Resumo: Este artigo propõe refletir sobre práticas do fazer pesquisa sobre cuidado, do lugar de uma “pesquisadora-mãe”, a partir de uma experiência etnográfica em uma Comuna rural localizada em um assentamento no interior do estado do Rio Grande do Sul. Inspiradas por Maria Puig de la Bellacasa, consideramos que a ética do fazer pesquisa não mora em um lugar “subjetivo” e de difícil acesso, mas está localizada nas práticas de cuidado diário, atravessadas pelas possibilidades de ser “tocada”, tanto no sentido material quanto afetivo. A partir de cenas vivenciadas em campo, em que ser pesquisadora e mãe provocam uma situacionalidade privilegiada, os conceitos de “kin” e “touching visions” são resgatados de modo a percebermos as fronteiras entre o “eu” e o “outro” enquanto borradas, possibilitando relacionalidades, criando conexões recíprocas e articulações entre os seres, sejam eles humanos ou não.
Palavras-chave: Cuidado, Pesquisadora-Mãe, Estudos feministas, Pensamento tentacular.
Abstract: This article proposes to reflect on practices of doing research on care, from the place of a “mother-researcher”, based on an ethnographic experience in a rural Commune located in a settlement in the rural area of Rio Grande do Sul (BR). Inspired by María Puig de la Bellacasa, we consider that ethics of doing research does not live in a “subjective” and difficult-to-access place, but it’s located in daily care practices, crossed by the possibilities of being “touched”, both in the material as well as affective sense. From scenes experienced in the fieldwork, in which being a researcher and a mother provoke a privileged situation, the concepts of “kin” and “touching visions” are rescued in order to perceive the boundaries between “me” and “other” as blurred, enabling relationships, creating reciprocal connections and articulations between being, whether human or not.
Keywords: Care, Mother-Researcher, Feminist studies, Tentacular thinking.
Dossiê
“Pesquisadora-mãe”: articulações e praticalidades em uma pesquisa sobre cuidado
“Mother-researcher”: articulations and practicalities in a research on care
Recepción: 18 Octubre 2022
Aprobación: 28 Febrero 2023
Este artigo parte de reflexões oriundas de uma tese de doutorado. Trata-se de uma etnografia em uma comuna rural, chamada Comuna Pachamama, localizada no interior do estado do Rio Grande do Sul, mais especificamente na região do pampa, cujo objetivo foi analisar as práticas de cuidado neste contexto. Desde a escolha do tema, aproximação e inserção em campo, vivenciando cotidianamente aquele espaço ao longo de um mês, foi possível provocar o lugar situado de “pesquisadora-mãe”[1] – considerando que a pesquisadora esteve acompanhada por sua filha que, no período, tinha três anos e meio. Este termo, assim, com hífen, é elaborado com o intuito de provocar a não separação das duas categorias presentes nesta pesquisa imersiva sobre cuidado: pesquisadora e mãe.
Como seria possível separar o “eu” pesquisadora do “eu” mãe no cotidiano do fazer-pesquisa, entendendo que o cuidado se dá a todo instante? Esta temática, ainda, ganha força a partir da banca de defesa da tese que aponta essa categoria enquanto um grande potencial do trabalho. Uma das avaliadoras membras da banca, ao trazer seu parecer, conta que na época em que realizava o seu trabalho de campo, mesmo levando seus filhos junto dela, não poderia relatar sobre o assunto, pois a maternidade era ali compreendida enquanto algo que, supostamente, “atrapalharia” a pesquisa. Conforme apontam Mari Korpela, Laura Hirvi e Sanna Tawah (2016), em etnografias sempre foi comum pesquisadores e pesquisadoras levarem seus filhos, maridos ou esposas ao campo, porém, não costumavam, de fato, refletir sobre essa presença e suas implicações. Se estamos partindo de uma perspectiva situada, como sugere Donna Haraway (1996), devemos levar em consideração quais os atravessamentos da companhia de filhos ou família, uma vez que o trabalho de campo significa, também, formar relações.
Foram justamente mulheres etnógrafas que passaram a se preocupar e pensar sobre a presença de filhos e família em um campo de pesquisa (Cassel 1987, Cupples e Kindon 2003), evidenciando uma perspectiva de gênero e feminista. Ainda, o slogan feminista “pessoal é político” pode se transformar, como sugerem Korpela, Hirvi e Tawah (2016), para “o pessoal é dado”. Isso porque as autoras entendem que durante o trabalho de campo fica impossível fazer distinção entre o profissional e o pessoal. O trabalho de campo é todo o dia, o que envolve as amizades, as vidas sociais, as experiências que estão sendo compartilhadas, incluindo, portanto, no caso dessas autoras, assim como explicitado nesta discussão, os filhos. Ao perceber o quanto essa temática toca o meio científico e acadêmico, dentro, inclusive, do campo de estudos feministas, deflagra-se um ponto a ser explorado.
Korpela, Hirvi e Tawah (2016) entendem a companhia de filhos enquanto um “trabalho de campo acompanhado”. Sugerem que, nessa condição, seria necessário observar três pontos: o primeiro deles, como o filho ou filha dirige sua ação às pessoas no campo, ou seja, registrar também como a criança se relaciona; o segundo, como a vida privada e a profissional se fundem, ou seja, a vida de mãe e pesquisadora se atravessam o tempo inteiro; e, ainda, o terceiro ponto, que se refere à necessidade de se ajustar à situação do trabalho de campo, o que vai envolver, por exemplo, a criança não frequentar a escola naquele momento, onde ela vai morar, o que ela vai comer, preocupações que vão além da pesquisadora em si.
