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“Donde comen dos, comen tres”: Comida, cuidado e afeto entre famílias de refugiados colombianos no Sul do Brasil
Diana Patricia Bolaños Erazo
Diana Patricia Bolaños Erazo
“Donde comen dos, comen tres”: Comida, cuidado e afeto entre famílias de refugiados colombianos no Sul do Brasil
“Where two eat, three eat”: Food, care and affection among Colombian refugee families in Southern Brazil
Anuário Antropológico, vol. 49, núm. 2, e-12442, 2024
Universidade de Brasília
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Resumo: O presente artigo busca vincular os conceitos de comida, cuidado e afeto sob uma perspectiva que coloca as mulheres colombianas refugiadas em Santa Maria, Rio Grande do Sul, como produtoras de relações sociais estáveis e como detentoras de um conhecimento específico que lhes outorga poder dentro do grupo social do qual fazem parte. O artigo narra, ainda, como a organização feita entre estas mulheres e suas famílias foi fundamental para a sobrevivência do núcleo familiar e da família extensa nos momentos críticos de suas trajetórias. Ele é resultado de pesquisa antropológica realizada entre 2018 e 2022 com famílias de refugiados colombianos reassentados no Brasil e propõe uma abordagem mais ampla sobre questões encontradas na tese. O fio condutor desta reflexão é minha relação com Maria e sua família, personagem central quando se fala da manutenção de hábitos e costumes colombianos. Finalmente, proponho pensar as negociações de ingredientes, técnicas e pratos como uma forma de expressar suas agências e de manter o grupo social coeso.

Palavras-chave: mulheres, comida, afeto, cuidado, refugiadas.

Abstract: This article seeks to link the concepts of food, care and affection which places Colombian refugee women in Santa Maria, Rio Grande do Sul, as producers of stable social relationships and as holders of specific knowledge that grants them power within the social group of which they are a part. The article also tells how the organization of these women and their families was fundamental to the survival of the family nucleus and extended family at critical moments in their lives. It is the result of anthropological research carried out between 2018 and 2022 with Colombian refugee families resettled in Brazil and proposes a broader approach to the issues raised in the thesis. The guiding thread of this reflection is my relationship with Maria and her family, a central character when it comes to maintaining Colombian habits and customs. Finally, I propose thinking about the negotiation of ingredients, techniques and dishes as a way of expressing their agency and keeping the social group together.

Keywords: women, food, affection, care, refugees.

Carátula del artículo

Dossiê

“Donde comen dos, comen tres”: Comida, cuidado e afeto entre famílias de refugiados colombianos no Sul do Brasil

“Where two eat, three eat”: Food, care and affection among Colombian refugee families in Southern Brazil

Diana Patricia Bolaños Erazo
Universidade Federal de Santa Maria, Brasil
Anuário Antropológico, vol. 49, núm. 2, e-12442, 2024
Universidade de Brasília

Recepción: 16 Noviembre 2023

Aprobación: 07 Junio 2024

Introdução

O presente artigo busca dar continuidade aos debates apresentados na minha tese de doutorado defendida em julho de 2023, no Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal de Santa Maria. Na tese, busquei compreender o lugar que a comida colombiana ocupava no interior dos lares das famílias de refugiados colombianos reassentados em Santa Maria. Entendi como o cultivo de temperos, a negociação de ingredientes e pratos, e a produção, consumo e partilha de comida colombiana com outros colombianos na cidade foram formas de ressignificar memórias e de se recolocarem no mundo após a experiência traumática e fragmentadora do refúgio.

Donde comen dos, comen tres” é um ditado colombiano que exprime o fato de que na hora de comer, todos que precisarem serão bem-vindos, sem nenhum ônus. A comida – e o que é expresso através dela – sempre alcança a todos. Maria – uma das minhas interlocutoras principais e uma das grandes produtoras das relações sociais entre colombianos em Santa Maria - Rio Grande do Sul (RS) e mantenedora dos costumes e tradições do país de origem – pronunciou essa frase durante o trabalho de campo. Cristina, outra mulher-mãe-refugiada do grupo, alegou não poder participar dos encontros por falta de dinheiro. Segundo Maria, não ter dinheiro para contribuir não seria um argumento suficiente para se ausentar; o mais importante era estar junto e participar do encontro.

O trabalho de campo, ao qual me refiro aqui, foi realizado entre três famílias de colombianos refugiados e reassentados em Santa Maria - RS, e desenvolvido entre 2018 e 2022, parcialmente interrompido pela pandemia de SARS-CoV, que transformou o mundo.

Digo parcialmente porque a minha intenção até então era acompanhar os eventos onde a comensalidade se fazia presente: encontros cerimoniais como aniversários, casamentos, partidas de futebol, formaturas, e encontros mais informais como os que aconteciam aos sábados na casa de Dario e Maria, que buscavam reunir os colombianos na cidade e dividir com eles comida “tipicamente colombiana”. Com a exigência legal e ética do distanciamento social, os encontros que envolviam comensalidade com pessoas diferentes das do convívio nuclear, foram suspensos.

Sem poder observar tais eventos, optei por me manter presente para o grupo social por meio do grupo de WhatsApp “Colombianos em Santa Maria”, assim como oferecer ajuda caso precisassem de algo, principalmente nos primeiros dias de isolamento. Assim que a tensão dos primeiros dias foi passando, e fomos criando estratégias para nos mantermos saudáveis e próximos, apesar da distância física, as entrevistas virtuais tornaram-se um caminho possível para dar continuidade à pesquisa.

