Resumo: Este artigo propõe analisar as intrincadas relações estabelecidas entre raça, racismo e medicina, com foco em descrever como a raça, a partir de suas ausências e presenças, materializa-se no cuidado à saúde. O material que compõe este artigo é fruto de trabalho de campo etnográfico que vem sendo realizado desde 2020. A análise concentra-se nos efeitos dos processos de materialização da raça nas tecnologias para intervenções em saúde, nos diagnósticos e nos saberes e práticas médicas. Ao empreender tal estratégia analítica, a proposta é mostrar as distintas escalas pelas quais a raça transita e é acionada ou não. Por fim, ao considerar o caráter híbrido de seus efeitos e suas dobras temporais, busca-se explicitar como seu processo de materialização é coproduzido e relacional, sendo melhor compreendido a partir de suas implicações concretas na vida.
Palavras-chave: saúde, raça, materialidade, medicina.
Abstract: This article aims to analyze the intricate relationships between race, racism, and medicine, focusing on how race, through its absences and presences, materializes in healthcare. The material presented in this article is the result of ethnographic fieldwork that has been conducted since 2020. The analysis concentrates on the effects of the materialization of race on health intervention technologies, diagnostics, and medical knowledge and practices. By undertaking this analytical strategy, the goal is to reveal the various scales through which race circulates and is either activated or not. Finally, by considering the hybrid nature of its effects and its temporal folds, the article seeks to elucidate how the process of its materialization is co-produced and relational, and is best understood through its concrete implications in life.
Keywords: health, race, materiality, medicine.
Artigos
Quando as diferenças importam: Notas sobre efeitos da presença e ausência da raça no cuidado à saúde
When differences matter: Notes on the effects of the presence and absence of race in healthcare
Recepción: 10 Octubre 2024
Aprobación: 03 Noviembre 2024
Há especialidades médicas que não levam em consideração a raça, como se não houvesse tratamento racista na saúde. Em nossas aulas de dermatologia deste semestre, os temas são abordados como se a raça não tivesse influência nos diagnósticos ou nos desfechos. Mas as diferenças importam para estabelecer as melhores intervenções. A justificativa dada para não abordar essa temática é que, no final, somos todos humanos (Renato, 2021).
Ao revisitar meus diários de campo e entrar em contato novamente com trechos do diálogo realizado com Renato, estudante de medicina da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e membro do coletivo negro Quilombo Ubuntu, recordei-me das ilustrações de Chidiebere Ibe[1]. O ilustrador médico nigeriano tem buscado, com seus trabalhos, explicitar que é preciso levar a sério a raça ao longo do percurso de formação médica e no cuidado. Seus desenhos dão centralidade aos corpos negros, de modo a realizar uma refinada crítica à maneira como são elaborados os materiais gráficos utilizados no percurso de formação na área — crítica semelhante à que fazia o estudante, na ocasião de nossa conversa. O trabalho de Ibe foi ovacionado nas redes sociais quando viralizou, no final de 2021. Na ocasião, páginas de notícias nacionais e internacionais comentaram, especificamente, sobre uma de suas ilustrações, na qual era possível ver uma mulher negra e um feto também negro dentro de seu útero.
Nesse sentido, sua ação político-científica traz representatividade para um campo que toma o corpo branco como “parâmetro de normalidade” para a produção de conhecimentos, intervenções e tecnologias (Muniz 2021, 351). Entretanto, sua iniciativa vai além de trazer representatividade para as ilustrações médicas, pois ela desvela como práticas, saberes e tecnologias são afetados pela presença ausente da raça, e como diferenças e desigualdades se materializam no cuidado à saúde (M’Charek 2013; M’Charek, Schramm e Skinner 2014; Muniz 2021).
Em um primeiro momento, ao aproximar o diálogo com o estudante de medicina das ilustrações de Ibe, acredito ser possível estabelecer algumas conexões parciais entre eles (Strathern 2004), a fim de oferecer, neste artigo, possíveis perspectivas acerca das complexas relações entre raça, racismo e medicina. Um outro exercício proposto aqui será refletir sobre como a raça, a partir de suas presenças e ausências, transita por diferentes escalas. Em vista disso, descrevo-a como um objeto relacional, constituído a partir de suas dobras (M’Charek 2014), sem limites ou fronteiras claramente delimitadas (Mol e Law 1994). A partir deste movimento analítico, proponho explicitar que a etnografia se constitui como uma maneira útil para descrever os processos de materialização e a circulação da raça, bem como os efeitos do racismo no âmbito da saúde.
Entre os anos de 2020 e 2022, em razão de minha pesquisa de mestrado em Antropologia Social, realizei trabalho de campo nas atividades do Quilombo Ubuntu. O meu propósito com a pesquisa era investigar os efeitos subjetivos da política de cotas raciais e bancas de heteroidentificação na experiência de discentes do curso (Rosa 2022, Rosa e Facchini 2022). Mas a etnografia me fez compreender como a existência daquele grupo e seus modos de fazer política não influenciavam apenas os processos que buscava investigar, mas também impeliam os estudantes membros do coletivo a elaborar reflexões críticas acerca da formação médica, com o objetivo de travar disputas epistêmicas no âmbito do curso. Assim, o trabalho de campo do mestrado me capturou de diversas maneiras, conduzindo-me a novos caminhos e interesses[2].
Esses interesses, agora, estão mais focados em refletir sobre os processos de materialização da raça na saúde, dando especial ênfase em seus efeitos nas práticas médicas que dizem respeito ao cuidado da Hipertensão Arterial Sistêmica (HAS)[3]. Desde o início de 2023, conduzo trabalho de campo no Race.ID[4] e no Centro de Atenção Primária à Saúde (APS) Maria Odília Teixeira[5]. Adicionalmente, acompanho algumas atividades da Área Técnica de Saúde da População Negra[6] da Secretária Municipal de Saúde (SMS) de São Paulo. Diante disso, neste artigo retomo eventos etnográficos da pesquisa de mestrado e os relaciono com materiais provenientes de meu trabalho de campo atual[7].
