Resumo: : A proposta do artigo é articular as noções de casa, corpo e cuidado à luz da contribuição dos estudos sociais da ciência e dos estudos feministas sobre cuidado e sobre interseccionalidade, a partir de experiências de pesquisa e ensino. Os casos apresentados são oriundos de dois momentos distintos: uma etnografia realizada entre 2015 e 2018 em uma unidade de atenção primária à saúde e situações vivenciadas por estudantes de medicina ao longo do internato também na atenção primária e acompanhadas pela autora enquanto supervisora, entre 2021 e 2022. A relação entre os casos apresentados e os ambientes onde vivem as pessoas que deles fazem parte constituem o fio condutor desta reflexão, na qual procuro demonstrar a centralidade do espaço entendido como casa e de relações humanas e não humanas que permeiam a corporeidade dos pacientes, em suas possibilidades e formas de gerar cuidado. Finalmente, proponho pensar na necessidade de uma reflexão epistêmica no campo formativo da saúde, para compreensão dos corpos vivos e das pessoas em suas vidas.
Palavras-chave: Cuidado, Formação médica, Ciência, Estudos feministas.
Abstract: The purpose of this article is to reflect on the notions of home, body and care considering the contributions of the Social Studies of Science (STS) and feminist studies on care and intersectionality, based on research and teaching experiences. The cases on which I reflect come from two distinct moments: an ethnographic research carried out between 2015 and 2018 in a primary health care center and situations experienced by medical students during their internship in this same area and accompanied by the author as a supervisor, between 2021 and 2022. The relation between the cases and the environments where these people live constitute the guiding thread of this reflection, in which I try to demonstrate the centrality of the space understood as home and of human and non-human relationships that permeate the corporeity of patients, in its possibilities and ways of generating care. Finally, I propose to think about the need for an epistemic reflection in the formative field of medicine, in order to understand living bodies and the people in their lives.
Keywords: Care, Medical training, Science, Feminist studies.
Dossiê
Manter-nos juntos: casa, corpo e cuidado em diferentes arranjos
Keeping us together: home, body and care in different arrangements
Recepción: 18 Octubre 2022
Aprobación: 31 Enero 2023
Este texto parte de preocupações que me inquietam desde o processo de trabalho de campo e escrita de minha tese de doutorado, que teve foco nas relações de cuidado estabelecidas entre moradores e profissionais em um serviço de saúde no Complexo do Alemão[1], conjunto de favelas na zona norte do Rio de Janeiro. Mais recentemente, com minha inserção enquanto supervisora no internato de alunos de medicina em Atenção Primária à Saúde[2], tais questões retornaram a partir de problematizações trazidas, desta vez, por estudantes de medicina no espaço de supervisão.
Ao ingressar como professora substituta em uma universidade pública e ser destinada a atuar no curso de medicina, admito que não esperava encontrar um grupo diverso de estudantes como encontrei, sobretudo aqueles que estavam realizando seu estágio de internato em uma unidade de saúde na periferia da zona norte da cidade, um dos locais onde atuo e nos quais os alunos residentes no entorno preferem realizar suas rodadas, em razão da maior proximidade com suas casas. Embora estivessem longe de ser maioria, alunas e alunos de baixa renda, negros e oriundas de escola pública[3], ocupavam sempre ao menos metade da turma.
A partir de políticas de ações afirmativas e de um período de maior estabilidade econômica no Brasil, houve uma relativa democratização do acesso aos cursos superiores no país, que diversificou em termos de classe, raça, religião e outros marcadores, o perfil de alunos em universidades públicas. Hoje no curso de medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 50% das vagas são destinadas aos estudantes que ingressam pelo sistema de cotas. A lei de cotas estabelece que 50% das vagas nas universidades federais por curso e turno sejam reservadas para estudantes que tenham cursado o ensino médio integralmente em escolas públicas. Dessas vagas, 50% são reservadas a estudantes oriundos de famílias com renda igual ou inferior a 1,5 salário mínimo per capita. Dentro dessas vagas, encontra-se a reserva para pretos, pardos e indígenas e pessoas com deficiência, de acordo com a proporção da população em que esteja instalada a instituição[4].
Apesar dessa maior diversidade, um comentário recorrente entre os alunos, mesmo entre aqueles de famílias de baixa renda, é sobre seu espanto com as situações de vulnerabilidade dos pacientes que encontram quando passam a atuar na atenção primária à saúde e, principalmente, quando realizam as visitas domiciliares com as equipes multiprofissionais e se deparam com condições de extrema pobreza. Espanto similar ao que eu, pesquisadora, branca, de classe média, senti quando iniciei meu trabalho em um conjunto de favelas dez anos atrás[5]. Esse deslocamento, do espaço do hospital universitário, o único antes conhecido por eles, para a atenção primária, promove, na maior parte dos casos e sobretudo entre aqueles mais sensíveis, um grande choque e crise profissional e existencial com relação à sua formação.
A principal crise refere-se à sensação de impotência sentida por muitos diante de pacientes cujas vidas são atravessadas por múltiplas desigualdades. Algumas perguntas que rondam nossos espaços de discussão são: em que medida a atuação dos profissionais de saúde pode contribuir para qualidade de vida das pessoas quando sequer possuem acesso à água, esgoto, alimentação e moradia digna, entre outros itens básicos de sobrevivência? Os profissionais de saúde podem contribuir para atenuar as desigualdades tão profundas ou simplesmente atuam dentro desta limitação? Ao ouvir tais questionamentos, eu refletia sobre qual seria o destino destes jovens profissionais diante desses pontos. Ao longo dos anos, seriam tão massacrados pela prática médica que não se importariam mais com esses problemas? Ou se aquilo os desestimularia a tal ponto que desistiriam da profissão como muitos desistem? Ou ainda, se conseguiriam incorporar de forma consciente e implicada tais reflexões em suas práticas, como por vezes também ocorre?
