Dossiê

Modernidade e transformações no mundo rural do norte de Portugal: Terra, casa, mulheres e alimentos

Modernity and rural changes in northern Portugal: Land, house, women, and food

Virgínia Henriques Calado
Universidade de Lisboa, Portugal
Luís Cunha
Universidade do Minho, Portugal

Modernidade e transformações no mundo rural do norte de Portugal: Terra, casa, mulheres e alimentos

Anuário Antropológico, vol. 49, núm. 2, e-12452, 2024

Universidade de Brasília

Recepción: 16 Noviembre 2023

Aprobación: 31 Mayo 2024

Resumo: As sociedades camponesas ocuparam, em diferentes momentos e por diferentes razões, um lugar de relevo na reflexão antropológica. Nos alvores da disciplina, o valor analítico advinha, sobretudo, de uma ideia de permanência, que permitia ver nelas uma janela para o passado. Contrariando essa ideia de estarem fora da história, essas sociedades foram-se transformando, tanto por dinâmica interna como por impulsos vindos do exterior. Trabalhos de terreno desenvolvidos por antropólogos e sociólogos no norte de Portugal na década de 1980 evidenciaram esses processos de mudança, observáveis nas transformações das relações terra/trabalho, nos hábitos de consumo, na desconstrução de hierarquias, incluindo as relações de género. Neste artigo revisitamos algumas dessas monografias, procurando sistematizar esses processos, sobretudo no que concerne ao papel das mulheres. Partindo de uma monografia específica (Wall 1998), ramificaremos este olhar retrospetivo, convocando outros trabalhos que nos ajudarão a perceber a assunção da responsabilidade feminina na gestão da propriedade num quadro de forte migração, bem como as consequências nos consumos decorrente da crescente monetização destas comunidades rurais. Do que se trata, então, é de convocar alguns dos vetores fundamentais daquilo a que chamamos modernidade para perceber de que forma chegaram às sociedades rurais do norte de Portugal, e de que forma se mostraram e foram descritos em monografias que se tornaram referenciais.

Palavras-chave: sociedades camponesas, noroeste de portugal, alimentos, mulheres, mudança, modernidade.

Abstract: At different times and for different reasons, peasant societies have occupied an important place in anthropological analysis. At the dawn of the discipline, their analytical value came above all from an idea of permanence, seeing them as a window into the past. Far from being outside history, these societies have been transformed, both by internal dynamics and by impulses from outside. Fieldwork carried out by anthropologists and sociologists in the north of Portugal in the 1980s shows these processes of change. Transformations can be observed in the relationship with land and labour, with consumption habits, with the deconstruction of hierarchies, including gender relations. In this article, we revisit these studies to systematise the traces of these changes, especially regarding the role of women. Starting with a particular monograph (Wall, 1998), we will extend this retrospective look, drawing on other works that will help us to understand women’s assumption of responsibility for the management of propriety in a context of strong migration, as well as the consequences of the increasing monetisation of these rural communities on consumption patterns. What we're talking about here, then, is bringing together some of the fundamental vectors of what we call modernity in order to understand how they reached the rural societies of northern Portugal, and how they were shown and described in monographs that have become referential in the Portuguese social sciences.

Keywords: peasant societies, north-west portugal, food, women, change, modernity.

Introdução

Neste artigo teremos como foco as profundas mudanças ocorridas nas sociedades camponesas do Norte de Portugal, atendendo de forma especial a questões relacionadas com o papel da mulher na gestão da propriedade, o trabalho e o consumo[1]. Centrar-nos-emos numa temporalidade muito específica, grosso modo, a década de 1980, por ser um período em que tanto antropólogos como sociólogos desenvolveram trabalho de campo nessa região, mas também por ser uma década historicamente marcante: implantação do regime democrático após quase meio século de ditadura e momento de exponenciação das consequências do enorme fluxo migratório verificado na década de 1960. Argumentaremos que esse processo configura a chegada tardia da modernidade às sociedades camponesas do norte do país, recorrendo, para o efeito, a dois registos, por um lado, numa primeira parte deste artigo, situar-nos-emos no plano macro, procurando dar conta de dinâmicas implicadas na construção da modernidade ocidental e no modo como essa modernidade modificou o mundo rural. Num segundo momento, procederemos a uma releitura focalizada de obras monográficas sobre sociedades camponesas do Norte de Portugal[2].

A nossa focalização nesta região justifica-se por duas razões. A primeira delas é bastante pragmática, e decorre do facto de essa ter sido a região rural do país que, historicamente, mais atenção mereceu de antropólogos e sociólogos[3]. A segunda razão é mais substantiva: a grande fragmentação da propriedade fundiária, com a consequente complexificação social – acesso ou exclusão, estratégias matrimoniais, redes de dependência, mecanismos de patrocinato, etc. – torna este contexto particularmente rico do ponto de vista da análise das dinâmicas de mudança que o atravessaram e das suas consequências.

O reporte à década de 1980 levanta algumas dificuldades na configuração de um corpus analítico coerente. Há trabalhos publicados nessa década, que resultam de pesquisas feitas na década de 1970, por exemplo a de Brian O’Neill (1984); há outras que resultam de pesquisas do início da década de 1980, mas que apenas foram publicadas no final da década seguinte, como sucede com José Sobral (1999); muitos desses trabalhos filiam-se na tradição etnográfica, enquanto outros foram realizados por sociólogos que recorreram também a trabalho de campo. Cientes dos condicionalismos colocados por esta abundância de fontes e conscientes de que a natureza deste trabalho não permitiria uma abordagem exaustiva ou sequer sistemática, optámos por enfatizar tendências gerais a partir de um núcleo limitado de monografias, escolhidas pela sua relevância e pelo contributo que dão à compreensão da questão central que orienta a nossa abordagem – transformação do mundo rural, sublinhando o papel da mulher.

A relativa centralidade que conferimos à monografia de Karin Wall (1998) justifica-se por se tratar de um trabalho em que é dedicada particular atenção às dinâmicas familiares e ao papel das mulheres, facto que, em nosso entender, o torna adequado para funcionar como elemento pivot, a que faremos reportar outros trabalhos monográficos. Do ponto de vista da coerência do corpus analítico, ela decorre tanto do período temporal em que decorreram os trabalhos de campo (grosso modo a década de 1980), quanto do contexto geográfico para que esses trabalhos remetem – Norte de Portugal, mais especificamente o Noroeste Atlântico e o Nordeste de montanha. Assim, na impossibilidade de trabalhar de forma sistemática todo o material monográfico disponível, seguimos como critério dar atenção a trabalhos que ganharam notoriedade e reconhecimento no plano científico, e que, simultaneamente, deram particular realce às dinâmicas de mudança (Almeida 1986, Bretell 1991, O’Neill 1984, Pais de Brito 1989, Pina-Cabral 1989, Pinto 1985, Silva 1998, Sobral 1999). Essa relevância dada à mudança levou-nos ainda a recorrer ao trabalho de Callier-Boisvert (2004) que nos confronta com uma atenção sobre um terreno no Noroeste de Portugal que se estendeu por mais de três décadas, vincando, uma vez mais, as transformações vividas na comunidade estudada.