O trecho da conversa com Renato[8] apresentada no início do artigo e as ilustrações de Ibe apontam para dois caminhos convergentes. O primeiro diz respeito ao que podemos chamar de negação dos efeitos da raça e, consequentemente, do racismo para o processo da formação médica. O segundo, por sua vez, diz respeito ao processo de sua materialização e seus efeitos concretos nos saberes e no cuidado. O primeiro caminho aponta para a suposta ausência e o outro para a sua presença. Desse modo, a partir da presença ausente da raça, ambos dão pistas que apontam para as maneiras particulares pelas quais seu processo de materialização e seus efeitos precisam ser levados a sério para o cuidado à saúde.
A noção de presença ausente mobilizada neste artigo é inspirada pelos trabalhos de M’Charek. Esta conceituação denota que a raça oscila entre a realidade e a não-realidade, ou mesmo negação. Ter clareza sobre este jogo que ora a coloca como uma ficção, ora como um fato auxilia-nos a dar conta dos efeitos concretos de sua materialização no tempo, espaço, relações, corpos e coisas (M’Charek 2013; M’Charek 2014; M’Charek, Schramm e Skinner 2014). Isto ocorre porque ela é produzida a partir de uma gama de elementos que a tornam difusa. Inspirada por Haraway e Mol, M’Charek (2013) advoga por uma relacionalidade radical da raça e a descreve como um objeto material semiótico que não pode ser reduzido a um único elemento. Diante disso, atentar-se às práticas e aos modos como elas produzem a raça retira o foco do corpo somático, oferecendo “uma maneira eficaz de desnaturalizar as diferenças raciais”[9] (M’Charek 2013, 437).
Assim, as práticas são ações privilegiadas para captarmos os modos, sempre transitórios, pelos quais saberes, categorias e coisas ganham materialidade e produzem efeitos (Mol e Law 1994, Law e Mol 1995, Mol 2002, M’Charek 2013, Rohden 2018). Essa abordagem, por sua vez, denota que a raça
não pode ser reduzida a um único marcador de diferença. Ela não está intrinsecamente ligada à cor da pele, características físicas, uma linha na palma da mão, DNA, roupas, identidade nacional ou algo parecido. Ela é uma configuração, um efeito das relações entre diferenças[10] (M’Charek2013, 435).
Por hora, apresento apenas algumas pistas acerca das análises que buscarei elaborar ao longo do artigo. Em um primeiro momento, atento-me a como ela afeta a produção científica, mesmo quando não intencionalmente articulada. Neste ponto, reflito sobre sua presença ausente no oxímetro e na hipertensão. A partir disso, perseguindo a raça por distintas escalas, mostro como seu processo de materialização ocorre a partir de uma relacionalidade radical. Na sequência, analiso como os processos anteriormente descritos contribuem para uma reflexão sobre o estatuto híbrido de seus efeitos (Latour 1994), já que raça, enquanto um construto social, produz efeitos concretos na vida. Finalmente, analiso as suas dobras temporais, que aludem à repetição e a como uma mesma coisa pode, reiteradamente, materializar-se em distintos espaços e temporalidades, mas com usos e significados distintos (M’Charek 2013). Ao descrever as complexidades inerentes aos processos de materialização da raça nos saberes e práticas médicas e ao explicitar as implicações do racismo no cuidado, em vez de tentar ordená-los ou inscrevê-los de modo singular, minha aposta é contribuir para um debate que dê centralidade para seus efeitos concretos, relacionais e que atravessam temporalidades distintas.
A pandemia de Covid-19 e outros eventos semelhantes adensam perversamente as desigualdades já existentes para o acesso e à promoção da saúde, provocando impactos incomensuráveis à saúde pública global. Contemporaneamente, é possível tomar a pandemia como um exemplo desses eventos, uma vez que o vírus se espalhou e matou “de forma desigual em termos de idade, classe, raça, sexo e geografia” (Biehl 2021, 339). Além de ter atingido a população não branca e pobre de maneira mais contundente (Araújo et al. 2020, Batista, Proença e Silva 2021), este evento crítico chamou a atenção de alguns cientistas, profissionais e pesquisadores por deixar ainda mais evidente como estratégias de cuidado e as tecnologias elaboradas para intervenções em saúde são diretamente atravessadas por diferenças e desigualdades. Isso pode se tornar mais evidente a partir das aulas sobre racismo e saúde que acompanhei em 2023, ministradas por Júlio, um dos médicos que integra o Race.ID, para os profissionais de um hospital-escola na cidade de São Paulo.
Em tais encontros, o médico-pesquisador mostrava evidências científicas que atestavam os efeitos do racismo para a saúde. E, logo no início de sua apresentação, explicitava as desigualdades relacionadas às taxas de vacinação contra a Covid-19 para argumentar que a estratégia elaborada para lidar com a pandemia no contexto brasileiro, ainda que eficiente quando comparada a outros lugares, poderia ser compreendida como racista. Neste momento, o semblante das pessoas era de espanto.
Eis que Júlio apresentava um gráfico no qual comparava a taxa de envelhecimento em dois bairros: um de classe média alta e outro situado em uma região mais periférica da cidade de São Paulo. A partir disso, sublinhava que, enquanto no primeiro, majoritariamente composto por brancos, as pessoas viviam cerca de 80 anos, no segundo, mais periférico e composto por um grande contingente de negros, as pessoas dificilmente chegavam aos 60. Considerando que a estratégia de vacinação teve início entre a população mais idosa, sem qualquer outro recorte que levasse em consideração raça, classe ou expectativa de vida, os grupos que residiam em bairros periféricos consequentemente levaram mais tempo para serem vacinados e permaneceram expostos ao vírus por um período maior. Não é difícil entender por que pessoas negras morreram mais em decorrência da Covid-19, e pessoas brancas, por outro lado, foram duas vezes mais vacinadas (Araújo et al. 2020, Muniz et al. 2021). Nesse momento, Júlio indagava: “As estratégias de combate à pandemia são isentas de racialidade?”. Sua resposta era: “Não, não são”.