Em uma outra experiência de pesquisa, uma das médicas que entrevistei, Jéssica, me revelou ter nascido e sido criada em uma favela. Apesar de seus pais não viverem mais ali e terem melhorado sua condição social ao longo da vida, assim que se formou, ela se candidatou para atuar em uma unidade de saúde na favela e foi contratada. Seu desejo era retornar ao local onde foi criada para oferecer melhores condições às pessoas que ali viviam. Mas ela não suportou por muito tempo a situação, que acabou lhe rendendo um quadro depressivo. Na ocasião, ela disse: “sabe, eu cresci lá, eu era pobre, mas a minha casa tinha comida, tinha banheiro, tudo direitinho. E lá eu vi que muita gente não tinha essas condições mínimas de vida”. Ela ressaltava aspectos como o número de atendimentos que fazia por dia, as situações de estresse que enfrentava com a equipe e com os usuários agravadas pela alta demanda, além da sensação de frustração por sentir que os problemas de seus pacientes eram muito profundos pelas situações de empobrecimento e violência e, por isso, sua atuação ali tinha sempre baixíssimos resultados
No campo da saúde, sobretudo em diálogo com a Saúde Coletiva, muitas vezes tais questões são nomeadas como aquelas que dizem respeito aos Determinantes Sociais da Saúde, termo que retomarei adiante. Antecipo, entretanto, que pretendo argumentar que tal arcabouço é insuficiente para lidar com aquilo que os estudantes, ou mesmo os profissionais de saúde, sentem ao se depararem com muitos dos casos que atendem. A ideia de determinação traz em si, ao mesmo tempo, algo que atravessa de forma vertical a vida das pessoas, mas que é também externa a elas, gerando a sensação de ser algo que está para além ou apartada do corpo. Ao dialogar criticamente com essa noção, procuro pensar a partir das noções cuidado, corpo e casa, entremeada a dois casos, formas de superação deste modelo e suas implicações para a construção do conhecimento.
Ao iniciar meu trabalho de campo de doutorado, estive preocupada em olhar para as relações de cuidado que se estabeleciam entre profissionais e usuários do sistema de saúde. Mas, ao longo do tempo, as relações de cuidado foram se revelando muito mais complexas do que imaginei, não sendo possível isolar a relação usuário-profissionais de outras que circundam o ambiente onde os usuários e alguns profissionais vivem (como no caso dos Agentes Comunitários de Saúde, muitas vezes moradores dos mesmos locais). Assim, a partir da etnografia realizada anteriormente, formulei a noção de “arranjos de cuidado”, proposta enquanto uma categoria analítica – inspirada nas discussões sobre a ética do cuidado (Tronto 2007 2009, Mol 2002 2008 2010, Hirata e Guimarães 2012) – empenhada em descentralizar a noção de cuidado de relações duais e domésticas, complexificando o emaranhado de relações que compõem o cuidado, incluindo as relações com diferentes atores e formas de vínculo (de curta, média e longa duração).
Procurei ainda apontar para a forte dimensão situacional do cuidado, marcada por improvisos e precariedades, especialmente em contextos em que prevalece um entendimento do cuidado enquanto assunto privado e a ausência de políticas públicas voltadas para este tema (Fazzioni 2018). A ideia de arranjo, portanto, procura evidenciar que as experiências de cuidado envolvem sempre um misto entre “arranjos” de longa duração, em geral os que são definidos pelas relações de parentesco – e que não se limitam às relações de consanguinidade e aliança[6] – com arranjos de média duração (ajuda pontual de um parente ou um vizinho, trabalho, serviço de saúde), e, finalmente, outros de curta duração (um auxílio para descer uma escada, uma carona, um empréstimo de dinheiro, um prato de comida). Mais do que isso, no entanto, o arranjo quase nunca depende unicamente do indivíduo, prescindindo de relações baseadas em vínculo, reciprocidade, afetos e trocas monetárias (embora menos presentes nesse contexto).
Mas há também os momentos em que os arranjos de longa ou curta duração se fragilizam pela ausência de relações que o sustentem, resultando em descuido ou abandono dos indivíduos que necessitam de cuidado. Alguns casos desse tipo revelam a ausência da ajuda mútua entre membros da mesma família e vizinhos, tendo como efeito um arranjo de cuidado frágil. Em outros contextos, contudo, mesmo com o desejo de ajuda, o potencial de alguns cuidadores torna-se visivelmente esgotado, notadamente no caso de mulheres, limitadas por questões financeiras, pela violência local e familiar, pelo excesso de demandas de cuidado e por outras atividades que possuem, muitas vezes também de cuidado, embora menos visíveis, como demonstram outros trabalhos sobre o tema (Guimarães e Vieira 2020).
Tal perspectiva para pensar o cuidado tem forte inspiração no trabalho de Annemarie Mol e nas contribuições dos estudos feministas da ciência. Na introdução de Care in Practice, Annemarie Mol e colaboradoras afirmam que: “Para as ciências, os corpos eram interessantes na medida em que podiam ser objetivados e explicados em laboratório, mas não quando se arrastavam, ofegavam, engoliam ou se alimentavam, falavam, gritavam ou precisavam ser acalmados (Mol, Moser e Pols 2010, 7). Acompanhando tal processo, a medicina tornou-se cada vez mais técnica, especializada e burocratizada e, assim, o diagnóstico ganhou cada vez mais centralidade na prática médica, sobretudo com o desenvolvimento de novas tecnologias (Rosenberg 2020 [2002]).
A afirmação não é exatamente nova, já que há muito tempo as ciências humanas e a filosofia refletem sobre a “fratura ontológica”, para usar os termos de Le Breton (2003, 189), entre pessoa e corpo da qual nasce a medicina moderna. Mas as autoras acima nos tocam ao descrever justamente aquilo que os corpos fazem quando não são objetificados: ofegam, engolem, gritam. Este tipo de contribuição dos estudos feministas da ciência, que oferece um olhar aos tópicos antes negligenciados, constituem justamente o fio a partir do qual pretendo conduzir minha reflexão aqui.
