Resumo: O presente artigo discute os contextos de judicialização da violência doméstica no Brasil e em Timor-Leste, apresentando as demandas dos movimentos sociais para que isso fosse possível e narrando algumas dinâmicas transcorridas nos tribunais de ambos os países. Argumento que as demandas por reconhecimento que possibilitaram o acionamento do direito penal para administrar esses conflitos levaram a cenários onde os pleitos por justiça e garantia dos direitos das mulheres se veem confrontados pelas lógicas próprias das instituições judiciais destes países. Concluo que a análise da administração judicial destes conflitos permite observar outros fenômenos, como aspectos civilizatórios e potenciais processos de novas subjetivações para as partes envolvidas, promovidos pelos operadores do direito e outros atores que seguem na defesa pelo acionamento das instituições judiciais.
Palavras-chave: Judicialização, Violência doméstica, Justiça, Reconhecimento, Subjetivação.
Abstract: This article discusses the contexts of judicialization of domestic violence in Brazil and Timor-Leste, presenting the demands of social movements for this to be possible and narrating some dynamics that took place in the courts of both countries. I argue that the demands for recognition that enabled the activation of criminal law to manage these conflicts led to scenarios where claims for justice and the guarantee of women's rights are confronted by the logic of the judicial institutions of these countries. I conclude that the analysis of the judicial administration of these conflicts allows us to observe other phenomena, such as civilizing aspects and potential processes of new subjectivations for the parties involved, promoted by legal operators and other actors who advocate for access to judicial institutions.
Keywords: Judicialization, Domestic violence, Justice, Recognition, Subjectivation.
Artigos
A judicialização da violência doméstica em perspectiva comparada entre Brasil e Timor-Leste: dilemas de justiça, reconhecimento e modernização
Dilemmas on the judicialization of domestic violence in comparative perspective between Brazil and East-Timor
Recepción: 20 Octubre 2022
Aprobación: 07 Febrero 2023
O fenômeno designado pela categoria “judicialização” diz respeito à posição central garantida às esferas judiciais para administrar conflitos, reparar direitos e demarcar posições de sujeitos em diferentes contextos sociais (Rifiotis 2008, 2014, 2017). Apesar de se relacionar a diferentes possibilidades de conflitos sociais, elejo para essa discussão, a judicialização da violência doméstica enquanto um dos conflitos indicados como sendo de violência de gênero (Rifiotis 2008, 2021, Debert 2006, Debert e Perrone 2021, Simião e Oliveira 2016).
Ao falar em judicialização podemos considerá-la, entre outras coisas, como um fenômeno que congrega uma dimensão de demandas por ganhos políticos e jurídicos, mas também como um campo onde se evidenciam diferentes disputas semânticas, sobretudo quanto à violência doméstica (Rifiotis 2021). Essas disputas podem envolver perspectivas sobre corpo e poder (Simião 2015a), sobre agência e vitimação feminina (Gregori 2021a, 2021b; Santos Filho 2022) e, ainda, sobre ganhos político-jurídicos e/ou inconveniências para as mulheres atendidas pelos sistemas de justiça (Pasinato 2010, Matias 2015, Medeiros 2015).
Neste artigo discuto a adoção e a aplicação das medidas judiciais de combate à violência doméstica por meio de leis específicas promulgadas no Brasil e em Timor-Leste nos anos de 2006 e 2010, respectivamente a Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006) e a Lei Contra Violência Doméstica (Lei nº 7/2010). Busco contribuir com uma análise das demandas pela implementação de tais medidas, ao mesmo tempo que reflito sobre sua aplicação em cada contexto. Neste percurso teórico e analítico, pretendo discutir sobre os potenciais processos de subjetivação (Foucault 1995) implicados na agência civilizatória (Elias 2011) dos operadores do direito.
Entendo a judicialização como um dispositivo de governo (Foucault 1979) que busca reorganizar relações e que pode produzir sujeitos ao determinar o que é aceitável ou não nas relações de conjugalidade, bem como quais os mecanismos a serem acionados para reparação caso atos inaceitáveis sejam cometidos. A particularidade é que, o tipo de experiência que os sujeitos terão com as instâncias judiciais pode interferir em suas próprias leituras sobre as instituições de justiça, sobre os operadores do direito e sobre seus próprios direitos e individualidades, resultados que não são uniformes ou previsíveis. Pretendo demonstrar que não se trata apenas do Direito ou da Justiça atuando enquanto instituições produtoras de relações ordenadas (Rosen 2006), mas sim da produção ou da reelaboração de subjetividades a partir das condutas dos magistrados e de outros agentes envolvidos, de suas práticas, posturas e determinações.
Entendo a subjetivação, nos termos de Michel Foucault (1995), como um resultado de processos pelos quais os sujeitos se tornam quem são, a partir de suas relações permeadas pelo poder e ao longo da vida com pessoas e com instituições. Isso é um processo continuo e cotidiano de constituição dos sujeitos, que pode ser modificado por meio de diferentes estímulos, sempre vindos de espaços onde haja mecanismos com poder de transformar as disposições individuais e coletivas. Pretendo elucidar, neste artigo, a maneira como as mulheres são expostas a potenciais reelaborações de suas condutas e de suas formas de pensar ao se engajarem no atendimento dos sistemas judiciais.
Pretendo elucidar, também, que esses processos de subjetivação implicados na judicialização da violência doméstica evidenciam o aspecto civilizatório dos sistemas de justiça e daqueles que colaboram para sua atuação na administração da violência baseada no gênero. O sentido de “civilizatório” é aquele utilizado por Norbert Elias (2011) que demonstra os meios pelos quais determinadas concepções e valores se entranham nas mentes e se corporificam nas experiências dos sujeitos por meios de processos de reelaboração de condutas. Isso ocorre, como veremos, na promoção do reconhecimento da esfera individual dos direitos dos sujeitos (por oposição à construção relacional dos conflitos de violência doméstica (Gregori 1993, 2021a, 2021b), na produção de posições estáticas de vítimas e agressores (Rifiotis 2015, 2017, Santos Filho 2022), e na produção de sujeitos que respeitem e apoiem o funcionamento das instituições do Estado, reificando suas agências.