Minha inserção em campo se deu de forma quase “natural”. Como colombiana em Santa Maria, busquei me aproximar de outros colombianos na cidade, com a intenção de manter o vínculo com o meu país de origem, a língua, os costumes e a alimentação. E, como em outras migrações, um colombiano foi encontrando outro, que foi lhe apresentando mais um, e, quando percebemos, estávamos formando o Grupo de WhatsApp de “Colombianos em Santa Maria”, por onde circulavam informações sobre a cidade, receitas, convites e afetos.

Ao todo, realizei seis entrevistas, das quais duas foram antes da pandemia, duas durante a pandemia, de forma virtual, e duas após a chegada da vacina e o fim do isolamento social. No entanto, grande parte das reflexões apresentadas tanto na tese quanto aqui é produto de conversas mais informais, ao lado das mesas e fogões nos dias de encontros e comemorações.

Este texto em especial, escrito em um momento pós-defesa, traz consigo colocações que não foram exploradas na sua totalidade na tese, assim como depoimentos e narrativas mais maduras, produtos de um relacionamento mais bem construído e mais aprofundado pós-campo. Com o fim da pandemia, as relações e encontros presenciais foram retomados, embora em ritmo diferente de como era antes.

Coloco-me no texto por vezes na primeira pessoa do singular, por vezes na primeira pessoa do plural, por me sentir parte, enquanto colombiana e migrante, desta rede de convívio e afetos da qual participo desde muito antes de iniciar a pesquisa e à qual continuarei pertencendo apesar de tê-la concluído. Não o faço com o intuito de apagar as nuances entre migrantes e refugiados, mas para explicitar que este foi um trabalho construído de dentro para fora e que a sensibilidade que me levou a compreender o cotidiano dessas famílias é a mesma que conduz este trabalho hoje.

Minha presença em campo, isto é, nos lares e experiências dessas famílias de colombianos, nunca foi neutra. Sempre fui vista e lida tanto quanto eu os via e os lia. Por vezes, eles me tratavam como uma conterrânea, outras vezes como uma filha e, por fim, como uma pesquisadora.

Inclusive, o termo “mulheres-mães-refugiadas”, que exploro aqui, está atrelado ao fato de as mulheres entre as quais fiz a pesquisa serem mães e estarem aqui em companhia dos seus filhos. Mas, também, ao fato delas serem lidas pelos outros colombianos enquanto mães (cuidadoras) do grupo social. Papel que elas entenderam e assumiram, ao ponto de tratar os outros colombianos, principalmente os mais jovens, enquanto filhos. O papel de filha foi o que mais ostentei ao longo do trabalho de campo.

Partirei, então, da representação da figura de mãe, como agentes do cuidado doméstico, da alimentação e preservação dos costumes, para costurar o artigo.

Ao me aproximar das suas trajetórias de vida e observar o quanto os encontros com outros colombianos residentes na cidade – embora não em condição de refugiados- eram elementos estruturantes das suas rotinas e uma forma de sentir-se em casa, apesar de estar tão longe dela, adentrei nas dinâmicas familiares de três famílias de refugiados colombianos e compreendi a importância que a comida detinha no espaço transnacional, mas, principalmente, no cotidiano. Ela era produto e produtora das relações familiares e sociais.

A comida, e as práticas alimentares de determinados grupos sociais, são matéria de estudo de diversos campos do conhecimento. No entanto, por abordar a comida como o alimento transformado pela cultura (Da Matta 1987) e explorar suas dimensões afetivas (Altoé, Menotti, Azevedo 2019), culturais (Mintz 2001) e comunicativas (Amon, Menasche 2008), para além da dimensão meramente fisiológica, este trabalho se enquadra no campo da antropologia da alimentação e busca, assim, contribuir com os debates contemporâneos sobre mobilidades e práticas alimentares.

A comida, quando consumida em um contexto de mobilidade, fala sobre presenças e, principalmente, sobre ausências. Ela comemora, reivindica e demarca identidades (Maciel 2004), assim como exalta momentos da vida familiar, como o abandono de lar, que explorarei neste artigo. Isto é, “a comida possui um significado simbólico – ela expressa mais do que os ingredientes que a compõem” (Woortmann 2013, 6).

Durante a construção do trabalho de campo e da escrita da tese, foi possível distinguir dois momentos fundamentais para a reflexão. O primeiro ocorreu nos encontros presenciais na casa de Dario e Maria, os principais interlocutores da pesquisa, onde o foco era a comensalidade e a hospitalidade com que éramos recebidos. Nesses momentos, os holofotes se voltavam para os homens, que sempre tinham uma “boa história” para contar e um “bom convite” para fazer, compartilhando bebidas e recebendo os convidados com disposição para conversar. Com relação aos esposos, pais e filhos das três famílias de refugiados participantes da pesquisa, Dario, em especial, recebia os elogios por ser o anfitrião de uma noite maravilhosa.

O segundo momento aconteceu no meio da pandemia, quando Dario decidiu, deliberadamente, retornar à Colômbia, sem consultar sua família. Maria ficou sozinha com os filhos, os gastos da casa e com as sequelas econômicas que a pandemia deixou na cidade. É a partir desse momento que as mulheres se organizaram com o intuito de garantir a sobrevivência de todas, e Maria ganhou visibilidade dentro do grupo, planejando e executando os encontros entre colombianos em Santa Maria, o que, até então, era um trabalho reconhecido para Dario, embora ela estivesse envolvida desde sempre.