Ainda, Hirvi (Korpela, Hirvi e Tawah 2016) comenta que a sua filha possibilitou novas e diferentes perspectivas frente às pessoas, aos eventos e aos lugares que ela estava estudando, o que teve um impacto no processo da produção de conhecimento. Em um primeiro momento, Hirvi estava com medo de que se prestasse muita atenção nesses impactos que a sua filha construiu durante a etnografia, iria, supostamente, deslegitimar a sua autoridade e credibilidade enquanto etnógrafa. Porém, posteriormente, percebeu que deveria abraçar essa oportunidade que emerge a partir da colaboração com a criança. Ela entende que a criança não seria uma mera acompanhante da pesquisadora, mas um papel crucial no processo de produção de conhecimento.
No Brasil, é possível perceber que a questão da maternidade/paternidade tem sido debatida no campo das ciências. O projeto “Parent in Science” (Machado et al. 2019) preocupa-se em evidenciar que as pessoas com filhos acabam “ficando para trás” no sentido de produtividade científica, e para isso, sugere algumas demandas propositivas de equiparação. No campo da antropologia, o debate da relação com a maternidade e a prática de pesquisa aparece como uma reflexão das temáticas escolhidas, da interferência no campo e na escrita e, ainda, como um debate no interior da antropologia clássica e brasileira, a fim de resgatar “os prismas pessoal, epistemológico, investigativo e político”, como proposto por Rosamaria Carneiro (2020).
Alana Verani (2022), ao entrevistar antropólogas em formação que são, também, mães, notou que as experiências de trabalho de campo dessas mulheres trouxe um caráter marcado pela maternidade, inferindo em suas pesquisas – o que denota o marcador de gênero e suas interseccionalidades intrínsecos ao fazer pesquisa. Verani (2022) aponta questões que podem ser entendidas enquanto “positivas” nessa interferência, como, por exemplo, a educação que as crianças tiveram na experiência de campo ao participarem de um grupo de dança afro-brasileiro e ao incluir as crianças em performances artísticas. Por outro lado, existem pontos de tensão, como ao levar os filhos para um local que sofre ameaça ou que contém problemas estruturais, tais quais falta de água, saneamento e saúde básica.
Porém, diferentemente do que está sendo proposto neste artigo, ao Verani (2022) questionar suas interlocutoras se a presença dos filhos aparecia nas discussões dos seus trabalhos, todas responderam que não, apontando, ainda, que em seus grupos de pesquisa não havia reflexões sobre como as produções de conhecimento eram atravessadas pela maternidade. Por mais que esteja havendo esforços de levantar esta temática e suas implicações, percebe-se, ainda, enquanto necessário reificar o posicionamento não neutro de uma pesquisadora e mãe.
A partir da percepção da emergência da constituição da categoria “pesquisadora-mãe”, este artigo parte de algumas questões para ir além da discussão já elaborada se a presença dos filhos se relaciona com a pesquisa ou não: como essa experiência ou identidade é performada e construída no contexto da pesquisa? Quais relações materiais se compõem no campo que evidenciam e emergem esta categoria? Para responder a essas perguntas, do ponto de vista teórico-analítico, este artigo está atravessado pelo crescente interesse nos estudos que têm sido chamados feminismos neomaterialistas, ou, mais amplamente, naqueles preocupados em abordar as materialidades e as praticalidades engajadas na produção das realidades.
De modo prático, este artigo parte da perspectiva de que a categoria “pesquisadora-mãe” emerge e se constitui a partir de uma imensidão de tarefas cotidianas, as quais evidenciam a agência de não humanos, como: o momento de acordar, tomar e fazer o café da manhã em conjunto, arrumar a cama, escovar os dentes, lavar a louça, organizar-se para as funções do dia, cozinhar, participar de uma busca de terra do mato, tirar o leite da vaca, arrumar uma cerca quebrada, brincar com as crianças, tirar o lixo, varrer, entre outras funções. O café, a cama, a escova, a pia, o fogão, a terra, os brinquedos, a vassoura, entre outros agentes, estão constituindo relacionalidades materiais que tornam a categoria “pesquisadora-mãe” possível.
A fim de explicitar e dialogar sobre essas provocações, neste artigo serão acionadas as contribuições de Donna Haraway (2016) e Maria Puig de la Bellacasa (2017), as quais, teoricamente, apostam na descentralização do sujeito humano em redes de cuidado, uma vez que entendem que o cuidado tem o potencial de reorganizar as relações humano-não-humanas em direção a formas não exploratórias de coexistência. Após a descrição do campo e a explicitação de alguns desafios presentes no fazer-pesquisa, no lugar de ser mãe e pesquisadora, os conceitos de “kin”, tentáculos (Haraway 2016) e “touching visions” (Puig de la Bellacasa 2017) serão resgatados com o objetivo de provocar as relacionalidades criadas no campo, que engajam conexões recíprocas e articulações entre os seres, sejam eles humanos ou não.
A pesquisa que gerou as discussões presentes neste artigo se trata de uma etnografia em uma comunidade rural localizada em um assentamento no interior do estado do Rio Grande do Sul, na cidade de São Gabriel, a Comuna Pachamama. A aproximação com o campo se deu de maneira gradual, havendo visitas anteriores e, também, contatos externos com alguns dos moradores. O interesse, inclusive, pela temática e pelo local, se deu em um evento em que houve uma roda de conversa sobre “cuidados compartilhados”, que contou com a participação de três mulheres moradoras da Comuna. Naquele primeiro momento, em 2015, eu estava grávida, o que já denota uma implicação do atravessamento pesquisa e maternidade.