Em vista disso, para adensar a reflexão acerca dos modos particulares pelos quais a raça se materializa nos saberes, tecnologias e intervenções, nesta seção irei dialogar, em um primeiro momento, com o oxímetro e, posteriormente, com a hipertensão. Com objetivo de aferir as taxas de saturação de oxigênio na corrente sanguínea, o oxímetro é responsável por realizar um teste não invasivo e indolor. Trata-se de um pequeno dispositivo, em formato de clipe, que se acopla ao dedo da mão e opera por meio de luz infravermelha capaz de atravessar a pele de quem o utiliza. O dispositivo popularizou-se com a eclosão da pandemia de Covid-19, uma vez que o vírus Sars-Cov 2 afeta, principalmente, as vias respiratórias e, por conseguinte, a oxigenação. Monitorar as taxas de oxigênio de pacientes contaminados ou com suspeitas de Covid-19 tornou-se uma prática corriqueira, inclusive no âmbito doméstico, por ser um aparelho de fácil manuseio. Em conjunto com outros exames e a análise clínica dos sintomas, a aferição sistemática do nível de saturação do oxigênio contribuiria para compreender se um paciente necessita de cuidados intensivos.
Ainda que o uso do aparelho seja cotidiano nos serviços de saúde, o oxímetro tende a apresentar taxas menos precisas de mensuração em pessoas negras, de acordo com um editorial publicado pelo New England Journal of Medicine (2020). Grosso modo, o grau de precisão do aparelho não está calibrado segundo a pigmentação da pele de pessoas não brancas, produzindo, nesses casos, parâmetros pouco consistentes (Sodjing et al. 2020).
Ao longo dos estudos para o desenvolvimento do oxímetro, a pigmentação da pele de pessoas não brancas foi desconsiderada como um fator que demandaria ajustes em seu funcionamento. Isso significa que a imprecisão da medição estaria intimamente atrelada à cor da pele ou a como seus desenvolvedores basearam-se em um corpo branco para elaborá-lo (Ibidem). Ainda que tal imprecisão esteja em discussão na comunidade científica (Sodjing et al. 2020, Fawzy et al. 2022), não é possível concluir que houve, intencionalmente, discriminação racial para a produção dos aparelhos, afirmam Sodjing et al. (2020). No entanto, tal falha desvela como raça e racismo se fazem presentes mesmo quando negados, tornando corpos não brancos “refratários à intervenção tecnológica”, já que estão fora de um certo “parâmetro de normalidade” (Muniz 2021, 351).
Essa constatação destaca a urgência de entender e corrigir potenciais discriminações que atravessam os processos de elaboração das tecnologias, uma vez que eles não estão isentos de “racialidade” conforme sublinhou Júlio em suas aulas. Em 2021, o então secretário de saúde britânico Sajid Javid cobrou uma resposta da falha — ou do viés racial — existente nos equipamentos médicos responsáveis pela oximetria (Reuters 2021). Na visão da Javid, o caso do oxímetro representa uma falha sistêmica, e não se trata de um defeito de fabricação, podendo ser visto como produto das relações sociais de poder e das desigualdades que atravessam a produção científica.
Ao olhar para o caso do oxímetro e as controvérsias que o circundam, é possível compreender como a elaboração de tecnologias constitui-se em um processo complexo, povoado por distintos atores, humanos e não-humanos, que conjuntamente buscam fabricar e estabilizar, ainda que temporariamente, fatos que tornam possível o seu funcionamento e atestam sua eficácia (Mol e Law 1994, Strathern 2014, Latour 2017). Ao evidenciar as discussões em torno do oxímetro e sua imprecisão, é necessário observar que fatos estão sujeitos a terem aquilo que atestam colocado em xeque: Existiu discriminação no processo de elaboração do oxímetro? É possível compreender e corrigir as potenciais discriminações raciais materializadas nas tecnologias? Por fim, o oxímetro é racista?
Para que fosse possível denunciar publicamente algo que já vinha sendo estudado — a imprecisão do aparelho —, foram necessárias a atuação de médicos, a pandemia de Covid-19, o novo coronavírus, pacientes contaminados, a pele e outros atores que povoam uma vasta rede. O caso do oxímetro é útil para refletir sobre a materialização da raça e seus efeitos nas tecnologias, mas também oferece rendimentos para compreender como ela e o racismo se fazem presentes, a despeito de sua negação, no cuidado à saúde, estabelecendo conexões com determinados espaços, atores e temporalidades específicas.
À luz da discussão sobre o oxímetro, trago neste momento a hipertensão para o diálogo. Em uma das consultas que acompanhei no Centro de Saúde Maria Odília de Teixeira, enquanto a paciente falava sobre seus problemas de pressão e suas causas, Célia, a médica que a atendia, respondeu: “é... a pressão alta tem a ver com a vida mesmo”. Na sequência, pediu à paciente que trouxesse, na próxima consulta, seu aparelho de pressão, pois dessa forma seria possível comparar com o do Centro de Saúde. Em certa medida, há distinções entre os aparelhos e os parâmetros apresentados, sobretudo se o medidor não estiver devidamente calibrado ou não for adequado à circunferência do braço de quem o utiliza (Brasil 2014). Para quem convive com a hipertensão, é imprescindível que o medidor esteja operando em sua melhor condição para determinar se a pressão está sob controle.
A frase dita pela médica auxilia-me a refletir sobre as controvérsias que dizem respeito às possíveis causas da HAS e aos processos de elaboração de seu diagnóstico. Além disso, esmiuçar esta frase ajuda a compreender como as causas para um pior controle da pressão arterial não estão circunscritas apenas aos aspectos biológicos. Fatores ambientais e sociais influenciam igualmente o surgimento e o tratamento dessa condição, provocando, inclusive, tensionamentos na literatura sobre o tema (Calvo-Gonzalez 2011, Fleischer 2018, Sousa et al. 2020).