Sociedades camponesas: imobilidade e mudança

As modernas ciências sociais cedo encontraram nas sociedades camponesas matéria relevante para reflexão teórica. Na segunda metade do século XIX, quando essas ciências construíram os seus alicerces, a categoria sociedades camponesas remetia para algo bastante impreciso e multiforme, nuns casos reportando a uma realidade que se ia ajustando às dinâmicas de uma economia de mercado em expansão, noutros casos apontando sociedades que por estarem fora dessas dinâmicas pareciam também fora da história; nesse sentido, condenadas a desaparecer. Os etnógrafos interessaram-se particularmente por estas últimas, motivados pela urgência de retratar um objeto que se desvanecia, mas também pela nostalgia do passado, que se traduzia na ambição de dar conta das raízes da nação. Havia nestas abordagens uma mitificação assente numa certa ideia de passado, acompanhada da idealização de um certo modo de vida. A marca maior deste olhar era o comunitarismo agro-pastoril, visto como sobrevivência, ajustando-se à idealização de uma vida assente em famílias alargadas e comunidades integradas.

De certa forma, as sociedades rurais foram um instrumento concetual útil para pensar as transformações que a modernidade ia impondo, o que condicionou a objetivação do olhar sobre elas próprias. Não admira que em 1972 o então presidente da Rural Sociological Society, James Copp, tivesse desabafado dizendo que se sabia muito pouco da sociedade rural daquela época, apontando a dificuldade de a disciplina se ajustar à rapidez com que o mundo rural ia mudando (Newby and Guzmán 1983, 15). Para esta dificuldade em dar conta dos processos de mudança, contribuiu, certamente, um viés concetual, exatamente o que decorria do facto de as sociedades camponesas serem pensadas como estando mergulhadas num passado frequentemente mitificado, o que desvalorizava as dinâmicas internas de mudança e de conflito. Esta condicionante do olhar, do mesmo modo que o posicionamento social, cultural e político do investigador, contribuíram para a construção de um conhecimento enviesado e parcial das sociedades camponesas[4]. A dificuldade de lidar com a mudança no plano concetual e analítico, tinha ainda a ver com um outro escolho, o de discernir o que existia de endógeno e de exógeno nessas mudanças, tanto em razão da enorme diversidade de situações, como da dificuldade de situar essas sociedades na modernidade.

Não se trata de postular a eventual invisibilidade das mudanças que as sociedades rurais iam sofrendo[5], mas da dificuldade em discernir o que existia de endógeno e de exógeno nessas mudanças, tanto em razão da enorme diversidade de situações, como da dificuldade em situar essas sociedades na modernidade. A atenção que nas últimas décadas vem sendo dada à ideia de múltiplas modernidades (Wittrock 2000) ajuda-nos a perspetivar de uma outra forma essa dificuldade. Longe de ser um tsunami que arrasou tudo à sua passagem, definindo uma nova forma de viver e estar no mundo, a modernidade ajusta-se melhor à figura de uma maré subindo através de ondas persistentes, que vão conquistando o seu espaço. Assim, perspetivamos a modernidade como processo longo, multisecular e matricialmente eurocêntrico, que no século XVIII adquire a necessária consistência para vir a alterar de forma substantiva a mundividência até então hegemónica no ocidente europeu. Ainda que com alguns matizes, os resultados desse processo expandiram-se depois, sustentados numa narrativa unificada em torno das ideias de razão universal e de progresso. Com uma configuração diversa, como já dissemos, a modernidade chegou de diferentes formas, e a diferentes ritmos, às sociedades camponesas, enfrentando resistência, mas também adesão.

Para o que adiante argumentaremos, sublinham-se três fatores. Em primeiro lugar, a recomposição das coordenadas espaço/tempo graças à redução das distâncias, decorrente da compressão do espaço permitida pela agilização dos transportes e das comunicações, mas também graças à unificação da linha temporal com base na ideia de progresso orientado pela razão. Em segundo lugar, a emergência de um novo modo de produção, assente em alguns fatores que implicam os modos de vida das sociedades camponesas – incremento da monetização; crescente mercadorização, incluindo nela a posse fundiária, ou a acentuação da desconexão entre produção e consumo. Em terceiro lugar, a modificação das relações de poder, instituições e normas sociais, graças à emergência de uma nova estrutura, o Estado-Nação, que obriga a uma redefinição das lealdades, doravante centradas em soberanias legitimadas em regimes constitucionais, com a consequente redução da importância política e do vínculo religioso, substituído pela emergência de uma cidadania independente de fatores como a condição social, a classe ou o género, antes suportado nos valor da laicidade, transmitidos por uma escola de frequência crescentemente universal.

De seguida, propomo-nos fazer desses três fatores os pontos de ancoragem para a discussão dos processos de mudança das sociedades rurais do norte de Portugal.

Estudos sobre sociedades camponesas

Na década de 1980, década incontornável em termos de pesquisas que permitiram a consolidação de áreas científicas como a Antropologia e a Sociologia em Portugal, muitos foram os trabalhos dedicados às grandes transformações que vinham marcando, de forma profunda e irreversível, o mundo rural português. Nas décadas de 1960 e 1970, as migrações para países como França e Alemanha (cf. Brettell 1991), mas também para as áreas industriais portuguesas, então em expansão, e onde a oferta de trabalho abundava, marcavam o quotidiano do país. A parte significativa desse fluxo migratório, tal como as estatísticas nos mostram, provinha de espaços rurais afastados dos grandes centros, ou seja, de lugares onde a terra perdera importância enquanto recurso fundamental de subsistência e eixo fundamental de organização social. Diversos antropólogos e sociólogos que neste contexto consideraremos e a que já aludimos (O’Neill 1984, Pinto 1985, Almeida 1986, Pina-Cabral 1989, Brettell 1991, Pais de Brito 1996, Silva 1998, Wall 1998, Sobral 1999, Callier-Boisvert 2004) iriam encontrar aí os seus terrenos de pesquisa, em muitos casos pesquisas consolidadas em dissertações de doutoramento; quase todas marcadas por novas concetualizações teóricas e metodológicas que favoreciam um olhar crítico e desvinculado da idealização que marcara alguns dos trabalhos precedentes.