Para atingir os objetivos mencionados acima, me baseio em um estudo etnográfico realizado com pesquisa de campo em Timor-Leste em 2 períodos (2015-2016 e ao longo do ano de 2022). Nestes períodos atuei como voluntário em uma Organização Não Governamental (ONG) que presta apoio para mulheres atingidas pela violência doméstica e que tem como um de seus serviços o fornecimento de assistência legal. Esta organização é o Fórum de Comunicação para Mulheres Timorenses – FOKUPERS. Em campo, além de dialogar com as mulheres assistidas, acessei documentos e relatórios diagnósticos que avaliam a implementação da Lei Contra Violência Doméstica e que baseiam o lobby político para um atendimento mais atento às necessidades identificadas pelos movimentos e organizações de mulheres em maior ou menor diálogo com as vítimas.
O aspecto comparativo vem de uma leitura sistemática de etnografias de pesquisadores que têm se dedicado ao estudo da administração judicial da violência doméstica no território brasileiro. Combino, portanto, a minha experiência de pesquisa empírica com trabalhos que se dedicam a discutir, empiricamente, diferentes faces da judicialização da violência doméstica no Brasil, a fim de compreender por contraste, aproximações e distanciamentos quais são os dilemas que essa forma de administração de conflitos apresenta nos dois contextos.
Este texto está dividido em cinco seções, além destas considerações iniciais. Na primeira seção apresento os contextos jurídico-judiciais de ambos os países, a fim de situar o leitor sobre o funcionamento das instituições e dos agentes que aplicam as leis de combate à violência doméstica. Na segunda seção apresento o contexto de implementação dessas leis e seus significados no Brasil e em Timor-Leste. Na terceira e na quarta seções apresento as dinâmicas de aplicação dessas leis em cada país, com o foco na interação entre os operadores do direito e os sujeitos em conflito. Na quinta seção, concluo a presente discussão com algumas reflexões sobre os possíveis processos de subjetivação que podem ser potencializados pelas ações dos operadores do direito, identificando o aspecto civilizatório nisso.
Análises das ciências sociais sobre o campo jurídico no Brasil têm logrado indicar aspectos do funcionamento do Direito Penal, dentre os quais o caráter inquisitorial, hierárquico e autorregulado das ações dos juízes. A este respeito, Roberto Kant de Lima (2009) discute a combinação de características dos modelos acusatório e inquisitorial quando da formação do modelo processual brasileiro ainda no século XIX. Presentes ainda hoje no curso processual penal, fatores como a busca pela “verdade real., a relevância da “confissão. por parte dos réus e a necessidade das “provas. nos inquéritos, são elementos que demonstram práticas de um sistema judiciário que se ocupa mais em pressupor culpas e suspeições do que em reparar ou garantir direitos. Exemplar desse aspecto é o modus operandi de magistrados que concentram em si o processo de produção de justiça, desvalorizando, frequentemente, as partes em conflito, seus interesses e demandas (Lima 2010, Lima e Mouzinho 2016).
Essa inquisitorialidade no cenário brasileiro também pode ser percebida pela centralidade do juiz que deve ser “convencido” para que as decisões sejam tomadas, valendo-se de diferentes recursos, inclusive confissões e delações para “fazer justiça” (Lima e Mouzinho 2016). Parece adequado pontuar que os juízes são tanto os que tomam decisões sobre os conflitos e as partes envolvidas quanto sobre a própria lei, uma vez que, para muitos deles, “quem diz o que a lei diz é o juiz” (Teixeira Mendes 2008).
Outro elemento expressivo, a “verdade real”, determinada pelos juízes, é um princípio que “informa que no processo penal deve haver uma busca da verdadeira realidade dos fatos” (Gomes 2016), uma vez que
diferentemente do que pode acontecer em outros ramos do Direito, nos quais o Estado se satisfaz com os fatos trazidos nos autos pelas partes, no processo penal (...), o Estado não pode se satisfazer com a realidade formal dos fatos, mas deve buscar que o ius puniendi [direito de punir] seja concretizado com a maior eficácia possível (Gomes 2016, 1).
Isso é revelador do modo pelo qual tais figuras, no exercício do direito penal, mostram sua potencialidade em tomar decisões que podem dispor sobre a vida e, por vezes, sobre a morte dos sujeitos (Douglas 1998). É de nosso interesse ressaltar que esse nível de poder e as prerrogativas de autonomia dos juízes brasileiros, quase sem regulação (Lima 2009), recaem sobre figuras que tendem a produzir justiça com base em características pessoais e idiossincráticas, como ficará explícito nas seções seguintes. Por hora, passemos a um breve estudo da constituição do campo jurídico estatal no contexto leste-timorense.
Timor-Leste, Estado-nação do sudeste asiático e de recente restauração de sua independência, tem encontrado desafios e desafiado certas lógicas no e para o funcionamento do direito positivo. O país, que viveu um longo período de colonização portuguesa entre os séculos XVI e XX, uma ocupação forçada e violenta do Estado indonésio entre 1975 e 1999 e um período de Administração das Nações Unidas entre 1999 e 2002, vem investindo em muitos recursos para a reconstrução do país, dentre eles a instituição de um sistema de justiça.
No que diz respeito à institucionalização do sistema judiciário em Timor-Leste, é preciso destacar múltiplos desafios, dentre os quais aqueles concernentes à sua coexistência com práticas locais de administração de conflitos (Simião 2007, 2014), à presença de múltiplas sensibilidades jurídicas (Geertz 1997), à pouca adesão à justiça do Estado (Rocha 2018) e ao distanciamento por parte da população das instituições policiais (Silva e Simião 2013). Faz sentido analisar mais atentamente parte dessas questões.
O contexto de pluralismo jurídico existente em Timor-Leste se revelava desde o período colonial português, no qual houve pouca interferência direta na produção e reprodução das práticas locais de justiça (Hohe e Nixon 2003). Somente a partir do século XIX e já na passagem para o século XX foi que o domínio português passou a interferir mais diretamente nesta seara, além de instituir novas figuras no cenário administrativo local, como os chefes de aldeia (Ibid.). Em todo este período, houve o amplo reconhecimento de autoridades locais como os lia na’in (“oradores” ou “donos da palavra”, em tradução literal da língua tétum, um dos idiomas oficiais do país), agentes chave para a administração de disputas nos complexos locais de administração de conflitos (Ibid.).