Maria e todas as mulheres do grupo de convívio entenderam a atitude de Dario como abandono de lar e, prontamente, o nome dele passou a ser o centro de conversas, fofocas e até maldições. Como a maior parte do trabalho de campo foi feita antes da pandemia, Dario virou o protagonista das observações e entrevistas. Colombiano de origem camponesa, ele fora acusado de apoiar as FARC e condenado à morte pelas milícias colombianas, o que o levou a deixar o país em companhia de Maria, sua então esposa, e seu filho. No Brasil, ele encontrou trabalho como mestre de obras e oferecia sua casa para ser o local de reunião, e cozinhava grandes paneladas de sancocho de gallina[1] para alimentar uma comunidade faminta de pratos colombianos e de histórias. E era isso que ele nos dava e era por isso que sempre voltávamos.

Dario era um grande anfitrião, sem dúvida alguma, sem papas na língua para falar de tudo o que lhe aconteceu quando saiu da Colômbia e se exilou no Brasil. Assim passaram anos de encontros, observações, entrevistas e fotos com Dario e seus pratos, de risadas com Dario e suas histórias, de Dario, Dario e Dario.

E Maria, sua esposa?

Maria e o restante de mulheres do grupo, todas de origem camponesa e com status de refugiadas no Brasil, eram silenciadas pelos estrondosos relatos de superação de Dario, e, em menor medida, dos outros homens. Durante muito tempo, o que elas não falavam foi entendido como o indizível, um tema comum em muitos estudos sobre experiências traumáticas, ou como uma dificuldade em reelaborar um discurso sobre o período pré-refúgio, devido à dor associada a essa fase específica de suas vidas.

O que acontecia era que, assim como apontam Ferreira e Weyne (2018), os papéis de homens e mulheres na cozinha evidenciam, também, as diferenças de gênero. Isto é, enquanto a participação feminina na cozinha se reduz à esfera doméstica, a participação dos homens alcança a esfera profissional. Assim sendo “os homens têm uma participação ínfima na cozinha doméstica e as mulheres ocupam um espaço desigual na cozinha profissional” (Ferreira, Weyne 2018, 112). Dario, então, era o chef do grupo, cozinhando para as ocasiões especiais e recebendo os elogios por isso. Já Maria e as outras mulheres do grupo cozinhavam para o dia a dia do núcleo familiar ou nos encontros entre colombianos, mas sempre nos “bastidores”, longe dos aplausos.

A saída inesperada do “meu interlocutor principal” me deixou confusa sobre os rumos que a tese tomaria. Aproveitei que o campo estava presencialmente parado para tentar entender o que faria agora com as informações que já tinha e das quais ele teria participado amplamente. Mencioná-lo era algo mal visto dentro do grupo de colombianos em Santa Maria, a não ser que fosse para falar mal dele.

As mulheres, que, conforme o que havia observado, se recusavam a falar sobre si mesmas e suas experiências, não iriam se sentir representadas em um trabalho que teria sido feito, em grande parte, com o Dario. Como fazê-las participar, então?

Em agosto de 2021, após receber a vacina, escrevi para Maria, dizendo-lhe que estava com saudade das arepas[2], comida colombiana que ela sempre preparava. Ela me respondeu que estava ansiosa em me ver, e combinamos algo apenas entre minha família e a dela, para evitar um possível contágio e, também, por não saber como conduzir uma reunião pós-saída de Dario, achando que o restante de colombianos gostava, apenas, das reuniões comandadas por ele.

Minha posição como colombiana e membro ativo do grupo me permitia fazer esse tipo de comentários e “reclamações” sobre a falta de arepas, o que era entendido, entre outras coisas, como uma fome saudosa, ou fome de comer algo que me vinculasse afetivamente ao meu país de origem. Preparei-me para nosso encontro e jurei não falar, claramente, sobre Dario. Contudo, chegando lá, percebi que a única coisa que ela queria era, precisamente, falar sobre ele e sobre a situação em que ele a tinha colocado. Escutei atentamente Maria, que nos encontros anteriores tinha falado comigo como uma mãe e hoje me falava como uma mulher.

Ela fez a janta. O cardápio: Sancocho de Gallina, tal e como Dario tinha nos “ensinado” a comer. Enquanto destapava as panelas, convidou-nos a nos servir. Foi então quando enunciou a frase que me fez repensar anos de trabalho de campo: “eu cozinho igual ou melhor que Dario”. Silêncio.

E com essa frase ecoando na cozinha, agora não mais de Dario, mas exclusivamente dela, fui me servir.

O mal interpretado silêncio de Maria – e das outras mulheres do grupo – não era pelas suas trajetórias de vida estarem marcadas pelo exílio ou pelo fato da dor ser revisitada a cada nova pergunta. Elas queriam falar, e muito, mas o discurso de e sobre Dario acabava as ofuscando. Os holofotes eram dele, e Maria tinha entendido isso. Ele buscava o reconhecimento e aplauso dos comensais, mas tinha muitas coisas por trás disso. Fui compreendendo que, neste tipo específico de mobilidade, a comida assumia uma forma para falar de si e de se organizar perante a dor.

O afastamento de Dario vinculou-me imediatamente a Maria, Rosa, Cristina e suas famílias. Tive o acesso que não tinha tido até então e compreendi a grande rede de cuidado e afeto existente por trás de cada prato. Assim, o meu trabalho de campo, minha análise e escrita foram se deslocando da comida e da comensalidade – que colocava o Dario como eixo central, enquanto chef e anfitrião – para as arepas e as fazedoras de arepas, isto é, para a cozinha, o cozinhar e para as cozinheiras, que colocavam as mulheres, suas agências e conhecimentos no centro de tudo.