Após duas visitas ao local e combinações feitas de maneira online, o período de imersão ao campo se deu em setembro de 2019. Vivi com a minha filha, diariamente, 24h por dia, neste período de um mês – o que é possível considerar uma vivência “densa”, uma vez que estivemos imersas ao campo, com pouquíssimo contato externo, realizando as atividades diárias, dormindo, alimentando-se, vivenciando o que o contexto nos proporcionava. É importante ressaltar o quão isolada do meio urbano é a Comuna – o que, por vezes, dificulta o acesso. Da cidade mais próxima a ela, leva-se cerca de duas horas e meia para chegar, através de uma estrada de chão com pedregulhos. Caso não se tenha carro e se dependa de transporte público, existe um ônibus público duas vezes na semana, que chega próximo à região, ainda sendo necessária uma longa caminhada. Essa distância faz, também, com que o sinal de internet e telefônico sejam bastante limitados, que o sistema elétrico seja sensível e falho – basta uma ventania para que falte luz, não há postos de saúde, mercados, entre outros serviços na proximidade.
A Comuna existe desde o final de 2009 e se constituiu a partir de uma proposta coletiva de companheiros de militância política. O terreno onde a Comuna está localizada pertence a uma conquista do MST (Movimento Sem Terra) naquele mesmo ano, fazendo parte, portanto, de um assentamento maior, chamado “Madre Terra”. O que difere a Comuna é o fato de se proporem a viver nessa comunidade, onde existe o compartilhamento de tarefas e de produção, diferentemente do modelo familiar nuclear que opera no assentamento. O principal meio de subsistência é o mel e o arroz, além de produções menores, como aveia, amendoim, mandioca e alimentos da horta.
O número de pessoas que vivem no território coletivo costuma ser variável. Por ser um local ermo, é comum haver revezamentos de folgas e períodos longe da comunidade. Quando convivi com o grupo, junto de minha filha, os residentes eram sete adultos, sendo duas mulheres e cinco homens, e três crianças, que tinham, naquele momento, entre cinco e sete anos. Dentre esses adultos, eles têm históricos de vida diversos. Existe quem já teve experiências rurais anteriores e aqueles que se propuseram a ir morar na Comuna devido à proposta política, vindo, portanto, do meio urbano.
Tal território tem como proposta política o anarquismo, almejando a construção de uma vida coletiva. Para isso, as tarefas são feitas de modo compartilhado e cooperado – nas quais me incluí, no período em que estivemos em campo. Dentre elas, está a prática do cuidado no cotidiano, como a alimentação, a limpeza, o cuidar da horta, o tirar o leite da vaca, as reuniões políticas, a manutenção da estrutura física, entre outras, sendo o cuidado das crianças um ponto articulador da organização das atividades que acontecem nessa comunidade – cada dia da semana um adulto é elencado para proporcionar uma atividade direcionada às crianças, o que chamam de “Ciranda”.
Quando se chega à Comuna, prontamente é possível perceber a posição política ali sustentada. Logo, somos recebidas com uma placa em que está escrita “Comuna Pachamama”, com as letras “A” marcadas pelo símbolo anarquista “A na bola”. Após passar pela placa com referência anarquista e uma bandeira preta e vermelha, quando se chega à área da Comuna existe uma lomba/ladeira abaixo em direção à agrovila, ao longo da qual encontramos duas casas. A primeira delas é a casa “coletiva”, construída através de um mutirão, onde, naquele momento, estavam morando dois membros. Um pouco mais abaixo, avista-se a casa “rosinha”, onde viviam um casal com sua filha. Na região um pouco mais plana da agrovila, fica a cozinha coletiva, onde se encontram cotidianamente para realizar refeições e reuniões. Ao lado da cozinha, há uma caixa d’água alta, com cerca de quatro ou cinco metros, que, além de carregar uma bandeira anarquista preta e vermelha, estampa em tinta spray verde o “A na bola”, o símbolo da paz e freelove, assim como alguns desenhos de árvore e pássaros. Atrás da cozinha fica a horta, onde se cultivam diversos temperos, chás e vegetais, como alface e rúcula. Ao lado, há também o galpão, onde ficam guardados materiais de construção, ferramentas, descascador de arroz, alguns acúmulos não identificados, além de um refrigerador que mantém água potável. Próxima da cozinha está a estrutura da Casa do Mel, sendo a única casa de tijolos da Comuna; as demais são de madeira.
Ainda, em um mesmo nível horizontal da área da cozinha coletiva, a uns 200 passos de distância, existem mais duas casas, a casa “vermelha” e a casa “roxa”, esta última não havia sido pintada, porém já recebia, eventualmente, tal nomeação. Na casa vermelha moravam dois membros, e na roxa, uma membra. Duas crianças revezam entre essas duas casas. Fiquei hospedada com minha filha na casa roxa, que é a mais recente da Comuna.
Em relação ao uso do banheiro, os hábitos mudam conforme as casas, mas, em geral, a combinação é que a urina possa ser feita em qualquer lugar, uma vez que faz bem para plantas, e que as fezes só sejam eliminadas nos banheiros secos – o que, posteriormente, é descarregado e utilizado como adubo de alguma plantação. As casas rosa e roxa têm um banheiro num espaço anexo à casa, com um lugar específico para as necessidades, sem ser necessário ir para a parte externa. Já no que se refere à casa vermelha, o banheiro seco fica no exterior, a uns cinco passos de distância. Após a evacuação, em todos os banheiros, é necessário depositar, sobre as fezes, um punhado de casca de arroz, que fica armazenada em um saco ao lado.