Esse histórico fica mais complexo com a instituição de um sistema de justiça operado pelo Estado indonésio e que, durante os 24 anos em que foi vigente, foi marcado por acusações de suborno e práticas de corrupção ocorridas dentro dos tribunais. Isso despertou, mesmo após a independência, descrédito nas instituições e nos agentes que substituíram os indonésios (Rocha 2018). Somadas a isso, são recorrentes, ainda hoje, as preocupações e a percepção por parte da população de que acionar a justiça do Estado tende a aumentar conflitos, disputas e problemas.
Para além das percepções e da falta de confiança na justiça estatal, o grau de adesão aos complexos locais de administração de conflitos é expressivo (Rocha 2018). Isso se deve a vários fatores, dentre os quais poderíamos resumir que: os complexos locais de administração de conflitos, referidos como tesi lia (cortar a palavra) ou nahe biit-bo'ot (abrir a grande esteira) se caracterizam pelo encaixe das partes em conflito no seio de seus respectivos grupos, que podem ser referidos como sendo suas famílias, suas Casas ou suas lisan (grupos de pertencimento e descendência) (Simião 2006, 2007). Além disso, diferente do que ocorre com o sistema de justiça estatal, no qual os sujeitos são tratados individualmente enquanto partes estanques, uma a ser penalizada e a outra reparada – “arguido” e “lesada”, respectivamente – nas formas locais de administração de conflitos os procedimentos adotados têm como objetivo esclarecer os fatos e distribuir as responsabilidades pelo surgimento do conflito (Simião 2015a).
Por fim – e talvez o elemento mais importante que caracteriza as formas locais de administração de conflitos – há uma busca, nas tesi lia ou nahe biit-bo'ot, pela preservação das relações entre os grupos familiares das partes envolvidas, sejam marido e mulher ou sujeitos conflitantes de outras ordens (Ibid.). Contudo, isso é ainda mais relevante em casos que envolvem casais, como pode ser o caso da violência doméstica, afinal, a celebração de casamentos é estabelecida entre grupos familiares mais do que entre os indivíduos. A realização dos casamentos tende a ser estabelecida por meio de prestações matrimoniais usualmente referidas como barlake, (ainda que exista uma série de outras categorias para se referir a práticas da mesma natureza) por onde circulam bens em fluxos da família do noivo para a família da noiva e vice-versa (Silva, 2010). Essas prestações matrimoniais criam obrigações entre os grupos familiares e entre os membros de cada grupo familiar, as quais se expressam em vários outros momentos da vida (outros casamentos, funerais, etc.) (Ibid.). Esse não é um detalhe, mas sim um elemento fundamental para a constituição dos sujeitos e de suas relações, pois estabelece vínculos de solidariedade e dependência, localizando pessoas em grupos ampliados e demonstrando o grau de implicação de um sujeito com o seu grupo e com o grupo de seu cônjuge (Silva e Simião 2016).
É relevante notar que ao final das tesi lia ou nahe biit-bo'ot, as famílias dos conflitantes trocam bens de diferentes naturezas (animais, metais, dinheiro, colares, tecidos, espadas etc.) para reforçar a qualidade de seus vínculos e para reparar as dignidades e as relações entre os grupos, não necessariamente as ofensas individuais percebidas pelas partes. Esses bens que circulam em regime de dádiva (Mauss 2003) implicam que mesmo o grupo de uma mulher agredida em um contexto de violência doméstica pode ter de entregar bens ao grupo de seu marido, para colaborar com o reestabelecimento do bom termo das relações entre os grupos (Simião 2015a).
Esses aspectos desafiam a lógica do direito positivo que se pauta na persecução penal de um indivíduo que teria violado os direitos de outro, mas desafiam, ainda mais, muitos dos pressupostos da violência baseada no gênero (Simião 2015a, Santos Filho 2019a). Dessa forma, o sistema judiciário leste-timorense divide lugar com o amplo recurso às práticas locais de administração de conflitos que, por sua vez, confrontam diretamente as preocupações e os interesses dos movimentos e organizações de defesa dos direitos das mulheres, os quais têm na judicialização da violência doméstica uma de suas principais pautas (Santos Filho 2019b).
Entendo que analisar comparativamente os processos de judicialização da violência doméstica permite, primeiro, evidenciar o aspecto internacional do acionamento penal para ganhos políticos. Além disso, comparar as práticas judiciais destes países permite, compreender o papel civilizatório do judiciário, contribuindo para novas fases do contínuo processo de subjetivação das partes envolvidas nos conflitos, revelando sua atuação civilizatória.
Para discutir sobre a judicialização, é necessário esclarecer que a representação política e social do uso da força física nas relações familiares e ou conjugais, enquanto violência doméstica (isto é, enquanto atitude violadora de sujeitos, direitos e dignidades) é um evento localizado na história e que precisou e precisa de diferentes investimentos, sobretudo de práticas de governo, para expandir e para disseminar uma leitura condenatória de ações deste tipo (Simião 2015a). No Brasil, a pesquisa seminal de Maria F. Gregori sobre as práticas do SOS Mulher na década de 1980 demonstram que, naquele período, o entendimento sobre a “violência de gênero” era dissonante entre membros dos movimentos de mulheres e as próprias mulheres que se pretendiam proteger (Gregori 1993). Em Timor-Leste esse processo pôde ser acompanhado mais recentemente em esforços de ampliação da moral condenatória do uso da força física que datam, mais sistematicamente, dos primeiros anos da década de 2000, logo após a independência do país (Simião 2015a, Santos Filho 2019a).
Entendo que tanto como um resultado desse esforço de condenação moral, mas também para auxiliar nesse processo, a judicialização, isto é, a transformação da violência doméstica em crime a ser tratado pelos sistemas de justiça no âmbito do Direito Penal, figura como um interessante fenômeno que combina as arenas política e jurídica da vida social.
A Lei nº 11.340/06, que trata dos casos de violência doméstica no Brasil, define as formas de violência (física, psicológica, sexual, patrimonial e moral), institui mecanismos para atendimento às vítimas e ações que coíbam, reparem e atenuem a violência contra a mulher. Sua promulgação em 2006 foi precedida por décadas de articulações e pressões de movimentos de mulheres que cobravam do Estado novas políticas públicas para responder, na esfera penal, tais delitos. O início desse processo remete à criação das Delegacias de Defesa da Mulher (DDM) em São Paulo, em 1985, para atender aquelas que eram as principais afetadas pelas agressões ocorridas em ambientes domésticos (Debert 2006, 16).
