Artigos
Recepción: 29 Octubre 2023
Aprobación: 30 Abril 2024
DOI: https://doi.org/10.4000/126rj
Resumo: A publicação recente de obras acadêmicas sobre desaparecimento de pessoas no Brasil contemporâneo demonstra que pesquisadores de diferentes disciplinas têm se engajado de modo crescente com o fenômeno, em contraste com a escassez de literatura especializada sobre o tema que marcou a primeira década dos anos 2000. Este ensaio bibliográfico é uma reflexão sobre os movimentos analíticos que artigos, teses e livros sobre desaparecimento de pessoas no Brasil pós-ditadura vêm realizando. Inicialmente, os poucos trabalhos sobre o tema tratavam de descrever e tentar definir o desaparecimento em sua especificidade fenomênica. Mais recentemente, porém, teses e livros vêm se desprendendo do desaparecimento como fenômeno empírico particular em prol da assunção do termo “desaparecimento” como categoria analítica. Essas obras exploram o termo como ferramenta capaz de reunir, para fins analíticos, fenômenos tão diversos quanto a escravidão, a não-identificação de corpos, o encarceramento em massa e a emigração, entre outros. O ensaio comenta esse movimento mais recente e o interpela quanto a seus possíveis efeitos.
Palavras-chave: desaparecimento de pessoas, literatura academica, brasil, categoria analítica.
Abstract: The recent publication of academic works on the disappearance of people in contemporary Brazil has shown that researchers from different disciplines have become increasingly interested in exploring the phenomenon, in contrast with the scarcity of academic studies on the subject in the 2000s. This bibliographical essay is a reflection on the analytic movements made by more recent articles, dissertations and books on the disappearance of people in post-dictatorship Brazil. Initially, the few academic works on the subject focused on describing and trying to define the phenomenal specificity of disappearance. More recently, though, dissertations and books have moved away from treating disappearance as a particular empirical phenomenon in favour of using the term as an analytic category. These works explore the term “disappearance” as a tool capable of threading together, for analytic purposes, phenomena as diverse as slavery, the non-identification of bodies, mass incarceration and emigration, among others. The essay comments on this recent movement and questions its possible effects.
Keywords: missing persons, academic literature, brazil, analytic category.
Neide fixa seus olhos castanhos profundos nos meus; linear e penetrante. De repente estou nervoso. “Você está aqui agora, mas se você desaparecesse aqui, agora, ah, meu filho...”, ela ri, pouco à vontade, mas cheia de assertividade. Seu olhar desvia, o foco se dissipa. Um dia, em 2008, o filho de Neide, Felipe, saiu pela porta de casa. Disse que ia devolver uma motocicleta com um amigo. Nunca mais se ouviu falar dele. (Denyer Willis 2022, 1, destaque no original)[2]
Com essa cena, acompanhada pela fotografia de Neide vestindo uma camiseta com o retrato de Felipe margeado pela palavra DESAPARECIDO, Graham Denyer Willis abre “Keep the bones alive: missing people and the search for life in Brazil”, segunda monografia do etnógrafo político ambientada no Brasil[3]. Lançada em 2022, “Keep the bones alive” é uma etnografia sobre o desaparecimento de pessoas no país que compartilha o tema e o recorte nacional com duas outras obras publicadas quase simultaneamente: “Disappearances and Police Killings in Contemporary Brazil: the politics of life and death” (Villenave 2022) e “Governar os mortos: necropolíticas, desaparecimento e subjetividade” (Franco 2021), ambas produtos das teses de doutorado dos autores.