O “invisível cotidiano” (De Certeau 1997, 234) é o cenário de disputas, negociações e agências, onde as mulheres-mães-refugiadas colombianas em Santa Maria têm protagonismo e o importante papel de manter e modificar as tradições a fim de que possam ser transmitidas de geração em geração. Essa mudança gerou empecilhos epistemológicos, mas culminou, da melhor forma possível, com o reconhecimento do papel das mulheres nas redes de afetos e seu conhecimento como elemento fundamental na coesão e acolhimento do grupo de colombianos que transitam por Santa Maria.

A arepa como símbolo de afetividade e cura

Estávamos todos reunidos na cozinha de Cristina: meu esposo, minha filha, um casal colombo-brasileiro, um peruano, um venezuelano, a família completa de Maria e Cristina, alguns outros colombianos que estudam na Universidade Federal de Santa Maria e eu. Pessoas entravam e saíam, conversavam, olhavam as panelas e logo não estavam mais na cozinha. Coisas normais que aconteciam a cada encontro.

Formando um círculo no meio da cozinha, com cadeiras de todo tipo – inclusive algumas que tinham vindo da casa de Maria, que mora ao lado – conversávamos em português, espanhol e uma mistura de ambos, enquanto um copo de algum drinque com álcool circulava, passado pela filha de Cristina.

Era a primeira vez que nos reuníamos na casa de Cristina e a quarta vez após a saída de Dario. As reuniões sempre foram na casa de Maria, salvo duas exceções em que foram na casa de Rosa e Pedro. Cristina sempre foi de poucas palavras[3], e por isso me surpreendeu que o encontro fosse na sua casa. Na verdade, era para ter sido na casa de Maria, mas estava alagada por causa das chuvas de inverno: “vamos na casa de Cristina” é aqui do lado e a cozinha também é grande”, resolveu Maria, rapidamente. O tamanho da cozinha sempre foi importante nas narrativas de Maria – e de Dario – por reconhecer que este seria, sem dúvidas, o cômodo mais importante da casa, onde se cozinham os alimentos, mas, também, onde se compartilham afetos e memórias.

No fundo, escuta-se: “Solo quien tiene hijos entiende, que el deber de un padre no acaba jamás, que el amor de padre y madre, no se cansa de entregar, que deseamos para ustedes lo que nunca hemos tenido, que a pesar de los problemas, familia es familia y cariño es cariño[4], música icónica do cantor panamenho Rubén Blades.

Naquele instante, uma pausa. Todos nós que ali estávamos, entreolhamo-nos desesperados, até que alguém se animou a dizer: “essa é forte” – referindo-se à letra da música. É forte porque todos os presentes deixamos os nossos países, nossos pais e fomos embora. Alguns, como eu, para realizar o sonho de estudar uma pós-graduação gratuita, e outros, como Maria, para continuar vivendo.

Então, quando alguém, ou uma música, nos lembra do amor incondicional dos nossos pais, o coração se quebra. Os olhos se arregalam, a voz treme e o choro vem. Apesar de todos estarmos felizes na confraternização, na expectativa pela comida colombiana que iriamos comer, essa música foi como um balde de água fria. Mas esse vazio, essa mágoa, foi preenchida pelas arepas de Maria, que ostenta o título de fazedora de arepas do grupo.

Quando elas foram servidas, o clima tenso desapareceu e todo mundo se focou em elogiar o sabor e a cozinheira. As memórias sobre a Colômbia distante foram chegando, mas desta vez de uma forma mais festiva e menos nostálgica.

A comida é produtora de memórias e sentimentos, isto é, o aspecto simbólico que a alimentação traz consigo e que vai além de suprir necessidades nutricionais, fisiológicas e, até ideológicas, vinculam pratos a momentos marcantes específicos ou a sensações construídas durante a vida (Altoé, Menotti, Azevedo 2019).

O cardápio do dia era o sancocho de gallina com arepas. As arepas não podem faltar nunca, inclusive, são as mais esperadas entre quem já frequenta os encontros colombianos em Santa Maria. Contudo, quando alguém chega pela primeira vez, custa acreditar que a arepa seja a anfitriã. Duvidosos, dão a primeira mordida imaginando que serão parecidas, mas não iguais, às que comiam quando moravam na Colômbia. No fim, a surpresa: a cada mordida, um “por Dios, están muy ricas”.

As arepas, e o trabalho coletivo feminino que supõe sua feitura, fazem parte das famílias colombianas e são entendidas como Patrimônio Alimentar do país (Rivera, Giraldo e Posada 2022, 10). Em Santa Maria, elas foram assumindo o papel de prato-tótem (Contreras 2007) dos colombianos na cidade. No entanto, são muito difíceis de fazer – envolvem tempo, dinheiro e habilidade de quem as prepara. Ainda mais quando o processo é feito de maneira artesanal, como Maria, Cristina e Rosa, as mulheres-mães do grupo, gostam de fazer. Para elas, o mais importante é que esse prato esteja carregado da essência de quem está no comando do feitio.

Não é exagero dizer, então, que as arepas acolhem e curam. Aliás, no filme Encanto, da Disney, inspirado na Colômbia, Julieta, a mãe de Mirabel, tem o dom de curar machucados com arepas. Bastava alguém engolir uma, que toda dor física desaparecia. Sem dúvidas, uma forma bastante poética de relacionar comida, representações e emoções.