Uma década mais tarde, somou-se ao funcionamento das DDM o empenho dos Juizados Especiais Criminais (JECrim), instituídos pela Lei nº 9099/95, que processavam os casos de violência doméstica e familiar contra a mulher através de acordos e conciliações entre as partes em conflito. Isso se devia à competência dos juizados de administrarem casos cujas penas máximas previstas em lei não ultrapassassem um ano de detenção, considerados como sendo de “menor potencial ofensivo”, os quais englobavam a maioria dos casos de violência contra a mulher: lesão corporal leve e ameaça (Brasil 1995, Pasinato 2004, Debert e Oliveira 2007).
A atuação dos operadores do direito e a lógica de funcionamento dos JECrim foram alvos de críticas dos movimentos de mulheres que questionavam a falta de atenção considerada adequada às situações das vítimas, por não penalizarem os acusados à altura da gravidade de seus atos (Debert e Oliveira 2007). Também gerava desconforto a retórica conciliatória das audiências, considerada responsável pela manutenção do ambiente familiar ao fixar as partes em papéis sociais (mães e esposas/pais e maridos) e não por posições de sujeitos cujos direitos teriam sido violados ou cujas ações teriam sido delituosas (Ibid.).
Os movimentos de mulheres argumentavam, então, que os Juizados reprivatizariam os casos de violência doméstica, remetendo-os, novamente, para a esfera doméstica, indo na contramão das expectativas de que a violência doméstica recebesse atenção do Estado para produção de justiça (Rifiotis 2008, Azevedo 2008, Pasinato 2010). Essas insatisfações se deviam à percepção de um ato de desconsideração (Cardoso de Oliveira 2008), dirigido à violência contra a mulher por não receber a atenção e o cuidado percebidos como adequados ou justos pelos movimentos de mulheres. Argumentava-se que, à medida que se buscavam preservar as relações conjugais e os arranjos familiares, deixava-se de focar na mulher enquanto sujeito de direitos (Debert e Oliveira 2007, 328), ou seja, estaria em curso a desconsideração institucionalizada dos direitos das mulheres e das situações de vulnerabilidade às quais elas estariam expostas.
Outro fator crucial era a aplicação de penas consideradas aquém das violências cometidas pelos agressores: multas, prestação de serviços comunitários ou pagamento de cestas básicas. Ainda que fossem imputadas como modalidades alternativas às penas de privação de liberdade, tais penas eram consideradas inferiores à gravidade da violência contra as mulheres, tanto por não oferecerem nenhuma reparação direta às vítimas, quanto pela alegada banalização da violência doméstica (Debert e Oliveira 2007, Azevedo 2008).
Com a intensificação de debates públicos sobre o tema, as pressões dos movimentos sociais e o engajamento de organizações transnacionais, promulgou-se, em 2006, a Lei nº 11.340/06, apelidada de Lei Maria da Penha, que institui a possibilidade de pena privativa de liberdade para até três anos, com possibilidade de prisão em flagrante para crimes de violência doméstica, mas que institui, também, atenção multisetorial às vítimas; que estimula a criação de campanhas de prevenção, o deferimento emergencial de medidas protetivas de emergência para as vítimas, a instauração de Varas e Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, a suspensão da possibilidade de retirada de queixa pela requerente e a proibição da aplicação de penas pecuniárias a casos desta natureza (Brasil 2006).
A instituição de uma medida legal para coibir e responder aos atos de violência doméstica em Timor-Leste guarda certas semelhanças em relação ao contexto brasileiro, pois houve intensas articulações entre organizações nacionais e agentes de cooperação internacional, mobilizadas com a pauta da igualdade de gênero no país que passava, no início dos anos 2000, por seu processo de restauração da independência e de (re)construção de uma estrutura de governo democrático.
Após a retirada das forças político-militares indonésias do território leste-timorense, iniciou-se o período de Administração Transitória das Nações Unidas em Timor-Leste (UNTAET) (1999-2002), gerando uma efervescência de projetos para a reconstrução tanto da infraestrutura física quanto da política do país. Neste período houve grande entrada de agências de cooperação internacional que passaram a cooperar com as organizações não governamentais já existentes para, entre outras coisas, promover agendas de valores que incluíam a igualdade de gênero. Esse momento marcou o início dos esforços para a elaboração de uma lei para punir e prevenir os atos de violência contra as mulheres em esferas doméstico-familiares (Simião 2015a).
Já havia serviços de atendimento e suporte organizados no país desde, pelo menos, a década de 1990, os quais se estruturavam na atenção primária às vítimas de violência doméstica e sexual. Era o caso do Fórum de Comunicação Para Mulheres Timorenses – FOKUPERS, que prestava assistência, aconselhamento e abrigo, que foi fundado em 1997 e no qual realizei trabalho de campo, dando suporte no contato entre as vítimas e o sistema de justiça nos anos de 2015/2016 e 2022. Para além do fornecimento de assistência básica às vítimas, as dirigentes da FOKUPERS, de outras ONGs e do Gabinete para Promoção da Igualdade, vinculado ao Gabinete do Primeiro Ministro, se empenharam para que o Parlamento Nacional acatasse o modelo de lei proposto para coibir e criminalizar a prática da violência doméstica (FOKUPERS 2012, Simião 2015a, Santos Filho 2019a).
Antes da elaboração de uma legislação específica, era comum que os casos não fossem objeto de apreciação judicial, sendo remetidos para as esferas locais de mediação de conflitos (JSMP 2013). Isso se devia, em parte, ao desejo manifesto pelas próprias requerentes que, ao serem questionadas sobre querer ou não dar prosseguimento com a queixa-crime, dizerem que preferiam tratar do assunto “na família”, referindo-se por vezes às tesi lia ou aos nahe biit-bo'ot (Simião 2015a). Isso preocupava tais agências de governo, pois diferente do que faria o sistema judiciário, nas tesi lia aconteceria, certamente, a mútua responsabilização pelos conflitos de violência doméstica e a imposição de multas a ambas as partes, que teriam de compensar seus grupos de origem para reestabelecer a ordem das relações.
