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Recepción: 07 Mayo 2024
Aprobación: 06 Noviembre 2024
DOI: https://doi.org/10.4000/12yqg
Resumo: O presente trabalho faz parte da pesquisa mais ampla, intitulada “A política de indenizações como forma de reparação de direitos humanos no Brasil: Estado, grandes empresas e mobilização social”, cujo objetivo principal é mapear e analisar as políticas e as práticas em torno das indenizações no Brasil em situações consideradas de violações de direitos humanos em que setores do estado e/ou empresas são apontados como responsáveis pelas violações. Neste artigo, analiso o processo de conciliação promovido pela Advocacia-Geral da União no âmbito da reparação civil da comunidade indígena Ashaninka, em que responderam como réus empresas madeireiras e seus proprietários, por invasão na terra indígena, extração ilegal de madeira e danos morais durante a década de 1980. A partir de entrevistas e análise documental, discuto os parâmetros utilizados e as tensões em torno da negociação, bem como as percepções dos agentes envolvidos sobre direitos, deveres e valores. A pesquisa permitiu ampliar as análises sobre os efeitos das indenizações e das políticas de reparação de maneira geral. Assim, se tais políticas e práticas surgem em contexto de violações de direitos propiciadas por assimetrias de classe, raça/etnia, gênero e de região, nem sempre indenizar significa reiterar tais assimetrias.
Palavras-chave: Reparação, Indenização, Direitos Humanos, Estado, Ashaninka.
Abstract: This paper is part of a broader research project entitled “Compensation policy as a form of human rights reparation in Brazil: the state, big business and social mobilization”, whose main objective is to map and analyze the policies and practices surrounding compensation in Brazil in situations of human rights violations in which sectors of the state and/or companies are held responsible for the violations. In this article, I analyze the conciliation process promoted by the Federal Prosecutor’s Office in the context of civil reparations for the Ashaninka Indigenous community, in which the defendants were logging companies and their owners, for invading Indigenous land, illegal logging and moral damages during the 80s. Based on interviews and documentary analysis, I discuss the parameters used and the tensions surrounding the negotiation, as well as the perceptions of the agents involved about rights, duties and values. The research has made it possible to broaden the analysis of the effects of compensation and reparation policies in general. Thus, if these policies and practices arise in a context of rights violations caused by asymmetries of class, race/ethnicity, gender and regionality, indemnifying does not always mean reiterating these asymmetries.
Keywords: Reparation Policies, Indemnity, Human Rights, State, Ashaninka.
Introdução
“Não queremos negociar”. Essa foi a primeira frase que o Dr. José Roberto da Cunha Peixoto, então à frente da Câmara de Conciliação e Arbitragem da Administração Federal (CCAF), ligada à Advocacia-Geral da União, ouviu de indígenas do povo Ashaninka que estavam em Brasília para acompanhar o processo que a Associação Ashaninka do Rio Amônia (APIWTXA) e o Ministério Público Federal (MPF) moviam contra Abrahão Cândido da Silva, Orleir Messias Cameli e a empresa deste último. A Câmara de Conciliação e Arbitragem da Administração Federal foi criada em 2007 com o objetivo de prevenir e reduzir o número de litígios judiciais que envolvem a União, mas também setores públicos de outros níveis da federação (Estados, municípios, Distrito Federal). Em 2015, com a Lei 13.140, que dispõe sobre a mediação entre particulares como meio de solução de controvérsias, houve um maior estímulo às práticas de negociação. Segundo o Dr. José Roberto, esse histórico propiciou que os defensores dos Cameli buscassem a CCAF para mediação no processo que respondiam por invasão em terra indígena, extração ilegal de madeira e danos morais. Em poucos dias, o processo seria julgado no Supremo Tribunal Federal (STF). Com base em decisões anteriores, o resultado tendia a ser favorável ao povo Ashaninka.