A partir das proposições de Donna Haraway (1995), compreendo que a parcialidade do conhecimento científico ou da prática médica precisa ser reconhecida, inclusive para que se possa alcançar alguma objetividade. Para Haraway, “a objetividade revela-se como algo que diz respeito à corporificação específica e particular e não, definitivamente, como algo a respeito da falsa visão que promete transcendência de todos os limites e responsabilidades. A moral é simples: apenas a perspectiva parcial promete visão objetiva” (Haraway 1995, 21).
Em diálogo com a produção feminista, Haraway afirma que é preciso reconhecer que saberes são sempre localizados e que “não estamos no comando do mundo. Nós apenas vivemos aqui e tentamos estabelecer conversas não inocentes através de nossas próteses” (1995, 38), referindo-se às mediações sociotécnicas que acompanham nossa vivência contemporânea. As provocações de Haraway são fundamentais aqui quando postulam a necessidade de criar um saber parcial e localizado, tanto para a minha visão enquanto pesquisadora, como para a visão que acredito ser importante elaborar junto aos estudantes de medicina e outros profissionais de saúde sobre suas práticas e formas de entendimento sobre o mundo e as pessoas com as quais atuam.
Ao procurar trazer neste artigo minha própria experiência enquanto pesquisadora, a de meus alunos e dos casos acompanhados por eles e por mim, tais visões parciais e localizadas, só podem ser entendidas à luz das intersecções de raça, classe, gênero, religião e outras, que nos marcam enquanto diferentes. Entretanto, como atenta Patricia Hill Collins (1998), a interseccionalidade não forja apenas identidades mas perspectivas epistemológicas distintas. Ao concordar com Haraway, Collins afirma que a interseccionalidade pode nos auxiliar a construir uma visão que é parcial e localizada, mas é também muitas vezes fronteiriça, situando “comunidades com poderes diferenciados” e situando os sujeitos muitas vezes enquanto “forasteiros de dentro” (outsider within) (Collins 1991).
Ou seja, as perspectivas parciais raramente partem de um único lugar, como no caso da médica Jéssica, oriunda da favela mas formada em medicina ou no meu próprio caso, a única antropóloga atuando em um curso de medicina, mas ainda assim uma mulher branca, de classe média e professora, como a maior parte de meus colegas. Assim, as sugestões de um saber crítico e feminista ao conhecimento científico e de uma perspectiva que também leve em conta a interseccionalidade e diferentes posicionalidades, é o que me move na análise dos dois casos abaixo, a partir dos quais pretendo refletir sobre estas teorias e igualmente buscar uma resposta possível às inquietações que permeiam a experiência de jovens estudantes de medicina e profissionais.
Embora já tenha refletido sobre o caso de Maria em outro momento (Fazzioni 2018b), retomarei sua trajetória de forma mais detalhada, buscando elucidar aspectos antes não vislumbrados para a discussão aqui proposta. Maria é uma senhora de 70 anos, negra, magra e de cabelos grisalhos e curtos. Vive na área conhecida como Morro do Alemão desde os seis anos de idade. O motivo da primeira visita domiciliar que acompanhei à casa de Dona Maria com os profissionais de saúde, foi a má cicatrização do coto[7] de sua perna amputada há quase três anos. A visita foi realizada com um médico e uma agente comunitária de saúde. Maria, ao mesmo tempo em que nos mostrava a perna, dizia, deixando algumas lágrimas escorrerem, sobre como a má cicatrização lhe aborrecia, impedindo-a de colocar a prótese.
Após a cirurgia, foi viver na casa da filha em um apartamento fora do “morro”[8], onde ficou por dois anos, mas não lhe agradava em nada a sensação de estar “presa” em um prédio. Sobre o período em que esteve lá e o cuidado da filha com ela, ela comenta: “Hoje em dia, poucos filhos fazem o que ela fez, cafezinho, até engordei, cafezinho com leite, e almoço e maior cuidado comigo”. Ainda assim, ela preferiu voltar. Mesmo com toda a dificuldade em voltar para a sua casa, localizada em uma área muito íngreme no Morro do Alemão, ela preferia, ainda assim, estar de volta; ali pelo menos podia transitar em sua cadeira de rodas entre a cozinha e a área de serviço, e embora a casa fosse pequena, possuía uma área externa[9]. A casa de Maria era simples, térrea, composta por quarto, sala, cozinha e banheiro, era clara e arejada, inserida em terreno amplo e murado, localizada em uma parte de ocupação mais antiga do Morro do Alemão, no limite entre o início da área de favela e uma escadaria que dava acesso ao bairro de Olaria mais abaixo. O outro motivo de seu retorno era o cigarro, já que a filha não lhe deixava fumar dentro de casa, e Dona Maria sofria com a falta do cigarro.
Com o retorno à sua casa, ela também havia retomado a possibilidade de ser atendida pelos profissionais da unidade, que a tinham acompanhado desde os primeiros sintomas que levaram à amputação. Durante o período na casa da filha, ficou sem nenhum acompanhamento da equipe de saúde da família, pois não possuía comprovante de residência declarando que vivia ali, e assim, segundo o que nos relatou, não podia ser atendida pela equipe daquela área, considerando a dinâmica territorializada assumida pela atenção primária à saúde a partir da Estratégia Saúde da Família (ESF)[10]. Porém, essas limitações impostas pelas regras do sistema nem sempre haviam sido seguidas na relação de Maria com os profissionais de saúde. Ela conta que a ferida na perna surgiu quando estava assistindo televisão e um mosquito lhe picou um pouco acima do pé. Coçou a perna e abriu-se uma ferida. No meio da noite, sentindo dor, ela pôs álcool e, em seguida, pó de sulfa (um pó cicatrizante e anti-inflamatório muito usado antigamente). Ao narrar esse episódio, ela se angustia: “Eu não me dou com isso... Olha... Três dias aquilo criou um buraco, que dava pra se ver daqui”. Em sua narrativa, foi o cigarro que impediu a cicatrização e aquilo foi piorando, até culminar na necessidade de amputação.