Nem sempre consegui cumprir esse combinado de não urinar no banheiro seco, ainda mais em dias frios e chuvosos. Por isso, acabei improvisando outros modos de urinar, como em um balde na parte de trás da casa para não ser necessário sair no frio e na chuva. Para minha filha, a qual estava num processo de desfralde, o que aqui já evidencia uma preocupação de uma “pesquisadora-mãe”, também seria uma dificuldade urinar em algum lugar onde ela não pudesse se sentar, e, nas vezes que houve tentativa, se molhou por inteira. Nas manhãs, comprometi-me a esvaziar e a limpar o balde utilizado durante a noite. Essas especificidades e desafios, entre outros, me levaram a pensar, posteriormente, na minha relação com o campo, o que se atravessa ao meu lugar de ser mãe e pesquisadora e estar aberta a situações de imprevisibilidades e desafios.
O lugar de “pesquisadora-mãe” evidencia-se na medida em que isso me possibilitou vivenciar e pensar o cuidado a partir da minha especificidade, criando, também, aproximações com o campo. Percebo que a posicionalidade “pesquisadora-mãe” cria, ao mesmo tempo, um lugar de potência e de possíveis fragilidades, uma vez que estar com a minha filha no campo de pesquisa fez com que eu tivesse também que lidar com as particularidades e vontades dela. Esse lugar de “potência”, em diálogo com Hirvi (Korpela, Hirvi e Tawah 2016), ao relatar sua experiência com a sua filha em campo em templos indianos, aponta que o fato de sua filha ter “estado lá” permitiu uma empatia por parte dos sujeitos presentes em campo e que as conversas sobre maternidade e filhos fluíssem com aceitação. Ao mesmo tempo, o lugar da fragilidade, emerge quando a filha “fez uma birra” ou vomitou dentro do carro de uns dos informantes.
Na experiência na Comuna, esses pontos evidenciaram-se de maneira similar: eventuais discordâncias, especificidades das fases do desenvolvimento, como o desfralde, rejeição à alimentação e, também, negociações, estiveram presentes ao longo de nossa estada. Ainda, uma vez que estamos habituadas a um modo de vida “a duas”, nem sempre ela aceitou vivenciar todo e qualquer espaço de forma coletiva, exigindo uma atenção particular em momentos diversos. Ao mesmo tempo, essa fragilidade permitiu que me apresentasse em campo demonstrando minhas especificidades, para além de uma “pesquisadora”. Ali, estava sendo mãe o tempo todo, mostrando meus momentos sensíveis, minhas dificuldades de negociações, estando aberta para possíveis críticas ao meu modo de maternar. Ao mesmo tempo, acredito que minha identidade “mãe”, em um local com mais crianças, contribuiu para a aproximação nas conversas informais, uma vez que falar sobre crianças pode ser um assunto, por vezes, infindável e que aproxima quem já teve vivências similares.
Por isso, acredito que minha filha não foi só uma companhia durante esse processo. Ela teve um papel crucial no fazer da pesquisa e da produção de conhecimento. Posso afirmar, assim, que ela foi uma colaboradora ativa e presente de distintas formas na condução deste estudo. Eu não seria a mesma pesquisadora se não fosse mãe, desde a escolha do tema de pesquisa, passando pelo trabalho de campo, até o processo de escrever a tese e, consequentemente, este artigo. Por isso, compreendo que tive uma posição privilegiada que contribuiu para a minha inserção na Comuna, assim como me permitiu ter um olhar sensível e situado para as práticas do cuidado. Também é possível dizer que eu não seria a mesma mãe se não fosse pesquisadora, dado que meu modo de maternar se propôs a essa abertura e disposição ao que iríamos enfrentar.
Esse posicionamento de analisar como o lugar de “pesquisadora-mãe” se relaciona com o campo e o compõe, assim como se articulou ao meu modo de maternar e fazer pesquisa, configura um procedimento ético-metodológico que expressa a minha não neutralidade enquanto pesquisadora. Ainda, compreendo que a categoria “pesquisadora” se relaciona com outros agentes, filiações e conexões, considerando o que pude alcançar e, inclusive, tocar. Por isso, dialogo, em especial, com Haraway (2016)[2] e Puig de la Bellacasa (2017)[3], de modo a elucidar as conexões das materialidades em diálogo com a ética e o método de fazer pesquisar.
Nem tudo era sempre uma novidade ou um desafio. Também fomos atravessadas por tarefas cotidianas, como a limpeza da casa. Turnos e dias específicos em que me dediquei a limpar, tirar as roupas que estavam pela sala, juntar os brinquedos em caixas, varrer, lavar e guardar a louça, fechar e recolocar um saco de lixo, depositar o lixo orgânico na composteira que ficava a uns quinze passos da casa, dobrar as roupas de cama, colocar o colchão de casal que dormíamos próximo da parede, entre outras atividades do dia a dia.
As tarefas diárias, como varrer, cozinhar, lavar a louça, recolher o lixo, guardar, dobrar, lavar, pendurar e recolher roupas, eram feitas constantemente. Faziam parte da rotina enquanto estivemos na Comuna Pachamama de maneira parecida com o que ocorreria se estivesse em minha casa, ainda que com as especificidades do lugar. As tarefas diárias, da “rotina”, a artesania do cotidiano falam, a uma só vez, do cuidado e dos modos de pesquisar.