Procurando desfazer perspetivas que tinham marcado os estudos sobre sociedades camponesas, como, por exemplo, a ideia de igualdade social associada ao comunitarismo, procuraram dar conta de fatores geradores de desigualdade e de estratificação social, mesmo quando a referência a tais fatores era evitada no interior das próprias comunidades[6]. Centrando-se nas transformações que ocorriam quando a terra deixava de ser o principal recurso de subsistência, assistiu-se a uma imersão desses antropólogos e sociólogos num mundo rural em mudança. Esse fôlego e entusiasmo pelo mundo rural português viria a perder-se nas décadas seguintes, mas deixar-nos-ia um significativo legado de aprofundado conhecimento sobre um mundo rural em franca transformação. Ainda que o foco das diferentes pesquisas de terreno realizadas nessa altura fosse diverso — incidência na família, na estratificação social, visão do mundo dos camponeses —, encontramos nos trabalhos realizados um manancial de informação que nos permite agora, já a uma distância temporal significativa, ensaiar uma leitura integrada desses materiais.

Tomando como pano de fundo um entendimento das dinâmicas de mudança que só a distância temporal permite, centraremos a nossa atenção no universo feminino, procurando perceber que mudanças estavam aí a ocorrer. De forma mais precisa, orientaremos a nossa atenção para os processos quotidianos de reprodução social, incluindo a relação das mulheres com os alimentos, procurando perceber sinais de uma realidade que, em alguns casos, aparece de forma bastante secundária nas obras analisadas. Ainda que pouco explícitos, os sinais que procuramos encontram-se ali, já que os domínios centrais da atividade humana que procuraremos convocar, o sustento e a subsistência, são indissociáveis das dinâmicas de mudança que os autores analisam, seja o crescimento da monetização, seja a gradual autonomização das mulheres, seja, ainda, pensando numa perspetiva de transformação mais estrutural, a crescente insuficiência do grupo doméstico para assegurar a máxima convergência entre produção e consumo. Sublinhe-se, em relação a este último aspeto, a alteração dos padrões de consumo, parcialmente associados à emigração, mas também ao incremento de valores de mercado em bens e serviços. Será, pois, no balanceamento entre um mundo rural em desaparecimento e a construção, ainda incerta, de novos estilos de vida em contextos rurais específicos que agora nos situaremos.

Entre o final do século XIX, quando Portugal era um país predominantemente rural e agro-pastoril, e o final da década de 1980, quando se desenha o Portugal que hoje conhecemos, muito se modificou. Foi um século de grandes transformações, observáveis na paisagem, nos modos de vida, na relação entre a vida que se tinha e a vida que se imaginava poder vir a ter. A paisagem refez-se pela inovação técnica, por exemplo com a introdução de fertilizantes químicos no início do século XX (Santos 2017, 37), que, ao dispensarem a fertilização orgânica assegurada pelo gado, libertaram áreas de pasto no monte, permitindo novos arroteamentos. Por outro lado, a introdução de maquinaria agrícola facilitou a transição para uma agricultura comercial nalguns lugares, ao mesmo tempo que libertou mão-de-obra para uma indústria em expansão e também para a emigração.

No dealbar do século XX, o pão, tal como outrora, era a base da alimentação, consumindo 25 a 30% do rendimento, levando a que mesmo as terras pobres fossem destinadas a esse produto. Como nos diz Santos (2017, 13), a população paupérrima, das pedras fazia pão. A paisagem agrícola era, e seria ainda durante décadas, marcada pelo pão. Em Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico, obra seminal para o entendimento da diversidade que compõe o país, originalmente publicada em 1945, Orlando Ribeiro destaca a centralidade do pão nas economias agrárias das três regiões principais que define e caracteriza. No Sul predominava o trigo, associado à grande propriedade e ao acesso a apoios estatais, que permitiram que se afirmasse como produto de mercado, enquanto o milho (essencialmente associado ao norte atlântico) e o centeio (predominante no interior norte) surgiam maioritariamente ligados a pequenas e médias produções familiares, destinando-se prioritariamente ao autoconsumo[7]. A forte dependência dos cereais era o correlato de uma economia pobre, de baixo consumo, com baixíssimo acesso a carne (Santos 2017, 27) e sempre dependente da possibilidade de expansão do cereal para responder ao crescimento demográfico. A emigração, primeiro para o Brasil, mais tarde para os países europeus que procuravam mão-de-obra pouco qualificada, seria o fator mais determinante na alteração da paisagem física, mas também humana.

Se agora nos situarmos no final dos anos 1980 e atentarmos no retrato que antropólogos e sociólogos fazem das sociedades rurais portuguesas, percebemos uma realidade em pleno processo de incorporação de mudanças estruturais[8]. Vemos espaços rurais plenamente monetizados, nos quais o acesso à terra se alterou significativamente, acompanhando a perda de importância relativa da mesma. Vemos também espaços mais integrados, conectados com o exterior, às vezes remoto, e com uma temporalidade que se vai libertando da estrita dependência do ciclo agrário. Neste cenário, os equilíbrios sociais alteraram-se notoriamente, por um lado desestruturando hierarquias sociais bastante cristalizadas, graças à mobilidade social permitida pelos rendimentos obtidos na emigração, por outro, dando às mulheres maior autonomia. Nuns casos outorgando-lhe, na prática, o governo da casa, como no Soajo (Callier-Boisvert, 2004), noutros casos permitindo-lhe aceder a tarefas que até aí lhe estavam vedadas, o que frequentemente implicou sobrecarregar as mulheres com trabalho, sem que a tal correspondesse uma real emancipação (cf. Pina-Cabral 1989, Wall 1985). Vivia-se um período de consolidação de um novo modo de produção, com uma redução radical do setor agrícola — a população ativa agrícola era, em 1960, 47% do total da população ativa, passando, em 1981, para 28%, reduzindo-se, no final do século, a 12% (Santos 2017, 77) —, em alguns casos transformando a atividade agrícola numa ocupação parcial, combinando-a com outras atividades profissionais, que permitiram o incremento do consumo e o acesso a novos produtos.

