Dossiê
Os fins do cuidado: processos de tomada de decisão, suportes avançados de vida e cuidados paliativos
The ends of care: decision-making processes, advanced life support and palliative care
Os fins do cuidado: processos de tomada de decisão, suportes avançados de vida e cuidados paliativos
Anuário Antropológico, vol. 48, núm. 3, pp. 153-170, 2023
Universidade de Brasília
Recepción: 18 Noviembre 2022
Aprobación: 31 Enero 2023
Resumo: Neste artigo reflito sobre a produção do cuidado na prática clínica em cuidados paliativos. Com base em pesquisa etnográfica, resultante da observação dos atendimentos realizados pelo Serviço de Cuidados Paliativos de um hospital-escola do estado de São Paulo a pessoas com doenças que ameaçam a continuidade da vida, discuto como os processos de tomada de decisão em torno do uso de suportes avançados de vida explicitam as contradições, os ajustes e a situacionalidade do fazer cuidado nesse contexto. Assim, a partir da descrição extensa das práticas e rotinas assistenciais desenvolvidas pela equipe de saúde, argumento que o cuidar e o que se maneja como “bom cuidado” (Mol, 2008) se produz na provisoriedade das interações que se estabelecem entre vários atores – equipe de cuidados paliativos, especialidades, familiares – e nos deslizamentos das dinâmicas intrincadas que atravessam diagnósticos particulares, maus prognósticos, respostas fisiológicas, modalidades de intervenção, decisões sobre condutas terapêuticas e subjetividades.
Palavras-chave: Cuidados Paliativos, Cuidado, Tomada de decisão, Fim de Vida.
Abstract: In this article, I reflect on the production of care in clinical practice in palliative care. Based on ethnographic research, resulting from the observation of care provided by the Palliative Care Service of a teaching hospital in the state of São Paulo to people with life-threatening illnesses, I discuss how the decision-making processes around the use of advanced life support make explicit the contradictions, adjustments and situationality of producing care in this context. Thus, from the extensive description of care practices and routines developed by the health team, I argue that care and what is handled as “good care” (Mol, 2008) is produced in the temporariness of the interactions that are established among various actors – palliative care team, specialties, family members – and in the sliding of the intricate dynamics that traverse particular diagnoses, bad prognoses, physiological responses, intervention modalities, decisions about therapeutic conducts and subjectivities.
Keywords: Palliative Care, Decision-making, End of Life.
Introdução[1]
Entendidos como uma área de atuação médica orientada à assistência de pacientes com diagnósticos de enfermidades crônicas ou graves que ameaçam a continuidade da vida, os cuidados paliativos constituem um modelo particular de atenção em saúde baseado em princípios que visam ao acolhimento, ao conforto e ao controle sintomático da doença, em oposição à ideia de manutenção da vida a qualquer custo, produtora de certo “encarniçamento terapêutico”[2]. A dor e o sofrimento decorrentes do processo de adoecimento são os focos centrais de atenção da equipe de saúde. O conceito de dor total, a qualidade do viver e a consideração do paciente em sua integralidade – física, psíquica, social e espiritual – são também dimensões fundamentais da proposta dos cuidados paliativos.
Assim, essa abordagem em saúde procura distanciar-se do modelo hegemônico de gestão dos cuidados, pautado em um ideal de assistência altamente tecnológico, racionalizado e impessoal, no qual a qualidade do cuidado ocupa um lugar secundário frente ao protagonismo assumido pelo ideal de “salvar vidas”, um dos princípios norteadores da prática médica moderna. Através da instrumentalização de um saber técnico e especializado, o modelo assistencial paliativista procura oferecer “uma resposta ética e técnica aos problemas da gestão da morte hospitalar”[3] (Alonso 2012a, 126).
A questão relativa à gestão da doença e da promoção de qualidade de vida no morrer coloca a definição dos procedimentos e condutas em cada etapa do adoecimento como parte central da assistência à pessoa em fim de vida (Soneghet 2020). Nessa perspectiva, procura-se desenvolver uma construção conjunta, feita a partir de uma avaliação técnica do profissional de saúde sobre a utilidade dos recursos terapêuticos para a melhoria do quadro clínico do paciente, e também da percepção desse paciente em relação à tolerância, ou não, aos procedimentos propostos para seu tratamento e se eles possibilitam uma condição de vida por ele considerada digna.
Entretanto, conforme sugere Alonso (2012b), esta imagem mobilizada pelo ideário paliativista – de um paciente autônomo que participa e toma as decisões no período final da vida, fazendo valer seus valores e escolhas – nem sempre encontra correspondência real nas expectativas, desejos, condições físicas, mentais e sociais, das pessoas gravemente doentes e de seus familiares. De modo que as definições em torno de noções como qualidade de vida, dignidade, autonomia, se tornam contingentes e situacionais, estando sujeitas a negociações e ressignificações por parte dos atores envolvidos.
Além disso, não podemos perder de vista que o cuidado é associado a práticas e, portanto, depende de estruturas e dinâmicas que as sustentam, bem como dos diferentes sujeitos nelas envolvidos (Spink 2015, 121). Nessa direção, o contexto no qual os cuidados paliativos são oferecidos – hospitalar, ambulatorial, domiciliar –, em/por instituições públicas ou privadas de saúde; o tipo de cuidado passível de ser oferecido de acordo com o estágio da doença; o acompanhamento contínuo dos casos por uma equipe multiprofissional, entre outros, são fundamentais na reflexão acerca do pressuposto de autonomia e de inclusão do paciente e da família como agentes ativos no processo decisório sobre os percursos terapêuticos, e também na realidade das práticas de cuidado desenvolvidas em cenários concretos.
As tomadas de decisão[4], em especial aquelas relacionadas aos usos dos Suportes Avançados de Vida (SAV), compõem, assim, a problemática deste artigo. Este enfoque se justifica pois esta instância decisória, além de constituir parte fundamental do ideário paliativista (Menezes 2004, 2011; Alonso 2012b), também permite acompanhar, de modo privilegiado, a feitura (enact) do cuidado. Por SAV faço referência a um conjunto de práticas médicas, tais como procedimentos cirúrgicos, manobras de reanimação, administração de medicamentos, que têm por finalidade estabilizar clinicamente pacientes. Essas medidas artificiais e invasivas não estão voltadas para o tratamento específico de uma doença, antes, atuam no suporte a órgãos e sistemas que não conseguem executar suas funções (Silva & Rocha 2019, 21).
