Resumo: Este artigo examina as estratégias de atuação de duas organizações religiosas — Anajure (Associação Nacional de Juristas Evangélicos) no Brasil e ADF (Alliance Defending Freedom) nos Estados Unidos — no cenário jurídico-político, com foco especial em suas intervenções em cortes superiores. A partir de análise documental e entrevistas, o estudo explora os impactos que essas organizações têm gerado, direta e indiretamente, nas decisões jurídicas, mesmo quando sua influência se manifesta de maneira discreta ou por meio de rumores. Conclui-se que ambas as entidades estão intensificando sua presença em debates jurídicos e políticos, utilizando o direito como ferramenta para avançar agendas conservadoras ligadas à liberdade religiosa e questões de gênero.
Palavras-chave: Anajure, Supremo Tribunal Federal, Direito e religião, Alliance Defending Freedom, rumores.
Abstract: This article examines the strategies of two religious organizations — Anajure (National Association of Evangelical Jurists) in Brazil and ADF (Alliance Defending Freedom) in the United States — focusing on their interventions in superior courts. Through document analysis and interviews, the study explores the direct and indirect impacts these organizations have on judicial decisions, even when their influence is subtle or driven by rumors. The article concludes that both entities are increasing their presence in legal and political debates, using law as a tool to advance conservative agendas related to religious freedom and gender issues.
Keywords: Anajure, Brazilian Supreme Court, Law and religion, Alliance Defending Freedom, rumors.
Artigos
A atuação de organizações de fundo religioso em Cortes Superiores: Os casos Anajure e ADF
The role of religious-based organizations in Superior Courts: the cases of Anajure and ADF
Recepción: 12 Junio 2024
Aprobación: 11 Octubre 2024
Em outubro de 2020, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) publicou a Resolução CNJ nº 348/2020, que estabeleceu diretrizes e procedimentos para o Poder Judiciário, em “relação ao tratamento da população lésbica, gay, bissexual, transexual, travesti ou intersexo que seja custodiada, acusada, ré, condenada, privada de liberdade, em cumprimento de alternativas penais ou monitorada eletronicamente”. Dentre muitas diretrizes, a Resolução instituiu o critério da autodeterminação de gênero como o princípio norteador da escolha do local de cumprimento de pena, devendo ser colhida a vontade no momento da audiência pelo juiz ou juíza ou em qualquer fase do procedimento penal, a partir da consulta à pessoa presa. Assim, o cerne da Resolução 348 era a necessidade de indagação à pessoa autodeclarada parte da população transexual, travesti e intersexo acerca da preferência pela custódia em uma unidade prisional feminina, masculina ou específica. A aprovação, por este motivo, foi bastante comemorada pela militância LGBTQI+ e organizações de defesa dos direitos humanos. Não obstante, este ponto, que foi o mais comemorado da Resolução, também foi o mais contestado.
Cerca de três meses após a aprovação da Resolução 348, em 20 de janeiro de 2021, uma segunda Resolução é publicada (Resolução Nº 366 de 20/01/2021), alterando parte do teor da anterior, especialmente no que se refere à escolha do local de cumprimento da pena. Com a nova redação, uma diferenciação entre transexuais e travestis seria estabelecida, flexibilizando justamente o critério da autodeterminação, o ponto mais comemorado por movimentos LGBTQI+, organizações de direitos humanos e especialistas da área.
Este texto, por meio da análise documental e entrevistas com uma interlocutora envolvida na elaboração das resoluções mencionadas, foca na Anajure (Associação Nacional de Juristas Evangélicos), um dos atores apontados nas entrevistas como responsáveis pela alteração na Resolução 348; e nos paralelos de sua atuação com a atuação da ADF (Alliance Defending Freedom) nos Estados Unidos. Embora a influência da Anajure no processo de modificação não seja facilmente identificável, sua presença no cenário jurídico-político gera efeitos concretos, mobilizando medos, afetos e estratégias. A menção à Anajure nesse contexto ilumina, de forma mais ampla, a atuação da Associação no contexto brasileiro. As entrevistas, que totalizaram três, foram realizadas nos anos de 2021 e 2022, de forma remota e presencial, e posteriormente transcritas.
Este artigo apresenta um recorte de minha pesquisa de doutorado, que se debruçou sobre o fazer política pública para “grupos específicos" presos (especialmente pessoas LGBTQI+) em diferentes escalas de poderes; e está dividido em cinco seções, para além desta introdução.
Na primeira seção, busco contextualizar, de forma breve, o processo de elaboração das resoluções no CNJ, levando em consideração a estrutura do Conselho. Na segunda seção, objetivo demonstrar de que forma a Anajure aparece em meu campo de pesquisa, mobilizada especialmente na fala de uma interlocutora implicada na aprovação da Resolução 348 do CNJ; e em como a atuação da associação ganha novos contornos e alcança diferentes esferas de poder na atualidade. Na terceira seção, são traçados os paralelos entre a atuação da Anajure e da ADF (Alliance Defending Freedom) nos Estados Unidos, com destaque para os contextos jurídico-políticos que favoreceram a ampliação da influência de ambos os atores nos dois países. Na quarta seção, a presença oculta e fantasmagórica da Anajure na fala de minha interlocutora é trabalhada sob a chave dos rumores, com especial atenção para os afetos e efeitos concretos produzidos. Por fim, as considerações finais trazem breves sintetizações e conclusões, apontando para a possibilidade de desdobramentos e agendas de pesquisa futuras.