As arepas das mulheres-mães em Santa Maria - RS podem não curar as dores físicas, como a mãe da Mirabel fazia, mas elas curam as dores causadas pela ausência, por esse estar aqui e estar lá ao mesmo tempo, que tanto desgasta o migrante.

Essa relação entre comida e corpo foi explorada por Fischler (1995). Para o autor, “incorporar um alimento é, tanto no plano real quanto no imaginário, incorporar tudo ou parte das suas propriedades, chegando a sermos aquilo que comemos” (Fischler 1995, 66).

Mintz (2001) entendia o comer como a base para nos relacionarmos com a realidade. Dito isso, a comida que “entra” no nosso corpo traz consigo uma carga moral, que deixa os nossos corpos como o produto de nosso caráter (Mintz 2001, 32).

Assim, Maria nos vinculou imediatamente com uma Colômbia distante, com as nossas mães, avós e vizinhas. Esse é o poder que ela detém, e que mantém ativo o grupo de colombianos em Santa Maria - RS.

Ela alimenta o corpo biológico e o corpo social do grupo. Na casa dela não apenas transitavam sancochos, arepas, patacones e pratos colombianos. Por lá também circulavam memórias, pertencimentos e, antes de tudo, afetos. Evocados, mediados, tensionados e possibilitados pela comida.

Era o que a fazia acordar cedo para encontrar o milho de canjica ideal – branco nos tempos de fartura econômica, amarelo em tempos de escassez –, colocá-lo para cozinhar na panela de pressão, moê-lo, dar forma às arepas e, por último, assá-las, em um processo que, do início ao fim, poderia demorar em torno de cinco horas.

Embora elas soubessem que seria cansativo, em todos os encontros que tive a oportunidade de observar ao longo de quatro anos de pesquisa e mais alguns de amizade, as arepas sempre estiveram presentes. Mesmo quando falavam que não iria ter, por ser cansativo demais – e até caro –, elas acabavam fazendo.

Reproduzir e adaptar pratos relevantes para sua identidade familiar ou nacional é uma forma de manter atual o contato entre o sujeito que se desloca e os significados e afetos que circulam em torno da preparação. O valor simbólico da reprodução dos pratos-tótem durante o deslocamento recai sobre o fato da memória de infância o momento marcante que ela traz à tona, e não sobre sua qualidade ou gosto (Le Breton 2016).

As fazedoras de arepas

Se o moedor de Maria conseguisse falar, ele diria quantas mãos já passaram por ele. Mãos camponesas, colombianas, experientes ou curiosas. Normalmente, quem moe o milho e já tem bastante prática com isso é o filho mais velho de Maria. No nosso último encontro ele esboçou que já estava cansado de moer milho, que eram anos e anos fazendo o mesmo, mas que continuava fazendo porque sabia que sua mãe valorizava seu trabalho.

Ele costuma montar o moedor em uma pequena mesa de madeira branca, vai encaixando parte por parte, enquanto Maria ou Cristina esfriam o milho já cozido. Essa é a parte mais “tecnológica” do processo e a que menos recebe “curiosos” tentando ajudar. Contudo, no encontro na casa de Cristina, vários homens convidados cercaram o moedor e quiseram participar do processo. Mão em mão, os homens iam passando pelo moedor para sentir a experiência do feitio das arepas. Ian, o filho mais velho de Maria, gostou da iniciativa. Agora ele não era mais quem moía, mas um instrutor –alguém que, tudo parecia indicar, detinha um saber-fazer importante.

Maria gostava de deixar seu filho a cargo dessa função, ou, então, de fazer o fogo. Enquanto ele moía, ela dava o formato às arepas. Enquanto ele cuidava do fogo, ela as colocava, virava e tirava da grelha.

¿Maria, sabes que eres como la mamá de todo mundo aqui, cierto? Disse Fernanda, uma colombiana que veio para o Brasil para estudar. Maria riu e continuou montando as arepas. Ela não explicitou, mas todos entendemos que se referia ao fato de alimentar com amor, de entender as especificidades de cada comensal e satisfazê-las, tal qual como as nossas mães faziam quando morávamos na Colômbia.

Essa visão maternal sobre o cuidado e a alimentação tem sido experienciada, principalmente, entre sociedades religiosas que seguem um livro (como é o caso dos judeus, muçulmanos ou cristãos) onde o comer está vinculado ao amor materno, assim como recusar comida estaria vinculado à recusa a essa modalidade de amor que exprime grande emoção (Hubert 2006, 3 apud Dória 2012, 254).

Não era apenas porque Maria cozinhava que Fernanda a vinculava à ideia de mãe. Era porque ela cozinhava, servia, comia e cuidava de tudo, como uma mãe faz, principalmente em sociedades camponesas mais conservadoras, como as colombianas. Isso quer dizer que ela sabia quem comia mais, quem gostava do guacamole com pimenta e quem não; que ela se preocupava com quem não tinha muito para comer em casa ou com quem estava atrasado para o encontro. Ela fazia arepas suficientes para que chegassem para todos, preparava dois ou três tipos de guacamole para agradar a todos os paladares, montava marmita para levar para casa ou separava um prato para quem ainda não tinha chegado. É nessa dinâmica que a maternidade enquanto valor social, representada na comida da mãe, é transmitida e “realimentada” (Assunção 2008, 250).