A publicação próxima de três obras que tematizam o desaparecimento de pessoas no Brasil contemporâneo chama atenção. Há quinze anos, quando iniciei pesquisa etnográfica sobre a questão, a escassez de estudos acadêmicos era um dos poucos dados disponíveis sobre desaparecimento de pessoas no país, ao lado do caráter rarefeito de dados estatísticos, dispositivos legais e políticas públicas disponíveis para o enfrentamento do problema. “Desaparecimentos forçados de pessoa” em contextos ditatoriais, popularmente conhecidos como “desaparecimentos políticos”, há muito eram objeto de análises sistemáticas por parte principalmente de historiadores, mas também de antropólogas como Catela (2001)[4]. Vale lembrar que a obra de Catela, que trata dos desaparecimentos políticos da ditadura argentina, cunhou a expressão “morte inconclusa”, bastante citada por estudiosos do tema dada sua capacidade descritiva diante do caráter escorregadio do desaparecimento[5].
Não obstante a notoriedade e frequência de pesquisas como a de Catela, trabalhos que deslocassem a atenção para a ocorrência de desaparecimentos fora dos marcos de regimes totalitários, buscando analisar aquilo que viria a ser designado “desaparecimento civil” ou que não fosse classificável como “desaparecimento forçado de pessoa”, eram muito exíguos. Pensando a ocorrência do fenômeno no Brasil, então, trabalhos com esse teor pareciam inexistentes, o que é documentado como um refrão em todas as teses e dissertações sobre o tema que começaram a surgir em meados da década de 2000.
A principal motivação deste ensaio é o contraste entre a escassez de trabalhos que encontrávamos tempos atrás e a constatação atual de que pesquisadores de diferentes disciplinas, atuando inclusive no exterior, têm se engajado de modo crescente com o desaparecimento de pessoas no país. Partindo desse contraste, trato da produção acadêmica sobre a questão que teve lugar nas Ciências Sociais e Humanas na última década e meia, buscando iluminar e interpelar o sentido principal em que ela tem caminhado atualmente. Não pretendo realizar uma revisão sistemática de literatura, e sim refletir sobre um recorte significativo de trabalhos que se esforçaram por construir o desaparecimento de pessoas no Brasil contemporâneo como objeto de estudo.
A partir desse recorte, argumento que trabalhos sobre o tema têm realizado mais recentemente um movimento teórico-conceitual particular: desprendem-se do desaparecimento como fenômeno empírico específico e caminham para a assunção do termo como categoria analítica. A etnografia de Denyer Willis é o principal emblema desse movimento. A obra toma “desaparecimento” como ferramenta conceitual para dar conta de uma racionalidade política que não operaria, empiricamente, apenas em situações em que o termo é mobilizado como categoria êmica. Em contraste com as primeiras produções sobre o fenômeno, caracterizadas por múltiplos esforços para identificar e descrever sua especificidade, trabalhos como o de Denyer Willis optam por acionar “desaparecimento” como categoria a ser explorada não em sua particularidade, mas, ao contrário, em sua capacidade de costurar, para fins analíticos, fenômenos tão diversos quanto a escravidão, a não-identificação de corpos e o encarceramento em massa. Reflito sobre essa opção e levanto algumas questões sobre seus efeitos.
O fio da meada
O trabalho pioneiro sobre a ocorrência de desaparecimentos de pessoas no Brasil fora dos marcos históricos da ditadura foi a tese de Dijaci Oliveira (2007), que analisa as percepções que familiares de desaparecidos, delegados de polícia e gestores de políticas públicas têm sobre o fenômeno. Seu argumento principal é o de que a família é a principal instância produtora de desaparecimentos no país, em função sobretudo de hierarquias, violências e conflitos de gênero e geração que lhe atravessam. A contribuição pela qual o trabalho é mais lembrado, não obstante, está na delimitação conceitual proposta. Diante da polissemia da noção de desaparecimento e da heterogeneidade de situações que ela abarca, Oliveira propõe a categoria “desaparecido civil”, que entende capaz de diferenciar o conjunto mais vasto e variado de casos de desaparecimento que lhe interessam tanto dos “desaparecimentos forçados” quanto daqueles em que se sabe o que ocorreu com o desaparecido, como catástrofes ambientais e casos comprovados de fuga. Por “desaparecido civil”, Oliveira entende
uma pessoa que saiu de um ambiente de convivência familiar, ou de algum grupo de referência emocional-afetiva – como uma roda de amigos –, para realizar qualquer atividade cotidiana, mas não anunciou sua intenção de partir daquele lugar e jamais retornou. Sem motivo aparente, sumiu sem deixar vestígios. Nesse caso, colocam-se ao menos três problemas imediatos: “saber o que ocorreu”, “saber o que fazer”, “saber a quem procurar” (Oliveira 2012, 11).