Na época em que a ferida apareceu, a auxiliar de enfermagem da unidade de saúde que trabalhava na equipe que atendia a residência de Dona Maria subia até sua casa periodicamente para refazer o curativo, enquanto aguardava um encaminhamento para o especialista. A auxiliar, conhecida como Ju, era a única pessoa para quem Maria tinha coragem de mostrar a ferida. Ju, no entanto, foi transferida para outra unidade, mas seguiu indo até o Alemão e fazendo o curativo nela após seu expediente, considerando o vínculo de confiança que haviam estabelecido.
Maria contava todo seu processo de tratamento da perna com muitos detalhes, incluindo datas, nomes de medicamentos e dos profissionais que lhe atenderam em diferentes instituições. Embora rica em detalhes, sua narrativa sobre o adoecimento e a amputação não era linear do ponto de vista clínico. Em sua elaboração, o afastamento definitivo de Ju foi o que demarcou o momento da piora, que acabou resultando na amputação. Ela diz:
É porque o machucado tava até sarando... Tava, tava até fechando, quando a Ju vinha aqui ficou fechado... Aí na época a Ju não veio mais, aí saiu um carocinho assim do lado, aqui assim, vermelhinho, aí foi indo, foi indo, foi indo, aí foi depois do carnaval de 2014, ele tava assim, ó, comparando isso aqui, pequenininho, de tarde tava assim, ó, cresceu um tanto assim... Nossa... Num dia mesmo, de um dia pro outro. E eu não falei pra ninguém. Aí um dia limpando, eu disse pra minha filha, dá uma olhadinha no meu pé, ela botou a mão na cabeça! Mããããe, meu Deus do céu, há quanto tempo tá isso aí, mãe? Isso é um câncer, não sei o quê... Porque ela andou fazendo aí uns cursos de enfermagem, e ela chegou a fazer estágio, aí ela viu, né... Ih, até xinguei ela, vai pra lá, vira essa boca pra lá, sei quê, aí foi indo, ficou igual uma bola. Aí, por causa de uma dor aqui, ó, a minha filha me levou no Getúlio [Hospital Getúlio Vargas], eu até lembro, aí ela me levou no Getúlio e começou tudo isso... (Entrevista realizada com Maria, 2017).
As idas e vindas de Maria a diferentes hospitais e tratamentos revelam dois elementos simultaneamente. Ela não menciona, e ao mesmo tempo não parece ser importante para ela, a existência de um diagnóstico final para aquilo que levou à amputação. O tempo todo ela se preocupa em explicar os processos: como se deu conta da gravidade do problema, quem estava ao seu lado naquele momento, para onde foi levada e como foi tratada – mas nunca, o diagnóstico de por que afinal foi preciso amputar a perna[11]. Em meio a tantas informações, ela diz: “Eu peço a Deus que me leve quando ele quiser, mas não leve nunca a minha memória”.
Enquanto para o médico, assim como para mim, a ausência de um diagnóstico e de um motivo para a amputação causava extremo desconforto, no caso de Maria, as pessoas, as coisas e o cuidado que tal processo demandou e não a doença em si parecia ser o mais relevante. Assim, ao narrar a história da amputação de sua perna, o que lhe doía mais não eram exclusivamente os motivos fisiológicos que a levaram a ter perdido uma parte de seu corpo ou a ausência de clareza nas explicações que recebeu em diferentes serviços de saúde – certamente fruto de uma comunicação muitas vezes violenta e pouco acessível para pessoas com baixo grau de instrução como ela –, mas sim, de maneira indissociável, a relação entre seu corpo, sua casa e seus vínculos de cuidado, conformando uma história única sobre sua amputação, aquela que fazia sentido para Dona Maria.
Em sua trajetória de vida, ela foi obrigada pelo pai a casar após ter, como relata, “perdido a virgindade” com um homem quarenta anos mais velho que ela. Para Maria, a morte de seu marido aos 96 anos foi um misto de tristeza e alento. Ela lembra que sua perda foi dura, mas não tanto quanto ter perdido o gatinho que lhe fez companhia depois da viuvez. Mas aquele corpo foi também o corpo das famílias para quem trabalhou de forma mal remunerada como doméstica há tantos anos. Foi também o corpo dos filhos que gestou, pariu e criou. Esse corpo foi marcado por tantas tensões que talvez em meio à sua velhice, vivendo em sua casa, viúva e recebendo a pensão por morte do marido, sem precisar trabalhar, Maria talvez tenha se sentido mais inteira do que nunca, mesmo após a amputação, mesmo sentindo a distância e ausência de seus filhos.
Isso ficava evidente quando falava da existência de uma rede familiar densa, porém marcada pelas dificuldades dos filhos em estarem perto dela, em razão de seus trabalhos e outros compromissos. Quando narra sobre o período em que ficou na casa da filha, ela afirma: “Eu senti falta da minha casa, e lá é apartamento, as portas fechadas, tudo fechado, não via nada, de manhã não entrava nem um solzinho assim...Mas eu já não tava com a cabeça legal, apartamento fechado... Ficava muito sozinha, porque ela [a filha] trabalha fora o dia todo” (entrevista realizada com Maria, 2017). O incômodo de Maria não tinha a ver apenas com a ausência da filha, mas também com a ausência de sua casa e do lugar onde viveu desde os seis anos de idade. Era como se perder sua casa fosse como amputar outra parte de si.