Através da descrição da atenção em saúde promovida pela equipe de cuidados paliativos de um hospital público de grande porte, argumento que o cuidar e o que se maneja localmente como “bom cuidado” (Mol, Moser e Pols 2010; Mol 2008; Pols 2004) se produz na provisoriedade das interações que se estabelecem entre vários atores – paliativistas, especialidades, pacientes e familiares – e nos deslizamentos das dinâmicas intrincadas que atravessam diagnósticos particulares, maus prognósticos, respostas fisiológicas, modalidades de intervenção, decisões sobre condutas terapêuticas, moralidades, valores e subjetividades.
Nesse sentido, busco me afastar de noções normativas ou definições prévias do que seja cuidado, de modo a refletir sobre ele em seus “próprios termos” (Mol, 2008b). Inspiro-me, aqui, nas formulações sobre o cuidado desenvolvidas por autoras como Annemarie Mol (2008a, 2008b), Jeannette Pols (2004) e María Puig de la Bellacasa (2017), que procuram desestabilizar a concepção do cuidado como algo pronto e com sentidos e significados únicos, e propõem pensar o cuidado a partir das situações, dinâmicas e pessoas que lhe dão materialidade. Assim, com um olhar atento às práticas e às realidades por elas produzidas (Mol, 2008a), minha intenção ao descrever de forma minuciosa as rotinas de atenção à saúde e, especificamente, as instâncias de discussão e decisão, é chamar a atenção para a situacionalidade e as contingências implicadas no ato de cuidar e na feitura do cuidado.
Na esteira das proposições de Puig de la Bellacasa (2017), compreendendo as diferentes relacionalidades, práticas e valores que dão materialidade ao cuidado em situações concretas, a intenção é recuperá-lo de concepções idealizadas que buscam limitar o debate sobre as ambiguidades e contradições constituintes do cuidar, ou encerrar em estruturas normativas e moralizantes o que o cuidado é e o que pode vir a ser em cada contexto. Pensando a partir do cuidado (e com cuidado), como sugere a autora, trata-se de evitar uniformizar essa categoria e de enfatizar o seu potencial disruptivo, pois o cuidado se faz em um mundo “bagunçado”, no qual práticas de cuidado bem-intencionadas podem resultar, muitas vezes, em desfechos indesejáveis.
Os dados deste artigo são resultado do trabalho de campo que realizei entre abril e dezembro de 2021, acompanhando as práticas e rotinas do Serviço de Cuidados Paliativos (SCP) de um hospital universitário da rede pública do estado de São Paulo. A primeira visita ao SCP ocorreu em novembro de 2020, quando me reuni com uma das médicas da equipe, expus meu projeto e formalizei o interesse de realizar a pesquisa junto ao serviço. Seguindo o combinado em tal ocasião, iniciei o trabalho de campo após a obtenção da carta de anuência do hospital para a coleta de dados e da aprovação do projeto pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Unicamp[5]. Devido à pandemia de Covid-19, e por sugestão da equipe, nos primeiros meses me dediquei à análise dos prontuários de pacientes atendidos pelo serviço. Em setembro de 2021, com a diminuição dos contágios, passei a frequentar o hospital de segunda a sexta-feira das 8h30 às 13h, período em que acompanhei casos relativos a pacientes de diferentes especialidades clínicas – pediatria, neurologia, cardiologia, oncologia, hematologia, entre outras.
Vestindo jaleco branco e portando um crachá de identificação da instituição com meu nome e profissão – recomendações dadas pelas profissionais do SCP –, ao longo da pesquisa caminhei com a equipe por diversas enfermarias, presenciei atendimentos e participei de inúmeras reuniões com profissionais de saúde e familiares de pacientes. Fiz registros os mais precisos e detalhados possíveis das rotinas, interações e diálogos entre os diferentes sujeitos à medida em que esses se desenvolviam. Nessas circunstâncias, o meu contato com essas pessoas foi, em geral, mediado por membros do serviço. Era comum que as médicas do SCP ao me apresentarem, mencionassem que eu era investigadora da área de “Ciências Sociais” ou de “Antropologia” e abordassem a realização de minha pesquisa junto da equipe. Quando isto não aconteceu, eu mesma me identifiquei sob esses termos.
Instituído em julho de 2018, o SCP está conformado atualmente por um médico – coordenador da equipe –, três médicas e uma enfermeira e não conta com um ambulatório, funcionando segundo o modelo de atendimento por interconsulta. Nesse formato, o/a residente, ou a equipe titular responsável, deve fazer uma solicitação escrita, pelo formulário de Interconsulta, requisitando a atuação dos paliativistas na assistência aos pacientes e no suporte aos familiares. No período em que realizei a pesquisa, a maioria dos pacientes apresentava quadros graves e irreversíveis de adoecimento, longos períodos de internação, alto grau de dependência de recursos tecnológicos e, com frequência, estavam em terminalidade. Nesse cenário, a comunicação com a família e a tomada de decisões quanto à limitação do esforço terapêutico e à definição das condutas voltadas ao conforto dos pacientes estavam no centro da assistência.
Como procuro desdobrar adiante, a partir da metodologia de estudo do cuidado adotada, são os propósitos e os desfechos do cuidado – entendidos como “fins” – que pretendo colocar em tela através da descrição extensa e contextualizada das diferentes instâncias de discussão do caso de Ana Laura[6], cuja história é significativa para refletir acerca das complexidades, controvérsias e ambivalências que atravessam o processo de feitura do cuidado no âmbito dos atendimentos realizados pelo SCP. Desse modo, a descrição minuciosa das práticas e das dinâmicas não é apenas a estratégia de escrita que dá corpo ao texto, mas também a estrutura sobre a qual se apoia sua força argumentativa, pois é por meio desse recurso narrativo que busco mostrar como os processos de tomada de decisão, centrais na prática assistencial da equipe de Cuidados Paliativos, são construídos na rotina do serviço e como protocolos, mais do que simples definidores de conduta ou princípios moralizadores, são manejados junto com uma diversidade de atores na tentativa de equacionamento da multiplicidade de “bens” que vão compondo, nesse cenário particular, o "bom" cuidado.