O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) foi criado em 2004, com a promulgação da Emenda Constitucional 45, como parte das reformas destinadas a melhorar a transparência e eficiência do Judiciário brasileiro. O órgão é composto por 15 membros, incluindo ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), do Superior Tribunal de Justiça (STJ), do Tribunal Superior do Trabalho (TST), juízes estaduais e federais, além de representantes do Ministério Público, da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e da sociedade civil. O presidente do CNJ é o ministro do STF, que acumula a presidência do órgão, o que confere um poder decisório significativo em sua gestão (Ballesteros 2019). Essa estrutura garante uma composição predominantemente formada por membros do Judiciário, o que gera questionamentos sobre a possibilidade de um controle efetivo por parte de setores externos, já que a maioria dos membros pertence às esferas internas do poder (Fragale Filho 2013, 976).
Além disso, o CNJ é responsável pela supervisão administrativa e financeira do Judiciário, bem como pelo cumprimento de normas éticas. Entre suas atribuições, está o poder de editar resoluções, instruções normativas e recomendações, algumas das quais têm força vinculante sobre os tribunais. No entanto, o CNJ não atua apenas por provocação externa; ele pode agir de ofício, sem a necessidade de demanda prévia, o que reforça sua autonomia e centralidade nas reformas do Judiciário (Fragale Filho 2013). Sua capacidade de emitir decisões não recorríveis, e a ausência de contraditório em alguns casos, são características que geram controvérsias, especialmente dentro de instituições como o Ministério Público, que veem essas ações como excessivamente centralizadoras (Ballesteros 2019).
Desde o início de suas atividades, o CNJ assumiu um papel central na questão penal, principalmente em função da “crise do sistema penitenciário” à época, marcada pelo aumento da população carcerária, especialmente de presos provisórios, e denúncias de violações de direitos humanos (Ballesteros 2019, 24). Diante desse cenário, o CNJ foi convocado a agir, considerando que suas competências poderiam contribuir para a justiça criminal ou, pelo menos, apoiar medidas de redução de danos. Ballesteros (2019) sugere que iniciativas como o “descongestionamento da Justiça” receberam pouca crítica por estarem alinhadas a um discurso progressista no campo penal.
Desde então, a atuação do CNJ oscila entre projetos voltados para a redução do superencarceramento e o combate à impunidade, como o projeto “Metas do Poder Judiciário”. A autora classifica essa atuação como um “gerencialismo penal”, composto por ações de gestão, governança com parceiros externos e governamentalidade sobre indivíduos criminalizados (Ballesteros 2019, 30). Nesse contexto, o Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema Socioeducativo (DMF), criado em 2009, passou a ser o responsável pela coordenação de projetos penais no CNJ.
De acordo com minha interlocutora entrevistada entre os anos de 2021 e 2022, a Resolução 348, encabeçada por funcionárias “pessoalmente engajadas” do DMF, foi apenas aprovada diante de uma conjuntura favorável, formada por um certo ofuscamento da pauta por outras temáticas e a existência de um juiz auxiliar que “bancasse” a proposta diante dos conselheiros. Como já aludido, a aprovação foi celebrada pela militância LGBTQI+ e por organizações de direitos humanos, especialmente pelo critério da autodeterminação para a alocação das pessoas presas. Contudo, esse foi também o ponto mais contestado.
Em janeiro de 2021, a Resolução 366 alterou parte da anterior, introduzindo uma diferenciação entre transexuais e travestis. A nova redação, segundo a minha interlocutora, tinha se dado à revelia das discussões tocadas pelas funcionárias do DMF, e possibilitada por um cenário de crescimento do conservadorismo dentro do próprio Conselho. A troca da presidência, por exemplo, do Ministro Toffoli, considerado mais “alinhado” a pautas progressistas no campo penal, para o Ministro Fux, “mais conservador”, seria, para minha interlocutora, um dos motivos centrais para a mudança. Não obstante, segundo ela, “forças ocultas” teriam também atuado e pressionado pela mudança.
Então o que a gente tá entendendo agora, é que aconteceu uma pressão da AMB, a associação dos magistrados brasileiros, em associação com a ANAJURE, que é a associação de juristas tipo evangélicos. A AMB e a ANAJURE são duas forças que têm crescido muito, em várias pautas. Mas uma pauta que eles têm pegado muito e muito forte é a questão da liberdade religiosa. Então tanto a pauta de direitos sexuais e reprodutivos, como liberdade religiosa, são duas pautas que tá tendo uma atuação muito forte deles. Pois é... o negócio é baixo (entrevista realizada em fevereiro de 2021).
Para minha interlocutora, duas das “forças ocultas” que teriam atuado para a alteração da Resolução, seriam, como o trecho de entrevista transcrito revela, a ANAJURE (Associação Nacional de Juristas Evangélicos) e a AMB (Associação dos Magistrados Brasileiros). Neste texto, as análises são focadas na atuação apenas da ANAJURE (Associação Nacional de Juristas Evangélicos), ainda que outros atores, como a AMB, sejam também apontados por ela como responsáveis pela alteração da Resolução 348, a partir da publicação da Resolução 366 pelo Conselho.