As representações sobre maternidade, entendida academicamente como um constructo social, quando no deslocamento, são reinventadas e desafiadas, levando em consideração as interseccionalidades e as múltiplas vulnerabilidades em que as mulheres são colocadas. A diferença de muitas outras mulheres no mundo, as mulheres-mães entre as quais a pesquisa foi desenvolvida, não se deslocaram de países com economias emergentes para países industrializados com o intuito de se inserirem nos setores de cuidado e trabalho doméstico, nem estavam, necessariamente, à procura de mobilidade social nos seus países de origem. Elas se deslocaram porque sobre elas recaia uma ameaça contra suas vidas e as vidas dos integrantes do seu núcleo familiar próximo.

Não houve preparo, malas feitas, conversa com filhos e familiares, poupança, não houve um projeto migratório. Houve, apenas, fuga. As mulheres-mães se viram na obrigação de criar, elas mesmas, novas redes que lhes permitiram encontrar um novo emprego, transitar pela cidade e alimentar os seus filhos. Isto é, mesmo longe dos seus países de origem, as mulheres continuam respondendo às expectativas de gênero atreladas ao cuidado que recaem sobre elas. Mas não se trata apenas de alimentar a família no sentido fisiológico do termo, mas no sentido simbólico e cultural. A ingesta de comida do país de origem, mesmo tendo negociado técnicas e ingredientes disponíveis no país de destino, envolve uma afetividade não apenas de mãe para filhos, mas de filhos com o país de origem. E esse cuidado com o núcleo familiar, ao longo dos anos, foi se estendendo aos outros conterrâneos presentes na cidade.

A comida, quando no contexto das mobilidades, está vinculada à manutenção de hábitos e tradições realizadas no país de origem (Erazo 2023, p. 170), e são as mulheres do grupo as responsáveis por essa continuidade.

Explorar a produção e o consumo de arepas colombianas em Santa Maria me levou a compreender a dimensão de afeto e cuidado presente em cada encontro. Quando alguém menciona que o que Maria faz pelo grupo de colombianos era o que as suas mães faziam quando estavam na Colômbia, os encontros de sábado atingem outra dimensão. Participa-se não apenas para se conectar com a Colômbia através do que é levado à mesa, ou para praticar o espanhol ou mostrar uma comida típica aos nossos cônjuges e amigos, mas porque há relações de familiaridade envolvidas. Vamos para comer, rememorar e nos recarregar de novas memórias, mas, também, para nos conectarmos com nossa família.

Assim sendo, a comida produzida e consumida como na Colômbia, quando no Brasil, celebra relações de familiaridade, amizade e comadrio. “É cozinhar para se encontrar e para conhecer o outro” (Erazo 2022).

Durante o trabalho de campo da minha dissertação de mestrado, tive a oportunidade de acompanhar os encontros de mulheres brasileiras na Colômbia onde “a comida é o de menos”, pois o que importava mais era que, em cada encontro, se falasse sobre as dores de ser uma expate assim sentir que os processos pelos quais uma passava eram os mesmos pelos quais a outra estava passando. A comida funcionava como mediadora, mas não como protagonista das relações sociais. Diferente do mencionado anteriormente, o observado durante a construção da tese mostrou o quanto o que era servido a cada encontro entre colombianos importava, e muito.

Essa importância não era medida, apenas, entre o que significava para os comensais – estar degustando uma comida que os transportava diretamente à Colômbia – mas, também, pelo que representava para aquelas que o tornavam possível. O poder que vem do conhecimento.

As fazedoras de arepas detinham um conhecimento que lhes conferia poder dentro do grupo. Assim, elas buscavam ser reconhecidas por aquilo que sabiam e pelo que representavam para os outros. Sem os conhecimentos de Maria, Cristina, Rosa e Johana (filha de Rosa), os encontros de sábado não aconteceriam e a ressignificação de memórias, a celebração da familiaridade e a inserção na sociedade de destino também não.

Maria, reconhecida pelas suas arepas, concorda quando Cristina ou Rosa a chamam de “chata” em relação à sua excessiva preocupação com o processo artesanal e cuidadoso do feitio da comida: “sazón não gosto de usar, sou muito chata para isso, prefiro a comida mais natural”– disse-me, como se desculpando por estar colocando o produto industrializado na sopa. Situações como estas se repetiram ao longo da pesquisa quando as arepas estiveram a cargo de outras mulheres que não Maria. Ela costumava questionar os ingredientes e técnicas que elas usavam.

Elas valorizavam o cuidado com a produção, a comida demorada, os temperos colhidos na horta dos fundos da casa, a arepa com a marca dos dedos ou, como Estrada (2018) a chamava, “arepa de huella digital”. Esse vínculo com o caseiro, tradicional e, por conseguinte, saudável, é, mais uma vez, uma representação do cuidado e afeto que as mulheres-mães davam ao grupo.

Quanto mais artesanal fosse a produção, mais saudável e tradicional seria, na visão delas e do grupo de colombianos em Santa Maria. As cargas morais (Mintz 2001) ingeridas em cada bocado incrementavam conforme a reprodução das arepas ia sendo mais fiel às ingeridas na Colômbia e sua produção mais demorada.

O feitio das arepas das mulheres-mães colombianas foi considerado como um trabalho coletivo, feminino e transmissível geracionalmente. O que na Colômbia era algo corriqueiro e fácil de encontrar, no Brasil se constituiu como um prato escasso e de bastante valor entre o grupo.

Esta distinção entre ambas as dimensões de uma mesma comida fez com que o papel das mulheres também mudasse. Na comida do dia a dia, o papel das mulheres não é reconhecido – ele é inclusive invisibilizado. É obrigação delas alimentarem suas famílias e criarem estratégias de circulação de alimentos e racionamento das porções deles em épocas de contenção de gastos. No entanto, nos encontros de sábado, quando a comida produzida por elas é cerimonial, elas são elogiadas publicamente e reconhecidas pelos seus conhecimentos, alcançando, então, o almejado status de “mães”.