Apesar da distância dos filhos, em sua fala é nítida a sensação de contar ali com uma rede de apoio que, embora não estivesse presente em seu dia a dia, nunca seria ausente em um momento de necessidade, por exemplo, quando ela precisou ser carregada em sua cadeira de rodas para sair de casa. Entre essas pessoas, incluíam-se não apenas os vizinhos, mas também “os meninos”, forma indireta de se referir àqueles que estão ligados à venda de drogas no morro[12], que a carregaram inúmeras vezes na cadeira de rodas para conseguir entrar e sair de casa até a rua mais próxima. Maria me contava sua história de vida, relatando quando se casou, as situações de violência e dificuldade que passou ao longo da vida, em quais lugares nasceram seus filhos, onde viveram seus pais, os locais onde trabalhou como doméstica, fazendo sempre referência “àquela escada ali”, “a casa em frente”, “naquela árvore ali de trás”, “aqui no morro”, revelando coisas e pessoas que compunham ela própria. E era perto dessas partes de si, de sua casa e de seu cigarro, que ela gostaria de passar o resto de sua vida.
Se no caso de Maria, vemos a relação entre corpo e enfermidade se expandir para além dos limites do diagnóstico, parece importante retomar aqui a noção de corpo enquanto um corpo vivo, que não pode ser objetivado e explicado em laboratório. Em “Embodied action and enacted bodies”, Annemarie Mol e John Law (2007) sugerem que é necessário ir além da ruptura com o paradigma cartesiano entre morte e corpo para superar essa perspectiva que, apesar de importante, deixa as formas de conhecimento intocadas. Ainda que aceitássemos que haveria de um lado uma forma objetiva e científica de conhecer o corpo e de outro uma subjetiva e pessoal, tal perspectiva manteria uma certa divisão entre uma forma pública e outra privada de conhecer o corpo. De acordo com os autores, essa forma estaria ligada ao nascimento da clínica, descrito por Foucault (1977). Dentro de um sistema específico de hospital e tratamento médico, a morte e o adoecimento deu à medicina a “última palavra” sobre a enfermidade, enquanto a autoconsciência se transformou em uma questão privada (Mol e Law 2007).
Para os autores, a maneira de sair dessa dicotomia seria encarar que “nós todos temos e somos um corpo (...) nós fazemos esse corpo como parte de nossa prática cotidiana” (2007, 17). Este corpo que fazemos é sempre algo que está “abaixo e além da pele”, não é um todo, mas isso tampouco significa que ele seja fragmentado, pois há limites (por exemplo, de fenômenos que só podem ser sentidos abaixo da pele) e há tensões (sobre como eles são sentidos e compreendidos com pessoas e ambientes ao redor). Assim, os autores concluem: “o corpo-que-fazemos não é um todo. Manter-nos juntos é uma das tarefas da vida” (2007, 7).
As reflexões de Mol e seus colaboradores possuem implicações interessantes para o campo da medicina, pois questiona o que pode se esperar da prática médica. Ao invés de agregar mais uma camada de conhecimento à medicina (aquela de uma suposta autoconsciência ou subjetividade do paciente), Mol e Law sugerem que a medicina deve vir a reconhecer que o que tem a oferecer não é um conhecimento de corpos isolados, mas uma gama de diagnósticos e intervenções terapêuticas em corpos vividos e, portanto, na vida cotidiana das pessoas. Assim, a medicina seria obrigada a encarar sua própria limitação: as intervenções médicas quase nunca trazem melhorias “puras”, elas trazem tensionamentos a uma vida cuja melhoria depende de tantos outros fatores.
Já diante dessas reflexões, deparei-me anos depois com esse tema em uma atividade de supervisão junto aos alunos de medicina. O caso adveio do relato de um dos estudantes de medicina que participa do grupo de supervisão que acompanho em uma unidade de atenção primária à saúde também na zona norte do Rio de Janeiro e que atende uma outra grande área de favela – aqui chamaremos esse estudante de Vinícius[13].
O caso que Vinícius nos trouxe e que foi bastante marcante para mim e para os outros estudantes presentes foi sobre a visita a um paciente que se deu na primeira ida do estudante à área atendida pela equipe de saúde da família na qual ele atuava como interno. Vinícius é um estudante de 23 anos, oriundo da Baixada Fluminense, branco e de classe média baixa. Naquela época, vivia na casa da família de sua namorada, no bairro de Ramos, para estar mais próximo às atividades da faculdade[14]. Apesar de ter sido criado em uma região periférica, seu espanto ao andar pela favela e conhecer algumas das casas foi notável. Em seu diário de campo (compartilhado semanalmente com os supervisores), ele se lamenta pelas condições em que a equipe encontrou muitos dos idosos que visitou naquele dia, mas afirma que nada se comparou ao caso que encontrou em seguida, um homem vivendo em um pequeno espaço escuro sob as vigas da casa da irmã, dividido com dois cachorros. Ele escreve:
As condições estruturais precárias não foram o maior choque, mas sim seu estado de espírito. A visita foi realizada em um cômodo sem bocal para iluminação, improvisado sob as vigas estruturais da casa da irmã, com não mais que dois por dois metros, onde o usuário dividia o espaço de um colchão sem lençol, duas pequenas poltronas velhas e duas vasilhas dos cachorros, que passavam sobre o colchão e o doente para comer e beber. O senhor, inicialmente com suspeita de tuberculose, poderia facilmente ter mais de 60 anos, tanto pela aparência como por não saber identificar sua idade, mas a irmã disse que tinha apenas 43.
O relato do estudante seguia com as descrições do estado clínico do paciente. A situação do paciente era grave, estava emagrecido, sem força para locomoção e dependente de uso de fraldas. Ele não conseguia responder às perguntas feitas pela equipe, que acabaram sendo respondidas pela irmã. O motivo de ela haver lhe deixado ali, junto aos cachorros, era o fato dele ser agressivo e ter espalhado as fezes da fralda pela casa em algumas ocasiões. Seu diagnóstico seguia em aberto para a equipe, mesmo após a visita. O estudante descreve:
Ele passou dois dias no Getúlio Vargas, de onde recebeu uma série de hemogramas que atestam anemia normo-normo e um laudo de tomografia de tórax que atesta nada, com muitos achados vagamente descritos, tão pouco elucidativa que sugere apenas que o responsável por ela não queria trabalhar. À ausculta o paciente apresentava apenas MVUA e sua saturação era de 96% e frequência cardíaca em torno de 130bpm e acentuado emagrecimento. Há dois meses o paciente parece apresentar melena e está desde então sem ingerir bebidas alcoólicas. Ele não tem condições de escarrar ou de seguir até local apropriado para realizar exames mais adequados. De qualquer forma, ele não parece querer realizá-los.