As práticas alternativas de resolução de conflitos – entre as quais a arbitragem – vem recebendo atenção de pesquisadores que trabalham na interface entre Antropologia e Direito, considerando as contribuições da Antropologia sobre diversidade que inspiram as ideias de pluralismo jurídico (Schuch 2008, Schafer 2013, Beltrão 2021). Para Schritzmeyer (2012), no século XX, o direito brasileiro tornou-se permeável às proposições antropológicas sobre os discursos, entendidos como produtores de efeitos de verdade (idem, 42), estando menos influenciado, portanto, por perspectivas positivistas que não entendiam a narrativa enquanto uma construção posicionada. De maneira mais geral, a relação entre antropólogos e os chamados “operadores do direito” (que incluem juízes, advogados, representantes do Ministério Público, Defensoria Pública, entre outros) vem sendo motivadas, ainda que não exclusivamente, pela promulgação da Constituição Federal de 1988, por meio de laudos periciais necessários aos processos de demarcação de territórios indígenas e quilombolas, debates sobre segurança pública, direitos de minorias, entre outros (Cardoso de Oliveira, Grossi e Lins Ribeiro 2012). Este artigo, apoiado nas discussões do campo da Antropologia do Direito e na Antropologia do Estado, foi elaborado durante a realização de pós-doutorado[1] na Universidade de Brasília, sob a supervisão de Carla Teixeira, e visa apresentar contribuições sobre a negociação em torno da responsabilidade de crimes contra um povo indígena e sobre a estipulação de uma quantia em dinheiro em favor dessa parte, a título de indenização. Pretendo analisar quais disputas de narrativa operaram na construção dos acontecimentos que deram causa ao processo instaurado pelo MPF em favor dos Ashaninka, bem como quais elementos foram utilizados na mensuração do dano sofrido por esse povo.
As discussões apresentadas neste artigo fazem parte de uma iniciativa de pesquisa mais ampla intitulada “A política de indenizações como forma de reparação de direitos humanos no Brasil: Estado, empresas e mobilização social”, cujo objetivo principal é analisar as políticas e as práticas em torno das indenizações em situações consideradas de violações de direitos em que setores do estado e/ou empresas são apontados como responsáveis por violações. Nessa etapa, interessada em compreender processos de negociação em torno de uma indenização, escolhi estudar o caso da indenização recebida pelo povo Ashaninka do rio Amônia, tendo como material de pesquisa o processo judicial e entrevistas com pessoas que tiveram atuação no caso. O processo possui 17 volumes e cerca de 4 mil páginas, até 2018, quando o processo foi convertido em processo eletrônico no STF. Após isso, não há mais numeração sequencial, pois o processo é organizado pelo tipo de documento que contém.
O caminho do processo, em resumo, foi o seguinte: em 1996, o MPF propôs uma Ação Civil Pública no Tribunal Federal da 1ª Região, que atende a casos ocorridos no Acre. Após sentença favorável aos Ashaninka, os réus recorreram, mas a condenação foi mantida. Inconformados, eles recorreram ao Superior Tribunal de Justiça, com um Recurso Especial. Posteriormente, um dos argumentos apresentados no Recurso Especial – a prescritibilidade do dano ambiental – foi tratada pelo STF em Recurso Extraordinário que, em 2020, decidiu pela imprescritibilidade do dano ambiental (Navarra e Martins 2019, CPI-Acre 2020). Antes da conclusão do recurso no STF, e após 24 anos da propositura da ação, as partes realizaram o acordo de conciliação do qual trata este artigo.
Com o apoio de Geana Benfeita, bacharel em Direito e mestra em Ciências Sociais, acessei e analisei o processo disponibilizado no portal de consulta processual do STF. Além da análise do processo, foram realizadas 11 entrevistas, presenciais, em Brasília, ou remotas, via aplicativo de reuniões online Zoom. As entrevistas tiveram uma duração média de sessenta minutos, foram registradas em gravador de áudio, quando presenciais, e em vídeo e som, quando realizadas pelo Zoom. As transcrições, realizadas por Hyldalice de Andrade, serviram como base para a análise. Embora esse conjunto mais amplo de entrevistas tenha sido útil, de diversas formas, para as considerações que serão aqui apresentadas, neste artigo serão trabalhadas, especificamente, as entrevistas com os seguintes interlocutores: José Roberto da Cunha Peixoto, já apresentado, Antonio Rodrigo Machado, advogado da Associação Ashaninka do Rio Amônia, Francisco Piyãko, liderança Ashaninka, Antonio Macedo, sertanista da FUNAI, Marcelo Turbay, advogado da Marmud Cameli Ltda, Maria Eliza Requejo Ribeiro Leite, socióloga da FUNAI e Ana Valéria, advogada do Núcleo de Direitos Indígenas.
Para compreender as complexidades do caso que eu decidi analisar, recorri a estudos etnográficos sobre o povo Ashaninka, para o que a leitura da produção bibliográfica de José Pimenta, bem como a nossa interlocução na Universidade de Brasília, foi fundamental. Por seu intermédio, pude realizar a primeira entrevista da pesquisa, com o advogado Antonio Rodrigo, que, por sua vez, abriu outras muitas portas para a pesquisa. O presente artigo também se beneficia do relatório técnico elaborado por Mariah Torres Aleixo, bacharel em direito e doutora em Antropologia, a respeito das indenizações no campo do direito, contemplando o regime jurídico interno e internacional, encomendado no âmbito da pesquisa mais ampla sobre indenizações (Aleixo 2023).
