Resumo: Muito provavelmente, este é o primeiro debate acadêmico entre antropólogos interétnicos sobre o potencial de transformação da disciplina antropológica que a chegada de profissionais indígenas enseja. Após um rápido exame de textos escritos por indígenas em diversos países, não encontrei nada semelhante, apenas o tema recorrente, e compreensível, dos efeitos da colonização ocidental sobre povos indígenas ao redor do mundo. Antropólogos indígenas nos Estados Unidos, Canadá e outros países, principalmente das Américas, expõem as dificuldades que profissionais nativos enfrentam nos meios acadêmicos, mas não encontrei tentativas de influir no devir da disciplina. Importantes iniciativas, como as de Linda Tuhiwai Smith (Maori, Nova Zelândia), Margaret Kovach (First Nations, Canadá), Shawn Wison (Cree, Canadá), Gregory Cajete (Tewa, Estados Unidos) e Devon Mihesuah (Choctaw, Estados Unidos), entre muitas outras, concentram seus esforços na criação de métodos indígenas de investigação, ricas contribuições que ampliam o universo do conhecimento no âmbito acadêmico, mas o foco de atenção desses autores é desenvolver procedimentos científicos independentes dos cânones ocidentais. De nossa parte, pretendemos ir um pouco mais além: ao trazer procedimentos indígenas de produção e aquisição de conhecimento, almejamos transformar certos hábitos acadêmicos tradicionais, especificamente no campo da antropologia.
Palavras-chave: Antropologia indígena, Réplica a Baniwa, Tuxá e Sarmento.
Abstract: This is probably the first academic debate between interethnic anthropologists about the possible transformations of our discipline triggered by the arrival of indigenous practitioners. After glancing at texts written by indigenous people in other countries, I have not found anything similar, only the recurring – and perfectly understandable – issue of western colonization and its effects on indigenous peoples around the world. Native anthropologists from the United States, Canada, and elsewhere in the Americas expose their difficulties as native professionals in the academic milieu, but do not try to change the discipline. Important works, such as those by Linda Tuhiwai Smith (Maori, New Zealand), Margaret Kovach (First Nations, Canada), Shawn Wison (Cree, Canada), Gregory Cajete (Tewa, United States), and Devon Mihesuah (Choctaw, United States), among many others, focus on developing indigenous research methods. Important contributions as these are to improve knowledge in the academy, their goal is to devise scientific procedures apart from Western canons. In turn, we try to go a little farther. We bring up indigenous procedures to produce and acquire knowledge as an attempt to change certain traditional academic habits, particularly in anthropology.
Keywords: Indigenous Anthropology, Reply to Baniwa, Tuxá & Sarmento.
PPGAS 50 Anos
Réplica
Reply
Recepción: 07 Marzo 2023
Aprobación: 15 Marzo 2023
Muito provavelmente, este é o primeiro debate acadêmico entre antropólogos interétnicos sobre o potencial de transformação da disciplina antropológica que a chegada de profissionais indígenas enseja. Após um rápido exame de textos escritos por indígenas em diversos países, não encontrei nada semelhante, apenas o tema recorrente, e compreensível, dos efeitos da colonização ocidental sobre povos indígenas ao redor do mundo. Antropólogos indígenas nos Estados Unidos, Canadá e outros países, principalmente das Américas, expõem as dificuldades que profissionais nativos enfrentam nos meios acadêmicos, mas não encontrei tentativas de influir no devir da disciplina. Importantes iniciativas, como as de Linda Tuhiwai Smith (Maori, Nova Zelândia), Margaret Kovach (First Nations, Canadá), Shawn Wison (Cree, Canadá), Gregory Cajete (Tewa, Estados Unidos) e Devon Mihesuah (Choctaw, Estados Unidos), entre muitas outras, concentram seus esforços na criação de métodos indígenas de investigação, ricas contribuições que ampliam o universo do conhecimento no âmbito acadêmico, mas o foco de atenção desses autores é desenvolver procedimentos científicos independentes dos cânones ocidentais. De nossa parte, pretendemos ir um pouco mais além: ao trazer procedimentos indígenas de produção e aquisição de conhecimento, almejamos transformar certos hábitos acadêmicos tradicionais, especificamente no campo da antropologia.
A iniciativa que começa a surgir no Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília tem como um de seus pilares a possibilidade de construir uma face da antropologia aberta a inovações que os intelectuais indígenas estão aptos a trazer para a academia. Espero que o diálogo que aqui travamos enseje a criação de eventos, incluindo seminários e disciplinas, que tragam à tona anseios, projetos e expectativas sobre uma antropologia que acolha outras visões de mundo e outras epistemologias, com o objetivo de torná-la mais fiel à sua vocação centenária de abarcar a diversidade humana em toda sua plenitude; que outros autores e outros temas sejam postos na mesa de debates sobre questões importantes do fazer antropológico em constante fluxo, tornando o Brasil um pioneiro que abre novos caminhos do pensamento antropológico.