O ‘quem’ e o ‘como’ do cuidado: o caso de Ana Laura
Ana Laura tinha 7 meses e 23 dias de vida quando a equipe do SCP começou a acompanhá-la. Apesar da pouca idade, ela e seus pais, Mariana e Vitor, conheciam bem as rotinas hospitalares, já que, desde seu nascimento, eles vivenciaram diversos períodos de internação em diferentes instituições de saúde. Com o passar dos meses, essas internações foram se tornando mais prolongadas e o seu estado de saúde complicado, reduzindo paulatinamente o tempo que a criança permanecia em casa.
Ana Laura nasceu com microcefalia e holoprosencefalia semilobar, condições clínicas descobertas ainda durante a gravidez de Mariana. Devido ao quadro neurológico grave e irreversível, caracterizado pela malformação do sistema nervoso central, ela tinha “epilepsia estrutural de difícil controle”, fazendo uso de diversas medicações no tratamento das crises convulsivas. Quando ingressou no Pronto Socorro do hospital universitário, foi diagnosticada com bronquiolite e insuficiência respiratória aguda, motivo pelo qual, um dia após a internação, precisou ser intubada e entrar em ventilação mecânica invasiva[7]. Antes da intubação, as equipes médicas cogitaram a adoção de formas alternativas e não invasivas de auxílio respiratório, como o uso de oxigênio através de um cateter nasal. Entretanto, a bebê tinha um estreitamento das narinas, de modo que a opção mais viável para a assistência respiratória foi a intubação endotraqueal, procedimento que consiste na introdução do tubo de respiração, através da boca, até a traqueia.
O uso do tubo por tempo prolongado pode acarretar uma série de complicações, portanto, não é recomendado. Além de dor e grande desconforto, exigindo por isso o uso de doses maiores de sedativos, há o risco de remoção acidental, lesões na laringe e também a propensão a infecções pela produção de secreções, fazendo necessárias aspirações frequentes da via respiratória. A inserção do tubo através da boca afeta, ainda, o desempenho de atividades como a fala e a deglutição, impedindo, neste último caso, a alimentação por via oral, e exigindo a introdução de uma sonda nasoenteral ou nasogástrica que libera o alimento diretamente no intestino para garantir a nutrição.
Seguindo o protocolo, com o passar dos dias Ana Laura foi submetida a quatro tentativas de extubação, isto é, de retirada do tubo, mas devido à sua baixa capacidade respiratória, precisou ser novamente intubada e reconectada à máquina. A dependência em relação à ventilação mecânica implicou na reavaliação do uso desse suporte avançado de vida e a redefinição do plano terapêutico de acordo com a evolução do quadro clínico.
Diante desse impasse, a equipe médica assistente propôs a realização de uma traqueostomia, intervenção cirúrgica que compreende a realização de uma incisão no pescoço, na região da traqueia, na qual é inserida uma cânula – uma espécie de tubo de metal ou plástico, que possibilita a conexão ao ventilador. Como sugeriu a equipe, essa conduta permitiria a continuidade do uso da ventilação mecânica de forma mais segura, diminuindo desconfortos e riscos da intubação, e facilitando também o processo progressivo de retirada do ventilador – o desmame – para viabilizar uma eventual desospitalização da criança. A traqueostomia era vista, assim, como uma possibilidade de retirá-la do suporte ventilatório. Contudo, devido à condição clínica crítica, caracterizada pela alta produção de secreções que obstruíam as vias áreas (respiratórias), não era garantido que ela conseguiria respirar sem a máquina.
Todavia, se para os profissionais de saúde essa era a medida mais adequada em termos de protocolo para a condução do caso, Mariana e Vitor expressaram para a equipe da Neuropediatria e da Unidade de Terapia Intensiva (UTI) Pediátrica – especialidades principais na assistência – o seu desacordo com a realização do procedimento e solicitaram o acompanhamento da equipe de Cuidados Paliativos do hospital. Como registrado no prontuário eletrônico, a mãe disse à equipe que, diante de uma nova falha na extubação, não queria que sua filha fosse novamente intubada.
O questionamento dos pais de Ana Laura em relação ao procedimento, ao mesmo tempo que coloca o protocolo à prova, aponta para o caráter relacional e provisório do cuidar, explicitando, através do desajuste entre a prática médica e a circunstância à qual estava orientada, as ambiguidades e a situacionalidade do cuidado em ato. Os dilemas que atravessam situações de vida e de morte vivenciadas por pacientes com doenças graves e para as quais não há tratamentos curativos, pelas famílias e também pelos profissionais de saúde encontram certa recorrência e são pautados em modos de intervenção ao mesmo tempo padronizados e singulares. Discussões sobre decisões de fim de vida, dignidade, limitações terapêuticas, uso ou não de suportes avançados de vida evidenciam as diversas camadas que compõem cenários sempre complexos. Complexidade esta que reside na partilha em que as práticas de cuidado são constituídas no imbricamento de doenças, procedimentos, pessoas, subjetividades, afetos, expertises e realidades materiais concretas.
Conforme argumento nas próximas páginas, as diferentes instâncias de discussão e decisão ao mesmo tempo que evidenciam formas protocolares de atenção, permitem vislumbrar os múltiplos ajustes e concertações feitos pelos profissionais de saúde no cotidiano de assistência a pacientes em cuidados paliativos.
Produzindo cuidado: processos decisórios e suas margens
O processo de tomada de decisão, central na assistência e na expertise que caracteriza a atuação do SCP, pode ser dividido em dois momentos distintos e articulados: o primeiro consiste na avaliação do paciente e do diagnóstico, a definição do prognóstico e a discussão entre equipes para determinação das condutas médicas mais adequadas ao estágio da doença; o segundo é caracterizado pela realização da Conferência Familiar e elaboração do plano de cuidados, alinhando as condutas médicas à biografia do paciente, aos valores da família e também às condições materiais implicadas no cuidado dentro e fora da instituição hospitalar.
Nos casos de maior gravidade e nos quais já não há tratamentos capazes de modificar a doença, são os conteúdos e as especificidades da limitação terapêutica, caracterizada pela prática de restrição de procedimentos e condutas artificiais e invasivas que não tenham um benefício comprovado, e as possibilidades para a promoção de medidas de conforto, principalmente pelo controle sintomático da doença e alívio da dor em quadros irreversíveis, que costumam ser discutidos por equipes de saúde e familiares em reuniões conjuntas.