Na página da ANAJURE (2021a), encontram-se informações sobre sua fundação, em novembro de 2012 na Câmara dos Deputados, que contava com Damares Alves (ex-ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos do governo Bolsonaro) como diretora de Assuntos Legislativos à época. Segundo a página, o lema da ANAJURE seria a “defesa das liberdades civis fundamentais”, e seus objetivos a busca para ser “uma voz representativa do meio jurídico evangélico nos fóruns de discussões públicas da sociedade” e a supressão de “uma lacuna institucional, possibilitando aos cristãos protestantes, por exemplo, participar como amicus curiae[1] nos processos de controle de constitucionalidade”.
A associação centrava sua atuação inicialmente no Poder Legislativo, assessorando projetos de lei para a bancada evangélica, como aqueles relativos à proibição da discussão de “teorias sobre gênero” no âmbito escolar. No entanto, a Anajure tem intensificado sua atuação dentro do Poder Executivo, após a eleição de Jair Bolsonaro, e no STF (Luna e Porto 2023) nos últimos anos (até 2021 havia atuado em 17 processos como amicus, já finalizados ou em andamento). A atuação de apoio ao governo Bolsonaro foi pautada por uma agenda moral, incluindo o combate à corrupção, a defesa da moral cristã e a proximidade com figuras como Damares Alves e Sérgio Moro. Além disso, a associação comemorou vitórias políticas relacionadas à isenção fiscal para templos religiosos e influenciou na escolha de figuras para cargos de destaque (Cunha 2020).
A maioria das atuações na Corte se dá na condição de amicus curiae, especialmente em casos que envolvam temas relacionados a gênero e sexualidade, como a criminalização da homofobia (Couto e Vidon 2021) e a descriminalização do aborto (Zanatta 2019). A partir de 2020, porém, a ANAJURE passou a ser também autora de ADPFs (Arguições de Descumprimento de Preceito Fundamental), sendo a mais emblemática delas a ADPF 701, que questionou decretos que suspenderam as atividades religiosas durante a pandemia de COVID-19 (ANAJURE 2021b, 2021c). O relator do processo, o Ministro Nunes Marques, afirmou a legitimidade da associação para propor a ação e deferiu a liminar requerida em abril de 2021, autorizando a reabertura de igrejas e templos, decisão posteriormente revertida pelo Plenário do Tribunal. Assim, nos últimos anos a ANAJURE tem atuado no STF como autora de demandas judiciais, e não apenas no papel de terceira interessada (Wohnrath 2023, 223).
Na área acadêmica, a Anajure tem também ampliado sua atuação ao longo dos últimos anos, promovendo atividades como a Revista Brasileira de Direito e Religião, a Academia ANAJURE, que visa formar juristas sob princípios cristãos e uma pós-graduação denominada Estado Constitucional e Liberdade Religiosa, com diploma emitido pela Universidade Mackenzie e em colaboração com as Universidades de Coimbra e Oxford (Bahia e Kitagawa 2022). Também é realizado anualmente o Enajure (Encontro Nacional de Juristas Evangélicos). Em maio de 2019, foram organizados o 6° Congresso Internacional sobre Liberdades Civis Fundamentais e o lançamento da Frente Parlamentar Mista da Liberdade Religiosa, Refugiados e Ajuda Humanitária (ANAJURE 2021d) com o tema “Liberdade Religiosa, Liberdade de Expressão e Objeção de Consciência”, no auditório do Superior Tribunal de Justiça, em Brasília. A mesa da sessão inaugural contou com a presença de Sérgio Moro, então Ministro da Justiça e Segurança Pública; Damares Alves, então ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos; o então advogado-geral da União André Mendonça, hoje ministro do STF. Na ocasião, a Anajure entregou uma proposta de redação do PNDH-4 (Programa Nacional de Direitos Humanos) elaborada pela associação, como resultado de uma comissão interna de trabalho, a "Comissão do Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH)”, criada meses antes após solicitação da então Ministra Damares Alves para que a organização contribuísse “tecnicamente” com o texto do novo Programa (ANAJURE 2021e).
Em relação aos PNDHs, o primeiro foi instituído em 1996, durante o mandato de Fernando Henrique Cardoso (1994 a 2002). É nesse período que o tema de direitos humanos entra com força na agenda política nacional, ainda que “a composição de forças e alianças de sustentação do governo FHC [não] fosse inteiramente simpática à agenda, sobretudo quando em pauta estavam iniciativas que visassem exercer férreo controle civil sobre as forças policiais militares (..)” (Adorno 2010, 9). A concepção dos programas surgiu a partir da Conferência Mundial dos Direitos Humanos, em Viena, no ano de 1993. Na ocasião, recomendou-se aos países participantes que formulassem programas de governo visando à promoção e proteção dos direitos humanos.