No mesmo ano da defesa da tese de Oliveira, outro trabalho se tornaria incontornável para interessados no tema: a dissertação de Fábio Araújo (2007) sobre as relações entre luto, sociabilidade e política a partir da chacina conhecida como “caso Acari”. O caso é marcado pelo desaparecimento dos corpos de onze jovens e pelo luto de suas mães, vivido em meio à difícil elaboração da denúncia pública do caso, na forma do que o autor designa “práticas de luto reivindicativas de justiça”. O trabalho, premiado pela Associação Brasileira de Antropologia (ABA), analisa a dimensão moral e os idiomas de ação da luta das “Mães de Acari”, jogando luz sobre a importância do universo simbólico da maternidade para a justificação e legitimidade pública das demandas dessas mulheres diante do que ocorreu com seus filhos[6].
Mães de desaparecidos estiveram também no centro da dissertação de Sandra Rodrigues (2008), que investigou os impactos gerais e os efeitos emocionais do desaparecimento de um(a) filho(a). Diferentemente da dissertação de Araújo (2007), que ilumina a dimensão pública do luto das “Mães de Acari”, o trabalho de Rodrigues (2008) analisa narrativas e emoções individuais de mães que não são militantes, interessando-se sobretudo pelos efeitos do desaparecimento em relações intrafamiliares e no ambiente doméstico. A autora parte de um recorte etário específico e entrevista exclusivamente mães de crianças desaparecidas. Pouco depois, Marcelo Neumann (2010) também partiu de recorte etário, em tese que busca compreender as atitudes dos envolvidos em desaparecimentos de crianças e adolescentes a partir de prontuários de atendimento do Projeto Caminho de Volta[7]. A maior parte do trabalho, contudo, é dedicada a refletir sobre o conceito de desaparecimento e, nos termos do autor, suas “determinações sociais”.
No ano seguinte à defesa de Neumann (2010), defendi tese também sobre o desaparecimento de pessoas no Brasil (Ferreira, 2011). O trabalho consistiu em uma etnografia interessada em duas frentes de produção e gestão burocrática do fenômeno: a administração de casos individuais pela Polícia Civil do Rio de Janeiro e a (tentativa de) construção do desaparecimento como um problema social, a partir da Rede Nacional de Identificação e Localização de Crianças e Adolescentes Desaparecidos (ReDesap)[8]. Anos depois, incorporei ainda uma terceira frente à pesquisa iniciada na tese: a administração de casos de crianças e adolescentes por um serviço de assistência social (cf. Ferreira, 2019). Minha inserção em campo se deu sempre a partir de repartições públicas e minhas questões centrais giraram em torno de práticas estatais voltadas para o enfrentamento do desaparecimento de pessoas no Brasil.
Em 2012, Fábio Araújo retomou e ampliou o estudo iniciado em sua dissertação e defendeu tese sobre as experiências e o protagonismo político de familiares de vítimas de desaparecimento forçado no Rio de Janeiro contemporâneo, destacando a criação de comunidades morais, emocionais e políticas que se alicerçam no sofrimento, na dor e no terror vivido sobretudo pelas mães de desaparecidos. Entre outras contribuições, a tese deixou evidente a impossibilidade ou, no mínimo, a complexidade de se depurar tipos de desaparecimento – isto é, de supor que alguns casos são essencialmente desaparecimentos “civis”, nos termos de Oliveira (2007), e outros, “políticos”. O desaparecimento forçado, mostra Araújo (2012), é um “caso particular do possível” dentro da problemática geral dos desaparecimentos, mas numa relação mais complexa do que o simples vínculo parte/todo. O que isso indica é a igual impossibilidade de se depurar os próprios tempos ou regimes em que vivemos e que dão contexto aos desaparecimentos, já que a violência policial sistemática evidencia que há guerras em tempos “normais” e desaparecimentos forçados em regimes democráticos.