No dia da reunião entre as especialidades implicadas na atenção de Ana Laura, Rita, médica do SCP, explicou que o intuito da conversa era esclarecer algumas dúvidas sobre esse caso tão “difícil e sensível”, compreendendo os detalhes e as dificuldades da equipe assistente, de modo a produzir um entendimento entre os profissionais, gerar um plano terapêutico consistente e depois conversar com a família. Respondendo a médica, Fábio, médico residente em terapia intensiva à frente do caso, fez um breve resumo do histórico clínico – a doença de base, as falhas nas tentativas de desconexão do respirador, as intercorrências – e colocou que o principal ponto de discussão era a melhor forma de prosseguir na condução do caso. Como resumiu, levando em consideração a demanda da mãe, a maior preocupação da equipe era definir o que poderiam fazer “que seria ética e legalmente correto? Que seria bom para a paciente, para a família, para as equipes, dando conta de todas as questões envolvidas”.
Especulando sobre os motivos que faziam a mãe se opor ao procedimento, Carla, médica neuropediatra, mencionou que chegou a se perguntar se ela estava informada em relação às especificidades da traqueostomia e contou que ao ouvir a alegação de que isso geraria ainda mais sofrimento para Ana Laura, ela se sentiu no “dever” de esclarecer que “sofrimento” não era a palavra adequada para caracterizar essa conduta. Como enfatizou, ela tentara convencer a mãe de “todas as formas”: falara dos benefícios do procedimento, sugerira que conversasse com o marido, que ouvisse outras mães. Contudo, a mãe estava resoluta.
Diante da colocação feita pela neuropediatra, Fábio disse que a equipe de enfermagem apresentara Mariana à mãe de uma outra criança que vivia com o dispositivo, para que não houvesse um “mistério” sobre o procedimento. Ao comentar a experiência, Mariana pontuou à equipe da pediatria que, diferente de sua filha, esta criança tinha a chance de ter uma “vida normal”. Ana Laura, como disse, mesmo com a traqueostomia, não teria desenvolvimento neurológico a longo prazo. A mãe, contou Fábio, insistiu que amava sua filha, queria dar para ela o “melhor cuidado” e esclareceu que não tinha uma resistência ao dispositivo e sim um questionamento ao “benefício global” de tal intervenção, pois entendia que isso somente prolongaria um sofrimento.
Carla concordou que Ana Laura apresentava um conjunto de características que permitiam inferir com segurança que se tratava de um caso “irreversível” e para o qual não havia um prognóstico “de ganho cognitivo e de desenvolvimento psicomotor”. A tendência era que as crises convulsivas piorassem no decorrer da vida, posto que não existe nenhum tipo de tratamento específico para a doença, apenas “tentativas de controle das convulsões e medidas de suporte de maneira geral”. Apesar disso, ela tinha dúvidas sobre as ações que seriam adotadas no cuidado da criança após a extubação. Sua angústia, ponderou, estava relacionada ao fato de que “muitos pacientes que não têm prognóstico às vezes eles ficam porque o coração é forte... então, como que é esse cuidado paliativo?”. Essa dificuldade de compreensão, expressou, era compartilhada tanto por familiares, como por muitos de seus colegas.
Desfazendo um equívoco corrente, que associa a limitação de condutas com a falta de assistência e o desamparo aos pacientes, Rita, médica paliativista, tranquilizou a neuropediatra, disse que entendia esses questionamentos e apresentaria fatos para que se sentissem “mais seguros do ponto de vista ético”. A médica citou a Resolução nº 1805/2006 do Conselho Federal de Medicina, instrumento que aborda a limitação ou a suspensão de procedimentos e tratamentos que prolongam a vida de pacientes com doenças graves e incuráveis, em fase terminal, quando esses não apresentam eficácia terapêutica, podendo, por tal motivo, ser geradores de sofrimento.
No caso de Ana Laura, pontuou Rita, ela fora internada para tratar uma bronquiolite, precisou ser intubada devido à insuficiência respiratória, curou a infecção e, apesar disso, não foi possível retirá-la da ventilação mecânica. Diferente de pacientes com prognóstico, no qual o suporte ventilatório auxilia na estabilização do quadro clínico, dando condições para a recuperação do corpo, no caso de Ana Laura, mantê-la em ventilação mecânica significava “esticar uma sobrevida”. Com perceptível resignação, Rita lamentou o fato de não haver “nenhuma proposta de medicação, de tratamento ou procedimento” que fosse capaz de “modificar a doença”, nem sequer condições de ajustar a ventilação para que a bebê conseguisse respirar sozinha. Por isso, do ponto de vista técnico, era indicado discutir a retirada de medidas de manutenção artificial da vida. Infelizmente, colocou, estavam sem alternativas. “É uma decisão muito difícil para tomar. O pessoal da fisioterapia e da enfermagem precisa ser envolvido. E conversar bem com os chefes aqui. Porque realmente não é fácil fazer isso”.
Aproveitando a fala de Rita, Luana, fisioterapeuta da UTI Pediátrica, contou que existia na equipe de fisioterapia uma grande preocupação com o conforto e com a qualidade de vida, e também com o sofrimento da família. Vinham amadurecendo, falando mais sobre cuidados paliativos, mas tinham muitas dúvidas sobre a abordagem aos pacientes. Preocupada com o manejo após retirar o tubo, Luana indagou sobre os limites da atuação da fisioterapia nesse contexto específico. Segundo entendia, ao extubar, elas deveriam aspirar a secreção e essa manipulação – que busca otimizar a respiração fora do ventilador – poderia trazer algum conforto para Ana Laura. Em contrapartida, para alcançar esse possível alívio, impõe-se o estresse e o desconforto característicos da aspiração. Frente à dúvida de Luana, sintetizada pela pergunta “Até onde estou gerando conforto ou causando mais sofrimento?”, Rita respondeu: “Precisamos mudar a sintonia do que estamos fazendo em cuidados paliativos, porque não é preto ou branco, é cinza. Vários cinzas”.