Universos femininos: modernidade e mudança

A atenção à casa, enquanto elemento nodal de organização social, tem suscitado importantes reflexões teóricas (Pina-Cabral 1989 1991, Carsten and Hugh-Jones 1995, Pais de Brito 1996, Leal 2000, Brum e Rosales 2018, Samanani and Lenhard 2019). Na obra Famílias no Campo, de Karin Wall (1998), resultante de trabalho de terreno realizado entre 1985 e 1989 em duas freguesias do noroeste de Portugal (Lemenhe e Gondifelos), no concelho de Vila Nova de Famalicão, acedemos ao mundo das mulheres, dos alimentos, e da casa, sobretudo através de um grupo que recebe uma particular atenção da autora: as famílias de lavradores abastados que procuravam garantir o estatuto da casa e a sua continuidade. Não se pense que a tal designação correspondia um estilo de vida mais ocioso ou desligado do trabalho árduo da terra, bem pelo contrário, uma ética do trabalho imperava: o sucesso da casa dependia de um forte envolvimento de toda a família nas atividades agrícolas.

A casa “tradicional” dos lavradores abastados analisados por Karin Wall era, simultaneamente, uma unidade residencial, de produção, de subsistência e de reprodução biológica e social. Unidade que procurava uma “auto-suficiência económica, social e biológica” (Wall 1998, 103) que só a terra poderia dar, tornando o acesso à terra e à propriedade fatores determinantes. Por casa entendia-se um grupo doméstico alargado (parentes, criados, hóspedes), os meios de produção (terras, gado, casa, instrumentos de trabalho), mas também o controle dos mecanismos essenciais à sua reprodução enquanto casa, tanto no plano económico como no biológico e social. Entendida enquanto modelo ideal, a casa assegurava trabalho e pão. Frequentemente protegida por grandes portões, esta “casa-fortaleza” (Wall 1998, 102) operava numa lógica fortemente autárcica.

Nas famílias analisadas por Wall, todos trabalhavam para a subsistência da casa: homens, mulheres, crianças, velhos, parentes e criados; a todos competia alguma tarefa. O arranjo do casamento nestas famílias levava em consideração o património potencial apresentado, mas também uma característica fundamental: ser trabalhador ou trabalhadora, já que tanto homens como mulheres deveriam evidenciar essa qualidade. Esta sobredeterminação da atividade agrícola no quotidiano pode ser ilustrada através de casos, comos os de algumas lavradeiras, que deixavam os filhos pequenos em casa, sem vigilância, por vezes fechados num quarto, para ir trabalhar no campo (cf. Wall, 1998, 283) – note-se que no campo, sem disponibilidade para atender às crianças, os acidentes podiam ser mais graves. Neste ponto, também Sobral salienta a importância de se ser trabalhador: “Requer-se aos homens (casados) que sejam fortes, capazes, trabalhadores, com iniciativa, que saibam mandar e cumprir os seus deveres para com o seu núcleo familiar. Às mulheres, que sejam trabalhadoras, recatadas, limpas, trazendo a casa, o marido e os filhos (…) bem cuidados” (Sobral 1999, 23).

A par da relativa paridade nos campos, as tarefas no espaço doméstico dependiam sobretudo das mulheres, desde logo a preparação das refeições. Pina-Cabral refere, relativamente ao contexto que analisou, que os homens estavam proibidos de lavar pratos e de lavar roupa, coser e varrer o chão. Já nos campos, às mulheres estava interditado subir a árvores e podar videiras (Pina-Cabral 1989, 110), acrescentando que no trabalho agrícola os homens se ocupavam sobretudo com os produtos do ar (aqueles que cresciam acima do solo), como as vinhas e árvores de fruto, e as mulheres se ocupavam com os produtos da terra, ou seja, que cresciam dentro da terra ou rente a esta[9]. As mulheres cuidavam dos porcos e das galinhas, do milho, dos feijões, das batatas, das abóboras e do quintal (Pina-Cabral 1989, 110). A venda de alguns produtos em feiras e mercados foi permitindo às mulheres o acesso a dinheiro e a novas práticas de consumo.

Numa altura em que o mais relevante era assegurar a subsistência da casa, a limpeza e arrumação da mesma não constituíam preocupação maior. Todos os dias era preciso ir buscar água, acender o lume, cozinhar e lavar a roupa, mas numa casa de lavoura, tarefas agrícolas e tarefas domésticas misturavam-se, não permitindo uma arrumação esmerada. Diz-nos Wall que o modo como as mulheres repartiam o seu trabalho dependia da época do ano e das maiores ou menores exigências do trabalho agrícola. A lavradeira poderia trabalhar nos campos durante todo o dia e regressar ao meio-dia para fazer ou vigiar o jantar (almoço) ou, então, ficar de manhã em casa a trabalhar e ir para o campo apenas da parte da tarde. Tarefas como varrer e lavar a roupa eram tarefas asseguradas pelas moças e pelas criadas:

Eu e as minhas irmãs, éramos sete raparigas, estávamos cada uma à vez uma semana na cozinha. Acendíamos o lume, cozinhávamos e ajudávamos nos campos nas horas vagas. Não era só fazer em casa, mas também no campo. A gente trabalhava sempre, a fazer o que fosse preciso, roçar mato, o que calhasse. Se fosse preciso amarrar no arado, nós amarrávamos no arado e carregávamos estrume e tudo. Maria Albertina, camponesa abastada de Gondifelos, nascida em 1944 (Wall 1998, 119).

A preocupação com a limpeza da casa e a modificação de normas relativamente a esta questão, bem como a necessidade de um maior cuidado e acompanhamento das crianças, são transformações observadas por Wall nos anos 1980, o que indicia a penetração de valores urbanos e novas representações e idealizações sobre o espaço doméstico rural. Como as tarefas de arrumação e limpeza exigiam uma disponibilidade de tempo nem sempre existente, algumas famílias fizeram obras em casa ou construíram novas casas com duas cozinhas, uma mais arrumada e outra mais associada às tarefas agrícolas e à sujidade própria destas tarefas, a cozinha de lavoura, situada no rés do chão, a dar para o pátio, com escada interior para o resto da casa ou mesmo separada do edifício principal (Wall 1998, 220). Se a cozinha tradicional comportava uma grande chaminé, com laje de pedra onde se fazia o lume, vigas para o fumeiro, salgadeira, forno de pão e masseira para se amassar o pão (fazia-se pão uma vez por semana), a cozinha moderna de lavoura, onde se podia entrar de botas e deixar migalhas em cima da mesa, recorre a materiais de construção como os azulejos e dispensa o forno de pão, que passa a ser um produto de fácil acesso, não justificando o tempo de que é necessário dispor para a sua confeção. A cozinha de lavoura continua a ter lareira, mas tem também água corrente, luz elétrica, um fogão a gás, uma arca congeladora e uma televisão. A cozinha continua a ser o “coração do lar” (Wall 1998, 101), lugar por onde todos circulam e se reúnem.