Anos depois, a tese de Eduardo Leal (2017) trouxe contribuições fundamentais para o estudo do tema, a partir de uma abordagem que toma o desaparecimento como problema moral e político e interroga os modos como ele é governado e vivido como experiência social no Brasil. A tese analisa com muita originalidade a emergência histórica e as dinâmicas sociológicas da militância de familiares de desaparecidos no país. Ademais, demonstra que, além da militância, também os modos de subjetivação da experiência de ter um filho desaparecido, a construção narrativa de “casos” de desaparecimento, além dos regimes de verdade e das expertises de mediadores envolvidos com a questão são todos “formas de governo”, nas quais se localiza o poder de definição do fenômeno, sobretudo em face de seu caráter escorregadio, heterogêneo e multifacetado. Dialogando fortemente com o trabalho de Leal (2017), no ano seguinte Paula França (2018) defendeu tese centrada na denúncia pública de casos de desaparecimento. A autora demonstra que a denúncia se espraia por (e por vezes até transcende) diferentes espaços institucionais, dado que os familiares demandam reconhecimento de seu sofrimento tanto em repartições policiais e no sistema de justiça, quanto através de meios de comunicação de massa. Ainda, dedica-se a mapear as gramáticas morais e políticas das denúncias e a analisar a intercessão dos chamados “críticos sociais” na elaboração das mesmas.
Defendidas no intervalo que separa Oliveira (2007) e França (2018), as teses e dissertações acima recuperadas foram fundamentais para o estabelecimento da discussão sobre desaparecimento de pessoas no Brasil contemporâneo nas Ciências Sociais do país. Juntas, deram contornos iniciais à trajetória ainda curta, mas já significativa, da abordagem qualitativa da questão por pesquisadores brasileiros. Evidência disso são algumas questões que comparecem em todos os trabalhos citados, ainda que tratadas de modo distinto em cada um, e que ainda se revelam centrais para a compreensão do fenômeno. A primeira delas, já anunciada, é a definição mesma de desaparecimento, abordada por todos os autores como questão marcada por ausências, faltas e/ou escassez: a falta de dispositivos legais, a ausência de conceituações sociológicas e a escassez de estudos sistemáticos que proponham definições precisas do que é o “desaparecimento de pessoas”, seja como caso individual, seja como problema social.
Diante dessas faltas, enquanto Oliveira (2007) elabora uma definição e propõe o uso da expressão “desaparecimento civil” como categoria que seria capaz de demarcar a especificidade do fenômeno, os demais trabalhos exploram a polissemia do termo e as muitas definições possíveis que emergem em diferentes experiências, espaços e práticas sociais, domésticas ou institucionais. Sublinham, assim, a heterogeneidade de situações socialmente designadas como desaparecimento no Brasil. O rendimento próprio dos trabalhos que são etnográficos (Araújo 2007, 2012; Ferreira 2011; Leal 2017), aliás, decorre, em parte, da capacidade heurística de pesquisas multissituadas, que parecem especialmente pertinentes diante da dispersão do “poder de definição do desaparecimento de pessoas” (Leal 2017, 12) e de seu caráter multifacetado. Nelas, os autores seguem seus interlocutores e os agentes humanos e não-humanos envolvidos na definição, na gestão, na subjetivação e/ou na incipiente “inscrição política” (cf. Leal 2017) do desaparecimento no país. Mesmo nos demais trabalhos, não obstante, a questão da definição toma parte considerável dos esforços dos autores. Por caminhos metodológicos variados, todos dedicam-se, por um lado, a desfiar o desaparecimento como fenômeno social, decompondo sua variedade interna e explicitando os diversos tipos de acontecimento que são igualmente designados pelo termo. Por outro, todos também estabelecem relações entre essa variedade interna do fenômeno e as muitas incertezas e dificuldades práticas, éticas e políticas que caracterizam tanto a experiência de ter um filho(a) desaparecido(a) e/ou de militar na causa quanto a administração do problema, seja com investigações policiais ou na gestão dos poucos serviços e políticas públicas disponíveis para seu enfrentamento.