Com 228 propostas, o PNDH‑1 foi o primeiro documento do tipo na América Latina, construído mediante ampla consulta a movimentos sociais, ONGs, pesquisadores; e reservava diretrizes relativas às penas privativas de liberdade, dentre elas: melhorias tecnológicas; implementação de penas alternativas; formação de pessoal e tratamento digno a presos e seus familiares; e a desativação da Casa de Detenção de São Paulo (Carandiru) e de outros estabelecimentos penitenciários que contrariassem as normas mínimas penitenciárias internacionais. Concomitantemente, constava explicitamente no rol de recomendações a criação de “novos estabelecimentos e aumentar o número de vagas no país, em parceria com os Estados, utilizando-se recursos do Fundo Penitenciário Nacional – FUNPEN” (Brasil 1996), assinalando a expansão prisional brasileira como uma política de direitos humanos (Marques 2018). Seis anos mais tarde, lançou-se o PNDH‑2, ainda durante o mandato de FHC, e fruto da revisão do primeiro programa, a partir de críticas e recomendações da IV Conferência Nacional dos Direitos Humanos, ocorrida em 1999.
O terceiro PNDH, lançado em 2009, já durante o governo petista, visou à ampliação do elenco de direitos das versões anteriores, em resposta a demandas originadas de dezenas de conferências temáticas, a partir de 2003, e às conclusões da XI Conferência Nacional de Direitos Humanos, em 2008 (Adorno 2010). O programa sofreu duras reações de parcelas da sociedade brasileira, especialmente no que diz respeito a temas relativos aos “direitos sexuais”, como o entendimento do direito ao aborto como questão de saúde pública.
Acerca da temática LGBT, o PNDH-3 passou a estabelecer diretrizes para o combate à violência institucional, regulamentação de visitas íntimas para a população carcerária, implementação de Centros de Referência em Direitos Humanos de Prevenção e Combate à Homofobia, dentre outras (Brasil 2009). A diretriz de número 16 (Modernização da política de execução penal, priorizando a aplicação de penas e medidas alternativas à privação de liberdade e melhoria do sistema penitenciário) estabeleceu como uma das ações programáticas: “Debater, por meio de grupo de trabalho interministerial, ações e estratégias que visem assegurar o encaminhamento para o presídio feminino de mulheres transexuais e travestis que estejam em regime de reclusão” (Brasil 2009).
O conteúdo do PNDH-3 teve papel expressivo nos debates conduzidos nas eleições presidenciais de 2010. Em julho daquele ano, o bispo da Diocese de Guarulhos, São Paulo, publica um artigo na Folha Diocesana de Guarulhos e no site da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), orientando os fiéis a não votarem em partidos e candidatos que desrespeitassem a vida e os valores familiares, em uma clara referência à candidata Dilma Rousseff (PT). Outros líderes religiosos, como o Pastor Silas Malafaia, que apoiou a candidatura de José Serra (PSDB) à presidência, divulgaram ferrenhas críticas ao PNDH-3, classificado por Malafaia como o “Plano Nacional da Vergonha Humana” (Machado 2012, 34).
Tal conjuntura fez com que a candidata Dilma e o então presidente Lula se reunissem em Brasília, em outubro de 2010, com líderes evangélicos, os quais exigiram uma manifestação pública garantindo o não encaminhamento de propostas de lei que envolvessem determinados temas, dentre eles, o aborto e a união civil homoafetiva. Em 15 de outubro, a candidata divulga a “Mensagem de Dilma”, enfatizando, que, caso eleita, não tomaria “a iniciativa de propor alterações de pontos que tratem da legislação do aborto e de outros temas concernentes à família e à livre expressão de qualquer religião no País” (Machado 2012, 39).
As diferentes versões dos PNDHs ao longo do tempo evidenciam os crescentes esforços de incorporação da “sociedade civil” nas políticas governamentais, bem como a de sujeitos cada vez mais específicos, com o consequente reconhecimento de diferenças e desigualdades; além da sedimentação de um universo léxico com as ações programáticas: “apoiar, fomentar, criar mecanismos, aperfeiçoar, estimular, assegurar e garantir, articular e integrar, propor, elaborar, definir, ampliar, expandir, avançar, incentivar, fortalecer, erradicar, promover, adotar (medidas), desenvolver, produzir (informações, pesquisas), instituir” (Adorno 2010, 13), dentre outros. Além disso, a “transversalidade” passa a ser o mecanismo do “arranjo burocrático-institucional" mobilizado para a superação de desigualdades entre os sujeitos (Aguião 2017, n.p).
Como já mencionado, desde 2019, encontra-se em discussão a publicação da nova versão do Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH-4). A então ministra Damares Alves nomeou a Anajure como chefe da comissão técnica para a elaboração da redação do documento, cujo conteúdo está indisponível publicamente (Kalil 2020). Em fevereiro de 2021, Damares assinou a Portaria nº 457, constituindo um grupo de trabalho composto exclusivamente por representantes do MMFDH (Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos), excluindo-se a participação da sociedade civil e prevendo o sigilo da atividade desenvolvida pelo grupo, com o objetivo de reavaliar a atual política nacional de direitos humanos. A Portaria é contestada em uma ação proposta pelo PCdoB (Partido Comunista do Brasil), a partir da alegação de inconstitucionalidade pela vedação da participação social no processo[2].
Também em 2019, a ANAJURE emite Nota Pública sobre a orientação do Governo brasileiro sobre o uso do termo "Gênero" (ANAJURE 2021f). A nota, dirigida especialmente à ONU e à OEA, é em apoio à orientação do Itamaraty aos seus diplomatas “de que, em negociações e foros multilaterais, a palavra ‘gênero’ deve ser utilizada em consonância com a visão adotada pelo governo brasileiro, segundo a qual o termo se refere ao sexo biológico: feminino e masculino”. A orientação também recomendava a retirada do termo de textos de documentos internacionais que fossem submetidos à análise dos representantes, como, por exemplo, resoluções da ONU.