Os “cinzas” aos quais Rita se referiu chamavam a atenção para um aspecto central da assistência em cuidados paliativos, relativo às tentativas de equilíbrio entre intervenções protocolares e a consideração de processos de adoecimento concretos. Os protocolos clínicos oferecem cursos possíveis de ação que, postos em relação com variáveis particulares – o diagnóstico, a funcionalidade prévia e atual da pessoa em adoecimento, a evolução esperada da doença, o prognóstico, os valores do paciente e da família –, permitirão definir os procedimentos e traçar o plano terapêutico que seja o mais adequado e possível de ser viabilizado de acordo com o contexto de cada paciente e com os desdobramentos do quadro clínico. “Não tem um certo ou errado, cuidado paliativo tem que ser desenhado em função de cada caso que a gente vê e do que dá e o que não dá para fazer”, sintetizou Rita.
A forma como a médica paliativista respondeu às questões da fisioterapeuta, inscrevendo as intervenções em cuidados paliativos em um gradiente de ação que procura escapar de respostas inequívocas e posições morais simplistas, elucida que o cuidado é sempre relacional e não pode ser dissociado da natureza mutável dos elementos que entram em interação na construção da assistência a pacientes com doenças graves ameaçadoras da vida.
Como ilustra o dilema enunciado pela fisioterapeuta, sintetizado na oposição que se produz entre o conforto e o sofrimento que resultariam da aspiração, ao apontar a relação conflitante entre a prática e o protocolo, coloca-se sob suspeição a própria questão do que é “bom” (Lemos Dekker 2019). A dinâmica entre os membros das equipes de saúde é representativa desse processo no qual emergem uma diversidade de “bens” – o “bem-estar” de Ana Laura, os “valores” e “desejos” da família, os “princípios éticos” da prática médica, o tratamento “mais adequado” diante do prognóstico, a “precisão” do diagnóstico – que vão sendo arranjados na construção local do “bom cuidado”.
Enquanto Rita concluía a explicação, o residente em terapia intensiva, Fábio, que havia saído minutos antes, voltou para a sala acompanhado de César, médico plantonista que se integrou à conversa. César estava desconfortável e desorientado na discussão, e ao ser questionado por Rita sobre o que pensava acerca da possibilidade de realizar a extubação paliativa em Ana Laura, respondeu titubeante: “É meio controverso isso”. Em sua opinião, a discussão deveria ter sido feita antes de intubar a bebê, pois realizar a extubação nessas circunstâncias, após o histórico de falhas, seria “deixar a criança morrer sem fazer nada”. Por esse motivo, pontuou, não havia consenso entre a equipe.
A neuropediatra Carla, que no início da reunião se mostrara hesitante, interveio: “Raramente digo isso, mas nesse caso a criança não tem prognóstico neurológico”. Essa não era apenas sua opinião, como a de toda a equipe da Neuropediatria. César retrucou e trouxe o exemplo de outro paciente atendido pelas equipes, também sem prognóstico, que acabou apresentando desenvolvimento neurológico. Carla respondeu afirmando que em tal caso não tinham um “diagnóstico etiológico fechado”, à diferença de Ana Laura em que a causa da doença era precisa e o exame neurofisiológico “muito claro”: sabiam que não haveria uma melhora. Demonstrando que a desconfiança em relação aos pais de Ana Laura pela oposição à traqueostomia havia sido esclarecida, a médica concluiu: “A mãe sabe a etiologia, acompanhou, ficou em cima, conversou com outras mães, convive com crianças crônicas que as mães se recusam aos cuidados paliativos. Neste caso a mãe está muito consciente”.
O médico plantonista perguntou, então, se os cuidados paliativos tinham experiência com outros casos em que o paciente havia sido extubado e entrado em insuficiência respiratória. Rita, médica paliativista, colocou que esse era, de fato, um assunto muito delicado e não poderia ser tratado de forma leviana. Referiu ao que disse sua colega neuropediatra, de que o diagnóstico e o prognóstico precisavam ser muito precisos, e acrescentou que os valores da família deveriam ser levados em consideração. Também, do ponto de vista técnico, não era um procedimento fácil, por isso era fundamental que as equipe de saúde permanecessem do lado da paciente para controlar, através de medicamentos, possíveis sintomas – como falta de ar e agitação – e dar conforto[8].
O procedimento, esclareceu Rita, só seria feito se houvesse concordância entre os coordenadores da unidade e as diferentes equipes. Disse que estava de acordo com o médico de que o ideal teria sido realizar essa conversa mais cedo, explicou que cuidados paliativos não eram apenas para quem estava morrendo e, quanto antes fossem acionados, melhor seria o acompanhamento ao paciente, o vínculo com a família, o entendimento do contexto e mais tempo teriam para a tomada de decisão. Retomando o apontamento feito pelo seu colega relativo ao fato “de extubar e a criança morrer logo depois”, insistiu sobre a importância de ter muita clareza em relação à diferença entre a extubação paliativa e a eutanásia, prática que refere um ato intencional de abreviar a vida de pacientes e que, como ressaltou, “no Brasil é crime”.
Rita explicou que, em primeiro lugar, para fazer limitação de suporte avançado de vida, como é a extubação paliativa, era preciso que no prognóstico se chegasse na irreversibilidade do quadro clínico, aspecto que no caso de Ana Laura havia sido confirmado de forma taxativa pela neuropediatra. A intenção ao extubar, disse com firmeza, seria parar “de adiar uma morte inevitável, que é distanásia por definição. A nossa intenção não é que ela morra”. Ao retirar o tubo e desconectar a ventilação mecânica, no caso de que a bebê conseguisse lidar com a secreção, não convulsionasse, seria feito o controle de sintomas “até ela evoluir como deve evoluir”. Em definitiva, a criança viria a falecer não por causa do procedimento, mas pelo curso natural da doença. Tratava-se, como concluiu, de conceitos e intenções distintas. Ao final da discussão, César, o médico plantonista, parecia estar mais convencido – ou pelo menos ciente – de que a extubação paliativa era uma opção terapêutica aceitável na condução do caso de Ana Laura.
Dirigindo-se à saída da sala, disse que, como se tratava de um “procedimento ético”, levaria o que havia sido discutido nessa ocasião para a reunião com os coordenadores da UTI Pediátrica, e eles deliberariam sobre as condutas propostas para o cuidado da criança. Lorena, enfermeira do SCP, enfatizando o caráter processual dessas instâncias de decisão, arrematou: “Depois que a gente cimentou todas as ideias com as equipes multiprofissionais, sentamos com a família, porque ela também precisa ser amparada. É uma construção”.