Os esforços em torno da definição de desaparecimento, vale lembrar, não tomam apenas as pesquisas acadêmicas. Também nas arenas públicas, em instâncias das mais às menos formalizadas, são intensos os debates e disputas em torno do que é desaparecimento e de como se deve conceituá-lo. Não à toa, algo que caracteriza o conjunto de trabalhos aqui recuperado é o fato de muitos de seus autores terem também circulado por instituições, eventos e movimentos devotados à causa, ocupando ativamente os papéis de “críticos sociais” (França 2018) ou “especialistas” (Ferreira 2015).
Outra questão que comparece repetidamente nos trabalhos são os diferentes, mas sempre presentes, papéis do Estado nos casos de desaparecimento no Brasil. O Estado, mostram os estudos, é agente causador dos “desaparecimentos forçados”, mas também têm agência decisiva nos demais desaparecimentos, seja por sua omissão diante de casos que já ocorreram, seja por não prover serviços e políticas de prevenção efetivas para evitar novas ocorrências. Analisando o trabalho policial (Oliveira 2007, Ferreira 2011), documentando a dor e o terror (Araújo 2007, 2012), compreendendo as condições de emergência da militância de familiares (Leal 2017) ou inventariando os serviços e programas públicos disponíveis (França 2018), todos esses primeiros estudos sobre o tema tratam da relação mutuamente constitutiva entre desaparecimento e Estado no Brasil. Ademais, mostram como as demandas por reconhecimento de familiares de desaparecidos e seus repertórios de ação e denúncia tanto no âmbito dos casos individuais de seus filhos quanto no engajamento coletivo em arenas públicas se voltam para o Estado, tomando-o como fonte última (embora falha) de justiça. Cartas ao presidente da República ou a órgãos públicos diversos, projetos de lei de iniciativa popular, visitas regulares a repartições, confecção de cartazes caseiros com fotos dos desaparecidos para distribuição pela cidade e tentativas persistentes de pressionar representantes políticos compõem, como mostram os trabalhos, uma certa “política do ordinário” (Das 2020) levada adiante com tenacidade pelos familiares, mesmo aqueles que não se envolvem com a militância na causa[9]. Essa política volta-se, em última instância, para o Estado, tanto como sistema de instituições (de polícia, justiça, defesa da infância e assistência social) quanto como ideia em que se projetam desejos de justiça, reparação e reencontro com os desaparecidos[10].
Duas outras questões que se repetem nesses estudos são, ainda, a importância dos “casos” como forma narrativa e fórmula político-moral presentes tanto na experiência, na denúncia e no governo do desaparecimento como problema social, quanto em sua construção e análise como problema sociológico; e, por fim, o gênero como marcador social da diferença decisivo, tanto nas formas de subjetivação da experiência do desaparecimento no interior de famílias quanto na legitimação da militância na causa. Não à toa, os trabalhos criam formas gráficas para apresentação dos casos que permitam suas análises (Ferreira 2011), organizam-se integral ou parcialmente em torno de alguns casos selecionados (Araújo 2007, 2012; Leal 2017; França 2018) e debatem a relevância da elaboração e posterior dessingularização de casos para a denúncia pública do desaparecimento como problema social (Ferreira 2011; França 2018). Quanto ao gênero, não há nenhum trabalho que não mencione o protagonismo das mães e do próprio universo simbólico da maternidade não só para a militância na causa, mas também no enfrentamento íntimo e muitas vezes solitário do desaparecimento de um filho. Além disso, representações de gênero operam fortemente na trajetória burocrática dos casos, principalmente no tratamento que lhes é dado por agentes e instituições policiais (cf. Oliveira 2007; Araújo 2007; Ferreira 2011).