Não se trata absolutamente de derrubar as premissas fundantes da antropologia, de descartar os clássicos da disciplina, ou de rejeitar o olhar antropológico. Afinal, sem eles, ela não seria antropologia. Ao contrário, o que se quer com debates como este é enriquecer a disciplina com outras premissas que começamos a vislumbrar e que são dignas de atenção, premissas essas que pesquisadores de campo conhecem e admiram, mas, por razões de várias ordens, relegam ao nicho hermético da “etnografia”.
Os comentários de Felipe Tuxá, Francisco Sarmento e Gersem Baniwa, todos com vínculos de várias ordens com o Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da UnB, levam a discussão do meu artigo a novos patamares. Antropóloga não indígena que sou, posso manifestar o meu mal-estar com o estado atual da disciplina, mas não me compete pretender seguir o caminho que eles vêm trilhando nos campos da antropologia. Ouvi-los é fundamental, lê-los é obrigatório. Ao me debruçar sobre seus comentários, percebo que o nosso denominador comum é maior do que eu esperava, dadas as nossas distintas origens, gerações e trajetórias. Tenho a sensação de que meu texto, experimental, tentativo, arriscado, ganha corpo e parece mais convincente quando visto por seus olhos. Eles reforçam a minha convicção de não estar pregando no deserto e que há, sim, algo real e urgente a ser discutido.
Vejamos primeiro os pontos comuns aos três comentários para depois examinar os seus aspectos individuais. Os três comentaristas consideram que, primeiro, seguir a carreira da antropologia é uma estratégia de fortalecimento político para os povos indígenas ao usar os instrumentos analíticos que ela fornece aos seus estudantes universitários. O aprendizado sistemático de conceitos antropológicos pode equipá-los com argumentos qualificados inteligíveis aos gestores de Estado, capazes de os convencer a garantir a legítima defesa dos direitos indígenas.
Ao rechaçar julgamentos de valor sobre a legitimidade e pertinência das inúmeras manifestações culturais mundo afora, a antropologia moderna desenvolveu técnicas e posturas capazes de decifrar lógicas distintas e irredutíveis umas às outras. Por mais de um século, antropólogos não indígenas acumularam uma pletora de dados sobre sociedades não ocidentais que se transformaram em etnografias hoje valiosas para muitos povos por subsidiarem as novas gerações que buscam recuperar tradições quase perdidas. No entanto, esse não é o aspecto que mais atrai estudantes indígenas à antropologia. Como ressaltam os três comentaristas, são os mecanismos, procedimentos e posturas que a disciplina desenvolveu no esforço de compreender a alteridade. Esses mesmos dispositivos utilizados por pesquisadores não indígenas para apreender o mundo indígena agora servem ao propósito inverso: para que indígenas possam decifrar a lógica do mundo ocidental, franqueando-lhes um conhecimento estratégico que pode subverter a atual correlação de forças que os humilha e diminui quando os submete à hegemonia do conhecimento “científico” em detrimento do conhecimento ancestral. Como corolário dessa subversão, equiparar os conhecimentos de um Frazer, plasmados na escrita erudita ocidental, com os ensinamentos de um velho sábio indígena, recitados no aconchego de uma aldeia, já não deve ̶ ou não deveria – afrontar sensibilidades acadêmicas expostas em sala de aula.
A segunda consideração perceptível nos três comentários, e intimamente ligada à primeira, é que a antropologia fornece o conhecimento necessário para desvendar o Outro, ou seja, os brancos. Com sua longa experiência de observar antropólogos convertendo curiosidade etnográfica em conhecimento – por equivocado que possa ser – sobre sociedades indígenas, seria apenas uma questão de tempo e oportunidade para que o reverso acontecesse, invertendo-se os papéis de quem é o observador e quem é o observado. É, portanto, fundamental que os estudantes indígenas se apropriem da antropologia como uma disciplina que também é indígena. Observação e interpretação já existem lá, no mundo indígena. Faltava apenas aprender e dominar o idioma da antropologia para ampliá-las e aprofundá-las. Uma das lições da antropologia está embutida na velha imagem de que um peixe seria o pior observador do mar. Ou seja, é o recuo, a distância, que permite desenvolver o olhar inquisidor que a perspectiva produz. Assim como Alexis de Tocqueville, aristocrata francês disposto a decifrar o funcionamento da democracia norte-americana, observou coisas que os próprios americanos, a exemplo dos peixes no oceano, não percebiam, também os intelectuais indígenas estão na posição privilegiada de observar e analisar o mundo branco que os cerca, mas não os cega.