Enquanto perspectiva conceitual para pensar com a categoria do cuidado, entendendo-o enquanto mais do que “mundos humanos”, é necessário levar em consideração suas relacionalidades. Isso porque Puig de la Bellacasa (2017) compreende o cuidado enquanto um fazer genérico de significado ontológico, como uma atividade da espécie com implicações éticas, sociais, políticas e culturais, o que inclui tudo o que nós fazemos para manter, continuar e reparar nosso mundo (corpos, selfies, ambientes) em relações interdependentes entre humanos e outros seres vivos.
A autora propõe, ainda, entender “cuidado” enquanto uma categoria “aberta”, analítica ou provocativa, mais do que visualizar práticas predeterminadas. Ou seja, Puig de la Bellacasa (2017) fala de como se pesquisa e se compreende o cuidado, mais do que como, supostamente, “se cuida”. Ela está mais preocupada em pensar nessa categoria analiticamente – posicionando-a no centro das análises – do que apontar normas ou moralidades. Para isso, ela aposta em três dimensões: manutenção, afetiva e ético-política, de modo a encorajar as relacionalidades de coisas humanas e não humanas, as quais desafiam os limites éticos tradicionais e, consequentemente, contribuem para rearranjos específicos de alianças.
Por mais que tenham coisas que façamos “sempre igual” – dimensão da manutenção, como proposto por Puig de la Bellacasa (2017), reflito sobre como eu, enquanto pesquisadora, estava atuando em relação às minhas tarefas diárias, em conjunto com a minha filha – dimensão ético-política. Talvez, na minha casa, deixasse a louça um pouco para depois ou acumulasse roupa em um canto. Naquele espaço coletivo, procurei que a nossa presença não “parecesse” um incômodo para com quem eu estava compartilhando a casa durante o período do trabalho de campo. Por isso, fazia questão de me dedicar, constantemente, às tarefas domésticas. Isso não significa, de forma alguma, que atingi algum tipo de “perfeição” na realização dessas tarefas e atividades. Imprevisibilidades e empreendimentos malfeitos aconteceram constantemente. Contudo, se estamos pensando o cuidado enquanto prática que não é predeterminada (Puig de la Bellacasa 2017), ou ainda, como sugere Annemarie Mol (2008), que articula elementos heterogêneos e que imprime a essas articulações certas estabilidades contingentes, o fazer diário coloca em ação as infinitas possibilidades de o cuidado atuar e a sua capacidade de engajar coisas.
A partir dessa narrativa sobre o cotidiano de cuidado com o lugar, é possível fazer paralelos entre a ética do fazer pesquisa e o exercício de manutenção cotidiana. Jonathan Metzger (2014), autor do campo dos estudos urbanos e práticas do planejamento, chama de “caring for place” a ética de conviver e viver junto. Metzger (2014) dialoga com Puig de la Bellacasa, o que o leva ao insight de que o lugar não é, de forma alguma, exclusivo para a existência humana. O autor sugere, a partir de influências feministas de estudos da ciência e da tecnologia, a expressão “caring for place”, que, para ele, pode gerar uma sensibilidade em relação às conexões entre o cuidado de humanos e de não humanos, sendo uma inclinação ético-política que pode levar a coisas boas. Para o autor, pensar o lugar, mais do que sobre o que ele é, refere-se ao que ele poderia ser ou o que ele pode se tornar. Por isso, “lugar” não seria uma identidade coletiva “pré-dada”, mas sim, o desafio inevitável de negociar o tempo presente dentro das relações entre humanos e não humanos – tempo esse que produz e constrói coisas coletivamente.
Pesquisar é, também, cuidar do lugar em que se está situado naquele momento, e por “lugar” entende-se uma produção coletiva constante. Joanna Latimer e Maria Puig de la Bellacasa (2013), ao refletirem sobre as praticalidades e materialidades do fazer pesquisa, sugerem que existe uma ética que perpassa engajamentos diários de cuidado. As autoras dialogam a respeito das práticas referentes às pesquisas biocientíficas, o que nos permite fazer paralelos com as reflexões sobre as práticas diárias de cuidado e de pesquisas em outros contextos, tal qual fazer pesquisa na Comuna. Uma dessas questões é de como a ética funciona enquanto um processo de relacionalidade situada. Por relacionalidade podemos pensar nos engajamentos, nos afetos das pessoas envolvidas e nos objetos relacionados.
Por isso, a ética está composta de agência e de materialidade. Aqui, as autoras (Latimer e Puig de la Bellacasa 2013) estão focando em situações de agência de mudanças/ em movimento (“moving agency”), em que as relações são marcadas por cuidado. Por cuidado, elas entendem um estado afetivo e, também, uma obrigação de “prestar atenção”. Ainda, tomam o “cuidado” enquanto um engajamento prático com o mundo que reordena, troca e reconecta relacionamentos e como um plano de “experiência contínua”, envolvendo uma gama de elementos materiais vividos em relações descentradas e multilaterais.
Por que essa noção de cuidado se conecta com a de ética? Justamente, porque o cuidado nunca se faz sozinho: é necessária uma rede de relações e pertencimentos para que ele aconteça. Além disso, porque a atenção ao cuidado tem a particularidade de distribuir a responsabilidade ética entre as materialidades práticas atuantes nos processos de cuidar. Aqui, não se trata de uma subjetividade ética, mas de um conjunto de engajamentos materiais que compõem a ética. Voltemos ao dia em que, supostamente, não havia participado de nenhuma atividade “diretamente coletiva”, mas passei o dia arrumando a casa em que estava hospedada com minha filha. Eu vinha me relacionando com um conjunto de objetos e práticas que compõem a Comuna Pachamama. Realizar as tarefas cotidianas e coletivas significa também se relacionar com pessoas e coisas e se responsabilizar com/por elas.