Costuras e interrogações
Além dessas questões comuns, há um refrão que caracteriza esse conjunto de trabalhos que deu os primeiros contornos à discussão acadêmica sobre desaparecimento no Brasil contemporâneo: como um coro, todos repetem afirmações sobre a escassez de estudos sistemáticos do tema. Isso contrasta drasticamente com o que pode ser lido em produções mais recentes. O estudo comparativo de Paola Díaz e Jussara Freire (2023), por exemplo, já em suas primeiras páginas declara que “nos casos de Brasil e México, tem havido pesquisas extensivas sobre mortes e desaparecimentos em massa na contemporaneidade” (Díaz e Freire 2023, 4, tradução livre).
Além dessa afirmação, Díaz e Freire (2023) realizam outros dois movimentos que importa destacar: buscam identificar as chaves conceituais recorrentes em trabalhos sobre o tema e constroem o desaparecimento como objeto de estudo por meio de sua associação com outro fenômeno empírico. Acerca de chaves conceituais, as autoras afirmam que “biopolítica”, “necropolítica”, “thanatopolítica”, “estado de exceção” e “vida nua” são as mais mobilizadas nas pesquisas que tomam o desaparecimento como objeto. Já quanto ao que seria exatamente esse objeto, o definem como uma dobradiça que articula dois fenômenos: “morte e desaparecimento em massa em democracias necropolíticas”, anunciado já no título. A atenção das autoras a chaves conceituais e a construção do desaparecimento como objeto por meio de sua costura com outro fenômeno não são movimentos exclusivos de seu estudo, porém. Antes, são eixos centrais do que vejo como um movimento teórico-conceitual característico da produção mais atual sobre o tema, feito de modo exemplar na etnografia de Denyer Willis (2022). Nesse começo dos anos 2020, obras de Ciências Sociais e Humanas têm caminhado no sentido de elaborar teoricamente os desaparecimentos de pessoa no Brasil pós-redemocratização não como um fenômeno empírico específico, mas como uma “racionalidade política” (Denyer Willis 2022) ou uma “lógica necrogovernamental” (Franco 2021) paradigmática. Vigente no Brasil de modo perene, essa racionalidade se manifestaria em diferentes processos sociais e momentos históricos do país.
Caminhar nesse sentido tem permitido que trabalhos mais atuais como os de Franco (2021), Villenave (2021) e Denyer Willis (2022) reúnam ditadura e redemocratização, democracia e estado de exceção, além de escravidão, pacificação no Brasil colônia e as Unidades de Polícia Pacificadora (UPP) do Rio de Janeiro, tirando as devidas consequências analíticas desse tipo de junção. Ademais, tem permitido também que essas obras costurem, usando justamente a noção de “desaparecimento” como ferramenta para isso, um conjunto variado de fenômenos empíricos vistos ora como expressão, ora como materialização, ora ainda como emblema dessa racionalidade política. Exemplos desse tipo de costura são a junção entre desaparecimento político na ditadura e o fenômeno da morte não-identificada (Azevedo 2018, Franco 2021); entre execuções sumárias de jovens negros em favelas e periferias, a chamada “guerra às drogas” e casos de desaparecimento (Villenave 2021); e, como dito, entre assassinatos em massa e desaparecimentos (Díaz e Freire 2023). A costura mais emblemática, contudo, encontra-se em Denyer Willis (2022), que reúne casos de desaparecimento como o de Felipe, o jovem sobre quem a interlocutora do autor fala no trecho citado na abertura desse ensaio; desaparecimentos forçados ocorridos na ditadura; rupturas de laços sociais provocadas pela escravização de negros e negras nos tempos coloniais; o fenômeno do encarceramento em massa no Brasil contemporâneo; e a gestão da vida e da morte pelo Primeiro Comando da Capital (PCC).