As mobilizações que pressionavam para a aprovação de uma lei que dispusesse sobre esses casos o faziam desejosas de maior seriedade no tratamento e no reconhecimento público daquele como um problema social grave, carente de atenção judicial para coibir as atitudes violentas. A aprovação foi possível após duas consultas públicas, adequações necessárias ao Código Penal do país (em 2009) e a criação de uma Secretaria de Promoção da Igualdade, promulgando, em julho de 2010, a Lei nº 7/2010, Lei Contra Violência Doméstica. Ela garantiu o caráter de crime público à violência doméstica, impondo que casos tipificados enquanto tais passassem a ser de responsabilidade judicial, devendo ser encaminhados compulsoriamente ao Ministério Público para providências e retirando das esferas locais de administração de conflitos a possibilidade da cuidar de tais situações (Timor-Leste 2010, Santos Filho 2019a).
A promulgação dessas medidas legais, a Lei Maria da Penha e a Lei Contra Violência Doméstica, revela, no primeiro momento, um aspecto central da mobilização política dos atores envolvidos nestes processos: as demandas por reconhecimento. Luís Roberto Cardoso de Oliveira (2008) demonstra que as demandas por reconhecimento são fundamentais nos processos de disputas políticas nos quais alguns grupos partem de uma condição de desfavorecimento social para demandar reparação ou garantia de direitos. Para compreender o que é e como operam as demandas por reconhecimento, precisamos localizar os insultos morais (Ibid.), isto é, as percepções de desconsideração desses movimentos de mulheres sobre a forma como as vítimas eram tratadas pelas instituições antes da promulgação das leis.
Buscava-se, no Brasil, o reconhecimento de que as mulheres eram vítimas nas relações conjugais, mas também de que, com a mediação nos JECrim elas seriam lesadas, uma vez que as penas aplicadas aos suspeitos não estariam à altura da violação dos direitos das mulheres. Ao mesmo tempo, ao atuarem de forma conciliatória, os JECrim não considerariam a violência contra a mulher como um problema realmente grave (Debert e Oliveira 2007, Azevedo 2008, Rifiotis 2008). Em Timor-Leste, denunciava-se o sentimento de insulto moral pelo tratamento da violência doméstica como sendo um “incidente menor” (JSMP 2013), que não precisaria da insistência dos agentes públicos, podendo ser encaminhada às formas locais de administração de conflitos. Também se buscava o reconhecimento de que a situação das mulheres não era devidamente reparada nas tesi lia, e que, portanto, seria necessário aplicar penas, inclusive de privação de liberdade, exclusivamente aos agressores, a fim de coibir ações do tipo.
Compreender as percepções de insulto moral e as demandas por reconhecimento que eram vocalizadas pelas organizações e movimentos de mulheres (Gregori 1993, Pasinato 2010, FOKUPERS 2012, JSMP 2013) é fundamental nesta análise, pois demonstra o aspecto político do acionamento da justiça (Debert 2006, Debert e Perrone 2021). Contudo a elaboração das demandas por reconhecimento nesses contextos é a ponta de um fenômeno mais complexo, pois ainda que auxiliem na compreensão sobre a institucionalização dessas medidas penais, nosso interesse é refletir sobre a maneira como elas são aplicadas, o que leva a uma nova camada de discussão.
As etnografias sobre a aplicação da Lei Maria da Penha em Juizados e Varas reesposáveis no território brasileiro têm chamado atenção para as dinâmicas entre os operadores do direito e as partes dos processos, sobretudo as requerentes. Em pesquisa que acompanhou as audiências de uma Vara de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher – VVDFM em Recife, Pernambuco, Carolina Medeiros (2015) aponta como a almejada produção de justiça e a garantia de direitos das vítimas, desejadas pelos movimentos de mulheres, são confrontadas com reproduções de constrangimentos e tensões. Parte significativa dos conflitos que surgem na referida VVDFM se devem às interações entre operadores do direito e as mulheres requerentes que, nas audiências, adotam posturas desmobilizadoras, a fim de não colaborar com os ritos processuais que poderiam incriminar seus (ex)companheiros, acusados nos casos (Medeiros 2015).
Os arquivos da VVDFM recifense indicavam que entre fevereiro e dezembro de 2014 haviam sido extintos 43,5% dos processos que lá transcorreram, o que se justificava tanto pela solicitação formal das vítimas pelo arquivamento, quanto por decisão da juíza que notava inconsistências entre os depoimentos registrados nas queixas e aqueles firmados nas audiências. Isso ocorria porque nas audiências as requerentes não colaboravam para a culpabilização e para uma eventual condenação dos acusados – com os quais mantinham vínculos de diferentes naturezas (ex ou atuais companheiros, pais de seus filhos etc.). Nesse sentido, era frequente que as mulheres prestassem informações divergentes daquelas fornecidas no momento das denúncias, afirmando não se lembrar dos fatos ocorridos no dia das agressões ou se preocupando mais em falar sobre coisas não relevantes para a apuração dos autos (Ibid.). Em situações como essas, juíza e promotora pressionavam para que as mulheres retomassem as afirmações feitas. Quando não atingiam este objetivo, chegavam a sugerir que haveria certa irracionalidade das vítimas ao tentarem evitar a punição dos acusados (Ibid.). Algumas mulheres chegavam a não comparecer às audiências, acreditando, com isso, poder interromper o curso do processo. Tais posturas eram respondidas, por vezes, com rispidez e ameaças de condução coercitiva (Medeiros 2015, 113).
Em uma etnografia produzida no Juizado de Violência Doméstica e Familiar do Núcleo Bandeirante no Distrito Federal, Krislane Matias (2015) narra as experiências e percepções de mulheres requerentes em suas interações com operadores do direito. A qualidade das interações delas com os agentes – policiais, delegado e juiz – eram fundamentais para que avaliassem suas experiências com a Lei Maria da Penha como satisfatórias ou não: tanto as ameaças ou “duras” do juiz aos acusados quanto à eficiência ou não dos instrumentos legais aplicados para a modificação do comportamento dos acusados eram indicadores das sensações de satisfação, impunidade e reparação por parte das requerentes.
A percepção de algumas requerentes de que as ações do juiz poderiam transmitir “autoridade”, na medida em que impunham “medo” aos acusados, é significativa, especialmente porque nas audiências os agressores eram “postos contra a parede” para modificarem seus comportamentos ante a possibilidade de tomada de “providências maiores” (Matias 2015, 132–3). É significativo notar que o sentimento de satisfação daquelas mulheres com a justiça e com a Lei Maria da Penha poderia estar relacionado à sensação de terem sido ouvidas e de terem tido espaço para elaborar narrativamente seus conflitos no espaço da Justiça, mesmo que seus objetivos com os processos não se limitassem à aplicação das penas de prisão (Matias 2015, Simião 2015b).