O artigo está dividido em três partes, além das considerações finais. Na primeira parte, remonto o cenário de violações sofridas pelo povo Ashaninka na década de 1980 e 1990, até a instauração do processo. Observo como foram construídas as narrativas a respeito das invasões e das violações, e aponto os caminhos de resposta acionados pelos acusados. Na segunda parte, discuto o formato da Ação Civil Pública de Indenização, alcançando o trabalho de peritas da FUNAI, responsáveis por apresentar o cálculo dos danos morais que foram utilizados nas negociações da conciliação firmada no âmbito da CCAF, 22 anos depois. Na terceira parte, discuto as percepções de alguns dos envolvidos no processo de negociação, considerando suas motivações, suas expectativas e os efeitos produzidos. As perspectivas finais relacionam a indenização a percepções dos envolvidos no processo dos Ashaninka, o que eu acredito que sirva para reflexões mais amplas sobre processos indenizatórios.
Um rio tingido de vermelho
No inverno de 1981 e 1982, a empresa Marmude Cameli & Cia Ltda, de propriedade de Orleir Messias Cameli, retirou cerca de 900 árvores de madeira nobre (cedro e mogno) do território onde os Ashaninka viviam, no Rio Amônia, região do Alto Juruá, estado do Acre, Amazônia brasileira. Para essa retirada, empregados do empresário utilizaram máquinas pesadas que devastaram uma área ampla. Só de estrada para chegarem aos igarapés onde estavam as árvores derrubadas, foram abertos 3 km na mata fechada (Processo 96.0001206-7, fls. 12). Com o barulho do maquinário, animais de caça se afastaram. As árvores que não tinham valor comercial foram deixadas apodrecendo na floresta, resultando em significativo empobrecimento da biodiversidade do território. Além disso, a invasão para a retirada de madeira durou cerca de dois meses, de modo que os 22 empregados da Marmude Cameli montaram acampamento dentro do território Ashaninka. Por mais de uma vez, invadiram a festa tradicional dos indígenas (festa de piarensti/festa da caiçuma), tendo zombado do modo de vida deles, ofereceram-lhes cachaça e cometeram estupro contra mulheres indígenas.
Ao longo da década de 1980, a exploração madeireira na região foi intensificada. O território dos Ashaninka esteve especialmente vulnerável. Segundo Pimenta (2022), nessa época, mais de ¼ do território foi direta ou indiretamente afetado pela atividade madeireira intensiva. A fixação dos Ashaninka no território no Alto Juruá data do final do século XIX, em função da exploração da borracha no Peru, de onde saíram, justamente, para minimizar o contato e manter uma certa distância dos brancos (Pimenta 2007, 2). O Alto Juruá só passou a pertencer ao território brasileiro no início do século XX (idem). Embora tenham sido submetidos ao sistema de aviamento que vigorava na região (Meira 2018) e também tenham atuado para alguns patrões como “guardiões dos seringais”, os Ashaninka não foram mão-de-obra seringueira na economia da borracha, diferentemente da maior parte dos indígenas da região (Pimenta 2007, 3). Isso, como exposto, não quer dizer que não tenha havido relação com os brancos, inclusive com patrões, o que viabilizava o acesso a bens industriais, ainda que segundo as regras hostis do sistema do aviamento. Como se verá adiante, em algumas ocasiões, os Ashaninka são referidos como “Campas”, ou “Kampa”. Conforme Pimenta (2018) essas são formas de denominação externas, sem significado para os Ashaninka, mas a terra indígena demarcada leva o nome de Kampa do rio Amônia. O estudo etnográfico de Anthony Seeger e Arno Vogel, realizado como um relatório para a FUNAI, registra também esse nome: Kamparia – Breve Notícia Etnográfica (Seeger e Vogel 1978). Além dessa bibliografia, o estudo de Margaret Kitaka Mendes (Mendes 1991) é uma obra de referência sobre o povo Ashaninka, tendo sido utilizada pelas peritas da FUNAI e incluído, na íntegra, como anexo do laudo emitido.
