brasil entre seus próprios grupos sociais, demonstrando seus pontos de vista de forma brilhante e esclarecedora, que em nada desestimula a continuidade das demais e novas pesquisas de outros antropólogos naqueles mesmos povos, sem contar com os trabalhos de indígenas antropólogos de outros cantos da América e da Oceania. Na verdade, se conseguirem combinar pesquisas em conjunto pode ser maravilhoso, pois enriquecem com esclarecimentos de diferentes perspectivas, então, de forma mútua. Ainda além, é possível sim os indígenas se voltarem também para estudos mais flexíveis que não retratem somente a autoetnografia, a etnologia e o indigenismo, mas que isso seja conforme os seus interesses. A questão é que a história foi muito cruel com as sociedades indígenas para deixá-las de lado no momento. Mas certamente adiante teremos igualmente outras direções de pesquisa.

Agora, uma das coisas que chama atenção nos debates é a busca de chamar os conhecimentos indígenas de “ciência”. Geralmente, em discussões, tanto de indígenas como de outros ao tratar de sociedades indígenas, acontecem também usos de outros conceitos, como “medicina”, “religião” etc. Pessoalmente, penso que uma coisa é conceber que os conhecimentos de outros povos, entre estes os dos povos indígenas, são equiparáveis em sofisticação com os conhecimentos ocidentais, mas com histórias e princípios próprios; outra coisa é tomá-los como idênticos, por mais que tenham similaridades, e acabar confundido, assim deixando de ter a coisa mais linda que os universos poderiam ter, que é a diferença. Isto sim que torna as coisas atraentes. Ou se explica que os conhecimentos dos povos nativos sejam ciência, mas que o são em outros termos, pois a ciência tem alguns séculos de formação no Ocidente, ou se aceita a diferença de epistemologias, levando em conta que existem diferentes manifestações de conhecimento.

Outra coisa está em que ainda causa estranhamento ver indígenas circularem nos ambientes dentro de uma sociedade que enxerga estratificações e considera níveis desiguais entre as formas de conhecimento. Mas a antropologia é um meio onde se pode discutir questões que interessam a todas as sociedades. Então é positivo o trabalho de antropólogos que buscam mudar a visão pobre e ultrapassada acerca dos povos indígenas e se lançam para novas perspectivas, num exercício para construção de uma antropologia a partir da discussão conjunta dos indígenas e dos não indígenas. Pois entre poucos que buscam uma compreensão mais próxima das realidades, histórias e perspectivas indígenas, geralmente estão os antropólogos que em muitos casos também se interrogam sobre a direção de sua própria sociedade. Agora temos também outros desafios para que o espaço antropológico encontre um caminho, que no dizer de Alcida seria ecumênico. Entre estes está o aprimoramento necessário dos institutos e departamentos de antropologia na abertura aos indígenas, buscando quebrar a resistência sistêmica que prevalece, eliminando o trato hierárquico que há na relação com representantes de outras sociedades não brancas e ocidentais, promovendo políticas que os ajudem a lidar com as carências escolares e possibilitando-lhes recursos, espaços e divulgação de suas pesquisas.

Por outro lado, os indígenas que encaram a antropologia têm também seus desafios. Exige-se conhecer bem os princípios e fundamentos da disciplina, assim como a base cultural do Ocidente, de onde ela provém, para assim compreender como ela percorreu e foi pensando os outros povos. Nesse exercício está implicado que para conhecer melhor a própria sociedade, é necessário conhecer muitas outras; e que apreender outras linguagens é indispensável para o acesso a mais informações, procedimentos e comunicação. Para além, há de se refletir que se apoderar deste instrumento não é fazer meras compilações ou traduções de histórias e de tradições, mas apresentar discussões, proposições e pensamento sobre um mundo ou sobre o encontro de mundos. Em meio a isso, se poderá ir além das discussões que prevalecem na antropologia, entre as quais as ideias de natureza e cultura. Ela é uma questão fundamental para ser discutida pelos indígenas, pois está por trás de muitas outras questões que envolvem a disciplina e a cosmologia ocidental.

Por fim, como foi dito, temos a potencialidade de um mundo. Os baserã, conhecedores ye’pâ-masa, concebem que as coisas se transformam através do u’uró, o som/poder do pensamento que persegue os caminhos/rios de conhecimento. Temos um percurso pela frente! Se tudo isso vier a ser cuidado com muita inteligência, os indígenas terão um grande papel na antropologia. Assim a antropologia não continuará igual, mas também indigenizada e, desse modo, sim, mais diversificada e atraente.

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