Matias (2015) demonstra que o sentimento de (in)satisfação, que variava de acordo com o tipo de interação estabelecida entre operadores do direito e as requerentes, dava lugar a ressentimentos devido à sensação de impunidade aos agressores, mas despertava, também, descrença no sistema de justiça. Os trechos a seguir, de falas de mulheres atendidas pela Lei Maria da Penha no Distrito Federal, são expressivos disso.
Krislane: Se fosse necessário, você procuraria a Lei novamente? Lygia: Não, porque para mim é como eu te falei... A minha visão é que o jeito é eu me conformar (...). Eu me conformei. Não que eu goste de apanhar, como muita gente já me falou, que eu gosto de apanhar (Matias 2015, 139).
Vai para Igreja e ora. Porque se for para a justiça não vai dar em nada. [...] Depois que eu vi que a justiça não ia fazer nada por mim eu fui para a Igreja. Fui procurar ajuda em Deus, conversar com Deus (Matias 2015, 140).
O que explica que os mesmos operadores do Direito, nas mesmas instâncias, possam produzir reações tão diversas nas requerentes dos processos? A forma como se tem produzido os desfechos para os casos de violência doméstica no Brasil aponta aspectos significativos da relação entre o que determina a Lei Maria da Penha e o que dizem e fazem os operadores. A pesquisa realizada por Rodrigo Azevedo e Mariana Craidy (2011) em um Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher em Porto Alegre (RS) revela como diferentes juízes se baseavam em múltiplas leituras da Lei e em concepções próprias sobre gênero e hierarquias de poder para orientar suas decisões. Isso seria perceptível pela adoção, por parte de alguns deles, das controversas transações penais e das suspensões condicionais dos processos[1].
Ao mesmo tempo em que empregavam esses mecanismos como possibilidade de contradádiva pelo encaminhamento de acusados para o tratamento de dependência química ou alcoolismo, havia aqueles que seguiam à risca as previsões instituídas pela Lei Maria da Penha no que diz respeito aos ritos processuais (inquérito, denúncia pelo Ministério Público, julgamento e sentenciamento), mesmo que isso contrariasse os anseios das requerentes, despertando nelas sentimentos dúbios quanto ao sistema de justiça (Azevedo e Craidy 2011). Seja dessas maneiras ou por meio de diferentes “estilos de julgar” (Bragagnolo; Lago; Rifiotis 2015), os magistrados brasileiros, ao se depararem com situações de violência doméstica, têm adotado posturas múltiplas que, de maneira significativa, não se limitam a aplicação de instrumentos da própria Lei nº 11.340/06 nem de medidas que representem os interesses explícitos das mulheres atingidas pela violência interpessoal/conjugal.
Esse contexto chama atenção para a necessidade de se discutir que a possibilidade de gerar desfechos satisfatórios, produzir justiça e reparação pode estar em perspectiva com o tipo de postura do juiz: se é feminista ou não, se está preocupado com a reparação moral das vítimas ou se adota uma postura arbitral/tutelar (Bragagnolo, Lago e Rifiotis 2015). Isso indica que a experiência das mulheres com a Lei Maria da Penha e com o sistema de justiça está intimamente ligado ao modo como os magistrados conduzem não apenas os processos, mas suas próprias condutas.
A maneira como se desenvolvem as experiências das mulheres atendidas pelas instituições de justiça no âmbito da Lei Maria da Penha pode ser ainda complexificada com observações sobre o funcionamento das equipes multidisciplinares que têm como objetivo auxiliar e orientar as vítimas na superação de suas experiências de violência, para além do nível penal. Daniel Simião (2015b), narrando o funcionamento de uma dessas equipes em Brasília-DF, formada por um bacharel em direito, uma assistente social e uma psicóloga (servidores do Tribunal de Justiça do DF e Territórios em um Juizado da cidade), demonstra que os servidores buscavam garantir que as requerentes tivessem explicações sobre as etapas do processo e recebessem escuta e orientação para outras esferas da vida.
No contexto de atenção às partes, os servidores da equipe colaboravam para a elucidação dos conflitos ao permitir que tanto as vítimas quanto os acusados tivessem chance para apresentar suas narrativas, fora dos espaços de produção de provas. Contudo, nos diálogos com as partes, os profissionais propunham orientações sobre comportamentos que deveriam ser adotados pelos primeiros, o que era feito por meio de recomendações sobre como se comportar, quais as atitudes do/a parceiro/a seriam aceitáveis ou não, se deveriam reconhecer como violência doméstica ações que poderiam não figurar enquanto tais para as partes (por exemplo xingamentos), se as mulheres deveriam ou não optar pelo arquivamento do processo, se deveriam buscar atendimento em serviços de ajuda como Alcóolicos Anônimos (AA), Narcóticos Anônimos (NA) e Serviço de Atendimento a Famílias em Situação de Violência (SERAV), especialmente quando a equipe percebia possíveis associações entre o consumo de substâncias psicoativas e a irrupção de conflitos (Simião 2015b, 59-60).
O atendimento da equipe multidisciplinar poderia auxiliar na compreensão dos significados ou motivações geradoras dos conflitos, mas também indicava que havia, na ação daqueles agentes, um papel formativo das decisões e posturas passíveis de serem adotadas pelas mulheres, inclusive em eventuais recomendações quanto a descontinuidade dos relacionamentos (Simião 2015b, 62).
Deve-se notar que o trabalho de escuta das equipes multidisciplinares se desdobrava em orientações que visavam incidir tanto nas agências das requerentes quanto dos requeridos, o que ressalta o lugar ocupado por esse tipo de serviço não apenas nos processos de administração de conflitos, mas na recondução de agências e posturas individuais dos sujeitos.