Apesar da grande ação de invasão e derrubada, a madeira que foi extraída no verão de 1981 e 1982 não foi transportada. Quatro anos depois, em fevereiro de 1985, Abrahão Cândido da Silva, também empresário madeireiro, em consórcio com a Marmude Cameli e com Nancy de Freitas, preposto de ambos, derrubaram mais 530 árvores. Nessa ocasião, também retiraram parte da madeira que havia sido derrubada em 1981. Essas ações ilegais tornaram-se conhecidas porque uma equipe da FUNAI, chefiada pelo sociólogo Marco Antonio do Espírito Santo, esteve na região para realizar estudos de demarcação e constatou a ação criminosa das madeireiras. Os crimes foram denunciados à Polícia Federal e ao Instituto Brasileiro do Desenvolvimento Florestal (IBDF), que anos depois, daria origem ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA). O IBDF emitiu multa e autuou Abrahão Cândido da Silva, Marmude Cameli e outras pessoas envolvidas no crime ambiental. No entanto, a multa foi considerada simbólica, tendo o órgão florestal designado Abrahão Cândido da Silva, um dos autuados, como fiel depositário da madeira.
Em dezembro de 1985, Terri Vale de Aquino (CPI-Acre), Antonio Luis Batista de Macedo (CPI-Acre), Erasmo Belucci (FUNAI) e Antonio Pereira Neto (FUNAI) produziram um documento com considerações sobre as ações de madeireiros na região, que foram descritas como “devastação e roubo de madeira de lei na área indígena Kampa” (Processo 96.0001206-7, fls. 562). As observações apresentadas nesse documento têm como base uma viagem à região realizada entre 16 de novembro e 12 de dezembro de 1985. No entanto, esses funcionários da Comissão Pró-Índio do Acre e da FUNAI, a essa altura, já eram conhecedores das dinâmicas sociopolíticas da região, o que os possibilitou descrever com profundidade temporal o tema da invasão madeireira:
Há mais de 20 anos que as matas e florestas do Amônia vêm sendo exploradas indiscriminadamente pelos proprietários das grandes serrarias de Cruzeiro do Sul. Milhares de toras de madeiras (...) já foram abatidas e retiradas da área indígena Kampa. (...) E, o pior de tudo, é que continua a mesma história, apesar de tantas denúncias pela FUNAI e pelo IBDF. (Processo, 96.0001206-7, fls. 562).
Dois anos depois, em 1987, durante a missão de trabalho para delimitação de terras indígenas e meio ambiente, funcionários da FUNAI foram informados que a empresa Marmude Cameli estaria realizando uma nova extração ilegal de madeira. Uma das pessoas que integrava essa missão, agora com cargo de sertanista na FUNAI, era o mesmo Antonio Macedo. Dessa vez, ele relata ter visto aproximadamente 600 toras descendo o rio em balsas puxadas por dois rebocadores, além de vários outros barcos pequenos com trabalhadores que reconheceu serem da empresa Marmude Cameli. Como o rio estava em repiquete (enchendo rapidamente), muita madeira se perdeu e toras de 2 a 3 metros de diâmetro rolaram pelo rio abaixo, tingindo o rio de vermelho.
Então, em 1987, eu subi o rio coordenando uma missão grandiosa, que era de delimitação de terras indígenas e meio ambiente e nos deparamos no Rio Amônia com uma esteira de madeira descendo o rio, que tomava o rio todo na sua largura. E voltas e voltas do rio. Era madeira por tudo que é lado. O nosso barco tinha que encostar nas enseadas do rio pra deixar as madeiras passar. Naquele contexto, (...) a gente encostado na enseada do rio, as madeiras passando, vinha descendo uma canoa no Rio Amônia e vinha um homem só remando na proa daquela canoa. Eu olhei e reconheci que era o pajé Ashaninka. Ele trazia um bilhete escrito pelo Francisco Piyãko, que ainda era um adolescente naquela época. E no bilhete dizia o seguinte: “Socorro, Txai Macedo! Socorro, Txai Terri” (Entrevista com Antonio Macedo, 20 de novembro de 2023).
Entre as décadas de 1980 e 1990, os povos indígenas do Acre e de outras partes se organizaram politicamente em associações, se aliando ao movimento ambientalista e, no caso do Acre, com os seringueiros (Pimenta 2022, 175). Segundo esse autor, a Aliança dos Povos da Floresta foi especialmente eficiente na região do Alto Juruá, onde habitam os Ashaninka, tendo logrado influenciar as políticas do governo brasileiro no que se refere à retórica ambientalista e à ideologia do “desenvolvimento sustentável” (idem). O território Ashaninka foi demarcado em 1992, alguns anos depois, portanto, das invasões madeireiras, sendo esse um período em que alcançava enorme repercussão os temas da “ecologia” e da “sustentabilidade”. Para os próprios Ashaninka, a década de 1990 é referida como “tempo dos direitos” (Pimenta 2015), o que, sem dúvida, tem a ver com a demarcação territorial, mas também com a formação da associação APIWTXA. Por meio dessa associação vem sendo implementadas ações de proteção e recuperação ambiental do território que viabilizaram a realização de uma série de projetos com ONG e setores do estado em nível local e nacional (Pimenta 2022, 180).