A nota da Anajure faz também uma longa exposição sobre os porquês da “teoria de gênero”, assim no singular, não se sustentar, incluindo argumentos médicos sobre as diferenças anatômicas e fisiológicas. A associação faz a ressalva, valendo-se de uma “gramática da proteção”, de que sua posição não implica o não acolhimento à população LGBT, tendo em vista que suas contribuições técnicas para a elaboração do novo PNDH incluiriam, “dentre diversos preceitos relativos à proteção dos direitos humanos, dispositivos voltados para a proteção das minorias sexuais, inclusive no tocante ao combate da violência praticada contra esses grupos”.
Por fim, ao longo dos anos de 2020 e 2021, várias foram as manifestações de apoio à nomeação de André Mendonça, então Advogado-Geral da União e ex-Ministro da Justiça e Segurança Pública (entre 2020 e 2021) do governo Bolsonaro (ANAJURE 2021g, 2021h, 2021i), para o STF, sendo, segundo a organização, “um nome de consenso dentro do segmento evangélico”. A nomeação de André Mendonça para Ministro do STF aconteceu em dezembro de 2021, depois de um período de vacância de cinco meses a contar da aposentadoria do Ministro Marco Aurélio Mello.
Uma reportagem da Agência Pública de junho de 2019 (Zanatta 2019), além de enfatizar as atuações anteriormente descritas no cenário nacional da Anajure, sublinha sua parceria institucional com a Alliance Defending Freedom (ADF), em tradução livre Aliança em Defesa da Liberdade, uma associação estadunidense de fundo religioso que também tem um histórico de litigância judicial em causas relativas a direitos sexuais, gênero e sexualidade. Sua incidência política alcança espaços como a Assembleia Geral da OEA e cortes constitucionais de países latino-americanos (Moragas 2020, 22–39). Por meio da parceria com a ANAJURE, eram custeadas bolsas para que acadêmicos de direito brasileiros participassem nos Estados Unidos do programa de treinamento Blackstone, o que impulsionou a criação de um programa de treinamento nacional em 2016, a Academia Anajure.
A ADF e seu programa Blackstone são citados inúmeras vezes por Wendy Brown (2019) em “Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão da política antidemocrática no Ocidente”. A aliança é descrita pela autora como “o braço mais poderoso da cristandade evangélica nos Estados Unidos” (Brown 2019, 135). Segundo Brown (2019, 135–137),
a contestação da igualdade e da lei antidiscriminação como proteções à liberdade individual é a estratégia aperfeiçoada de modo brilhante pela Alliance Defending Freedom [Aliança em Defesa da Liberdade] (...) A aliança dedica-se a questionar os limites enfrentados por cristãos para exercer sua fé de modo expansivo e público. Seu trabalho inclui contestar proibições de exposição de crucifixos ou a educação sexual obrigatória em escolas públicas; lutar contra o aborto legal; acima de tudo, rechaçar as proteções daquilo que os conservadores chamam de "leis SOGI" - proteções contra discriminação baseada na orientação sexual e na identidade de gênero. Descrita por seu fundador como o "exército legal cristão" e apoiada por contribuições privadas de mais de 50 milhões de dólares anualmente, a ADF treinou milhares de advogados e legisladores, juízes, promotores, professores e procuradores-gerais. Ela é a fonte da mais recente legislação de liberdade religiosa em níveis estadual e federal, e seus advogados aparecem frequentemente diante da Suprema Corte e da Corte Europeia de Direitos Humanos.
(...) Além disso, os esforços da ADF para desmantelar a lei do aborto e as proteções aos transgêneros, para combater o casamento homossexual e para permitir a prece e a iconografia cristã em escolas e câmaras municipais deixam claro que há mais em jogo do que permitir que confeiteiros, farmacêuticos, professores e ativistas antiaborto sigam sua consciência. A estratégia de longo prazo da ADF é (re)cristianizar a cultura por meio de contestações de aparatos políticos e legais comprometidos com o secularismo, o igualitarismo e a inclusão.
Já o Programa Blackstone de Bolsas Jurídicas da ADF, por meio do qual são desenvolvidos novos quadros de advogados em faculdades de direito, parte do princípio de que uma jurisprudência voltada à cristianização da cultura deve ser inculcada em seus membros, sendo necessário aos bolsistas a adesão da “‘Declaração de Fé e de Princípios Guia’ da ADF, que inclui a afirmação do Deus cristão como o único Deus e a rejeição ao casamento transgênero e homossexual e aos direitos relacionados ao aborto”. Assim como ocorre no Brasil com a Anajure, a ADF também encontra parceiros nas esferas governamentais estadunidenses. Brown cita, por exemplo, as íntimas ligações de membros da administração Trump com a aliança, tendo a ADF influência direta nas nomeações judiciais feitas durante a administração (Brown 2019, 138–139).