Viver em condições precarizadas, ter de, diariamente, passar muito tempo em transportes públicos, conviver com o medo de ser vítima da violência do Estado, a escassez de recursos materiais para manter uma vida digna, entre outros, podem ser considerados como fatores estressores. Atrelado a isso, ter acesso deficitário a uma alimentação balanceada, dificuldades de acesso aos serviços de saúde, não ter a possibilidade de realizar atividades físicas regulares, ter de viver em áreas de risco de desabamento ou outros desastres, também são fatores que contribuem para o aumento do nível pressórico (Calvo-Gonzalez 2011, Fleischer 2018). Não é por acaso que, como disse Célia, “a pressão alta tem a ver com a vida”. A HAS é uma condição multifatorial e uma das doenças cardiovasculares mais comuns, sendo o principal fator de risco para acidente vascular cerebral (AVC), infarto agudo do miocárdio ou doença renal crônica (Brasil 2014).
O parâmetro que estabelece a normotensão, ou seja, a pressão arterial considerada normal, tem mudado historicamente ao longo das diretrizes elaboradas pelas distintas associações médicas existentes (Luna 1999, Fleischer 2018). Tais mudanças dizem respeito ao caráter transitório de seu diagnóstico, uma vez que precisa responder às demandas de suas respectivas épocas, bem como às de cientistas, médicos, pacientes, e dialogar com os dados epidemiológicos. O que temos hoje, pactuado pela Sociedade Brasileira de Cardiologia — e por outras Sociedades Internacionais (Unger et al. 2020, Mancia et al. 2023) — é considerar: “PA sistólica (PAS) maior ou igual a 140 mmHg e/ou PA diastólica (PAD) maior ou igual a 90 mmHg, medida com a técnica correta, em pelo menos duas ocasiões diferentes, na ausência de medicação anti-hipertensiva” (Barroso et al. 2021, 528). Dito de outro modo, para que a pressão seja considerada alta, ela deve ser igual ou maior a "14 por 9".
A Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN)[11] oferece um panorama relevante sobre os desafios de acesso ao cuidado enfrentados por essa parcela da população, com foco nos dados que revelam desigualdades na mortalidade materna, no acesso aos serviços de saúde e a medicamentos. Chama a atenção também para as assimetrias no tratamento do HIV/AIDS e hepatites. Além disso, dedica uma seção para tratar do que denomina de Doenças genéticas ou hereditárias mais comuns da população negra. Este último item indica que há alguns processos de adoecimento que incidem, de modo particular, sobre a população preta e parda brasileira, como, por exemplo, a hipertensão.
No que concerne à raça e sua presença em algumas diretrizes brasileiras para o manejo da HAS, é possível encontrá-la nos seguintes trechos: “Na população negra, a prevalência e a gravidade da hipertensão são maiores, o que pode estar relacionado a fatores étnicos e/ou socioeconômicos” (Brasil 2014, 60); “A etnia é um fator de risco importante para a HA, mas condições socioeconômicas e de hábitos de vida parecem ser fatores mais relevantes para as diferenças na prevalência da HA [...]” (Barroso et al. 2021, 528). Nas diretrizes, quando se mobiliza a noção de raça, ou mesmo etnia, há um movimento de aproximá-las à genética. Isso é evidente quando as possíveis causas da hipertensão são divididas em aspectos biológicos e sociais. Há, por um lado, o reforço de um suposto componente racial genético como fator de risco para sua manifestação. Não à toa, na anamnese dos pacientes são comuns questões como “Há casos de AVC na família? Hipertensão? Diabetes?”. Por outro lado, os hábitos, local de moradia e as condições socioeconômicas, ou seja, fatores ambientais e sociais também são indicados como relevantes, sendo explicitados como, talvez, mais importantes do que componentes genéticos para a manifestação da HAS. No entanto, nesse segundo conjunto de fatores, raça, ou mesmo racismo, não se fazem presentes.
Quando olho atentamente para os usos e imprecisões do oxímetro, para as distintas nuances presentes no cuidado da hipertensão, bem como para as controvérsias que os permeiam, localizo uma vasta gama de atores com papéis relevantes para sua temporária estabilização, como cientistas, médicos, pacientes, oxigênio, pele, esfigmomanômetro, microscópio e sangue, apenas para listar alguns. De modo semelhante, dialogando com Latour, Strathern (2014, 301) mostra como a descoberta do Antraz só foi possível por estar atrelada a uma gama de “fatores estatísticos, retóricos e operacionais” entremeados a tal descoberta, de modo a sustentar “numa rede contínua de efeitos, as ligações demonstrativas fundamentais entre bacilo, doença, laboratório, experimento de campo e a vida de animais individuais” (Ibidem, 301).
Se, por um lado, o funcionamento do oxímetro e o diagnóstico da hipertensão estão amparados por fatos provisoriamente estabilizados que atestam sua eficácia e factualidade, por outro lado, a presença ausente da raça no medidor de oxigênio e os modos como a pressão é diretamente alterada por fatores exógenos ao corpo explicitam suas condições provisórias e de fabricação (Latour 2017). Então, como não levar a sério os efeitos de distintos processos de racialização e da própria materialização da raça na produção de tecnologias, na elaboração de diagnósticos e no cuidado à saúde?