Os variados esforços na problematização, redefinição e readaptação das condutas realizados pelos profissionais frente ao difícil equilíbrio posto pela frágil condição clínica de Ana Laura e a oposição dos pais à traqueostomia, revelam um modo de composição do cuidado condizente com o que Mol (2008b) denominou de doctoring. Nos termos propostos pela autora, a noção de doctoring aponta para “uma maneira particular de fazer, de trabalhar, que não é linear” (Martin, Spink, e Pereira 2018, 302), a qual exige do profissional de saúde o manejo preciso e habilidoso do saber médico e dos protocolos que orientam a prática, ao mesmo tempo em que envolve também uma postura de abertura, de flexibilidade e criatividade para responder aos efeitos por vezes incertos e inesperados envolvidos nas atividades de cuidado (Mol 2008, 55).
Essa instância, relativa à discussão de casos e ao alinhamento de condutas entre diferentes especialidades é fundamental no processo de preparação para a Conferência Familiar e, muitas vezes, reflete a dissonância entre perspectivas de saúde, doença, cura, modelos de assistência, formas de conceber o corpo, a prática médica e paradigmas de gestão da morte. Nessas circunstâncias, lógicas de cuidado distintas (Mol 2008b) entram em contato em um mesmo cotidiano e conflitam em aspectos que por vezes não são solucionáveis ou para os quais não há soluções fáceis, explicitando não apenas as tentativas de equilíbrio feitas pelas profissionais do SCP, como a complexidade implicada no cuidado aos pacientes em uma instituição em que “cada equipe tem uma velocidade em relação à tomada de decisão” e na qual cada enfermaria tem a sua “filosofia”, como referiu certa vez uma das médicas do SCP.
Nessa direção, esses embates são expressivos das moralidades e dos valores envolvidos na formulação de estratégias e no ordenamento das práticas de cuidado. O processo de tomada de decisão é marcado por dissenso, negociações, divergências entre diferentes profissionais e especialidades e por reavaliações constantes dos procedimentos, de acordo com o avanço da enfermidade e mudanças no quadro clínico. Os processos decisórios na atenção a pacientes com doenças graves e em fim de vida se fazem através de uma sequência contínua de fatos e operações de ajustes entre pessoas, objetos e eventos ao longo do tempo. A tomada de decisão, e as diferentes versões sobre o cuidado que dela resultam, não remete, portanto, a um ponto único em um percurso de acúmulo de informações.
De acordo com essa perspectiva, as práticas de cuidado devem ser ajustadas aos sujeitos e cenários particulares aos quais estão direcionados, considerando as situações e os desafios impostos em cada estágio da doença. Essa proposição parece ressoar com as formulações de Pols que ao pensar o cuidado enquanto um processo, sugere que
não existe uma abordagem que deve funcionar em todas as situações, mas existem diferentes possibilidades que podem ser exploradas ao lidar com situações específicas. O cuidado é sobre criatividade, improvisação ou “conserto” em vez de “aplicar métodos” ou “seguir regras”[9] (Pols 2004, 153).
Como evidencia o longo debate acerca da definição dos procedimentos e das condutas terapêuticas no cuidado de Ana Laura, nem sempre é possível equacionar as condutas técnicas consideradas mais adequadas com a realidade imposta pelo adoecimento e pela diversidade de condições subjetivas e materiais concretas que atravessam a feitura do cuidado. Nesse contexto, a proposta assistencial da equipe de Cuidados Paliativos procura, em certa medida, ir além de respostas fisiológicas, procedimentos médicos e uso adequado de tecnologias, buscando incluir outros elementos na tomada de decisão que extrapola a racionalidade biomédica[10] e considera, no fazer cuidado, os valores e a subjetividade daqueles que estão implicados no cuidar.
Ao referir a dimensão processual e de abertura implicada na produção do cuidado, não pretendo negar o caráter protocolar, e, portanto, normativo, da assistência em cuidados paliativos, nem tampouco as assimetrias de poder que subjazem à relação entre médicos e pacientes[11], mas chamar atenção para sua natureza ambígua. Por um lado, assim como qualquer outra especialidade médica, segue uma rotina pré-estabelecida de atenção à saúde, orientada por princípios, técnicas e tecnologias ligadas à racionalidade biomédica. Por outro lado, está atenta às demandas e necessidades particulares dos pacientes, o que muitas vezes coloca o próprio protocolo à prova. De certa maneira, os cuidados paliativos não estão à margem da prática clínica, mas pelo contrário, eles constituem sua franja, a partir da qual a clínica transforma seus protocolos.
Nesse sentido, conforme argumento, o “bom cuidado” no modo como é manejado pelos cuidados paliativos implica no tensionamento e na desestabilização dos modos normalizados de produção do cuidado na instituição hospitalar, assentados em intervenções padronizadas, genéricas e muitas vezes despersonalizadas. Pela proposição de outras lógicas e intenções no modo como decisões são tomadas em relação aos protocolos que orientam essas formas hegemônicas de cuidado, o “bom cuidado” performado no cotidiano da assistência do SCP se faz pela atenção à demarcação das fronteiras sempre intercambiáveis entre os “bons” e “maus” cuidados que vão delimitando os cursos da ação em cada circunstância.
O cuidado “possível”
Quando Mariana e Vitor, pais de Ana Laura, entraram na sala, os profissionais de saúde que participaram da Conferência Familiar já estavam dispostos em círculo, aguardando o início da reunião. De acordo com o protocolo que orienta essas instâncias de diálogo com os familiares, Rita, médica do SCP que vinha acompanhando o caso, pediu que todas as pessoas na sala se apresentassem e, em seguida, que os pais de Ana Laura falassem como vinham percebendo a evolução da filha, se tinham dúvidas em relação ao tratamento e contassem um pouco do processo de adoecimento da criança.