A ADF tem incidido em casos de grande repercussão no país. Um desses casos, analisado detalhadamente por Brown, refere-se à recusa do confeiteiro Jack Phillips em fazer um bolo de casamento para um casal homoafetivo, sendo condenado por ter violado o Ato Antidiscriminação do Estado pela Comissão de Direitos Civis do Colorado, que recusou os argumentos do confeiteiro de que a Primeira Emenda[3] lhe permitiria não exercer seus talentos artísticos na expressão de uma mensagem com a qual não compactuava, e de que ser forçado a fazer o bolo feria seu livre exercício religioso. Após recursos a diferentes instâncias e tribunais, em 2017 o caso chegou à Suprema Corte, e tendo a ADF em sua equipe de defesa, o confeiteiro saiu vencedor, por 7 votos contra 2.
Ainda que a Suprema Corte não tenha se debruçado sobre as questões controversas do caso, tais como se a produção de bolos seria uma manifestação artística, e portanto, livre expressão; e se o bolo em si seria uma expressão, e a obrigação de confeccioná-lo violaria a liberdade religiosa, ela descreve Jack Phillips não como “um confeiteiro ou dono de um negócio, mas como um confeiteiro especialista, dono de negócio e artista” e como um “‘cristão devoto cujo maior objetivo na vida é ser obediente a Jesus Cristo e aos ensinamentos de Cristo em todos os aspectos de sua vida’. Ele é um homem, relata a Corte, que ‘busca honrar Deus por meio de seu trabalho’” (Brown 2019, 160).
Assim, a jurisprudência que vem se desenvolvendo no país expande o sentido civil clássico das liberdades constantes da Primeira Emenda, enquanto uma distinção entre ato e pessoa tem permitido à objeção religiosa não parecer discriminatória, ao passo que perpetua a desigualdade (Brown 2019, 155–165). O último caso de grande repercussão com atuação direta da ADF foi a decisão da Suprema Corte dos EUA, em junho de 2022, que reverteu a decisão do tribunal de 1973 no caso Roe v. Wade, que, em síntese, reconhecia o direito constitucional das mulheres ao aborto no país (US. Supreme Court, 2022). A decisão recente é referente ao caso Dobbs v. Jackson Women’s Health Organization, em que a única clínica de aborto do Mississippi processou Thomas E. Dobbs, oficial de saúde estadual do Departamento de Saúde do Estado do Mississippi, questionando a constitucionalidade de uma lei estadual de 2018, que proibia a maioria das operações de aborto após as primeiras 15 semanas de gravidez. A Aliança compôs a equipe de defesa do estado de Mississippi, como amplamente divulgado em suas redes.
Dessa forma, tanto o ativismo da ADF nos EUA como o da ANAJURE no Brasil, são marcados pela apropriação de um saber jurídico, que, paulatinamente, especializa-se em uma linguagem de assessoria parlamentar e na produção de projetos de lei, com incidência inclusive internacional, pelo domínio contínuo da máquina pública. Distanciando-se de outros grupos religiosos com atuação política, possuem advogados como dirigentes, e não necessariamente pastores ou indivíduos com formação teológica formal (Wohnrath 2023, 226).
Como se antevê, a atuação desses grupos não é um movimento recente[4], facilitado pela ascensão de governos presidenciais de extrema-direita, ainda que por meio desta ascensão seja possível um aprimoramento e uma diversificação das suas práticas de ação. Portanto, ao invés de mudanças bruscas de percurso, em que se vislumbram zonas de antagonismo absoluto a partir do momento conjuntural do governo federal, a atuação de muitas figuras em outras redes e outros poderes, como no Legislativo, já se fazia presente ao longo das últimas décadas.
Em solos brasileiros, por exemplo, a eleição de Marco Feliciano como presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara em 2012 provoca uma reconfiguração na leitura sobre direitos humanos, e é diretamente articulada por Damares Alves e outras lideranças da Anajure. Damares, por sua vez, também possui uma longa trajetória enquanto assessora parlamentar de vários congressistas, desde 1999, e, especialmente, do pastor e ex-senador Magno Malta, cujo mandato se estendeu de 2003 a 2019, sendo já uma figura influente no meio ativista conservador e religioso (Shalders 2020).
Ademais, no Brasil, novas camadas de complexidade fazem-se presentes quando se observa que pautas sensíveis, como a legalização do aborto, já foram defendidas pela Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) como parte de um programa de incentivo à disciplina familiar rumo à prosperidade (Teixeira 2013, 32). O contexto de prevalência da agenda econômica liberal, em detrimento inclusive de pautas morais, passa a assumir novos contornos quando a IURD vê a possibilidade de disputar posições no Poder Executivo, o que acontece, por exemplo, com a eleição de Marcelo Crivella para a prefeitura do Rio de Janeiro em 2016. Ou seja, a agenda da moralidade parece ser carregada menos de religiosidade do que de estratégia política ordinária.
Ao mesmo tempo, tais articulações são matizadas com a justificativa de que esses grupos, ainda que abertamente religiosos e movidos por uma cosmologia cristã, prestam auxílios “meramente técnicos” (Fonseca et al. 2016). Como descreve Andressa Lewandowski (2019, 306–307), a separação entre técnica e política “tanto evoca uma distinção moral entre política e direito como reforça a ideia de que se trata de coisas ou campos distintos com suas próprias formas de regulação''. Se o procedimento de se redigirem pareceres, projetos e planos nacionais de direitos humanos é considerado técnico e “apolítico”, é também por meio dessas práticas que as tarefas de formação do estado, governança e exercício de poder são tornadas sustentáveis (Sharma e Gupta 2006).