O que chamou a atenção de M’Charek (2013, 2014) em suas pesquisas intriga-me quando olho para o meu campo: a presença ausente da raça nos saberes e práticas médicas. Ainda que tais presenças se materializam e produzam efeitos concretos na vida, tanto raça quanto racismo seguem interditos ou são considerados menos importantes para a formação médica e para o cotidiano dos serviços de saúde. Em suma, acabam não sendo levados a sério ainda que estejam ali, o tempo todo, produzindo efeitos (M’Charek, Schramm e Skinner 2014; Muniz 2021). Assim, os usos do oxímetro, bem como a sua limitação e as controvérsias relacionadas ao diagnóstico e cuidado da hipertensão são bons para pensar sobre a presença ausente da raça e os efeitos do racismo na saúde. Por fim, desconsiderá-los não os impede de se materializarem e de produzirem, cotidianamente, impactos na vida.
De um lado, o secretário de saúde britânico e cientistas chamam a atenção para o viés racialpresente na produção do oxímetro, explicitando que o aparelho é menos preciso em pessoas não brancas. De outro, a médica do Centro de Saúde e materiais oficiais relacionados ao manejo da hipertensão mostram como diferenças e desigualdades contribuem para a manifestação dessa condição. Ambos os casos desvelam como a raça se materializa de múltiplas formas, e como esse processo irá ocorrer está diretamente relacionado com as temporalidades, espaços, coisas e atores que a articulam. Este objeto material semiótico constitui-se, então, a partir de relações específicas, e seus efeitos borram as fronteiras entre o social e o biológico, tornando-se híbridos (Latour 1994).
Neste ponto, pode parecer confuso conectar o trecho da conversa que tive com Renato e as ilustrações de Ibe trazidos no início deste artigo ao oxímetro e à hipertensão. No entanto, esta abordagem auxilia-me a estabelecer outras conexões parciais (Strathern 2004), e a perseguir os modos pelos quais a raça se materializa. Tal abordagem leva-me a perceber que, para compreender as relações entre raça, racismo e medicina, faz-se necessário atentar-me a múltiplas escalas e tentar, ainda que provisoriamente, apreender suas conexões.
No início de 2023, estive na primeira aula prática sobre racismo e saúde realizada pelo Race.ID, voltada para os estudantes de medicina de uma universidade pública na cidade de São Paulo. A proposta era realizar simulações de atendimentos e situações que poderiam ser vividas no cotidiano de um serviço de saúde, de forma a explicitar a relevância da saúde da população negra e mostrar aos estudantes os possíveis efeitos do racismo para os desfechos em saúde.
Os casos apresentados nas simulações foram elaborados de modo que captassem a atenção, mas também intrigassem os estudantes. Na ocasião, eles foram divididos em pequenos grupos, permitindo que pudessem vivenciar de perto as simulações. Cada grupo passaria por duas situações e uma estação de pesquisa. Nesta última, seriam apresentados trabalhos acerca dos impactos do racismo para os desfechos em saúde. Seriam duas simulações, uma em que encontrariam um paciente-ator negro mais velho queixando-se de uma dor no peito e questões relacionadas ao seu cotidiano, sem outros sintomas aparentes. Já na outra situação, os universitários estariam diante de um enfermeiro-ator que acabara de sofrer um episódio de racismo perpetrado por uma paciente. Na primeira, eles seriam os médicos responsáveis por acolher e formular um possível desfecho. Na outra, eram parte de uma equipe de residentes que precisaria indicar a melhor estratégia para lidar com aquela denúncia. Descobri, posteriormente, que aulas como essa são comuns nos cursos de medicina e chamam-se Exame Clínico Objetivo Estruturado (OSCE).
Acompanhei as simulações nas quais estava presente o enfermeiro-ator que sofreu racismo no ambiente de trabalho; cada uma delas durava cerca de quinze minutos. Os estudantes mostraram-se empenhados em resolver as demandas do enfermeiro e levaram a sério suas queixas, de modo a formular uma possível resolução, pactuada com ele. Como, por exemplo, a remoção do autor da violência do setor ou mesmo uma sanção institucional que tivesse como objetivo uma medida educativa, não punitiva. Uma das habilidades[12] avaliadas no OSCE que chamou a minha atenção era: “o estudante identifica, sem a intervenção do ator, que a raça e o racismo estão na gênese das queixas?”. Contudo, ainda que o enfermeiro tenha dito que a violência sofrida por ele ocorreu “porque era preto”, autodeclarando-se racialmente, os estudantes, em sua maioria, não verbalizaram a palavra “racismo” ao longo das simulações que observei. Ela foi dita em apenas uma ocasião por uma das únicas estudantes negras presentes. Posteriormente, soube que ela era integrante do coletivo negro universitário daquele curso.
A aula prática torna-se uma situação etnográfica interessante para pensar sobre a presença e a ausência da raça na medicina e sobre sua circulação por distintas escalas. Primeiro, porque raça e racismo estão entremeados nos saberes e práticas médicas, e no processo de formação. Em segundo lugar porque leva em consideração os atravessamentos do racismo no cuidado à saúde e na formação médica, propondo explicitar a relevância da saúde da população negra para a prática. Não se pode perder de vista que, historicamente, são corpos bastante específicos, em sua maioria brancos (Scheffer et al. 2023), que ocupam as vagas nos cursos de medicina públicos e particulares. Embora este cenário esteja se transformando paulatinamente em razão das políticas de ação afirmativa, ainda segue atravessado por desigualdades que contribuem negativamente para o acesso e a permanência de estudantes negros, e para o próprio percurso formativo, incidindo na produção de conhecimento e no cuidado (Rosa 2022, Rosa e Facchini 2022). Em outras palavras, a materialização da raça e o racismo produzem efeitos desde a formação e estão entremeados, também, nos serviços de saúde. Ainda assim, não são articulados de modo expressivo ou vistos como relevantes para a formação dos futuros médicos e outros profissionais da área (Anderson 2008, Braun 2017).
Desse modo, a emergência de demandas por temas que tratem sobre os impactos do racismo na saúde, a atuação de sujeitos que conjugam sua atividade profissional na área com ações de advocacy e a implementação de políticas de ação afirmativa para acesso ao ensino superior, apenas para puxar alguns fios, passam a tensionar e explicitar as raízes coloniais entremeadas à medicina (Fanon 2020), contribuindo para a realização daquela aula e de outras atividades sobre a temática[13].