Portanto, a ética da pesquisa não mora num lugar “subjetivo” e de difícil acesso, mas está localizada nas práticas materiais de cuidado diário. São situações concretas que evidenciam a ética, atos de manutenção e de subsistência. O fazer pesquisa não depende de um momento de “eureka” ou de algum evento que parece fascinante. O ato de pesquisar se dá justamente na atenção ao cotidiano (Latimer e Puig de la Bellacasa 2013) ao cuidado com o lugar (Metzger 2014). Considero essas reflexões importantes para podermos evidenciar a prática do cuidado cotidiano como tema relevante de pesquisa quando tomado em conjunto com a análise situada e atenciosa dessas práticas.
A ética do fazer pesquisa supõe, ainda, reconhecer a minha situacionalidade (Haraway 1995), as minhas conexões com o campo que extrapolam a de pesquisadora, e compreendem um conjunto amplo de práticas como aquelas vinculadas ao ser mãe, feminista, com uma trajetória na militância anarquista, mulher, branca, com um histórico familiar de vida rural, que vive no meio urbano, que cozinha de um jeito específico, arruma a casa e brinca com as crianças de determinadas formas, entre outros marcadores sociais e elementos que podem aparecer e performam o fazer pesquisa. A objetividade se situa e dialoga por quais caminhos percorri e sigo percorrendo para me afirmar enquanto acadêmica, mãe e pesquisadora. Aqui, entendo essas identidades não enquanto “fixas”, mas como constitutivas dos sujeitos, por isso, o fazer pesquisa também me constitui e me torna, ao longo desse processo, mais próxima da categoria “pesquisadora” do que quando iniciei essa empreitada.
Uma pesquisa não é apenas um recorte de uma vivência particular, mas sim o relato de um percurso. Percurso esse que não se faz sozinha, precisa-se de apoio, seja de agentes humanos ou não humanos. Para ela ser possível, fez-se necessário formar filiações (“make kin”). “Kin”, termo proposto por Haraway (2016), pode ser traduzido enquanto parentesco, porém, creio que perde o seu significado original, que estaria mais relacionado a vínculos e a filiações. Neste caso, o que Haraway (2016) propõe é que nos filiemos não só a humanos, mas também a agentes mais que humanos, e que essas filiações, ou parentescos – “kin” – é que vão produzindo relações sociais para além das consanguíneas. Ainda, em relação ao modo de fazer pesquisa, ao alocarmos o “cuidado” enquanto o centro da análise, assim como sugere Puig de la Bellacasa (2017), podemos compreender que esses braços ou tentáculos construídos são até onde a pesquisadora alcança para dar sentido à categoria – ou seja, quais as relações entre humanos e não humanos que o cuidado constrói no contexto da pesquisa? A categoria debatida e construída neste artigo – de “pesquisadora-mãe” – apresenta-se enquanto um desses tentáculos (“kin”) que podemos explorar nesta investigação.
Além da relação constante com minha filha, com as pessoas do campo e com os agentes não humanos, também contei com o apoio de amigos, familiares, colegas, bem como com o auxílio teórico de quem fui lendo e me relacionando academicamente neste processo. Por isso, entendo que esta pesquisa, que se atém à categoria e à temática do cuidado, a partir da situacionalidade de uma “pesquisadora-mãe”, dialoga com o pensamento tentacular (Haraway 2016) como modo de fazer pesquisa.
O pensamento tentacular sugere, a partir de um fundo metodológico e epistemológico, criar extensões, tentáculos. Haraway (2016) faz um convite às feministas para que exerçam essa imaginação, teoria e ação, de maneira a desvendar essas conexões, que vão além de ancestralidade ou genealogia. Ao fazer essas conexões, estaríamos criando uma estratégia do Chthuluceno[4], para imaginar um mundo em que haja uma ecojustiça multiespécies, ou seja, onde essas relações, conexões, parentescos, ultrapassem a categoria humano e englobem tudo aquilo que alcançamos, tocamos, pensamos.
Haraway (2016) está propondo novas formas de viver no mundo, de maneira ética e que respeita os processos sem trazer respostas antes do tempo. Ela entende que podemos viver de maneira colaborativa para que possamos ter experiências que assumam a complexidade do que acontece nos ares, nas águas, nas rochas, nos oceanos, na atmosfera. Ela está buscando enxergar o mundo de maneira a respeitar o que está por vir, compreendendo que os humanos, não humanos, vegetais, fungos, bactérias compartilham o mesmo espaço, coabitam, fazem parte de uma mesma sociabilidade. A autora nos dá inúmeras pistas para que possamos pensar, a partir do problema, a partir do mundo presente e do que está por vir, as práticas em cuidado, que nos conectam à possibilidade de vislumbrar o lugar de “pesquisadora-mãe”.
O corpo tentacular, para Haraway (2016), não é definido somente pela sua forma, mas também pela específica e circunstancial conjunção entre o corpo e tudo o que ele toca. Desse modo, podemos imaginar que o corpo tentacular não se refere apenas ao corpo, mas também à sua extensão, àquilo com o que ele faz contato. Isso remete à importância de sabermos com o que estamos nos relacionando e, consequentemente, pensando e co-construindo mundos. Não somos seres individuais, e esses tentáculos estão vinculados a nós como uma extensão dos corpos. Essa não-individualidade reverbera no modo de fazer pesquisa: de acordo com Haraway (2016), importa (matters) o que pensamos, e o que “escolhemos” para compor esse pensamento: conhecimentos, relações, mundos, histórias.