Ainda que tenha me dedicado aqui a dialogar com trechos etnográficos que focam, sobretudo, no atendimento às mulheres atingidas pela violência doméstica, devo mencionar o encaminhamento compulsório de acusados aos “grupos reflexivos de gênero” como expressão significativa da incidência dos processos judiciais na reformulação das posturas individuais. Estes grupos reúnem homens na condição de acusados nos processos e que podem ser encaminhados no âmbito das penas acessórias (Martinez-Moreno 2018, Santos Filho 2019a) para falarem sobre suas personalidades, problemas e seus processos penais, tendo a oportunidade de reelaborar suas condutas por meio da reflexão acerca de suas atitudes (Martinez-Moreno 2018). O objetivo último dos grupos é a transformação ou a civilização de aspectos de uma alegada “cultura machista” e “patriarcal” dos agressores, que se expressariam nos atos de violência doméstica (Ibid.).
As experiências narradas anteriormente apontam para a recriação e negociação da Lei Maria da Penha e de suas previsões a partir das percepções, orientações e/ou disposições dos operadores do direito, indicando um contexto em que o fazer da Lei (e talvez do próprio Direito penal no Brasil) se dá pelas práticas idiossincráticas, discricionárias e autorreguladas dos juízes. As experiências das requerentes com as lides judiciais, com os operadores e com as instituições de Justiça, podem ter a potencialidade para produzir as mais variadas implicações em suas vidas. Com a experiência de judicialização, as requerentes podem tanto ter suas demandas atendidas e alcançarem reparação e seguridade, quanto serem revitimadas pelos operadores no sistema judicial ou por seus parceiros que não tenham suas condutas reorientadas; podem, também, sair do processo de litígio insatisfeitas e descrentes do sistema formal de justiça, demonstrando desinteresse em acioná-lo novamente (Matias 2015, Simião e Cardoso de Oliveira 2016). Já os requeridos podem sair punidos, direcionados para serviços de reeducação e ressocialização, ou podem não ter recaídas sobre si quaisquer penalizações formais. Em todas essas possibilidades, implicações são produzidas nas vidas destas pessoas, as quais podem impactar, mais ou menos, no tipo de sujeitos que eles venham a ser, em suas condutas futuras e nas múltiplas relações que venham a desenvolver entre si ou com as instituições legais.
Na aplicação da Lei Maria da Penha, os agentes envolvidos com a administração dos conflitos parecem exercer funções disciplinares e regulatórias, tanto ao determinarem penalidades quanto ao não as aplicarem. Se determinam a frequência a grupos reflexivos ou a outros mecanismos de correção social para os autores de violência, buscam a civilização de práticas e condutas (Martinez-Moreno 2018); se não operam penalizações que contribuam para a modificação da experiência de violência das vítimas podem produzir a sensação de descrença nas instituições de justiça e seu afastamento das mesmas (Matias 2015, Simião e Cardoso de Oliveira 2016).
Em Timor-Leste, passados 12 anos desde a promulgação da Lei Contra Violência Doméstica (LCVD), se verificam alguns desafios referentes à administração de conflitos deste tipo pelo Poder Judiciário. Dados da Comissão para Reforma Legislativa e do Setor da Justiça – CRL, indicavam que em 2016 os casos de violência doméstica representavam 35% dos crimes contra a pessoa e 17% do total de casos processados nos tribunais (CRL 2017b). Dentre estes, os delitos de ofensas simples à integridade física representavam 87% dos casos, enquanto os de maus tratos (formas mais graves de agressão) representavam 7%, seguidos dos homicídios com 6% (Ibid.). No que se refere à produção de desfechos para estes casos, pesquisas de organizações de monitoramento dos tribunais têm demonstrado a tendência de aplicação das suspensões de execução das penas de prisão, isto é, os acusados são condenados à prisão, mas cumprem a pena em liberdade. Isso vem ocorrendo desde os primeiros meses após a promulgação da LCVD, quando se identificou a aplicação das suspensões de execução de penas de prisão a 52% dos condenados, seguida pela aplicação de multas a 24% dos condenados (JSMP 2013).
As suspensões de execução das penas de prisão ou sua substituição por outras modalidades de pena são possibilidades previstas pelo Código Penal do país nos artigos 67 a 69, que instituem que atos de lesão corporal leve, têm como penas de 30 dias a 3 anos de reclusão, os quais podem ser suspensos a depender de circunstâncias atenuantes (primariedade do réu, confissão em juízo e reconciliação ou perdão pela parte ofendida). Assim, entre 2010 e 2013, as penas de prisão foram desferidas a apenas 2% dos acusados, isto é, aos poucos casos em que os réus não preenchiam os requisitos para a suspensão ou substituição da pena por multa (JSMP 2013).
Para além do embasamento no Código Penal, os operadores também se utilizam de outros argumentos para aplicar a suspensão das penas de prisão aos autores de violência doméstica, como, por exemplo, a alegada dependência econômica das vítimas aos homens agressores. Os trechos a seguir, retirados de entrevistas com juízes e promotores, realizada por uma ONG local são expressivos.
“Colocar pessoas na cadeia, isso não é a solução. [Nós] temos que considerar que a mulher do acusado é desempregada” – Promotor. “Os homens, como cabeças das famílias [...] as Cortes têm que considerar isso. Se essa pessoa é mandada à prisão, como fica a situação econômica da família?” – Juiz. (JSMP 2013, 34).
Seja pelas possibilidades garantidas no Código Penal ou pela alegação da dependência econômica feminina, é um fato que a substituição ou a suspensão das penas de prisão têm gerado desagrado e desconforto em agentes e organizações que se empenharam pela promulgação da LCVD com a expectativa de que ela fosse eficiente para coibir a vitimação feminina. Um dos argumentos de apoio a uma aplicação mais severa da LCVD é o medo de se gerar um quadro de impunidade, descredibilizando a justiça formal perante as vítimas e os cidadãos em geral (CRL 2017b). Falas de membros de organizações não governamentais locais expressam esse sentimento:
Eu discordo totalmente da aplicação abusiva de penas suspensas. A suspensão tem um efeito antipedagógico e acaba por condicionar a apresentação de queixas no futuro, porque as vítimas ficam desiludidas com o sistema de justiça formal e não têm coragem de voltar a apresentar queixa nos casos em que a violência se mantém (Ent. 57). (CRL 2017b, 408).
Para fortalecer nas mulheres o sentimento de buscar por justiça nos casos de violência doméstica e por seus direitos, algumas ONGs locais prestam assistência às vítimas e têm, neste sentido, membros responsáveis pela assistência legal. A FOKUPERS, organização na qual realizei trabalho de campo entre 2015 e 2016 e ao longo de 2022, presta esse tipo de serviço. Os acompanhamentos da ONG às vítimas são feitos por agentes que explicam às mulheres os procedimentos jurídicos e as preparam para as audiências e os julgamentos.