Além da visibilidade das questões “ecológicas” da década de 1990, o contexto desse período é também marcado por forte mobilização social de povos e comunidades tradicionais (O’Dwyer 1998, Esteves, 2010). Como em outras partes da Amazônia brasileira (Almeida 1997, Maués 2010, Lacerda 2013, Rolemberg 2023), a influência de religiosos católicos progressistas foi decisiva para a estruturação da mobilização social no Acre, tanto de seringueiros quanto de trabalhadores rurais e ribeirinhos (Almeida 2004, Delgado 2006). A ideia de que os grupos deveriam produzir, por eles próprios, organizações autônomas foi gestada nesse contexto. No mesmo período em que ganharam repercussão as denúncias da invasão madeireira no território dos Ashaninka, foram iniciadas as ações da FUNAI para demarcação territorial, para o que foi decisiva a atuação do antropólogo Mauro Almeida. O relatório de visita elaborado pelo sociólogo Marco Antonio do Espírito Santo revela a expectativa de autonomia que faria frente aos conflitos por recursos naturais e definiria o futuro desse povo indígena.
Com relação aos índios, não estamos descartando a possibilidade de desenvolvimento da região; estamos apenas considerando que serão eles os autores deste movimento. A princípio, consideramos incompatível a exploração de madeira por brancos e índios na região do Amônia, pela forma selvagem que tem se dado o trabalho dos primeiros. Estabelecemos como possível, dado o papel da FUNAI e importância econômica do rio, os índios como madeireiros, donos da reserva, exploradores parcimoniosos, menos predadores e possíveis protetores do ecossistema e, finalmente, fornecedores de madeira a Cruzeiro do Sul. (Processo 96.0001206-7, fls. 626).
No entanto, se havia expectativas de autonomia e de proteção dos recursos naturais em terras indígenas, tais como registradas no relatório do funcionário da FUNAI que expressavam certos ideais políticos da mobilização social no Acre daquele período, o mesmo parecia não se verificar junto às ações da Superintendência da FUNAI localizada em Manaus, hierarquicamente superior à 14ª Delegacia Regional da FUNAI no Acre. Em março de 1987, mesmo após as denúncias de 1985, a empresa Marmude Cameli dirige-se nominalmente ao Sr. Hissa Abrahão, Diretor do Patrimônio Indígena da FUNAI, sediado em Manaus, solicitando:
(...) autorização para extração de madeira de lei na Reserva Indígena do Rio Amonha, localizado no Alto Juruá, município de Cruzeiro do Sul. Outrossim, informamos que já estamos trabalhando na referida área, com a retirada de 500 árvores de madeira cedro e mogno, que foram derrubadas por terceiros, no ano de 1985, as quais encontravam se deteriorando. Nesses termos. Pede deferimento. (Processo 96.0001206-7, fls. 162).
Posteriormente, esse documento foi utilizado contra Orleir Messias Cameli, proprietário da empresa, como confissão no inquérito penal[2]. Ao todo, seis pessoas responderam ao processo contravencional por infração ao então vigente Código Florestal, sendo o Sr. Hissa Abrahão, da FUNAI, um deles. Os depoimentos dos réus, envolvidos no comércio de madeira no Alto Juruá, são reveladores da dinâmica madeireira da região e de que tipo de relação estabeleciam com os indígenas. Em 1987, quando os depoimentos foram produzidos, a vulnerabilidade dos indígenas frente aos comerciantes locais e também frente aos setores do indigenismo tutelar parecia dar os primeiros sinais de mudança. A forma como os depoimentos foram registrados revela não haver surpresa a respeito das dinâmicas descritas, mas, por outro lado, tampouco havia banalização da desigualdade, das ilegalidades e das violências cometidas. Reforçando esse argumento, nesse mesmo período (em 1989), o MPF move uma Ação Civil Pública sobre formas de trabalho escravo no Alto Juruá, tendo solicitado um laudo pericial para a antropóloga Eliane Cantarino O’Dwyer. Nesse documento, posteriormente organizado no formato de livro (O’Dwyer 1998), constam relatos de constrangimentos ilegais, endividamentos e violência física, praticados pelos Cameli e por seus prepostos contra os trabalhadores dos seringais que arrendavam (idem, 89). Tais dinâmicas de violência contra indígenas e seringueiros, portanto, eram plenamente conhecidas quando da propositura da ação contra Cameli e Abrahão.