No refúgio, as mulheres negociam suas identidades enquanto mães, com o intuito de se encaixar nos termos da maternidade convencional, apesar das dificuldades, e é por meio da comida e sua dimensão comunicativa que elas se refazem e estruturam as narrativas sobre sua visão de mundo.

É no contexto das mobilidades internacionais que “as histórias e os saberes sobre, com e pelas arepas são criadas, reforçadas e transmitidas por elas” (Erazo 2023, 169). Isto é, as mulheres camponesas, mães e refugiadas em Santa Maria, Rio Grande do Sul, são as artífices de um complexo sistema de interações sociais que permite aos colombianos recriarem narrativas, memórias e pertencimentos.

Direcionar o olhar para o cozinhar e as cozinheiras permitiu, então, compreender as agências que elas, enquanto mulheres, detinham, assim como conhecer por onde buscam ser narradas e reconhecidas. Isto é, “não apenas comer, mas também cozinhar, nos conecta a um grupo social e concede sentimento de pertencimento, algo que nos identifica perante os demais (Benemann e Menasche 2017, 477–8).

As mulheres-mães-refugiadas

Reconheço, então, nas mulheres refugiadas do grupo, um papel maternal. Todas são mães camponesas que saíram da Colômbia na companhia dos seus filhos e esposos, com a única intenção de sobreviver. Com status de refugiadas reconhecido no Equador, elas pediram “o terceiro país” ou o reassentamento, uma figura administrativa criada pelo ACNUR – Alto Comissionado para os Refugiados das Nações Unidas, quando o infundado temor de perseguição as reencontrou no novo país.

Chegaram na década de 2000 ao Brasil, com os filhos que tiveram na Colômbia e, algumas, com outros filhos que tiveram no Equador. Maria, Rosa e Cristina saíram da Colômbia pelas acusações que recaíam sobre seus esposos de pertencer a um ou outro lado do conflito armado colombiano. Com ameaças de morte pairando sobre si, elas se deslocaram por amor e pelo projeto familiar de se manterem juntos e vivos.

Chegaram ao Brasil e lidaram com as questões linguísticas e culturais como puderam. Um longo caminho de medos, sentimentos de suspeita e preconceito foi percorrido, até se tornarem anfitriões dos seus próprios conterrâneos. Antes de sair da Colômbia, elas eram trabalhadoras das terras ou donas dos seus próprios empreendimentos nas cidades vizinhas. Tanto no Brasil quanto na Colômbia, elas geravam renda, o que não as isentava dos cuidados domésticos e das responsabilidades familiares. Isto é, elas sempre foram as encarregadas dos setores produtivos e reprodutivos da família.

No entanto, no Brasil, este duplo trabalho executado pelas mulheres tem um elemento a mais: elas são as encarregadas da manutenção de hábitos e tradições do estilo de vida pré-refúgio. E não apenas para os seus filhos, mas, para todos aqueles que viam nelas uma “mãe”. Por ser um trabalho considerado “essencial”, elas estendiam seus conhecimentos e ensinavam filhas, noras e amigas, para garantir a reprodução social do grupo e do núcleo familiar.

Ao levarem consigo “a tradição”, elas podem mantê-la, atualizá-la ou modificá-la, até onde o bom senso lhes permite. Substituir ingredientes, negociar pratos e técnicas, ensinar processos e costumes, criar estratégias de circulação de alimentos e enfrentar a fome é apenas uma das coisas que elas fazem diariamente. Elas buscam, assim, se manter colombianas apesar do exílio vivido. Elas buscam se manter juntas, apesar das adversidades.

Maria, Cristina e Rosa moram no mesmo bairro, a poucas casas de distância. Construíram suas casas em um terreno cedido pela prefeitura há alguns anos e, embora não sobre, nunca lhes falta nada. As mulheres-mães colombianas em Santa Maria se organizam e criam estratégias para terem tudo quanto precisam. Suas cozinhas, hortas e fogões são espaços de resistência. É a partir daí que a vida social e o ciclo de vida se estruturam; é na mesa de madeira com toalha plástica florida de Maria que se alimentam dois, três ou a quantidade de colombianos que precisarem de comida, memórias e histórias sobre a Colômbia.

Foi essa relação de compadrio, de família, que as salvou em diversas ocasiões. Na pandemia, quando não podiam trabalhar, elas teceram redes para que o que uma tinha chegasse à outra, e assim, nunca faltasse comida sobre a mesa, carona até os trabalhos “clandestinos” e saúde mental para continuar, “estratégias de aguante” (Solans 2014) para preservar a vida como ela era.

No entanto, o maior desafio se colocou quando seus esposos, aqueles pelos quais elas saíram da Colômbia, abandonaram seus lares e retornaram aos seus países de origem. Primeiro foi Armando, esposo de Cristina, depois Dario, esposo de Maria. Os rearranjos familiares pós-abandono envolveram mais participação das mulheres e de outros colombianos que participavam dos encontros.

Tendo acabado de passar por uma pandemia que tornou mais vulnerável a quem já estava em situação de vulnerabilidade social, elas tiveram que enfrentar desde troca de emprego até o pagamento integral das contas, que antes era dividido. Sem um mínimo de organização familiar para assumir a ausência de um adulto provedor, elas enfrentaram em conjunto a perda, e se viram livres para encarar sua “solteria”. A forma como as mulheres são “capazes de articular sua agência em contextos pouco favoráveis” (Carpenedo e Nardi 2017, 21) nos diz muito sobre as assimetrias do mundo contemporâneo e sobre a agência necessária para se reestruturar.