Diz-nos Wall (1998) que até aos anos 1960 quase todos os alimentos consumidos provinham do que a casa conseguia produzir e transformar. A produção de cereais era uma atividade fundamental: nos anos 1940, uma casa rica era aquela cujas terras davam muito pão. O pão constituía, como já se referiu, a base da alimentação, sendo nesta região feito sobretudo de milho e centeio (broa). Só casas mais ricas juntavam uma pequena quantidade de trigo à massa do pão para o tornar mais branco. Assente num modelo idealmente autárcico, uma casa de lavradores ricos produzia um pouco de tudo: batata, feijão, vinho e linho, vindo da horta as couves, cenouras, cabaças, cebolas, nabos, favas. No estábulo havia uma ou mais juntas de bois usados no trabalho agrícola e uma ou duas vacas cujos vitelos eram vendidos. Porcos, galinhas (quase sempre para venda), coelhos e algumas ovelhas faziam parte da criação da casa de lavradores abastados (Wall 1998, 113). Um dos entrevistados por Wall, um camponês reformado, proprietário de três hectares de terreno, caracterizava assim a alimentação praticada:

A gente tinha quase tudo de casa. Tinha a farinha, ia-a moer, fazia-se a broa. Tinha vinho, couves, tinha batata, nabos, cenouras, alguma fruta para comer e tal. Comprava-se arroz e um bocado de bacalhau, e massa, e sardinhas em grande quantidade para salgar. Matava-se um porco gordo, depois dava aquele pingue para adubar a sopa e essa coisas. Nós cá tínhamos o hábito da carne de porco (Wall 1998, 116).

A sopa de hortaliça era presença regular na mesa: ao pequeno-almoço, almoço e jantar. Fazia-se com cebolas, hortaliça, batata e/ou feijão, um pouco de azeite ou de gordura de porco. Sopa e pão constituíam um pequeno-almoço habitual. Os trabalhos nos campos, iniciados bem cedo, implicavam ainda a preparação de uma merenda: pão com sardinhas ou um pouco de carne de porco e vinho. No resto do dia e dos dias comia-se da seguinte forma:

Ao meio-dia, ao “jantar”, come-se sopa e um prato: batatas cozidas com hortaliças, arroz ou massa sozinhos ou com feijão. Junta-se às vezes, sobretudo ao domingo, uma ração de carne de porco ou um ovo cozido para cada um, bacalhau desfiado ou sardinhas. À noite, come-se o resto da sopa com pão, ou engrossa-se a sopa com farinha de milho. Estas ‘papas de milho’ eram feitas da seguinte forma: “o milho era moído e depois, quando sobrava sopa, fazia-se as papas. Punha-se o resto da sopa ao lume e acrescentava-se água e depois deitava-se farinha de milho. Aquilo ficava grossinho. Deitava-se um bocadinho de vinagre para ficar mais picante. E mexia-se muito mexidinho nos potes à lareira. Era muito saboroso. A gente gostava muito. As melhores eram as papas da sopa de grelos, porque os grelos são mais bravos e dá mais sabor. Também se fazia muito papas de cabaça, com farinha de milho também” (Maria do Carmo, nascida em 1937). No Verão, como se vem tarde dos campos, come-se uma merenda a meio da tarde: pão, carne de porco ou peixe frito, fruta e vinho. Só os dias de festa e às vezes as refeições de domingo têm pratos “melhorados”: nesses dias em casa dos lavradores ricos, come-se carne, ovos ou bacalhau em maior quantidade. “Era mais ao domingo ou nos dias de festa que se fritava uma posta para cada um. Durante a semana o comer era uma coisa fraquinha”. Maria Albertina, nascida em 1944. (Wall 1998, 117).

Sublinhe-se, nesta descrição dos consumos quotidianos de uma casa abastada, que alguns produtos eram consumidos fartamente, enquanto outros eram reservados para venda, e que era raro comer-se carne: o frango, por exemplo, surgia à mesa sobretudo nos dias de festa (Wall 1998, 116). Frequentemente, criados, crianças e patrões comiam à mesma mesa, mas havia também casas em que se faziam duas mesas e se preparavam refeições diferentes para patrões e para crianças e criados. Em todo o caso, a distinção seria pouco frequente e era mal vista por parte de alguns lavradores, que entendiam ser necessário dar exemplo de sobriedade na alimentação e educar para a poupança. Note-se, no entanto, que na distribuição de alimentos se distinguiam uns membros de outros, sendo os patrões frequentemente beneficiados nessa distribuição.

O grupo doméstico que constituía a casa podia comportar parentes de diferentes gerações e condição, criados (que frequentemente dormiam com os filhos do casal) e também hóspedes – num dos casos observados no Rol de Confessados, o grupo doméstico tinha dezasseis pessoas (Wall 1998, 35). Esta autora destaca a existência de famílias múltiplas, ou seja, estruturas familiares compostas por duas famílias nucleares (cf. Wall 1998, 36), com dois casais a coabitarem na mesma casa, inseridos em núcleos de produção e consumo razoavelmente autónomos, onde era também possível encontrar duas cozinhas autónomas, cada uma a servir um dos casais e pessoal próximo.

A pluralidade de formas de vida familiar observada por Wall é assinalável, dando-nos igualmente conta das transformações por que essas famílias estavam a passar na década de 1980. É através de um olhar em que se caracteriza as famílias no passado, para depois as confrontar com a atualidade e com as mudanças ocorridas, que vamos conhecendo as transformações na casa, na configuração do espaço doméstico, no trabalho, nos papéis desempenhados por homens e mulheres, na relativa elisão da importância atribuída à terra e na crescente consolidação da importância do fator “capital”. O eixo que estrutura estas mudanças, percebidas por diferentes autores que trabalharam no norte de Portugal, tem dois pontos de fixação: o início da década de 1960 e o final da década de 1980. Razoavelmente estável ou obedecendo a mudanças lentas e de consequências diluídas no tempo – por exemplo, as implicações das reformas liberais oitocentistas na transmissão da propriedade ou a introdução de fertilizantes químicos no início do século XX –, o mundo rural mudou de forma acelerada a partir da década de 1960. A reorientação dos fluxos migratórios (trocando o Brasil por terrenos europeus, bem mais próximos, mas também acentuando a mobilidade interna), a industrialização, a entrada de capitais na agricultura, incentivos dados pelos fundos europeus, a mecanização, etc., conduziu a múltiplas mudanças, com repercussões no tipo de família e na organização da casa, que se tornam plenamente percetíveis no final da década de 1980.