A sensação que a equipe tivera, de acordo com Vinícius, era a de que o paciente não desejava viver e sua irmã tampouco queria que ele vivesse. O fato de estar no mesmo local que os cachorros remetia a uma certa desumanização do irmão de Joyce. Mas ali, na lógica de sua casa, era o espaço que lhe cabia oferecer a seu irmão, que pelos relatos colhidos pela equipe, havia vivido até os seus 43 anos uma trajetória bastante instável marcada pelo abuso de álcool e drogas, transtorno mental e longos períodos vivendo nas ruas. Joyce, por sua vez, era considerada pela equipe uma pessoa “acima de qualquer suspeita”, conhecida e querida pela vizinhança, trabalhadora de uma organização não governamental que atuava no local. Se o irmão do Joyce tinha um corpo, ele certamente não estava íntegro. A ausência de um espaço físico onde ele se ancorasse acentuava essa fragmentação. Não necessariamente esse espaço precisava ser uma casa de quatro paredes[15], mas um espaço constituído por pertencimentos e relações, para que pudesse ser cuidado.
Em um segundo diário de campo, Vinícius relatou que quando a equipe retornou na semana seguinte, a situação estava melhor. Após a visita da equipe de saúde e de um estímulo para que Joyce controlasse melhor a medicação e as condições de higiene do local onde estava o irmão, essas condições pareciam ter sido melhoradas. Mas não só a visita da equipe contribuiu para que isso ocorresse. Os vizinhos também insistiram para que Joyce o levasse ao médico novamente e chegaram inclusive a lhe entregar comida pelo portão. Ela retrucou negativamente, mas depois disso acabou trocando as roupas de cama e fez uma divisória de madeira restringindo o acesso dos animais ao espaço onde ficava o irmão.
Na terceira semana de acompanhamento deste caso, antes do nosso espaço de supervisão ocorrer, fomos surpreendidos por uma operação policial na favela onde Joyce e seu irmão viviam. Acordei e deparei-me com uma infinidade de mensagens no celular, nas quais os estudantes perguntavam se deveriam ir até a unidade naquele dia ou não. Alguns ainda estavam a caminho, outros já estavam lá. Embora a situação em si não fosse nova para aqueles que vivem em áreas de favelas no Rio de Janeiro e havendo um protocolo estabelecido pela Secretaria Municipal de Saúde para conduta dos serviços de saúde em episódios de violência armada, tais momentos nunca deixam de gerar medos, dúvidas e ansiedade entre aqueles que vivenciam de forma mais ou menos aproximada tais realidades, como já demonstrei em outro artigo (Fazzioni 2019). Ainda no calor da situação ocorrida pela manhã que resultou em nada menos do que vinte e três mortes, configurando uma das chacinas mais sangrentas dos últimos anos[16], optamos por realizar as atividades de supervisão de forma remota
Foi em clima de apreensão que iniciamos nossa conversa naquela tarde e após uma rodada sobre as situações e sentimentos que permearam o momento da manhã, quando alguns chegaram a estar na unidade de saúde, antes que ela fosse totalmente fechada, Vinícius pediu a palavra. Contou-nos que naquela manhã, entre os poucos usuários que conseguiram chegar até o serviço de saúde em razão da operação policial, estava Joyce. Ela veio avisar sobre o falecimento de seu irmão e pedir ajuda sobre os procedimentos dali em diante. Não houve tempo para que os esforços de cuidado da equipe de saúde, seus vizinhos e sua própria irmã surtissem efeito. A sensação de impotência que já era grande com a situação da chacina, tornou-se dilacerante entre nós, obrigando-nos a refletir que naquele contexto, homens, sobretudo homens negros, de um jeito ou de outro, mas sobretudo de forma violenta, morrem cedo demais. Seja pelo tiro da polícia, pelos diversos atravessamentos que enfrentam em suas vidas ou pela falta de habilidade em cuidar de si ou possibilidade de receber cuidados, muitos deles morrem[17]. Não conseguem manter-se juntos.
Após esse caso, retomo aqui a pergunta que norteava o início deste texto. Práticas de saúde podem contribuir para melhorar efetivamente a vida de pessoas em condições de vulnerabilidade? Ou são sempre limitadas diante de tamanha desigualdade? A notícia da morte do irmão de Joyce deixou todos reflexivos e abalados. Não deu tempo, pensávamos juntos. As coisas haviam melhorado, mas não com tempo suficiente. E não somente porque profissionais de saúde haviam chegado à casa tarde demais, mas sim, porque, provavelmente, ao longo da vida daquele homem, o cuidado necessário sempre havia chegado tarde demais ou nunca chegado.
A proposta de olhar para o cuidado de forma ampla e descentralizada das relações individuais faz eco às proposições feitas pela filósofa Joan Tronto (2007), que afirma sobre a necessidade de trazer o cuidado para a democracia e assim democratizá-lo. Para a autora, este processo contemplaria o entendimento de alguns princípios básicos pelas sociedades democráticas, conformando uma espécie de manifesto para uma ética do cuidado. Isso posto, torna-se necessário aceitar a pluralidade nas formas de cuidar, sem com isso deixar de exigir o acesso igualitário a bons cuidados.