Ainda que inflexões estejam em curso como observadas no episódio que descrevo acima, os interlocutores de minha pesquisa contam-me como, não obstante, falar sobre raça e os efeitos do racismo para a saúde segue como uma espécie de interdição. Em relação a isso, vivi uma situação interessante no trabalho de campo do doutorado. Em uma tarde de 2023, dirigi-me até uma das salas do Centro de Saúde para participar de uma reunião na qual discutiríamos casos de violência e conflitos vividos pelos sujeitos atendidos pelo Núcleo de Prevenção de Violência (NPV)[14].
Quando cheguei à sala, encontrei uma médica já aguardando o início da reunião. Apresentei-me e tentei, sucintamente, falar sobre minha pesquisa. Ela mostrou interesse em minha proposta e tentou conectar o que pensava acerca de meu tema à prática médica. Em sua perspectiva, a formação na área é integralmente baseada na biomedicina, além de ser extremamente tecnicista. Seguiu dizendo que a medicina toma como referência a biologia e, em suas palavras, "todo esse conhecimento dá uma capacidade de intervenção no corpo muito grande ao médico". É tendo em vista essa “capacidade de intervenção” que ela conta que, para muitos profissionais da área, acaba não sendo razoável falar sobre questões sociais e seus impactos para a saúde, como se estas estivessem dissociadas da biologia, porque, ao fim e ao cabo, “um fígado é apenas um fígado” — ele não é branco, negro ou indígena — e tais questões não incidem sobre seu funcionamento. Nesse sentido, levar em consideração aspectos sociais era, em suas palavras, “uma traição” à racionalidade biomédica. Aliado a isso, há uma defesa de que a promoção da saúde precisa acontecer para todos de forma igualitária, e falar sobre raça seria demarcar diferenças.
Observar como a raça emerge nas descrições etnográficas realizadas até aqui explicita que “ao tomar corpos brancos como neutros e universais”, tecnologias e sujeitos responsáveis por produzir diagnósticos e pelo cuidado à saúde a operacionalizam “o tempo todo, mas de modo que as intervenções são aparentemente desracializadas” (Muniz 2021, 351), favorecendo a manutenção de desigualdades em saúde.
Quando me atento às escalas pelas quais a raça se materializa, compreendo que estou caminhando por espaços fluídos (Mol e Law 1994), nos quais circulam humanos, coisas, saberes, fatos e práticas que estão apenas temporariamente relacionados. A partir de etnografia acerca dos modos como se cuida da anemia em países distintos, Mol e Law (1994) desenvolvem a noção de espaço fluído. Observando como, dependendo do contexto, os médicos elaboram diagnósticos e intervenções específicas para pacientes com anemia, eles evidenciam que a mesma doença se manifesta de maneiras particulares e entrelaça espacialidades distintas.
Ao transitar por múltiplas escalas e rastrear as conexões que me fazem identificar a presença ausente da raça, compreendo que, durante meu trabalho de campo, também caminho por espaços fluídos que estão apenas provisoriamente relacionados. Sob esta lógica, Mol e Law (1994) auxiliam-me a compreender que a raça se apresenta de maneiras particulares nos distintos espaços que compõem o campo de minha pesquisa, de modo a entrelaçá-los. Tal trabalho inspira-me a borrar fronteiras e a perseguir os efeitos que conectam escalas, coisas e atores.
Inspiro-me também na maneira como Rohden (2018) descreve os processos de materialização da testosterona nos saberes e nas práticas médicas, bem como nas controvérsias sobre os chamados “hormônios sexuais”. Em sua etnografia, a autora mostra como a questionável afirmação: “o hormônio testosterona é o responsável pelo desejo sexual e de que, como consequência, no caso das mulheres seria necessário ‘repô-lo’” (Ibidem, 141), manifesta-se em distintos âmbitos, desde a literatura médica até as narrativas de profissionais e pacientes que realizam o procedimento. Essa afirmação, por sua vez, produz uma suposta necessidade de sua reposição, e da associação entre esse hormônio e o desejo. Ao identificar as conexões entre atores, saberes e práticas que estabilizam a eficácia da reposição da testosterona, é possível compreender, como indica Latour (2017), que fatos são fabricados de acordo com temporalidades, interesses e relações contextuais.
No caso da defesa da reposição de testosterona em mulheres, faz-se necessário oferecer justificativas estritamente biológicas para sua necessidade, de modo a escamotear as influências políticas e sociais de tal justificativa. Diante disso, biológico e social não podem ser vistos separadamente, como propõe o esquema purificador da ciência moderna (Latour 1994). Parece-me, então, que eles precisam ser tomados como mutuamente produzidos e o tempo todo imbricados, de modo a não reforçar dualismos que pouco nos dizem sobre objetos, práticas, relações e, sobretudo, efeitos. Não à toa, no âmbito da saúde pública e da APS, é amplamente mobilizado o conceito de determinantes sociais de saúde (Buss e Filho 2007). Justamente para relacionar os modos pelos quais o social e o biológico estão o tempo todo se afetando e sendo coproduzidos (Jasanoff 2004), constituindo necessidades e condições de saúde específicas. O fazer etnográfico auxilia-me a levar a sério a maneira fluída como os espaços se constituem, intersectam e distanciam, variam e transformam-se (Mol e Law 1994), convocando-me a perseguir conexões e descrever seus efeitos na vida.