Contudo, o que em um princípio foi visto como um grito de liberdade, aos poucos foi se transformando em sobrecarga e preocupação. Maria conta que agora tem três trabalhos para poder arcar com as despesas que o Dario deixou. Mas, quando se trata de cozinhar, ela ainda continua se sentindo bem ao ser reconhecida como a cozinheira do grupo. Com frases como “eu cozinho igual ou melhor que Dario” ou “ficou bom, vai dizer, melhor do que o daquele, né”, ela expressa o quanto é importante para ela ser lida e narrada como a artífice de tudo o que acontece nos encontros de sábado à noite. O papel de guardiã da memória (Zanini 2002, 22) lhe confere poder.

Por isso, é importante observar as estratégias femininas quando no contexto das mobilidades forçadas. Elas plantam, produzem, consomem, dividem, negociam e circulam temperos, mercadorias e comida, com o intuito de criar memórias para os seus filhos, mas, também, de ressignificar as lembranças dolorosas do passado.

As mulheres ressignificaram o ato de cozinhar e o transformaram em resistência perante situações dolorosas de abandono. O trato desigual entre homens e mulheres que cozinham não foi diferente no grupo de colombianos em Santa Maria. Quando Dario cozinhava, ele ganhava todos os aplausos (embora grande parte dos bastidores tenha sido executado por Maria). Já quando Maria cozinhava no cotidiano familiar, ninguém sequer a elogiava, esperava-se dela esse comportamento: Dario cozinhava para momentos importantes e cerimoniais, quando se exaltava seu conhecimento e sua colombianidade. Já Maria cozinhava no dia a dia, longe dos bastidores, dos aplausos e das perguntas sobre “como você fez” (Erazo 2023, 177).

Então, quando tudo isso mudou abruptamente graças à saída de cena do Dario, foi quase como uma “vingança” para elas. Agora elas não apenas assumiriam a cozinha, como já, de fato, se dava, mas elas ficariam também com todos os aplausos, elogios e protagonismo. Essa mudança, apesar dos desafios da nova fase, as colocou no topo das interações.

Os saberes-fazer que elas detêm não estão atrelados à formação acadêmica e, como mencionado, estão na esfera do doméstico, cotidiano e privado. Elas criam, transformam e substituem ingredientes, apesar de não estar escrito em nenhuma receita ou constar em nenhum manual. No entanto, a transmissão de onde comprar, o que comprar, das técnicas e equivalências de produção dos alimentos, se dá de forma oral, de geração para geração e pelo mostrar, em um redescobrimento dirigido (Ingold 2010, 19).

Considerações finais

As mulheres são artífices e organizadoras do processo de mobilidade internacional, são referência e vínculo entre ambos os países, entre ambas as culturas, para o seu núcleo familiar, quer estejam presentes de maneira física, quer estejam apenas nas narrativas dos sujeitos que migram.

As arepas colombianas consumidas no Brasil, com o objetivo de lembrar da Colômbia, representam um vínculo inquebrantável com o país de origem. Dominar as preparações garantiu uma posição privilegiada no jogo das relações assimétricas de poder entre homens e mulheres que cozinham, embora ainda exista um caminho longo a ser percorrido.

Cozinhar para elas ainda está longe de ser “terapia” como Dario chegou a mencionar que significava para ele. No entanto, representa, sim, uma ferramenta para a transformação, um “espaço de manifestação de saberes específicos, adaptados ao tempo ao qual pertencem” (Benemann e Menasche 2017, 491), e uma forma de poder e autonomia para decidir.

Enquanto a figura materna incorporada pelas mulheres-mães-refugiadas expressa relações de tradição e nostalgia pela Colômbia e pelas próprias mães deixadas para trás, ela também revela uma sobrecarga disfarçada de cuidado, amor e trabalho não remunerado.

Produzir, consumir e partilhar comida colombiana no contexto dos deslocamentos é, antes de mais nada, uma forma de estabelecer vínculos duradouros com o país de origem, ressignificar memórias, espalhar afetos e transmitir conhecimento. A comida no refúgio é produto e produtora de relações e poder e, são as mulheres as principais artífices e detentoras.

Material suplementario
Referencias
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Notas
Notas
[1] Sopa de galinha com batata, banana da terra e espiga de milho, tradicional em algumas regiões da Colômbia.
[2] Iguaria feita à base de milho moído. De forma circular, é assada na grela e acompanhada de queijo, manteiga ou qualquer outro molho. “Etimologicamente, vem de erepa, que era como os Caribes, etnia indígena, denominavam ao milho cariaca, ou seja, arepa significa milho, mas para os colombianos, significa família, para os colombianos fora do país, significa CASA, com letras maiúsculas” (Erazo 2023, 170).
[3] Aliás, demorei para saber que Cristina também era colombiana. Sempre estava por perto, mas se dirigia apenas a Maria ou Dario. Então imaginei que seria mais uma vizinha convidada nas reuniões, como os donos da casa costumavam fazer. Foi em um encontro em que a minha mãe, que estava de visita, conversou com Cristina e essa lhe contou que era de uma cidadezinha no centro da Colômbia.
[4] “Apenas quem tem filhos entende que o dever de um pai não acaba nunca. Que o amor de pai e mãe não se cansa de entregar. Que desejamos a vocês, aquilo que nunca tivemos. Que apesar dos problemas, família é família e carinho é carinho” (Tradução minha).
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