Contudo, continua Haraway (2016), não pensamos sozinhos e “pensar-com” (“think-with”) é ficar com o problema “natureculture” das multiespécies na terra. A autora entende, assim, que importa (matters) quais histórias contam histórias como uma prática de cuidado e pensamento. Para Haraway (2016), é no exercício do pensamento que formamos vínculos com aqueles que escolhemos pensar. Ou seja, pensamos com as coisas. Segundo ela, ao estabelecermos conexões, ao criarmos os tentáculos, estamos construindo práticas para além do pensamento e isto é “ficar com o problema”.
Os tentáculos remetem-me, ainda, à figura da “mãe-polvo”, aquela que representa uma mãe cujos braços estão conectados ao cuidado dos filhos, ao trabalho, às relações afetivas e sexuais, aos trabalhos domésticos, às práticas de esporte e cuidados individuais, entre outros. Subentende-se que para uma mãe dar conta dessa imensidão de tarefas, seriam necessários muitos braços. Considerando que estou partindo de um lugar de “pesquisadora-mãe”, como aqui explicitado, acredito que, ao dialogar com Haraway (2016) a respeito do pensamento tentacular, seja possível propor essa metáfora de que, para uma pesquisa ser possível, é necessário nos vincularmos a diferentes apoios, com muitos braços, pernas ou tentáculos – fato que leva a uma sobreposição de tarefas e à exaustão.
Ainda, em diálogo com Puig de la Bellacasa (2017), é possível fazer a relação do método em pesquisa com a ideia de “touching visions”, que significa dar atenção àquilo que pode tocar e ser tocado, o que aprofunda a percepção, o afeto e o pensamento. O contato com o toque, para Puig de la Bellacasa (2017) intensifica um senso “co-transformador”, ou seja, cria conexões recíprocas entre os seres, sejam eles humanos ou não. É a partir do toque que as fronteiras entre o “eu e o outro” são borradas, possibilitando uma imediata relacionalidade. Para a autora, a ideia do toque não supõe apenas uma sensação física, mas envolve uma sensorialidade afetiva, no sentido de ser tocado/afetado pela experiência.
Mais do que uma “visão”, o háptico, ou seja, aquilo relativo ao tato, dá força à pesquisa propiciando sentido a políticas imperceptíveis nas práticas cotidianas, como nos sugere Puig de la Bellacasa (2017). Essa reflexão nos leva a uma cena que vivenciei em campo:
Era o primeiro dia de chuva, depois de um dia muito quente, já sem luz. Estávamos em uma casa de madeira, com piso de madeira, dois adultos e quatro crianças, sendo uma delas minha filha, de então três anos e meio. Essa casa é a mais recente construção feita na comunidade. Parece ter, aproximadamente, 64 metros quadrados, sendo formada por um quarto com uma cama de casal, armário e televisão, e uma grande sala dividida em três ambientes: do escritório, com uma estante de madeira encostada na parede onde se guardam muitos livros, uma mesa de madeira, com uma cadeira preta, algumas caixas com brinquedos dentro; a sala de estar, com um sofá, com um baú feito de madeira onde se guardam lençóis e cobertores, um tapete grande no chão, um tocador de discos e ainda; o terceiro espaço: a cozinha, equipada com fogão, geladeira, forno elétrico, pia, armários, e uma mesa com quatro cadeiras.
Era ainda de manhã, as crianças com bastante energia estavam correndo pela casa, brincando com os brinquedos das caixas próximas ao escritório. Dentre os brinquedos existem muitos super-heróis, como homem-aranha e guerreiros, assim como alguns bichinhos de pelúcia, espadas e alguns materiais escolares, como tesoura e lápis. Já havia muitos brinquedos espalhados pelo chão. Quando, de repente, o mais velho deles, de seis anos, pega uma tesoura e corta um pedacinho do cabelo da minha filha. Quando vejo aquele cabelo no chão, sinto uma tristeza em visualizar toda a situação: ela tendo o seu cabelo cortado sem consentimento, sendo que eu, enquanto mãe, nunca havia cortado qualquer pedaço. Logo depois, ela é abraçada por outra criança, de cinco anos, muito forte, sente-se sufocada e chora. Sentindo-me esgotada pela situação, e, ainda, em meio à menstruação em seu dia de maior intensidade, sinto a necessidade física e corporal de me deitar. Deito na cama, quando em algum momento as crianças entram no quarto, começam a subir em mim e a me puxar. A minha vontade naquele momento talvez fosse de gritar, mas eu senti como se eu não conseguisse expressar nenhuma voz e apenas comecei a chorar. As crianças olharam assustadas com a situação e pararam. Posteriormente a isso, a minha filha começa a olhar pela porta, em que, mais ou menos à frente, a uns vinte passos de distância, havia um balanço preso na árvore. Ela começa a chorar pedindo para ir à “pracinha”, referindo-se a esse local. Devido à chuva, não permito, e ela, muito frustrada, chora muito. Nesse momento, reflito sobre as fronteiras do “dentro” e “fora”, que, naquela situação, não tinha como “escapar” de dentro de casa.