Retomando a afirmação feita no início do texto, não fica explícito, nem por meio das narrativas de minha interlocutora nem por meio da análise documental, de que forma teria a Anajure incidido especificamente nos trâmites da alteração da Resolução 348 do CNJ. Com uma profusão de notas emitidas sobre liberdade religiosa, sobre os usos (ou o não uso) do termo “gênero”, ou a favor da nomeação de André Mendonça, e um aumento significativo da atuação da associação em ações no STF, nenhuma nota ou publicação foi por mim encontrada sobre a Resolução 348 do CNJ. Neste registro, algumas perguntas – de caráter retórico –emergem: seria a Resolução do CNJ, que mobilizou tantos atores, desimportante aos olhos da Anajure? O teor da Resolução é de alguma forma compatível com a gramática de proteção às pessoas LGBTs empregada na redação do novo plano de direitos humanos? Estariam as disputas da associação orientadas para outras questões entendidas como de maior impacto?
Não obstante, sua presença no cenário jurídico-político produz efeitos concretos, mobilizando medos, afetos e estratégias. A associação é por algum motivo citada por pessoas envolvidas na publicação da Resolução, e isso de fato importa. Ainda que apareça mais como uma presença fantasmagórica, como uma associação que apenas influenciou uma alteração de uma Resolução do Conselho, o que se pode depreender das entrevistas realizadas é que a presença da Anajure é de fato sentida, temida e esperada.
O medo trazido pela presença da Anajure independe de sua atuação ou não, e é elemento central no fazer estado, ao mesmo tempo em que enseja estratégias antecipadas para tentar contornar os possíveis efeitos de ações levadas a cabo por atores como a associação. Nesse sentido, a menção ao papel da Anajure na mudança da Resolução aparece mais como um rumor, aquilo que não pode ou é difícil de ser comprovado.
A discussão acerca dos "rumores" desempenha um papel fundamental nesse contexto, especialmente na medida em que eles não se confundem com fofocas ou desinformações, mas articulam ansiedades coletivas e angústias que afloram em momentos de incerteza, como destacado por Difonzo e Bordia (2007). Eles mobilizam defensores de certas causas a tomarem medidas preventivas ou a reconfigurarem suas estratégias frente a ameaças que podem ser tanto concretas quanto potenciais.
Como alerta Palloma Menezes (2014, 2020), ao invés da procura pela correspondência com o que seria o real, ou seja, se tais interferências são de fato verdadeiras ou se ocorreram nos moldes em que suspeita minha interlocutora, importa “investigar as múltiplas verdades que essas narrativas são capazes de colocar em cena”, que “se referem tanto a problemáticas concretas da vida cotidiana como a angústias presentes nas situações nas quais as narrativas surgem” (Menezes 2020, 22).
Dessa forma, pensando nos rumores como reveladores de situações problemáticas e ambíguas, e como “sínteses expressivas de problemas públicos” (Menezes 2014, 680), temos que seu contexto de nascimento e proliferação se dá a partir de eventos considerados importantes por um determinado grupo social, especialmente quando seus efeitos são incertos e imprecisos. A centralidade do Estado, representado aqui diretamente na figura desses atores que fazem estado, como a Anajure, aparece como fundamental na construção dos rumores, imprecisões e da desconfiança (Gutterres 2016, Das 2020), particularmente em situações que geram “sensações de crise” (Das 2020). “Crise” que aqui pode ser entendida como uma categoria que ganha sentido nos bastidores do CNJ.
A noção de afetos também se torna indispensável para a compreensão dos mecanismos de poder que sustentam a atuação da Anajure. Seguindo o trabalho de Stoler (2007), pode-se afirmar que os afetos, como medos e ansiedades, são incorporados às práticas políticas e jurídicas, não sendo meros efeitos secundários ou simples acessórios, mas sim atravessamentos nas rotinas do fazer Estado. Os afetos qualificam e constituem essas práticas, como ocorre nos espaços institucionais mencionados.
Por sua vez, as resoluções, documentos e decisões não são neutros; eles incitam energias afetivas (Navaro-Yashin 2007), que, ao serem transacionadas nos círculos jurídico-políticos, produzem impactos que ultrapassam os limites da racionalidade burocrática. A presença, mesmo que fantasmagórica, da Anajure, então, é capaz de gerar sensações de crise e insegurança, afetos que alimentam a criação de estratégias antecipadas de defesa. Assim, os afetos não podem ser dissociados das práticas de governança (Ferreira 2013) e, neste contexto, estão entrelaçados com as formas de exercício do poder.
A Anajure, como já evidenciado, aparece como uma presença fantasmagórica, uma presença sentida (e temida) mesmo quando ausente. Embora o sentido de “fantasmagórico” aqui guarde grandes diferenças com o emprego do termo por Grace Cho (2008), as análises da autora ajudam a pensar no potencial afetivo da assombração. Em “Hauting the Korean Diaspora”, a autora sugere uma leitura transgeracional do trauma, em que silêncios e fantasmas do passado são transmitidos às gerações seguintes, através das relações cotidianas. Os fantasmas do passados são sintetizados na figura da Yanggongju, que em sentido amplo, representa a mulher coreana que mantém relações sexuais com norte-americanos; e que, em sentido pejorativo, prostitui-se para militares estadunidenses. Cho desnuda a polissemia da palavra Yanggongju, que é, ao mesmo tempo, indizível para as famílias fruto da diáspora coreana nos Estados Unidos; que é central, e simultaneamente, subjugada nas histórias familiares.