O terceiro ponto que os comentaristas levantam é o temor de que a apropriação indígena desfigure a antropologia, provocando uma queda nos padrões de qualidade científica e o risco de uma politização excessiva. Tal medo, perceptível em certos setores da vida departamental, traduz, acima de tudo, uma resistência a mudar os rumos da antropologia que, como toda mudança imprevisível, poderia tirar antropólogos estabelecidos de sua zona de conforto. No entanto, afirmam os comentaristas, não há o que temer, pois a chegada dos antropólogos indígenas à academia, longe de ameaçar a antropologia, torna-a mais profunda e atraente. Tal temor, se realmente existe, indicaria uma postura antiantropológica por excelência ao deixar transparecer preconceitos que a própria disciplina sempre combateu, nomeadamente, a abominável crença de que o que é diferente é, necessariamente, inferior. A devoção a cânones tornados sacrossantos tem sido responsável pela inércia intelectual que assola muitas áreas do saber, identificada por Thomas Kuhn como “ciência normal”. Resguardados os princípios fundacionais da antropologia, inscritos nos textos clássicos que lhe dão identidade própria, inovações são o motor da sua continuidade. Como afirmou o filósofo Hans-George Gadamer, uma tradição que não se renova, é uma tradição fadada ao desaparecimento. O medo de ver a antropologia indigenizada é uma preocupação ociosa, uma vez que ela já nasceu indigenizada, ao buscar no mundo indígena sua fonte de sustento e longevidade.
O quarto ponto em comum afirma que combinar as visões indígena e não indígena da antropologia não é apenas salutar, mas necessário. Ao constatar que muitas etnografias correntes reduzem ou distorcem as realidades indígenas, intelectuais indígenas sugerem que se adote uma postura “interepistêmica” no próprio ensino da antropologia como lenimento para amenizar os entraves à compreensão, especialmente, no trabalho de campo. Trazer para a academia uma variedade de epistemes permite examinar visões que ora convergem, ora divergem, evitando afirmações prematuras, imaturas ou francamente equivocadas. Seria talvez equivalente a comparar a mesma tradição em momentos distintos de sua história. David Lowenthal, historiador e geógrafo, muito apropriadamente, transitou entre tempo e espaço. Como ele, poderíamos afirmar que o passado é um país estrangeiro. Inversamente, e evocando um antropólogo crítico, poderíamos arriscar outra máxima: o presente nos é coetâneo, de onde quer que falemos (Fabian 1983). O exercício do debate interétnico na antropologia, que esperamos inaugurar com esta homenagem aos 50 anos do PPGAS da Universidade de Brasília, tem o potencial de cruzar olhares e ampliar horizontes de ambos os lados.
Finalmente, o quinto ponto propõe a rejeição da hierarquia que os comentaristas detectam nas relações interétnicas no interior da academia que é, afinal, reflexo da desigualdade que grassa no mundo extramuros. Aqui temos um ponto nevrálgico a discutir. O termo “hierarquia” tem denotação de dicionário e conotação de senso comum. É importante tentar entender qual acepção de hierarquia é rejeitada pelos comentadores. Uma definição de dicionário diz: “organização fundada sobre uma ordem de prioridade entre os elementos de um conjunto ou sobre relações de subordinação entre os membros de um grupo, com graus sucessivos de poderes, de situação e de responsabilidades”. Isto se aplica, ao menos parcialmente, à estrutura de ensino de uma universidade. Há, obviamente, uma ordenação entre professores e alunos com base no diferencial de conhecimento entre eles. Em termos de comando desses conhecimentos, os alunos estão, necessariamente, na ponta subordinada dessa organização. Mas esses mesmos alunos, enquanto indivíduos, poderão mudar para a ponta oposta ao se tornarem, eles mesmos, professores. Neste caso, trata-se de uma hierarquia dirigida unicamente à formação de profissionais e não implica em subordinação pessoal permanente. É inevitável que professores ocupem posições de mando das quais devem transmitir conhecimento aos alunos, embora estes também possam ser uma fonte de conhecimento para os próprios professores. O outro uso, de senso comum, do conceito de hierarquia confunde, no caso universitário, ordenação de graus de conhecimento com dominação versus subordinação. Quero crer que os comentários aqui apresentados rejeitem esta última conotação, que traz consigo a pecha de desigualdade social. Esta, se existe, deve ser sumariamente combatida, seja por parte de docentes, discentes e funcionários em geral. Um dos motivos para encetarmos debates como este é, precisamente, refletir sobre as diferenças entre conhecimento qualificado e opiniões do senso comum. De qualquer modo, acima de qualquer discussão, hierarquizar saberes e conhecimentos pertencentes a distintas tradições culturais é inadmissível, tanto dentro como fora da academia, mas, principalmente no âmbito da antropologia.