Especificamente as obras de Denyer Willis (2022) e Villenave (2021), publicadas em língua inglesa e fora do Brasil, consistem em trabalhos que, destinados a públicos estrangeiros, não apenas caminham na direção de pensar o desaparecimento como “racionalidade política”, mas, mais que isso, buscam explicar o Brasil a partir dessa racionalidade[11]. O Brasil, ali, não é apenas contexto ou escala. Antes, emerge também como unidade de análise. Também no livro de Franco (2021), um dos propósitos centrais é descrever a “subjetividade contemporânea” vigente no Brasil, o que é feito a partir da análise da lógica necrogovernamental do desaparecimento. O livro toma dispositivos de desaparecimento como “paradigma de compreensão de transformações subjetivas” (Franco 2021, 98), que permitiria entender como o governo da morte e dos mortos é decisivo para a produção de certa “melancolização generalizada” (p. 133) no Brasil.
Essas obras têm escolhido explicar o Brasil iluminando não só o desaparecimento como racionalidade política, mas também as forças e formas de resistência acionadas diante dela, no que Denyer Willis (2022) chama de “busca pela vida”, Franco (2021) de “rebelião”, e Díaz e Freire (2023) de “práticas de valorização e cuidado da vida” diante do que designam “sistemas contemporâneos de necropolítica que desvalorizam certas vidas” (Díaz e Freire 2023, 3). Nesse sentido, as reivindicações de reconhecimento, justiça e reparação de familiares de desaparecidos, em especial mães, que já apareciam nas dissertações e teses inaugurais sobre o tema, são presenças recorrentes também na bibliografia mais recente. Não obstante, acompanhando a diversificação de fenômenos empíricos que os trabalhos mais atuais vêm reunindo sob o guarda-chuva do desaparecimento, outras forças e formas de resistência têm sido abordadas também, como o trabalho de peritos independentes, ativismos judiciais e até os quilombos, a emigração ou o próprio PCC, como sustenta a etnografia de Denyer Willis (2022).
A costura que reúne fenômenos a partir da categoria “desaparecimento” é parte crucial das contribuições originais da produção atual. Essa abordagem permite demonstrar que muitos processos sociais que constituem o Brasil histórica e sociologicamente são materializações de uma mesma lógica política. Em termos homólogos, diversas forças e formas de resistência se configuram igualmente como respostas a essa lógica. A escolha pelo termo parece se dar porque ele se mostra especialmente capaz de designar uma racionalidade que produz e rotiniza a dessubjetivação, a desvalorização, a aniquilação e a invisibilização de certas vidas (e mortes) no Brasil, sejam elas vidas escravizadas no passado ou vidas encarceradas, torturadas, excluídas, violadas, executadas e ocultadas hoje. Mesmo reconhecendo o ganho analítico propiciado por essa escolha, porém, algumas interrogações quanto a ela me parecem pertinentes.
Quais os efeitos desse relativo descolamento da noção de “desaparecimento”, agora conceituada como racionalidade política, em relação ao fenômeno concreto que leva mães e outros familiares a procurarem delegacias, serviços de assistência social ou Institutos Médico-Legais para fazer uma queixa, uma busca, um apelo? Considerando que desde os primeiros trabalhos sobre o tema autores ocupavam também papéis públicos importantes como “especialistas”, o que a opção conceitual atual pode acarretar em termos de contribuição política para as demandas de familiares de pessoas cujos desaparecimentos não são facilmente abarcáveis por nenhum dos outros fenômenos analisados como instanciações dessa lógica política – nem “desaparecimento forçado”, nem “desaparecimento administrativo”, nem “execução sumária”, nem “violência policial”, nem “encarceramento em massa”? Como afirmar e encontrar espaço analítico, ético e político para a particularidade reivindicada por mães de desaparecidos que aparecem nos trabalhos sobre o tema desde o começo da trajetória dessa literatura acadêmica, como Arlete Caramês, Ivanise Espiridião e Vera Ranú (cf. Leal 2017, 75-83)? Como afirmar a especificidade de desaparecimentos como os de seus filhos, casos de referência em que a categoria êmica utilizada na militância e no plano da “política do ordinário” (Das 2020) é “desaparecimento” e só “desaparecimento”? Não foi sem motivo, afinal, que o principal esforço comum aos trabalhos inaugurais sobre o tema foi o de interpelar, identificar e/ou elaborar essa especificidade diante do caráter disperso e heterogêneo do fenômeno. Tampouco é sem motivo, ademais, que a camiseta de Neide na primeira foto do livro de Denyer Willis traga o termo DESAPARECIDO ao lado do retrato de Felipe.