Até aqui, esforcei-me para mostrar os aspectos contingenciais de materialização da raça, bem como as escalas pelas quais ela circula, com atenção aos distintos espaços, saberes, práticas, coisas e atores que a agenciam. A minha aposta neste momento é explicitar que seus processos de materialização no cuidado à saúde e suas dobras revelam como social e biológico se entrelaçam, uma vez que raça incide sobre desfechos, diagnósticos, processos de adoecimento, bem como saberes e práticas médicas. Aqui, parece-me pertinente demarcar que não estou, de forma alguma, advogando pelo estatuto biológico da raça, uma vez que a defesa de tal estatuto foi feita para hierarquizar coletivos e cometer os mais perversos e abomináveis crimes contra a humanidade, cujos efeitos ainda enfrentamos na contemporaneidade. Apenas reconheço que a raça enquanto uma construção social e o racismo produzem efeitos perversos na saúde e atravessam os modos como os sujeitos nascem, vivem e morrem.
A insistência para a produção e manutenção de fronteiras imaginárias e precárias que separam natureza e cultura, humanos e não humanos, biológico e social, fato e ficção — e outras cisões que dão bases para o advento da ciência moderna — favorece, como indica Latour (1994), a proliferação de híbridos. Essas entidades ambíguas, feitas de naturezas e culturas, têm sua existência negada, uma vez que sua criação resulta do exato processo que a modernidade busca instaurar: a divisão. Nesse sentido, produzir cisão e negar a existência dos híbridos acabam ensejando sua proliferação. Tal negação está no cerne da modernidade e, para a sua precária manutenção, são necessárias duas práticas. O primeiro conjunto de práticas diz respeito à tradução, “misturas entre gêneros de seres completamente novos, híbridos de natureza e cultura” (Latour 1994, 16). Já o segundo conjunto engendra, por meio da purificação, “duas zonas ontológicas inteiramente distintas, a dos humanos, de um lado, e a dos não humanos, de outro” (Ibidem, 16).
É neste sentido que Strathern (2014, 300) sublinha que, para Latour, “o poder retórico do híbrido reside em sua crítica da forma pura, cujo arquétipo é a crítica da separação entre tecnologia e sociedade, cultura e natureza, humano e não humano”. Tendo em vista o que descrevi até aqui, minha proposta é levar a sério os efeitos híbridos dos processos de materialização da raça no cuidado à saúde, pois a suposta separação entre social e biológico contribui pouco para a apreensão de tais efeitos, uma vez que eles são coproduzidos. Nos termos de Jasanoff (2004, 3), a coprodução é “vista como uma crítica à ideologia realista que, persistentemente, separa os domínios da natureza, fatos, objetividade, razão e policy daqueles da cultura, valores, subjetividade, emoção e politics”[15].
Além de considerar os efeitos híbridos da materialização da raça na saúde, também articulo a noção de objeto dobrado. Tal formulação, por sua vez, contribui para identificar a reincidência de um mesmo objeto em outros espaços e temporalidades (M’Charek 2014). Sob esta perspectiva, para tentar desenredar os múltiplos fios que constituem a raça, M’Charek formula a noção de objeto dobrado. Em suas etnografias, compreende que ela se transforma de acordo com o tempo e lugar, e “observar como os objetos performam o tempo, como suas dobras o mantêm, pode nos ajudar a compreender a relação entre a história de um objeto e o potencial de sua política aqui e agora”[16] (M’Charek 2014, 48). Ela está interessada em estabelecer conexões entre objeto, espaço e tempo, explicitando que a materialização da raça e seus efeitos, quando observados, podem estar conectados com formas outras pelas quais atores, relações, saberes e práticas a acionaram em outras condições, conforme tenho descrito ao longo do texto.
Acerca disso, Rohden (2018, 139) mostra que “o foco exclusivo na performance do objeto aqui e agora tem deixado ausentes as diversas camadas de temporalidade” que também o constituem, pois há inúmeros pontos que interconectam as formas como um dado objeto se apresenta. Partindo de pontos feitos em um guardanapo que, quando dobrado, se aproximam, é possível exemplificar as maneiras pelas quais um objeto não está apenas materializado no presente, já que sua existência está intimamente relacionada à sua aparição em outros contextos (M’Charek 2014). Dito de outra maneira, podemos considerar que o guardanapo representa o tempo-espaço e os pontos podem ser tomados como o mesmo objeto apresentando-se em distintos lugares e temporalidades. Dessa forma, quando ele é dobrado, tais pontos aproximam-se, indicando suas relações pregressas (Serres e Latour 1995).
Esta noção exemplifica as maneiras pelas quais um objeto não está apenas produzindo efeitos aqui e agora, já que sua existência pode estar relacionada a outros engajamentos, espaços e temporalidades. Como exemplo disso, temos o modo como a raça se materializa e produz efeitos na fala de Renato, nas ilustrações de Ibe, nas aulas de Júlio, no oxímetro, na hipertensão, na aula prática do curso de medicina e no discurso da médica: todos são pontos de um guardanapo que, quando dobrado, se intersectam. Por um lado, parece haver uma espécie de interdição em discutir sobre raça e racismo, bem como sobre seus efeitos, em cursos de medicina e serviços de saúde (Anderson 2008, Braun 2017, Rosa 2022, Rosa e Facchini 2022). Por outro lado, a atenção aos saberes, práticas, tecnologias e escalas desvela como, a partir de sua presença ausente, de seus efeitos híbridos e a partir de suas dobras, raça ressoa e, mais do que isso, existe, a despeito de sua negação (M’Charek 2013; M’Charek, Schramm e Skinner 2014; M’Charek 2014; Muniz 2021).
Em Beyond fact or fiction: On the materiality of race in practice, M’Charek (2013) reflete sobre a materialidade da raça, dando atenção às relações, objetos e atores que tornam esse processo possível. A antropóloga empreende tal abordagem analítica a partir de três eventos etnográficos. O primeiro é um episódio vivido por ela própria quando leva sua filha ao hospital. Na ocasião, ela descreve as tensões que emergiram a partir do encontro com o médico e quando este, por sua vez, heteroidentificou racialmente sua filha e comparou sua tonalidade de pele com a de M’Charek. Em suma, a bebê era branca e a mãe não era, em sua perspectiva. Ainda, o médico também identificou a prega simiesca[17] nas mãos da bebê. A suposta palidez da criança em conjunto com a prega simiesca o fez suspeitar que ela talvez tivesse Síndrome de Down. Sua suspeita desmantelou-se quando conheceu o pai da recém-nascida e constatou que este era branco, assim como sua filha. Em outras palavras, a criança não estava pálida e, tampouco, as marcas em suas mãos representavam algo.