Tomando os três comentários individualmente, o que me é dado observar, além de estilos e ênfases distintos, são alguns pontos dignos de nota. Em Gersem Baniwa, profissional experiente no campo da antropologia e da educação indígena, percebe-se um forte alinhamento com a essência da antropologia, que ele toma tanto como vilã quanto como aliada. A face negativa é exposta sem rodeios nesta passagem: “não temos como evitar imbróglios no estômago... quando descobrimos, como [os antropólogos], ao se referirem a nós, criaram noções, conceitos, categorias e teorias que fundamentaram e ainda fundamentam toda prática de racismo e preconceito contra nós”. Ao mesmo tempo, o lado positivo da antropologia é a vocação de se abrir para a alteridade e legitimá-la. Assistir aos antropólogos em ação instigou nos indígenas um gosto por saber mais de si mesmos. “Nós indígenas, passamos séculos observando e tentando compreender silenciosamente os brancos antropólogos em nossas aldeias e territórios e fora deles..., mas nunca havíamos aberto nossas mentes e corações para nos conhecer e nos compreender um pouco mais, além das impressões, aparências e interesses imediatos”, o que resultou na apropriação desse grande acervo etnográfico pelos próprios indígenas. Como “a entrada e presença indígena na antropologia e no mundo acadêmico é um processo irreversível”, Gersem Baniwa propõe estratégias para “criar condições concretas para que este diálogo aconteça e prospere de forma franca, honesta, sistêmica e institucional”. É a postura de um estrategista que vê claramente como alcançar resultados sobre o que advoga e já vislumbra algumas mudanças quando afirma: “Pesquisadores ou etnógrafos solitários e individuais vão cedendo lugar a pesquisadores coletivos ou comunitários”.
Menos paciente com os percalços disciplinares e acadêmicos, Felipe Tuxá, jovem e aguerrido professor universitário, focaliza seus comentários menos na produção escrita e mais nas ações dos antropólogos, sempre contra o pano de fundo das “antigas relações de poder e manutenção de estruturas de privilégios”. Aguçado observador de ironias, Felipe percebe como pequenos detalhes podem dizer mundos, como no jogo de espelhos refletindo tradicionais observadores (antropólogos) observando tradicionais observados (indígenas) observando tradicionais observadores em sua observação. A imagem gráfica que nos vem aos olhos parece quase tão impossível como os desconcertantes desenhos de Escher. E, no entanto, tais situações existem e cada vez com mais frequência. Adepto da ideia de empreender debates interétnicos no campo antropológico, Felipe insiste que eles não devem perder de vista o contexto de desigualdade mais amplo, o campo político que envolve os povos indígenas. Avesso a generalizações afoitas, defende a importância de tratar temas indígenas respeitando suas especificidades. Ao afirmar que “nenhum sujeito é Universal, e que todos precisam ter a sua posição considerada [e que esse] é o ponto de partida para qualquer tentativa de comunicação interétnica”, Felipe adere à vertente mais humanista da antropologia.
Francisco Sarmento aplica sua formação filosófica à questão da entrada de indígenas na antropologia, não como objetos de pesquisa, mas como pares intelectuais. Reconhecendo as origens colonizadoras da disciplina, ele percebe, como Gersem Baniwa, que ela tem produzido ferramentas úteis aos povos indígenas. Sobre aqueles que estudam antropologia, mas não superam a revolta contra a dominação, Francisco critica o que percebe como miopia por atribuírem à antropologia males que a antecedem em muito, os males do eurocentrismo. Em meio a tentativas de expurgar povos indígenas de territórios usurpados, Francisco lembra a solidariedade dos antropólogos, “dos poucos que resolveram estar do lado dos povos indígenas e acreditar que podiam continuar”. Sim, a antropologia nasceu na Europa, mas cresceu em grande medida entre os povos indígenas e, “à medida que se democratiza com os Outros, torna-se palco de outras possibilidades”, ou seja, a antropologia tem aprendido com os indígenas a ser mais antropológica. Começam a surgir etnografias feitas pelos próprios indígenas que se têm mostrado mais profundas e esclarecedoras do que as elaboradas por antropólogos não indígenas. É Francisco que acaba por dar o mote deste debate e do artigo debatido: “Se tudo isso vier a ser cuidado com muita inteligência, os indígenas terão um grande papel na antropologia”!
Muito me apraz contracenar com Gersem Baniwa, Felipe Tuxá e Francisco Sarmento que, com experiências interétnicas distintas e estilos próprios de expressão, agregam seus esforços de reflexão à busca por uma antropologia cada vez mais sábia.