Diz-nos Wall que até aos anos 1960 havia sobretudo três vias através das quais se fazia a mobilidade social nas freguesias que analisou: o seminário, o estabelecimento por conta própria (mercearias, tabernas, negócios de gado e de vinho) e a emigração para países distantes (Wall 1998, 172). Esta última via interessa-nos particularmente, já que permaneceu ativa nas décadas seguintes, registando fluxos muito significativos, sobretudo para França e Alemanha. Tratou-se inicialmente de uma emigração vincadamente masculina, tendo sido muitos os casos de mulheres casadas, com filhos que ficaram enquanto o marido partia. As mulheres que ficavam tinham de trabalhar arduamente para criar os filhos pequenos e cuidarem sozinhas do trabalho do campo e da casa, tal como o confirmam diversos autores (Wall 1985; 1998, Brettell 1991, Pina-Cabral 1989, Callier-Boisvert 2004). Por vezes, a mãe e os filhos mais velhos da mulher que ficava ajudavam nessas tarefas, reafirmando a unidade da casa. Afirmava-se, pois, um esforço solidário entre o emigrado e quem ficava, no sentido de juntar dinheiro para se renovar ou construir uma nova casa, ou para contribuir para o sucesso de um projeto de família que pretendia estabelecer-se como lavradeira, ou ainda para comprar terrenos agrícolas, que, entretanto, iam perdendo valor material e simbólico.

Tenha-se presente que o intenso fluxo migratório dos anos 1960 provocou uma enorme redução da mão-de-obra disponível. Assim, algumas terras, sobretudo as dependentes do trabalho de criados, deixaram de ser tratadas, passando a surgir no mercado de arrendamento a preços acessíveis, o que permitiu que algumas unidades domésticas aumentassem a área cultivada e a produtividade, ao mesmo tempo que explorações maiores permitiam um esforço acrescido de mecanização das atividades agrícolas. A maior demanda por produtos como o leite ilustra o incremento da mecanização e especialização em sectores específicos (cf. Wall 1998, 65). A acompanhar estes processos, os anos 1970 e 1980 foram marcados pela passagem de uma sociedade ainda caracterizada por instituições e valores tradicionais para uma sociedade semi-industrial, que incorporava valores de uma sociedade urbana moderna. Veremos florescer uma pequena indústria que permitirá o trabalho pluriactivo (conjugação do trabalho agrícola com o trabalho na indústria ou nos serviços), que será acompanhado por transformações nos papéis tradicionalmente desempenhados por homens e mulheres. As novas políticas públicas na área da educação, saúde, família e proteção social produziriam também os seus efeitos (cf. Wall 1998, 65).

Colette Callier-Boisvert, que durante cerca de três décadas manteve contacto intermitente com a vila de Soajo (Arcos de Valdevez), na nota introdutória ao livro onde coleta o que resultou dessa longa pesquisa, faz uma curiosa observação: “O que me impressionara em 1962 fora a nítida predominância das mulheres na população soajeira, em consequência de emigração” (Callier-Boisvert 2004, 12). Ao colocar a ênfase na emigração, que vê como uma “constante estrutural” (Callier-Boisvert 2004, 18), a autora procura dar conta de um problema e da sua resolução naquele local específico. O problema é o dos efeitos demográficos causados pela emigração; a solução ali encontrada passou pelo assumir de novas funções e responsabilidades por parte das mulheres casadas que não acompanharam os maridos emigrantes. Esta solução não é generalizável a outros contextos, mas no Soajo ter-se-á traduzido, também, em transformações profundas na gestão da casa. As mulheres ganharam evidente centralidade na organização do espaço rural e na sua reprodução, ao mesmo tempo que se descentraram da atividade doméstica:

O que impressiona no conjunto das atividades das habitantes do Soajo é o pouco lugar que aí ocupam as tarefas tipicamente femininas. As suas atividades principais são de substituição: substituição da besta de carga para o transporte, substituição do homem em certos trabalhos pesados dos campos que estão a seu cargo noutros sítios (…) etc. (Callier-Boisvert 2004, 42).

A relação entre o investimento no governo da propriedade, decorrente da ausência do marido, e a desvalorização do plano da vida doméstica, é apontada com clareza: “os cuidados pessoais da mulher e dos seus familiares (…) são reduzidos ao mínimo, não só devido à falta de interesse ou de educação, mas também porque ela substitui o chefe de família” (Callier-Boisvert 2004, 35).

Também no Soajo, à semelhança do que vimos com Karin Wall (1998), a um modo de vida comum não correspondia uma igualdade real; na década de 1960 observa-se uma vincada estratificação, que na década de 1990 se restringia já a duas categorias: os que cultivam terras próprias ou cedidas pelos ausentes e os que trabalham mediante uma retribuição (Callier-Boisvert 2004, 197). Para lá dos efeitos genéricos que o fenómeno migratório produz – modificação das condições de acesso à terra, monetização, investimento na educação dos filhos, entre outros – há no Soajo um efeito que importa anotar: “impulsionou a criação e a consolidação de laços de solidariedade entre as mulheres, que se organizaram como um grupo homogéneo, uma «sociedade» unissexo muito forte, com os seus direitos e a sua censura, que dirige de uma maneira subjacente a vida da comunidade” (Callier-Boisvert 2004, 45). O reforço de laços de solidariedade num contexto de perda demográfica, mostra como, em alguns casos, a emigração foi menos uma estratégia de mudança que de manutenção e desenvolvimento do grupo doméstico, quer dizer, da casa, ameaçada por dinâmicas impostas de fora, ou seja, por aquilo a que atrás chamámos processos de modernização – oportunidade de emprego fora da vila para quem não possuía terras, valores fundiários ameaçados pela crescente monetização, novas vias de mobilidade social etc.

José Manuel Sobral, no seu trabalho sobre uma aldeia e uma vila do distrito de Viseu, ocupa-se também dos efeitos nas atividades femininas decorrentes das emigrações. Neste caso, o foco é colocado na ideia de abertura para atividades tradicionalmente vedadas ou restringidas, num contexto fortemente marcado por uma divisão das esferas de atividade masculina e feminina. A experiência migratória realizada por mulheres é indissociável da assunção de certas tarefas, por exemplo, quando Sobral (1999, 221) nos diz que a única mulher que conduz um trator na aldeia é uma ex-emigrante. Por outro lado, tal como no Soajo, observa-se também a feminização de alguns trabalhos tradicionalmente masculinos, como a poda, em razão da escassez de mão-de-obra masculina (Sobral 1999, 222).