Em seu depoimento no âmbito da Ação Penal, Orleir Messias Cameli reiterou que possuía autorização verbal da FUNAI para a retirada da madeira. Via com naturalidade a autorização porque, além de pagar o que fosse cobrado pela FUNAI, estava disposto a dar “total assistência aos índios”, o que consistia em “doação de vacas, madeiras em forma de tábuas, e o que fosse necessário para melhorar seu modo de vida, bastante precário” (Processo 96.0001206-7, fls. 183). Nancy Freitas da Costa assumiu retirar madeira de lei desde 1972 do que era “terreno da União”, mas há quatro anos era “área indígena dos Kampas”. Disse que adquiria madeira diretamente dos índios, tanto no sistema de trocas por mercadorias diversas como no dinheiro vivo, remunerando os indígenas “pelo preço de mercado”. Referiu-se como uma relação de “parceria”. Em seu depoimento, ficou ainda registrado seu entendimento de que “os índios necessitam vender madeira de seus terrenos em virtude da dificuldade em que vivem, para compra de alimentos, munição para caça, roupas e muitas outras coisas, pois a FUNAI não lhes dá a devida assistência” (Processo 96.0001206-7, fls. 179-185).
A ideia de prestar assistência aos indígenas – por meio de vacas, tábuas ou outras coisas – parece contrastar com anunciá-los como clientes ou parceiros aos quais se pagava o “valor de mercado” pela madeira extraída. Mas, na verdade, a encenação de uma relação comercial entre pares é parte do mesmo sistema de dominação, em que diferentes graus de liberdade e escravidão são articulados (Taussig 1993). Não só a equivalência desleal entre trabalho e mercadoria (trabalhar um ano inteiro para pagar um mosquiteiro), mas a produção da desumanização via rituais de violência e de humilhação (ser obrigado a comer areia da praia do rio com gasolina) compuseram o cenário mais amplo em torno da exploração de madeira no rio Amônia, nas décadas de 1980 e 1990. As situações aqui mencionadas, relativas ao mosquiteiro e à ingestão de areia, constam dos autos do processo e foram recuperadas pelos entrevistados que estiveram em contato com os Ashaninka durante esse período.
Ainda assim, entre a ocorrência dos crimes de 1981-1982, 1985 e 1987 e a instauração da Ação Civil Pública de Indenização por Atos Ilícitos, iniciada pelo MPF em 1996, passaram-se vários anos. O contexto de organização social dos indígenas, ribeirinhos e outros povos da floresta, nas décadas de 1980-1990, coexistia com o poder local dominado por comerciantes, com braços na política estadual e com investigações de envolvimento com o narcotráfico e grupos de extermínio. Orleir Cameli, que respondia ao processo, foi prefeito de Cruzeiro do Sul entre 1993 e 1994 e governador do Acre de 1995 a 1999. Sua primeira empresa foi, justamente, uma serraria, tendo posteriormente ampliado seus negócios para o ramo da construção civil, importando cimento do Peru. Orleir Cameli é conhecido na região como “o barão do Juruá” e possui uma estátua na praça da cidade de Cruzeiro do Sul. Segundo informações de José Pimenta, ainda hoje, Orleir Cameli é uma pessoa bem referida pela população do Juruá.
Abrahão Cândido da Silva, por sua vez, conhecido como “o maior empresário do Juruá”, é dono de extensas terras em Cruzeiro do Sul, no Acre e em Manaus. Possui empresas no ramo imobiliário, de transporte, distribuição de combustíveis e de bebidas. Não por acaso, é contra esses dois réus, Orleir e Abrahão, que a Ação Civil Pública de Indenização por Atos Ilícitos se direciona. Nancy e outras figuras conhecidas pela exploração madeireira na região tiveram seu potencial econômico avaliado como menor e sua posição na exploração madeireira como menos importante do que a dos demais réus, razão pela qual não foram envolvidas na ação. No próximo item, discutiremos o formato do processo com fins de indenização e os caminhos que levaram ao cálculo utilizado como base para a negociação na CCAF da Administração Federal.