A segunda situação diz respeito ao uso de imagens obtidas por meio de câmeras de vigilância para a busca de suspeitos de um assassinato. A partir das imagens coletadas do momento do ataque, ocorrido em uma estação de trem, em Bruxelas, as autoridades passaram a buscar dois sujeitos que estavam presentes no momento e pareciam suspeitos de cometer o crime. Tal constatação foi elaborada em razão das roupas que vestiam, os movimentos corporais performados e a aparência fenotípica. Com base em imagens de baixa qualidade capturadas por uma câmera pública, autoridades concluíram que os suspeitos eram norte-africanos, talvez marroquinos (Ibidem).
Por fim, o último caso trata de um esqueleto encontrado nas imediações de uma igreja, na Holanda. Tal esqueleto, batizado de Marcus, foi utilizado para recriar a suposta identidade de seu dono como um garoto branco de cabelos ruivos. Entretanto, as análises posteriores de seu material genético relacionam-se, muito provavelmente, com populações encontradas no Mediterrâneo e noroeste europeu. Provavelmente, Marcus não seria branco e com cabelos ruivos, como buscaram retratá-lo. Mas, para seus criadores, o tom de pele escolhido para recriá-lo era neutro, já que não havia dados consistentes o suficiente acerca da real cor de seus cabelos, olhos e pele (Ibidem).
Os eventos etnográficos vividos por M’Charek (2013), apresentados nesta seção, e aqueles relacionados ao meu trabalho de campo, sobre os quais descrevi e refleti ao longo deste artigo, contribuem para a apreensão dos efeitos da materialidade da raça no cuidado à saúde, de modo a evidenciar que esse processo não se dá, necessariamente, no corpo, mas nas relações, espaços, saberes, práticas e objetos. Ao longo do texto, levei a sério as maneiras particulares pelas quais a raça se materializa e produz efeitos no cuidado, e chamei a atenção para como está entremeada às tecnologias e saberes e práticas médicas. Ao descrever eventos e mobilizar materiais etnográficos que se entrelaçam, tive como proposta explicitar como o objeto de minha investigação pode ser mais bem compreendido a partir de sua presença ausente, de seus efeitos híbridos e de suas dobras (Latour 1994, M’Charek 2014).
Na Introdução, argumentei sobre a carência de disciplinas ou mesmo eventos que tratem sobre raça e racismo no processo de formação médica, articulando a narrativa do estudante de medicina às ilustrações de Ibe. Na parte seguinte, detive-me nos processos de materialização da raça e os efeitos do racismo nas tecnologias biomédicas, olhando-os como objetos relacionais que se fazem presentes mesmo quando não intencionalmente articulados. Para tanto, dialoguei com as aulas de Júlio, com o oxímetro e com a hipertensão.
Perseguir os seus rastros levou-me à aula prática realizada no âmbito de um curso de medicina. Esse evento auxiliou-me a compreender como as ausências podem ser reivindicadas e transformadas em presenças. Gradativamente, tem sido possível produzir transformações nos cursos de medicina por meio da ação de distintos atores e da implementação de políticas de ação afirmativa. Tais transformações vão desde o seu corpo discente aos eventos e disciplinas do curso e, talvez, podem estar incidindo sobre os saberes e práticas médicas. No entanto, no que diz respeito à prática, ainda que importantes transformações estejam em curso, o diálogo que tive com uma médica no Centro de Saúde indica que articular raça e racismo no cuidado ainda se constitui como uma interdição.
Ao refletir sobre o caráter híbrido dos efeitos de materialização da raça no cuidado à saúde, teci ainda considerações sobre suas dobras em distintos espaços e temporalidades. Essa estratégia analítica só foi possível porque me atentei à sua relacionalidade radical e às escalas a partir das quais e pelas quais circula. Portanto, concordo com M’Charek quando diz que devemos olhar para as relações, objetos e atores que produzem a raça. É preciso estar atento às suas dobras, ou seja, à sua capacidade de se fazer presente repetidamente em múltiplos espaços, saberes, práticas, temporalidades e corpos.
Por fim, trago para as considerações finais mais indagações do que respostas, mais encruzilhadas do que rotas de fuga. Mas como nos convoca Haraway (2023, 13), escolho ficar com o problema, ainda que, em tempos de urgência, nosso ímpeto seja resolvê-los “como quem procura assegurar um futuro imaginado, impedindo que algo que paira no futuro aconteça, colocando o presente e o passado em ordem [...]”. É distanciando-me, então, de qualquer forma de ordenamento e evitando certo futurismo que concluo este artigo. Não tenho a intenção de elaborar respostas simples aos impasses com os quais me deparei. Assim, permaneço com eles em um intento de elaborar pistas e caminhos que, talvez, auxiliem a produzir formas outras de cuidado com atenção às diferenças e desigualdades.
Minibio: Doutorando em Antropologia Social no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas. Pesquisador discente do Núcleo de Estudos de Gênero Pagu e integrante do Race.ID – Grupo de Pesquisa em Saúde da População Negra da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo.
E-mail: william.p.rosa@gmail.com
ORCID: 0000-0002-3134-9614
Contribuição do autor: O autor é responsável pela concepção da pesquisa, coleta de dados e sua sistematização. A síntese dos argumentos apresentados ao longo do texto e sua escrita também são de sua responsabilidade.
Declaração de disponibilidade de dados: Os dados e conteúdos subjacentes ao texto estão disponíveis sob demanda dos pareceristas e, futuramente, estarão acessíveis no Repositório de Dados de Pesquisa da Unicamp (REDU).