Ainda assim, note-se a persistência de alguns papéis bastante vincados, nomeadamente no caso das mulheres, que, além de cultivarem a terra, lhes cabe “todo o trabalho feminino na esfera da cozinha, de vestuário, da limpeza e do tratamento das crianças” (Sobral 1999, 87). Ideia que reforça mais à frente: “É a mulher quem cozinha, trata do abastecimento, da casa, das roupas do marido e dos filhos, lavando e costurando, cuidando dos doentes ou idosos, sendo ainda sobretudo ela quem lida diretamente com a escola (...). Os homens, geralmente, pouco fazem em casa” (Sobral 1999, 224).

Desvalorização da terra: pluriatividade, monetização, (des)continuidade

Da bibliografia consultada emerge uma ideia que importa pontuar: a do desacerto entre uma mudança estrutural, que reporta ao modo de produção, e a transformação do quadro relacional dentro da unidade familiar. É verdade que estas dimensões convergem, mas fazem-no a ritmos muito diferentes. De facto, se num primeiro momento, a base económica evolui de forma acelerada – mecanização, desequilíbrios demográficos provocados pela emigração, monetização, desvalorização da propriedade fundiária –, as consequências superestruturais dessas mudanças levam mais tempo a manifestar-se.

Apesar do crescimento dos índices de instrução escolar e da dedicação a atividades paralelas à agricultura, continuam a ser as mulheres a assegurar quase todas as tarefas domésticas, mesmo quando se constrói uma narrativa virtuosa da entreajuda: “O meu marido ajuda-me com as vacas. Claro que isso depende dos dias e do trabalho que há para fazer. Ele sabe fazer tudo. A única coisa que ele não sabe fazer, é a lida da casa” (Wall 1998, 273). Vivia-se, pois, uma aceitação resignada da dispensa dos homens na participação nas atividades domésticas, parecendo a mudança aceite orientar-se num único sentido, o da disponibilidade das mulheres para novas tarefas, como a poda da vinha, a condução de tratores ou mesmo a lavra da terra. Diz Joaquim, um dos entrevistados: “A minha mulher sabe fazer tudo o que eu faço [...]. Em casa, é que é mais trabalho de mulher mas também acho que é preciso saber. Eu é que nunca tive jeito para isso, nem paciência nem jeito” (Wall 1998, 273). No entanto, embora de forma mais lenta, as mudanças vão-se tornando visíveis.

Começa a observar-se a presença de homens na preparação das refeições e a participação masculina nas atividades domésticas passa a ser aprovada socialmente: “O António, operário da Mabor [casado com uma operária fabril] ora no turno da noite ora no da manhã ou da tarde, é quem prepara o almoço para ele e para os filhos que andam na escola” (Wall 1998, 77), porém, quem se considera responsável pelo “brio da casa” é a sua mulher. Se no passado homem que levasse o tacho ao lume era mal visto, nos anos 1980 começamos, pois, a vislumbrar o seu apoio em algumas das tarefas domésticas. Em todo o caso, o quotidiano das mulheres que Wall estudou, continuou a ser árduo. Ainda que conciliassem diferentes tipos de atividade, continuaram a assegurar quase todas as tarefas domésticas.

Nas freguesias observadas por esta autora, a aposta que alguns lavradores fizeram na mecanização da produção leiteira não impediu a transferência massiva de trabalhadores do sector rural para o sector industrial. A monetização que daqui decorreu fez diminuir o número de camponeses pobres, para o mesmo efeito contribuindo, também, o crescimento de apoios estatais que garantiam maior proteção social. A esta transformação das condições materiais juntam-se os efeitos de uma vida democrática: aceitação das ideias de igualdade e mobilidade social através da educação, bom como a modificação do estatuto da mulher e da criança, conduziram a novas aspirações sociais (Wall 1998, 327).

A necessidade e desejo de novos consumos dão ao dinheiro uma centralidade efetiva, retirando sentido ao princípio ideal de autossuficiência da casa. A terra não é já o pivot que organiza a reprodução social, e os filhos deixam de valorizar o vínculo à terra. Se no passado as famílias de lavradores abastados tinham procurado beneficiar um filho na herança por forma a assegurar a continuidade da casa, na década de 1980 privilegiava-se uma repartição equitativa da herança, ainda que se continuasse a procurar “segurar” um dos filhos à terra. A livre escolha do cônjuge, a possibilidade da rutura conjugal, horários de trabalho menos intensivos, férias, são aspetos que fazem parte das mudanças ocorridas nas freguesias inscritas nos ambientes semi-industriais analisadas por Karin Wall. Observa-se, pois, uma crescente tendência para a conjugalização familiar, com o desaparecimento de criados e a saída de muitos dos filhos. Trata-se de uma tendência geral, sobretudo em contextos periurbanos, que leva também ao desaparecimento dos caseiros (cf. Pina-Cabral 1989, 49).

Se a experiência migratória introduzira o fator “mobilidade”, na viragem da década de 1980 assiste-se à sua banalização, com a circulação para fora dos limites da freguesia, feita com recurso a automóvel próprio e de acordo com a atratividade das sedes de concelho ou das grandes e médias cidades, criando uma nova relação com o espaço e também com o tempo – por exemplo com a introdução de fatores como o lazer e novas modalidades de consumo. O valor da autossuficiência, que fazia da casa uma unidade de produção e de consumo, dá lugar ao mercado, que reorienta tanto a produção como o consumo Silva (1998, 119). Como salienta Pina-Cabral, reportando-se ao seu trabalho de campo no noroeste rural português, os camponeses passaram a depender muito mais de mercadorias compradas, o que os tornava mais dependentes de fontes alternativas de rendimento (Pina-Cabral 1989, 40). As modificações ocorridas convergem para a ideia de “modernidade”, nos seus traços fundamentais: abertura a espaços integrados e plurais; regulação do trabalho por um tempo cronométrico; extensão e densificação dos mercados, com implicação na relação entre oferta e procura; recomposição das relações de poder — tanto dentro das comunidades (com reflexos mais ou menos matizados nas relações etárias e de género) como fora destas, nomeadamente com a redução de relações estruturalmente desiguais, como as do patrocinato tradicional ou o peso crescente de políticas estatais ou europeias.