A ação de indenização
A Ação Civil Pública movida pelo Ministério Público Federal foi iniciada em 1996 pelo Procurador da República Luiz Francisco Fernandes de Souza. Segundo Ana Valéria Araújo, que atuava como assessora jurídica do Núcleo de Direitos Indígenas, por volta de 1990, a organização foi procurada por lideranças Ashaninka que pediam apoio no caso da extração ilegal da madeira. A madeira extraída ilegalmente teria sumido, e eles queriam ser indenizados. Após tomar conhecimento do caso e realizar uma viagem a Cruzeiro do Sul, Ana Valéria entendeu a inviabilidade de, naquele momento, mover uma ação contra os Cameli. Não havia advogado local que aceitasse trabalhar contra os Cameli. O MPF, àquela altura, estava representado por um procurador que parceiros locais julgavam como não confiável. O encaminhamento foi montar o dossiê e aguardar alguma mudança na conjuntura política, o que ocorreu com a entrada de Luiz Francisco no MPF.
Na petição inicial, Luiz Francisco pediu à causa o valor de 6 milhões de reais, sendo metade destinada à indenização pela madeira extraída ilegalmente e metade para indenização por danos morais. No Brasil, as indenizações são normatizadas pela Constituição Federal e pelo Código Civil. Decisões de juízes e tribunais (jurisprudências) e princípios da doutrina jurídica costumam ser utilizados na decisão de indenizar e na estipulação do valor. As indenizações dizem respeito ao âmbito do direito privado e, por isso, elas não têm como finalidade a punição daquele que provoca o dano, mas a restituição de quem sofre o dano (Aleixo 2023). Ainda assim, o “viés punitivo do dano moral” pode ser encontrado em algumas decisões judiciais, em que os juízes afirmam que o valor arbitrado “atende ao caráter punitivo, pedagógico e compensatório”, tal como abordado no estudo de Guimarães (2020) a partir dos tribunais cíveis do Rio de Janeiro. Voltaremos a esse ponto adiante. Para a discussão aqui proposta, é importante ressaltar que, na argumentação do procurador, a assimetria entre os causadores do dano e os indígenas seria uma razão para indenizar, o que quer dizer que ele não tenha manifestado pretensões pedagógicas e punitivas em relação aos réus. Segundo o procurador,
os índios Kampa são pessoas pobres e desamparadas, vivem do suor de seus rostos, sem acesso a nenhuma tecnologia moderna. Logo, são dois milionários e uma empresa milionária como autores de danos. E, como vítimas, uma população famélica. São critérios essenciais para o cálculo da indenização por danos morais, a ser arbitrada por Vossa Excelência: o patrimônio do ofensor e a pobreza, hipossuficiência, das vítimas. (...) A indenização moral deve ser, dessa forma, de 3 milhões de reais. Inclusive, também, para exemplo, de modo a tornar os madeireiros cuidadosos com o ordenamento jurídico. (Processo 96.0001206-7, fls. 65).
Em junho de 1997, o Ministério Público Federal, então sob os trabalhos do Procurador da República Ricardo Nakahira, requereu a produção de provas, entre as quais perícia para “apurar o grau de sofrimento infligido ao Povo Indígena Kampa”, solicitando a determinação do valor a ser fixado a título de danos morais (Processo 96.0001206-7, fls. 1225). Com isso, foram encaminhados 10 quesitos para a perícia, relativos às consequências das invasões ao território dos Ashaninka e aos danos socioambientais decorrentes. Esse foi o contexto de produção do laudo antropológico produzido pelas peritas Ester Maria de Oliveira Silveira e Maria Eliza Requejo Ribeiro Leite, contendo 352 páginas de resposta aos quesitos e outras 972 páginas de anexos, onde se encontram bibliografia sobre os Ashaninka, transcrições de entrevistas, fotografias e outros conteúdos.
De partida, as peritas afirmam que obtiveram dados que demonstraram a “ocorrência inquestionável de danos morais, que comprometeram as formas de expressão e os modos de criar, fazer e viver (...) da comunidade Ashaninka do rio Amônia” (Processo 96.0001206-7, fls. 1710). Um dos primeiros temas abordados pelas peritas foi o contexto de exploração extrema no âmbito das relações comerciais e de trabalho com atravessadores e patrões. Transcrevem o depoimento do indígena Pishiro, que informa: “os Ashaninka trabalhavam para os Mamude, eles entregavam cinquenta toras ou sessenta toras por um mosquiteiro” (Processo 96.0001206-7, fls. 1726). As peritas informam que antes das invasões madeireiras não havia tensões agudas ou violência física contra os Ashaninka. Contudo, elas conferem destaque ao fato de que muitos indígenas adoeceram pelas relações de contato com os brancos e, destas situações, emergem relatos como o que segue:
Aconteceu até com a minha tia. O patrão que o marido dela trabalhava pra ele. O cara vinha fazer o negócio quando (...) o marido dela adoeceu, estava bem doente, ficou trabalhando. (...) Aí ela pediu pra trazer ele pra fazer o tratamento dele, aí ele (patrão) disse “eu levo e trago, como vocês não têm saldo, não têm dinheiro, não têm nada na minha mão, apenas está me devendo, eu faço o seguinte: você vai dormindo todas as noites comigo na viagem e eu levo e trago, se não, ele vai ficar aí”. Aí ela disse “não, deixa ele ficar aqui”. E ficou. Ficou uma semana mais ou menos e ele morreu. (Processo 96.0001206-7, fls. 1745).