Nesse contexto, Cho (2008, 31, tradução minha) localiza essa figura fantasmagórica, que possui agência própria, “na encruzilhada de múltiplas formas de violência – a social e familiar, a psíquica e a epistêmica” e adverte sobre o possível descarte, pelas correntes principais das ciências sociais, da “noção de que algo aparentemente ausente ou inexistente pode ser uma força poderosa na formação da realidade empírica, sem falar que essa presença invisível pode ser objeto de estudo”. Dessa maneira, tendo como objeto aquilo que não pode ser dito com certeza, e que se afasta das metodologias e fontes de dados tradicionais, a autora concentra-se na investigação do que produziu esse fantasma, e no desenrolar dos efeitos do trauma.
Se para Cho (2008), os fantasmas do passado, sintetizados na figura da Yanggongju, revelam a complexidade da identidade e do pertencimento, no caso da Anajure, os “fantasmas” podem refletir as ansiedades contemporâneas em relação aos direitos LGBTQI+ e as dinâmicas de poder que permearam o debate sobre a Resolução do CNJ. Assim, a presença da Anajure revela, neste caso, um campo de batalha onde rumores e afetos moldam as interações e as respostas dos diversos atores envolvidos. Aqui, a capilaridade e a penetrabilidade crescente da Anajure em espaços como o STF produzem “sensações de crise”, bem como a necessidade de que atores preocupados com possíveis interferências em políticas que lhe são caras se mobilizem e elaborem estratégias para contornar os efeitos dessas presenças (ainda que ausentes) no cenário jurídico-político.
Este artigo analisou a atuação de organizações religiosas no campo jurídico-político, com especial atenção para a Anajure e a ADF, destacando seus impactos nas decisões de Cortes Superiores no Brasil e nos Estados Unidos. Ao traçar um paralelo entre essas associações, foi possível identificar a complexa e multifacetada maneira como elas têm utilizado estratégias jurídicas para influenciar pautas de direitos civis e sexuais.
A análise das entrevistas realizadas demonstra que, ainda que a Anajure não seja sempre visível nas decisões formais, sua presença é sentida por atores envolvidos, operando como uma força que mobiliza afetos, medos e estratégias de resistência. A “presença fantasmagórica” da associação, como este artigo discutiu, revela um padrão de influência que ultrapassa a simples participação institucional e se insere nas dinâmicas de poder e controle jurídico, sendo capaz de afetar decisões mesmo quando sua participação formal é inexistente ou não confirmada.
Ao estabelecer um comparativo com a ADF, o artigo destacou como ambas as associações compartilham uma agenda jurídica e política que busca ampliar o campo de influência das religiões evangélicas no aparato estatal, utilizando o direito como ferramenta para promover suas visões conservadoras de liberdade religiosa e direitos civis. O sucesso da ADF nos Estados Unidos, em casos emblemáticos como o da reversão da decisão Roe v. Wade, e a crescente atuação da Anajure no Brasil, inclusive com participações como amicus curiae em processos importantes e na propositura de ADPFs, sinalizam para uma tendência global de avanço de pautas conservadoras por meio de mecanismos jurídicos e políticos. Essas organizações têm se especializado em transformar suas pautas morais em questões técnicas e jurídicas, conferindo-lhes legitimidade em esferas onde tradicionalmente não operavam.
Além disso, a pesquisa revelou como a influência dessas associações religiosas está atrelada a um processo de apropriação da máquina pública e dos discursos jurídicos, especialmente no que diz respeito à proteção dos direitos humanos. No Brasil, a Anajure tem buscado estabelecer sua legitimidade dentro do Poder Judiciário e Legislativo, posicionando-se como interlocutora relevante em temas sensíveis, como o direito ao aborto, à identidade de gênero e à liberdade religiosa. O fato de a associação ter sido chamada a contribuir tecnicamente na redação do novo Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-4) demonstra seu crescente poder de influência e a articulação que vem desenvolvendo com atores políticos estratégicos, como a ex-ministra Damares Alves.
As considerações finais deste artigo, portanto, apontam para a necessidade de futuras investigações sobre as formas pelas quais essas organizações religiosas se articulam no campo jurídico, com especial atenção para as suas estratégias de incidência indireta e não declarada. A atuação da Anajure, bem como de outras associações similares, evidencia a importância de se considerarem os efeitos subjetivos de medo e rumor que elas geram, além dos impactos materiais e normativos de suas ações.
Do ponto de vista teórico, a noção de "fantasmagoria" e de "rumor", como discutido ao longo do texto, emerge como uma chave analítica produtiva para se entender a maneira como o poder se manifesta de forma velada, mas eficaz, em esferas formais de decisão. Esses conceitos revelam a intricada rede de afetos e percepções que orientam as ações de resistência e conformidade dentro das instituições, particularmente quando atores religiosos adquirem espaço de atuação no campo jurídico. Finalmente, os desdobramentos práticos desta pesquisa indicam que, para além de uma análise normativa sobre a influência das associações religiosas no campo jurídico, é essencial compreender como essas dinâmicas de poder afetam a implementação de políticas públicas voltadas para a proteção de minorias.