Essa cena provoca diversos elementos anteriormente citados neste debate. A imprevisibilidade da artesania do cuidado, uma vez que houve muitos dias chuvosos em um ambiente rural em que não foi possível sair à rua, fazendo com que tivéssemos que criar maneiras de cuidar naquele ambiente entre “quatro paredes” sem o uso de luz elétrica. O olhar sobre o cuidado, em diálogo com Puig de la Bellacasa (2017), não existe a priori, mas a partir das relações materiais que se estabelecem na cena. Ali, o corte de cabelo, que reverberou numa sensação ruim, foi possível devido aos materiais presentes em uma caixa em conjunto com a chuva que acontecia na parte externa. As crianças utilizaram as ferramentas que estavam ao seu redor, assim como os adultos. Ainda, a cena explicita a fragilidade da “pesquisadora-mãe” exposta para as pessoas presentes no campo – não estar me sentindo bem, ter conflitos sobre as relações entre as crianças, não saber como limitar uma vontade, entre outros movimentos que a cena gerou, não impediu de estar “pesquisando” naquele momento – o que nos leva à reflexão sobre as relações corporais de uma “pesquisadora-mãe” – o toque.
Ao partirmos da compreensão de Puig de la Bellacasa (2017) a respeito da categoria do “cuidado”, é possível tomá-lo enquanto central na análise, uma vez que o entende enquanto onipresente, mesmo pelos efeitos da sua ausência. Por isso, compreende que o cuidado pode fazer o bem, assim como pode oprimir. Esse ponto de vista desconstrói a ideia de que haveria alguma relação com uma moral ou com um suposto "bom cuidado", uma vez que qualquer noção de que cuidado é uma afeição calorosa e agradável se atravessa a uma atitude moralista do sentir-se bem.
A análise da cena, tomando o conceito de cuidado proposto por Puig de la Bellacasa (2017), dialoga com a proposta de um método tentacular (Haraway 2016), com a de conhecimento situado (Haraway 1995), em conjunto com o que Puig de la Bellacasa (2017) propõe: é necessário “embracing touch” (“envolver o toque”) no modo de fazer pesquisa, se queremos levar em conta as relações envolvendo cuidado. Diferente da “visão”, que podemos “apenas” olhar sem ser olhado, com o toque se cria uma reversibilidade inerente. Por isso, envolver o toque no fazer pesquisa significa compreender as situações para além da metáfora da visão, mas envolvendo trocas de um afeto mútuo.
Ainda, é necessário ressaltar que o toque, assim como o cuidado, não é uma afeição inofensiva nem mesmo intrinsecamente boa ou agradável. A cena relatada se trata de um dia chuvoso em que estava me sentindo indisposta e fui descansar. As crianças não respeitaram meu descanso e “subiram” em mim, o que me gerou uma sensação de dor e ao mesmo tempo tristeza por sentir que eu estava ali, de algum modo, sem poder escapar. Ter uma experiência em pesquisa na qual me senti “sufocada” mostra que estar disposto e aberto ao toque pode significar também sinais de dor e prazer. O toque, de algum modo, reduz a distância em uma relação, o que também pode gerar desconfortos. Por isso, o tato requer limites, assim como as relações em campo na prática de pesquisa. O corpo requer limites, barreiras e consentimento. Ao falar dos limites do campo, é necessário, por sua vez, ter “tato”, ter sensibilidade e atenção às demarcações impostas. Nem tudo é possível e permitido, nem mesmo quando se trata dos meus relatos. O toque expressa, portanto, a ambivalência do cuidar – presente na categoria “pesquisadora-mãe”.
Recapitulando sobre a vivência no campo e a categoria trabalhada neste artigo – de “pesquisadora-mãe”, percebo que o tempo em que estivemos na Comuna Pachamama fez com que estivéssemos presentes naquele espaço de maneira intensa. Eu e minha filha participamos das atividades coletivas, ou seja, das redes de cuidado que a comunidade propõe. Como lidei com atitudes e ações frente a isso, apareceram atravessadas à escrita da pesquisa, uma vez que, enquanto mãe, estava vivenciando o contexto, ao mesmo tempo em que cuidava. Estar disposta a isso se apresentou enquanto um desafio, tanto no lugar de “pesquisadora-mãe”, quanto no lugar de filha, que traz consigo costumes de um modo de cuidado individualizado e urbano.
Foi possível perceber que estar disponível às imprevisibilidades do campo fez parte de um procedimento ético que possibilita estar em contato genuíno no ambiente. Haraway (2016, 1) adverte que “Be truly present” [ser/estar verdadeiramente presente] é um pré-requisito para ficar com o problema, é atentar ao processo de construção de lugares, tempos, matérias, significados. Isso mostra que os processos nunca estão “acabados”. Viver intensamente aquele cotidiano, um “thick present” (Haraway 2016), contribuiu para a imersão no campo e para a construção da categoria aqui trabalhada de “pesquisadora-mãe”. Categoria esta que segue sendo feita, à medida que ela está “open-ended” [em aberto] (Puig de la Bellacasa 2017, 6). Portanto, menos do que definir o que seria o conceito de “pesquisadora-mãe”, aqui, foi um exercício ético e metodológico sobre como uma categoria se constrói a partir das práticas e suas relacionalidades.
“Pesquisadora-mãe” apresentou-se enquanto um lugar situado que contribuiu com a aproximação no campo, a partir da compreensão de que eu dividia papéis similares aos das pessoas da comunidade – borrando as possíveis fronteiras de “pesquisador” versus “pesquisado”. Não fui apenas pesquisadora naquele contexto. Estive sendo mãe. A partir disso, estive aberta e disponível para as imprevisibilidades e vulnerabilidades de um cotidiano intenso. A presente discussão, portanto, refletiu sobre as implicações, praticalidades e engajamentos que reverberaram desta categoria, que pode ser considerada uma ferramenta ético-metodológica necessária nos estudos feministas e em pesquisas sobre cuidado.