Desde que nasceu, relatou Mariana, a filha não conseguia “ficar muito em casa. Se ela ficou dois meses nesse tempo todo [de vida], foi muito”. Nesses breves períodos em que foi para casa, eram comuns episódios convulsivos, bem como a ocorrência de infecções urinárias e febre alta, forçando, assim, o retorno ao hospital. Quando estava internada, disse a mãe, Ana Laura sempre “ficava melhor”, pois ao ser desospitalizada as crises tornavam a se repetir. Além disso, o medo de que ela pudesse broncoaspirar[12] ou ter uma convulsão silenciosa, como aconteceu certa vez em que a bebê não emitiu nenhum tipo de gemido, típico em suas crises costumeiras, deixava Mariana e Vitor em um estado contínuo de alerta e insônia.
Após alguns segundos de silêncio, Rita comentou que com a evolução do adoecimento, precisariam lidar com um problema que a bebê não havia enfrentado ainda, relativo à dependência da ventilação mecânica, aspecto que aumentava a “dificuldade de cuidar dela”. Como ela não respirava sem o suporte, seria necessário pensar uma alternativa. Porém, sabiam que Mariana e seu marido não estavam confortáveis com a ideia de realização da traqueostomia, por isso, a médica perguntou qual era a percepção que eles tinham em relação à conduta e aos efeitos que ela poderia trazer para a vida de Ana Laura.
Mariana contou que, durante as internações de sua filha, havia convivido com pessoas com traqueostomia e percebido que essa intervenção “às vezes realmente salva uma vida”. Entretanto, esse não era o caso de Ana Laura, pois, no seu entendimento, a realização do procedimento iria resolver pontualmente a questão do uso do suporte respiratório, mas, ainda assim, sua filha precisaria de inúmeros recursos tecnológicos para controlar as fortes crises convulsivas, a febre reiterada e as infecções constantes. Conforme expressou, “se fosse pra ela ficar em casa, mudar a vida, mas o quadro dela não vai mudar”. E, com a voz embargada, acrescentou, “minha filha vem sofrendo desde o dia que ela nasceu”. O pai, que interveio em poucas ocasiões, complementou sua esposa dizendo “a gente pode ser egoísta ao manter ela assim”.
Introduzindo a discussão sobre as alternativas para a condução do caso, Rita pontuou que não fariam nenhum procedimento com o qual eles não estivessem de acordo. Todavia, devido aos riscos implicados no uso prolongado, o tubo não poderia ser mantido por tempo indeterminado, de modo que precisariam decidir sobre a implementação de novas condutas e traçar o plano de cuidados. Como salientou, o tubo conectado à máquina, ao mesmo tempo que possibilitava que Ana Laura realizasse uma função vital básica, apresentava uma série de riscos. Na ventilação mecânica, o ar entra nos pulmões através do tubo, sem as ações protetivas do organismo como o aquecimento e a filtragem do ar realizados nas fossas nasais. Desse modo, Ana Laura estava muito mais sujeita a infecções e, por esse motivo, precisava ser submetida ao “desconforto” e ao “sofrimento” decorrentes das aspirações frequentes.
No contexto das relações intrincadas que se estabelecem entre protocolos, práticas, máquinas e corpos – evidenciadas, por exemplo, pelos efeitos indesejáveis e muitas vezes nocivos do uso do suporte ventilatório –, a feitura do cuidado se inscreve nos limites colocados pelas formulações acerca da proporcionalidade das condutas, as quais, segundo a abordagem dos cuidados paliativos, são medidas pelo equacionamento dos benefícios e dos custos implicados em cada opção terapêutica (Menezes 2004).
Assim, ao abordar a extubação paliativa como uma conduta possível, Rita pontuou que caso decidissem cuidar de Ana Laura dessa forma, não voltariam para a ventilação mecânica. Diante das quatro falhas anteriores na extubação, precisavam estar cientes de que havia a possibilidade de que Ana Laura não conseguisse respirar por conta própria e, consequentemente, viesse a falecer. Como colocou a médica, isso não era uma certeza. Por tal motivo, a realização do procedimento implicava também uma série de “cuidados” prévios – como o uso de medicações anticonvulsivantes, de controle da dor, da dispneia e a aspiração das secreções. Ações que buscavam otimizar o quadro na tentativa de que a bebê continuasse respirando sem a máquina. Perguntando aos pais da criança se entendiam o que estava sendo proposto, Rita afirmou: “Como equipe, não temos muita dúvida de que isso que vocês estão concordando aqui com a gente é uma opção mais confortável para Ana Laura. Porque é ela que a gente tem que mirar aqui, é ela que a gente tem que prevenir o sofrimento”.
Como sugerem as diferentes instâncias de discussão quanto à definição dos procedimentos e das medidas para o cuidado de Ana Laura, é no emaranhado de condutas, recursos tecnológicos, respostas fisiológicas, corpos e cursos de adoecimento singulares que os suportes avançados de vida podem ser enquadrados em termos dos benefícios que proporcionam a cada sujeito particular ou, contrariamente, pelos danos e sofrimento que são capazes de gerar em circunstâncias nas quais não modificam o estado de saúde e, em muitos casos, prolongam o processo de morte. Assim, a tecnologia não está em oposição ao cuidado, tampouco pode ser valorada em si, apenas pela função que procura reproduzir (Willems 2010, 257). A passagem do suporte avançado de vida da condição de recurso tecnológico fundamental para a sobrevivência para recurso potencialmente “desumanizador” é atravessada pelas linhas imprecisas, tênues e fugidias que vão compondo, nesse cenário particular, percepções acerca do “bom” e do “mau” cuidado.
Nessa direção, bom e mau, termos utilizados para caracterizar o conjunto de dinâmicas e intervenções específicas implicadas no ato de cuidar, não devem ser tomados como categorias em oposição, uma vez que o que está em jogo não é a definição de práticas de natureza distintas, mas a composição de arranjos relacionais e provisórios, resultantes das contradições inerentes ao cuidar. Como assinala Fietz (2016, 98), ao tratar o “bom” e o “mau” cuidado enquanto entidades simétricas, resultado das respostas locais a cada situação, é possível “fugir de moralismos pré-estabelecidos e atentar-se para as complexidades e ambiguidades que circunscrevem as práticas de cuidado”.