Assumir tal perspectiva implica ainda em escapar do modelo dual de cuidado, entendendo que quanto mais pessoas/instituições forem responsáveis pelo cuidado, melhor, e que, nesse sentido, necessidades urgentes de cuidado são direitos sociais e não responsabilidades individuais. Tal ponto de vista é fundamental, por exemplo, para que no caso exposto acima se retire da irmã, Joyce – uma mulher, negra, moradora de favela e provavelmente marcada pela responsabilidade do cuidado como a maior parte das mulheres, sobretudo as mais pobres, em nossa sociedade – o peso pelo ocorrido. Ainda que desempenhando papéis diferentes, a inserção dos vizinhos e da equipe de saúde retira o foco do cuidado na relação familiar e demonstra a potencialidade de uma coletivização do cuidado, envolvendo família, comunidade e o Estado.
A partir deste ponto de vista, é possível depreender do caso narrado que a chegada da equipe de saúde altera os “arranjos de cuidado” em torno do irmão de Joyce. Ainda não é o suficiente para que ele seja levado ao interior da casa, mas vale lembrar que ele também não está totalmente fora dali; os cachorros são também parte daquele espaço de cuidado da irmã, embora certamente não possuam as mesmas necessidades que seu irmão. De alguma maneira, portanto, sua irmã o recebe, e aos poucos seu espaço começa a se organizar com lençóis, uma divisória entre o espaço dos cães e ele, entre outros elementos. Não chega a ser o suficiente para que ele possa superar todas as enfermidades e adversidades que lhe atravessam. Mas é nítido que quando a relação estabelecida entre os dois irmãos se amplia e passa a envolver a equipe de saúde e os vizinhos, eles se mantêm juntos na tarefa do cuidado, gerando mais cuidado, ainda que implicados de formas diferentes nele. Assim, as chances do irmão de Joyce manter-se íntegro e junto aumentam, ainda que isso ocorra demasiadamente tarde.
“Nada se mantém junto de uma forma viva sem relacionamentos de cuidado”, afirma Maria Puig de la Bellacasa, ao propor que a noção de “matters of concern” proposta por Latour (1993, 1999), seja transmutada em “matters of care”. Para a autora, a ideia de preocupação (concern) é central nas formas de construção do conhecimento: “um gesto material-semiótico de pensamento-política e coisa-política inseparáveis”. Mas a noção de cuidado expande esta formulação em dois sentidos: “cuidar nesse contexto é tanto um fazer quanto um compromisso ético-político que afeta a forma como produzimos conhecimento sobre as coisas”. Além de uma disposição moral ou ação para transformar a forma como experimentamos e percebemos as coisas que estudamos, o cuidado auxilia os estudos sociais da ciência a olharem para temas quase sempre descartados, da manutenção cotidiana da vida, “um compromisso ético-político com coisas negligenciadas e a reconstrução afetiva da relação” (Bellacasa 2010).
Fazer um corpo, constituir um lar e arranjar o cuidado fazem parte do mesmo processo de “manter–nos juntos”. É tarefa certamente mais dura para as pessoas em condições de vulnerabilidade, sejam elas quais forem. Tal perspectiva, mais construcionista, pode parecer em alguns momentos ilusória ou ingênua diante de estruturas tão complexas e opressoras que nos tiram tantas vezes o direito a nossos corpos, casas e relações de cuidado[18]. Mas do contrário, se aceitarmos que nossos corpos não são feitos por nós mesmos, que espaços e argumentos temos para lutar pela garantia de suas integridades? Mais do que unificar as experiências, dando a elas um sentido comum, situar esses indivíduos em termos destas condições permite marcar sua profunda desigualdade com relação a outros não só em termos de acesso a determinados bens e direitos, mas também em termos daquilo que são capazes de “manter junto” ao longo de suas vidas. E isso altera a perspectiva a partir da qual olhamos e agimos[19].
Como mencionei anteriormente, há um vocabulário consensual na Saúde Coletiva para se referir àquilo que é entendido como os aspectos sociais que determinam o processo de saúde e doença. Os Determinantes Sociais da Saúde são definidos como: “os fatores sociais, econômicos, culturais, étnicos/raciais, psicológicos e comportamentais que influenciam a ocorrência de problemas de saúde e seus fatores de risco na população” (Buss e Pellegrini 2007, 78). É indiscutível a importância de tal conceito para a formulação no Brasil de um conceito ampliado de saúde (Almeida Filho 2011) e na compreensão daquilo que foi definido como iniquidade em saúde[20]. É digno de nota também os esforços que algumas áreas da medicina, com ênfase na Medicina de Família e Comunidade, têm feito, buscando dar conta destes fatores em suas práticas. Entretanto, ao não abrir mão do conceito de Determinantes Sociais da Saúde, a meu ver, os diferentes campos profissionais envolvidos em seu debate e formulação seguem reféns de uma lógica positivista e economicista para lidar com as questões de saúde. Bonet e Tavares (2008) apontam igualmente para a limitação dos estudos sobre os Determinantes Sociais da Saúde, atentando para a necessidade de uma compreensão dos usuários do sistema público de saúde que incorpore outra perspectiva analítica em torno destes fenômenos, revelando processos e complexidades.
Tatiana Gerhardt (2010), por sua vez, realiza um extenso mapeamento dos estudos em saúde com foco em desigualdades sociais e argumenta sobre a necessidade de que a noção de determinação social da saúde seja complexificada, observando o lugar de agência e mediação dos próprios indivíduos com relação à sua saúde. A autora escreve: “embora vários estudos incorporem indicadores sociais, estes não expressam a forma como os atores sociais lidam com essas variáveis na vida cotidiana” (Gerhardt 2010, 370). Para a autora, o mesmo raciocínio mecanicista que informaria sobre o funcionamento dos corpos na medicina, seria replicado na ideia de que bastaria crescimento econômico para superarmos os problemas de saúde da população, ignorando tantos os atravessamentos subjetivos, tanto como aqueles que olham para a desigualdade do ponto de vista da interseccionalidade, propondo uma superação dos modelos de análise que postulam uma primazia do econômico.