O trabalho da FOKUPERS é expressivo do projeto de produção de sujeitos conhecedores de seus direitos e que saibam atuar nas esferas jurídicas do Estado. Em atividades de socialização e treinamentos, os membros da organização explicam sobre o funcionamento das instituições e sobre como as mulheres devem atuar ali: como falar, prestar informações precisas, cuidar da postura corporal nas audiências etc. (Santos Filho 2019b). É um tipo de pedagogia jurídica que se expressa tanto nos ensinamentos sobre o funcionamento do poder judiciário como na forma de agir objetivando ganhos jurídicos (Ibid.).
Embora tenha como foco o atendimento às mulheres atingidas pela violência doméstica, a FOKUPERS também se engaja na promoção de treinamentos e campanhas de conscientização para as comunidades para que outros sujeitos compartilhem suas ideias-valores de recurso à Polícia e à justiça do Estado – e não à “justiça tradicional” – para tratar de casos criminais. Assim, busca espraiar o entendimento de que os complexos locais de administração de conflitos não devem operar na mediação de casos de violência doméstica.
Mesmo com todos os esforços da FOKUPERS, não se alteram aspectos como a morosidade do processo judicial, fazendo com que não sejam raros os depoimentos em que as partes já tenham chegado a bons termos através do recurso às esferas locais de mediação de conflitos, as quais produzem, inclusive, declarações de chefes de suku[2] sobre a resolução das contendas para apresentarem nos tribunais como forma de dar apoio às suspensões ou substituições das penas de prisão (Santos Filho 2019a). Dessa forma, os múltiplos fatores que complexificam a administração judicial da violência doméstica em Timor-Leste congregam não só os debates sobre as matérias ou códigos legais e suas determinações, mas também esforços pelo afastamento das tesi lia ou nahe biit-bo’ot da resolução de disputas deste tipo.
As expectativas dos movimentos que cobravam por respostas institucionais mais severas em relação aos conflitos de violência doméstica, no Brasil e em Timor-Leste, se dirigiram às esferas judiciais como estratégia para garantir acesso à justiça e resguardar direitos. As dinâmicas após a efetiva judicialização deste tipo de conflito evidenciam, contudo, uma série de outros resultados que escapam à garantia de direitos e à produção de desfechos satisfatórios, como demonstram as experiências etnográficas nos dois países. As controvérsias sobre as suspensões das penas em Timor-Leste e sobre os constrangimentos e frustrações das requerentes com os processos no Brasil podem produzir insatisfações ou descrença em relação às instituições de justiça, como é alegado em ambos os contextos pelas mulheres e pelas organizações que pretendem representá-las.
Em ambos os contextos se evidenciam práticas dos magistrados fundamentadas mais em percepções pessoais e em considerações autocentradas do que nas previsões doutrinárias ou nas necessidades apontadas como sendo das vítimas. O cenário do qual estamos diante demonstra uma preponderância do “direito dos operadores” sobre o Direito enquanto doutrina ou sobre a Justiça enquanto esfera de reparação, ou seja, a agência dos magistrados, combinando suas próprias convicções às suas possibilidades de ação (discricionariedade), se sobressai aos aspectos legais e, frequentemente, à vontade das próprias partes lesadas nos processos.
Vêm da agência dos magistrados os principais afetamentos possíveis para compor as experiências potencialmente subjetivadoras das partes envolvidas nos conflitos. Produzindo, entre outras coisas, a fixação das posições de vítima e algoz (Gregori 2021a, Santos Filho 2022) e perpetuando uma situação de tutela (Debert e Oliveira 2007, Rifiotis 2008, Simião 2015b), parece ocorrer a reorganização das formas como os sujeitos podem vivenciar suas relações interpessoais e também seus futuros contatos com as instituições jurídicas. Com isso, parece ser o caso de notar como os sistemas de justiça brasileiro e leste-timorense tendem a não traduzir adequadamente (em suas práticas) as demandas originais dos sujeitos políticos que buscavam por justiça e garantia dos direitos das mulheres. Parece haver, sim, a atuação do sistema judicial como motor civilizatório, contribuindo para o enraizamento de um tipo especifico de sujeito individualizado e desprendido dos contextos relacionais de produção dos conflitos.
Para além dessa dimensão, devemos destacar que a judicialização pode deslegitimar ou reduzir a agência de outras esferas de administração de conflitos, sobretudo no contexto leste-timorense, com o afastamento dos complexos locais de mediação de conflitos, mas também com a exclusividade da esfera judicial que exclui, no Brasil, a possibilidade de envolvimento da justiça restaurativa ou das mediações em casos de violência doméstica. A necessidade percebida por alguns agentes em atribuir aos mecanismos judiciais do Estado a competência para garantir direitos e produzir justiça revela, antes, a capacidade desse tipo de instituição em atuar como ordenadora de relações (Rosen 2006), como (re)posicionadora de sujeitos em contextos autoritários (ainda que sejam sistemas democráticos) e que reproduzem a lógica do “manda quem pode, obedece quem tem juízo” ou do clássico brasileiro “você sabe com quem está falando?” (Damatta 1997).
Um dos efeitos da judicialização, e a etnografia aqui apresentada buscou demonstrar isso, é que ela, enquanto dispositivo de governo, cria situações para a fixação de sujeitos em posições nas quais são os juízes quem podem sobre eles dispor: se as vítimas serão constrangidas ou tomadas como irracionais, se terão seus anseios ignorados ou atendidos, se irão determinar a frequência dos autores de violência doméstica aos serviços de ressocialização ou não, fica à mercê de posturas muito variáveis e com alto grau de autorregulação. Neste fluxo, não são apenas os acusados que são alvo de modificação comportamental, pois as próprias requerentes recebem estímulos para a modificação de suas agências (Simião 2015b, Santos Filho 2019b), fazendo com que os intentos civilizatórios dos sistemas de justiça e dos defensores de seu funcionamento operem também sobre elas. Em que maneira as experiências com o sistema de justiça se efetivam para a produção dessas novas subjetivações é uma questão em aberto, uma agenda de pesquisa a ser acompanhada sobre as interfaces da judicialização e da produção do self.