“O desaparecimento é um fenômeno em disputa e em processo de inscrição política” (Leal 2017, 18) muito insuficiente do ponto de vista de familiares de desaparecidos. Apesar da emergência da militância na causa na década de 1990, da criação da ReDesap no começo dos 2000, da efetiva denúncia pública de alguns casos com grande repercussão no país e da criação de alguns serviços e programas públicos para enfrentamento do problema em diferentes localidades, como documentam as dissertações e teses que recuperei aqui, ainda hoje é flagrante que a construção do desaparecimento como problema social não alcança patamares mínimos demandados há décadas por mães como Arlete, Ivanise e Vera. Como já demonstrava a literatura pioneira sobre o tema, o tempo é um componente fundamental do desaparecimento, que “trabalha” no luto e na articulação de mães de vítimas (Araújo 2012) e na administração dos casos em serviços públicos (Ferreira 2019). Por isso mesmo, com o passar do tempo, casos como os dos filhos de Arlete, Ivanise, Vera e tantas outras mães vão ficando cada vez mais distantes de uma eventual solução e mais próximos de um certo plano do mistério e da ficção.
Como ocorre com o que alguns militantes e também pesquisadores chamam de “desaparecimentos de longa duração” (França 2018, 41), quando casos que acontecem diariamente nas cidades brasileiras não se mostram passíveis de associação com outros fenômenos a ele relacionados na literatura atual, como a violência policial, a suposta “guerra às drogas”, o tráfico internacional de pessoas ou o encarceramento em massa, o que lhes resta é ficar relegados a um universo pouco palpável dos rumores, do enigma e até da fabulação ou da ficção. E quanto mais enigmático parece um caso, como já demonstrei (Ferreira 2011, 94-111), mais esparsas, inócuas e ineficazes são as investigações policiais em torno dele. Não parece gratuito, aliás, que muitos dos trabalhos iniciais sobre o tema tenham tratado do papel dos meios de comunicação de massa na conformação do desaparecimento como problema no Brasil, que poderiam operar como aliados de busca e de luta, mas que muitas vezes veiculam rumores e narrativas sensacionalistas sobre os casos, agravando drasticamente o sofrimento dos familiares. Tampouco parece gratuito, ademais, que uma das contribuições da tese de Leal (2017) tenha sido demonstrar o papel decisivo de uma telenovela para o surgimento da militância de familiares no país. A novela girava em torno de uma trama ficcional de desaparecimento e foi capaz de conferir uma visibilidade ao problema que nunca havia sido alcançada no país.
Por um lado, é digno de nota que esse relativo descolamento promovido pela literatura mais atual é o que lhe permite iluminar a política de terror instaurada pela lógica do desaparecimento no Brasil, e demonstrar a fina articulação entre fenômenos díspares como escravidão, tortura, desaparecimento forçado, violência policial contra corpos negros e periféricos, cemitérios clandestinos e morte indigente. É também o que lhe permite demonstrar que essa articulação diz respeito à continuidade histórica de uma racionalidade governamental que, se muda, só muda para permanecer igual em seus pilares racistas e reprodutores de desigualdades.
Por outro lado, porém, parece relevante interrogar se esse descolamento não obscurece ainda mais desaparecimentos que acontecem no país e que, sem solução, restam relegados a certo imaginário novelesco do mistério e da ficção, com todos os prejuízos que isso pode gerar na incipiente inscrição política do problema, bem descrita e denunciada desde os primeiros trabalhos a seu respeito. Retomar o fio da meada dessa produção é um exercício que pode ajudar, se não a responder, pelo menos a sustentar essa interrogação.
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Notas