Apesar da clareza em relação ao desejo de não continuar submetendo Ana Laura a mais sofrimento, era perceptível na fala de Mariana a angústia e o receio em relação a ser mal interpretada e acharem que ela estava “desistindo” de sua filha. Esse receio é um sentimento recorrente entre membros da família quando são abordadas questões relativas aos limites dos tratamentos curativos e aos sofrimentos decorrentes de procedimentos considerados desproporcionais frente à irreversibilidade da condição clínica. Nessas circunstâncias, a equipe procura ressaltar o caráter técnico da decisão, indicando os esforços que foram realizados em termos de condutas, as respostas fisiológicas aos tratamentos e refletindo sobre os impactos gerados pelo uso excessivo da tecnologia no curso do adoecimento. Elementos que permitem, desse modo, explicitar as incertezas constituintes dos desfechos clínicos e a natureza mutável dos arranjos que estruturam as práticas de cuidado.
Rodrigo, médico intensivista pediátrico que acompanhava de perto o caso e tivera diversas conversas com Mariana nos quase sessenta dias de internação de Ana Laura, reiterou o que já fora mencionado sobre os limites dos recursos médicos na promoção da cura e às condições de manutenção da vida. “A gente não consegue curar a Ana Laura, mas consegue manter ela viva por muito tempo fazendo coisas muito ruins. O melhor não vai ser possível fazer, mas conseguimos cuidar bem dela”, disse. Dirigindo-se a Mariana, o médico expôs que os questionamentos dela acerca da ventilação mecânica e da traqueostomia fizeram com que as equipes repensassem e reavaliassem os reais benefícios das terapêuticas que estavam em curso, pois, como vinham observando, isso estava causando o “prolongamento da vida às custas de sofrimento”. O que inicialmente fora construído como uma proposta terapêutica, deixou de ser benéfico porque o objetivo esperado – de oferecer suficiência respiratória, controlar as secreções e as crises convulsivas – não fora alcançado, fazendo com que mudassem a perspectiva e reformulassem a proposta de cuidado. “Talvez a partir de agora vamos cuidar melhor do que estávamos cuidando até então. Fazendo algo realmente mais adequado para ela”, concluiu Rodrigo.
Os ajustes entre concepções normativas sobre a assistência em saúde e as condutas possíveis de serem adotadas a partir da evolução do quadro clínico de cada paciente, considerando também as moralidades e os valores dos sujeitos, configuram, desse modo, o objetivo principal das intervenções da equipe, isto é, a promoção do cuidado “possível”. Cenário no qual o espectro do “possível” é delimitado pelo arranjo que resulta das interações entre os diferentes elementos que orientam as decisões e que materializam, assim, o cuidado. As formas de lidar com as diferentes e variadas versões acerca do que é concebido enquanto “cuidar bem”, com o que é visto como bom, mas também como ruim, refletem a feitura do cuidado possível.
Nesse processo, múltiplos “bens” (Mol 2008) coexistem e são articulados e compassados por intervenções médicas que procuram, de acordo com a particularidade de cada caso, promover o “cuidado que é ‘bom o bastante’” (Mol, Moser, e Pols 2010) ou cuidar “tão bem quanto possível” (Puig de la Bellacasa 2017). Em sintonia com as proposições de Puig de la Bellacasa, assim como é impensável tomar o cuidado como algo abstraído de sua situação, os sentidos que a ideia de “possível” adquire, implicam também em uma posição de “abertura especulativa” e uma análise cuidadosa de cada circunstância, uma vez que se parte do pressuposto de que “os significados e a relevância situada dos cuidados não podem ser tomados como garantidos” (idem, 11)[13].
Considerações finais
O processo decisório em torno das dinâmicas de cuidado é atravessado e influenciado por circunstâncias materiais e de ordem prática diversas e pelos valores e moralidades em jogo, relativas ao modo como cada profissional mobiliza protocolos e interpreta as práticas de cuidado neles contidas. Em relação a esta última dimensão, tais tensões emergem de maneira mais evidente sobretudo em relação ao uso de medidas invasivas e suportes artificiais de vida, o momento de iniciar a limitação dos esforços terapêuticos e as decisões sobre a implementação das medidas de conforto.
Não há decisões simples ou fáceis para os complicados dilemas que atravessam a feitura do cuidado na prática cotidiana dos atendimentos realizados pelo Serviço de Cuidados Paliativos. Ao investir na descrição extensa das instâncias de discussão em torno da definição das condutas e dos procedimentos médicos na condução do caso de Ana Laura, procurei não reduzir as situações a interpretações genéricas nem oferecer respostas apressadas sobre os modos de produção do cuidado nesse contexto particular. Como busquei argumentar, as noções normativas – protocolares – em relação à assistência e à promoção da saúde são embaralhadas e reconfiguradas pelos resultados incertos – e muitas vezes indesejados – inerentes ao cuidar (Puig de la Bellacasa, 2017). O cuidado, como vimos, é isso que vai sendo feito em meio às ambiguidades e às relações complexas e intrincadas que se estabelecem entre diagnósticos particulares, maus prognósticos, respostas fisiológicas, trajetórias de adoecimento singulares, expertises, valores, biografias e subjetividades.
Tais interações e intervenções colocam o cuidado em ato e apontam para a multiplicidade na forma como é manejado por minhas interlocutoras. O foco na atenção às particularidades de cada indivíduo, reiterada na afirmação de “cada caso é um caso”, é parte do protocolo que guia a atuação da equipe. Contudo, são os ajustes entre as expectativas dificilmente alcançáveis de uma abordagem que procura promover um cuidado individualizado, pautado nas necessidades e nos desejos do paciente e da família, e a realidade cotidiana do trabalho nos serviços de saúde que dão a tônica à assistência, fazendo emergir diferentes versões sobre o “bom cuidado”.
O “bom cuidado”, portanto, não é algo dado nem tampouco uma entidade fixa, mas produzido a partir da contingencialidade e situacionalidade das práticas empreendidas tanto por familiares como pelos profissionais de saúde no cuidado cotidiano aos pacientes. As ambivalências e tensões que caracterizam a produção do cuidado em contextos de fim de vida é marcada por reavaliações constantes e decisões que acompanham a fragilidade do estado de saúde de pacientes com doenças graves e irreversíveis. Contextos nos quais as práticas de cuidado são performadas nos embates e nas negociações que se desenvolvem entre os diferentes sujeitos implicados na produção do cuidado – especialistas, instituição, família – em cenários e temporalidades específicas.
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Notas