Se por um lado, concordo com a formulação destes autores, por outro advogo ser necessário um cuidado adicional com uma ideia de agência e subjetividade que possa ser alçada a uma espécie de ideal meritocrático, no qual a ação individual poderia ser capaz de superar todo o esmagamento e limitações impostas pelas condições em que as pessoas vivem. Seguindo os passos de Avtar Brah (2006), ao pensar sobre questões de raça, gênero, a autora argumenta em prol de um conceito de diferença que se refere à
variedade de maneiras como discursos específicos da diferença são constituídos, contestados, reproduzidos e ressignificados. Algumas construções da diferença, como o racismo, postulam fronteiras fixas e imutáveis entre grupos tidos como inerentemente diferentes. Outras construções podem apresentar a diferença como relacional, contingente e variável (Brah 2006, 374).
De todo modo, todas estas formas de diferença só podem ser compreendidas em articulação e de forma contextual.
Procurei neste artigo argumentar que o lugar da experiência e da construção de cada um dos sujeitos aqui citados não representa um caminho solto no mundo, subjetivo sim, mas igualmente marcado por essas diferenças em articulação que os atravessam, algumas fixas, outras móveis, mas sempre corporificadas e articuladas à construção desse sujeito no mundo. Retomando os casos aqui tratados para elucidar este ponto, vê-se que embora em ambas as situações se trate de moradores de favelas, suas histórias são absolutamente distintas, como é também a história da jovem médica nascida e criada no Complexo do Alemão.
Se no caso de Dona Maria a casa é também um elemento central que lhe permite agregar coisas importantes para sua sobrevivência, no caso do irmão de Joyce é a ausência da casa que marca a fragmentação e impossibilidade de cuidado de si e pelos outros. Mas a falta da casa em sua trajetória certamente não é a causa de seus problemas e sim uma consequência de uma extensa trajetória sobre a qual sabemos pouco, mas que certamente perpassa seu histórico de saúde mental, sua condição enquanto um homem morador de favela, a ausência de outros vínculos familiares além de Joyce, entre outros.
Não há dúvidas de que Maria se encontra em uma situação mais favorável e seu cuidado pela equipe de saúde é facilitado. Ainda assim, não foi possível evitar a amputação de sua perna e melhorar o processo de cicatrização. A ausência de profissionais de saúde na unidade e sua instabilidade também marcam a experiência de vida de Maria, assim como o tempo de espera para a consulta com especialistas, a dificuldade de conseguir consultas com o fisioterapeuta e de se deslocar até esses serviços. Sua condição ainda é precária por fatores que não determinam toda sua vida, mas limitam a passagem por certos caminhos e dificultam que Maria mantenha seu corpo íntegro, embora ainda esteja viva, diferente do irmão de Joyce.
Quando Jéssica relembra sua criação, ela se diferencia de alguns de seus pacientes dizendo que era pobre, mas sua casa tinha tudo o que ela precisava. Não por acaso, ela se refere à casa como esse espaço que lhe permite tornar-se quem ela é, manter seu corpo íntegro, mas não somente no sentido físico e estrutural do espaço da casa em si ou dos bens mínimos de que precisava para viver, embora estes sejam absolutamente centrais. Mas principalmente como algo que a sustenta em sentido amplo, já que se sua casa tivesse “tudo”, sem relações de cuidado, ela não seria uma casa que “tinha tudo”, como ela própria diz.
Ao ingressar como médica, após a formação em medicina, Jéssica revelou que queria dar o seu “melhor” no trabalho, por isso era sempre a primeira médica a chegar e a última a ir embora e, além disso, se envolvia intensamente com os problemas de seus pacientes. Depois de dois meses, ela começou a chegar todos os dias em casa aos prantos. A sensação de impotência era latente, até para ela que conhecia tão bem aquela realidade e talvez por isso se sensibilizasse ainda mais com aquela situação. Quando nos reencontramos, ela me contou que havia mudado de clínica, para uma área socialmente tão vulnerável como aquela, mas com uma equipe maior e apoio de diferentes profissionais. Ali o cuidado de manter junto seus pacientes e si mesma podia ser compartilhado e assim, menos limitado para Jéssica e as pessoas que atendia.
“Manter-nos juntos” é uma tarefa de todo corpo vivido enquanto permanece em vida. Inclusive o de profissionais de saúde. Essa seria uma resposta interessante para oferecer aos estudantes de medicina quando indagam sobre o sentimento de impotência que sentem ao se confrontarem com as múltiplas questões que perpassam a vida e o adoecimento de seus pacientes. A prepotência da medicina em acreditar que é capaz de conhecer, controlar, diagnosticar e curar os corpos se esvai quando confrontada com a vida real, sobretudo, quando tão atravessada por vulnerabilidades. Embora não seja o objetivo deste artigo refletir sobre a formação em medicina no Brasil, o que pretendi aqui foi argumentar que uma formação médica que não trate os corpos e o mundo como coisas distintas, talvez acarrete uma melhor resposta de futuros médicos ao serem confrontados com suas inevitáveis limitações.
Em uma conversa com estudantes, eles diziam como é comum encontrar alguns médicos que possuem um “complexo de Deus”, certos de que são capazes, ao menos em suas áreas de especialidade, de resolver todas as questões. Foi inevitável não lembrar de Donna Haraway quando afirma que a ciência se utiliza muitas vezes de um “truque de Deus” para afirmar seus achados. Como afirma a própria Haraway, não estamos no comando do mundo, nem dos corpos e suas vidas. Qualquer perspectiva é parcial, qualquer ação é também parcial. Se aceitarmos a não primazia do corpo em si, mas sim da construção do corpo no mundo, aceitamos que a medicina não é tão potente quanto imagina. Qualquer que seja a ação de um profissional de saúde, ela só pode ocorrer em conjunto com outras e sua impotência torna-se uma característica intrínseca e construtiva, como um motor transformador para uma forma implicada e responsável de compreensão de sua própria limitação diante da complexidade da vida.