Conclusão

Podemos ver a modernidade como um processo que se esgotou, como anunciou Jean-François Lyotard (1989) antes de outros, ou acreditar que vimos assistindo, nas últimas décadas, a uma evolução de paradigma, como argumentaram autores como Bauman (2004). A favor da primeira tese, temos um entendimento da modernidade como um processo singular, situado numa temporalidade histórica precisa, com uma agenda igualmente precisa e situada. Em contraponto, convoca-se um entendimento da modernidade como um conceito menos preciso, algo difuso, que reporta a fronteiras históricas que se distendem pela acumulação de diferentes camadas de fatores, capazes de integrar o local numa espacialidade que se expande exatamente na medida em que se ajusta a cada contexto histórico e cultural. Este segundo entendimento é o que melhor se ajusta ao que aqui procurámos fazer: sinalizar um conjunto de transformações ocorridas no mundo rural do norte de Portugal, lendo-as à luz de uma mundividência indissociável da modernidade. Transformações que pudemos situar entre as décadas de 60 e 80 do século XX, bastante tardias, naturalmente, quando pensamos na emergência da modernidade europeia. Neste sentido, as transformações que sinalizámos com base nas monografias que fomos convocando, podem ser vistas como um caso particular de um fenómeno geral. A ideia da existência de múltiplas modernidades, habitualmente usada para dar conta do que aconteceu em territórios colonizados, que passaram por processos específicos de entrada na modernidade, aplica-se igualmente aqui. Não se trata, bem entendido, de postular uma similitude entre contextos coloniais ultramarinos e espaços rurais metropolitanos, mas de sublinhar, justamente, a diversidade de tempos e de processos a que é necessário atender para perceber o modo como a modernidade se constituiu como paradigma não apenas global, mas claramente hegemónico.

O que os trabalhos de pesquisa de terreno, levados a cabo no norte de Portugal na década de 1980 nos revelam, é o modo de confluência no mesmo ponto de processos distintos, uns associados à organização do trabalho, outros à economia doméstica, outros ainda ao papel da mulher e à organização da família. Olhando a esta distância, pudemos perceber como esses processos colocam sobre tensão a relação entre a base material que assegurava a reprodução social daquelas comunidades – desigual posse da terra, sobreposição entre unidade de produção e de consumo, baixo índice de especialização profissional – e as consequência da profunda transformação do país, que embora originada fora da comunidade rural stricto sensu, se lhe impunha – incorporação de maquinaria agrícola, apelo à transferência de mão-de-obra para a industria nacional e para a emigração, alteração dos padrões de consumo. Uma forma sintética de percebermos essa tensão é considerá-la nas transfigurações que impôs às coordenadas espaço/tempo.

Consideremos, brevemente, a transformação da paisagem, tema que ao remeter-nos para a longa duração contraria a ideia de que estaríamos perante comunidades estáticas, aprisionadas numa espécie de história cíclica, destituída de mudança. Basta ver como a introdução, no século XVII, de um cereal de grande sucesso transformou a paisagem rural, sobretudo no Noroeste, como bem ilustra o turisticamente chamado «Tibete Português», a aldeia de Sistelo, com os seus socalcos roubados à serra e complexo sistema de irrigação. Transformação igualmente profunda da paisagem resultou da introdução de fertilizantes químicos na agricultura no início do século XX, o que conduziu a um significativo recuo das zonas de mato, até então indispensáveis ao gado miúdo, que assegurava a adubagem dos campos. Foram estas e outras transformações na paisagem, e correspondentes reajustes nos modos de vida, que se acumularam, criando o palimpsesto de sinais, de representações e de práticas com que se confrontaram os investigadores na década de 1980. Foi sobre essa paisagem transformada que se acumulou uma nova camada, desta vez desenhando condições que levariam a uma acentuada urbanização dos espaços rurais e a uma organização dos campos mais orientada para o mercado que para o autoconsumo.

Exercício semelhante poderia ser feito em relação ao tempo, que passa a organizar-se de forma diferente, nuns casos pela combinação do trabalho cronometrado, próprio da atividade industrial, e o tempo que sobra e se dedica à atividade agrícola, noutros casos, pela relação entre a continuidade de uma temporalidade local e doméstica e o tempo gerido pelo emigrante à distância, que sempre que é vencida reorganiza a temporalidade da família, às vezes de toda a aldeia. Estas diferentes experiências de tempo e espaço percebem-se ainda de forma mais expressiva quando deixamos a paisagem e nos concentramos nos atores. Esse é o foco privilegiado nas monografias que revisitámos, e trata-se de uma lente que nos mostra as transformações em ato: a importância da mobilidade no alargar dos horizontes de possibilidades, nomeadamente através da emigração, mas também a outra face do mesmo fenómeno, ou seja, o modo como o local deixou de responder a novos padrões de reprodução social. As mulheres ocupam um lugar chave em tais processos, seja quando permanecem no território assumindo o papel de gestoras exclusivas da propriedade familiar, seja quando vão trabalhar fora de casa, conquistando, então, uma autonomia financeira que até ali não tinham conhecido.

Concluímos com a casa, categoria absolutamente determinante para compreendermos o que mudou e o que permaneceu, quer a consideramos no seu sentido amplo – que envolve as terras, as memórias, as estratégias de casamento e de transmissão da propriedade – quer a consideremos num sentido mais restrito, aquele que remete para o lar. Na verdade, um dos sentidos mais estruturais da mudança de que vimos falando, decorre, justamente, da redução do sentido amplo da casa. O crescente desfasamento entre o que se consome (ou deseja consumir) e o que se produz na casa,sinaliza essa transformação. À casa rural, muitas vezes descuidada, como vimos, sucede a casa que se aproxima dos padrões urbanos. Se a primeira era habitada por um grupo doméstico cuja sobrevivência e reprodução dependia da terra, a segunda tende a ter menos habitantes, e mesmo os que ficam passam a depender em menor grau da atividade agrícola. Do mesmo modo, se a primeira se estruturava em torno de uma figura masculina, marido e pai a que cabia organizar o trabalho, a segunda pode adquirir diferentes formas, em alguns casos com a mulher assumindo o papel de maior destaque. Em suma, observámos sinais que configuram maior mobilidade geral; menor peso de uma ordem assente no status; afirmação da mulher no espaço público; resistência e oposição efetiva à perpetuação de situações de desigualdade; incremento da escolarização. Sem pretendermos ser exaustivos, estes são indicadores seguros da chegada daquilo a que habitualmente chamamos “modernidade”. O que a partir dela se constrói é ainda campo de debate, que não cabe nestas linhas, evidentemente.

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