No período das invasões, as violências físicas, simbólicas, culturais e patrimoniais eram explícitas e recorrentes. Houve estupro de mulheres, agressões físicas, invasão das festas tradicionais, roubo de pertences, além da questão da madeira. Houve também cooptação de lideranças por parte dos funcionários da empresa Marmude Cameli, que prometeram pontos de comércio, pista de pouso, cabeças de gado, entre outras vantagens, caso as lideranças retirassem a denúncia de invasão de suas terras. O laudo das peritas da FUNAI é uma peça riquíssima e merecerá um estudo detalhado em outro momento. Para os objetivos do presente artigo, ressalto que as situações descritas funcionam como uma breve síntese dos danos morais sofridos, entendidos como “sentimentos de dor, sofrimentos injustos causados por um ofensor contra a personalidade da vítima” (Processo 96.0001206-7, fls. 2040).
Diante desse cenário, como as peritas arbitraram um valor? Como mencionado, no Brasil, as indenizações em situações de danos morais acabam sendo arbitradas pelo juiz. Frequentemente, outros casos considerados “semelhantes” são utilizados como medida de comparação, o que não quer dizer que não sejam encontradas disparidades (Antunes 2009). O estudo de Amorim (2017) revela a centralidade da ideologia, no Direito brasileiro, de que o judiciário é capaz de promover a justiça social. Assim, é esperado que a desigualdade das partes leve os juízes a interpretarem e aplicarem a lei de maneira desigual em função da condição desigual entre as partes (idem, 278). Ou seja, uma decisão “justa” deve levar em consideração a posição das pessoas envolvidas.
Em entrevista, Maria Eliza Requejo Ribeiro Leite ressaltou as dificuldades de quantificar monetariamente sofrimentos e prejuízos causados à vida e à cultura de um povo. Mas essa quantificação precisava ser feita não só porque ela havia sido designada para tal, como também porque a indenização era vista como uma forma de “amenizar levemente o dano” que os Ashaninka haviam sofrido. As peritas iniciaram o cálculo dos danos morais do povo Ashaninka a partir do valor de uma causa do povo Panará, em que houve contato e remoção de indígenas pela construção da BR-163, ocasionando a morte de pelo menos 175 indígenas e, posteriormente, de outros 10, com a remoção dos sobreviventes para o Parque do Xingu, onde estavam seus antigos inimigos Kayapó (Sentença 1142/1997).
O valor arbitrado para essa causa foi de uma pensão mensal de dois salários-mínimos por indígena, além de 4 mil salários-mínimos como compensação por dano moral. A partir disso, as peritas calcularam que esse montante correspondeu a 50 salários-mínimos por indígena (àquela altura, a comunidade panará era composta por 80 pessoas). Para a indenização dos Ashaninka, as peritas propuseram 100 salários-mínimos por pessoa, chegando ao valor de R$ 3.588.000,00 (considerando 276 pessoas). Segundo o laudo, foram levadas em consideração “a intensidade dos sofrimentos, a duração e a repetição das invasões, doenças, a violência, a questão da cocaína[3], a intenção dos invasores, o apoio aos posseiros” (Processo 96.0001206-7, fls. 2053). Por fim, as peritas se antecipam em justificar que o valor arbitrado não pode ser considerado exagerado, pois recentemente a justiça havia fixado uma indenização de 400 salários-mínimos a uma jornalista “que teve pouquíssimo sofrimento comparado à tragédia dos Ashaninka” (idem)[4].
O caso foi a julgamento, e a sentença foi emitida em 28 de abril de 2000. Nessa ocasião, o Juiz Federal David Wilson de Abreu Pardo estipulou os seguintes valores: R$ 478.674,00 de indenização pelo prejuízo material causado pela extração ilegal de madeira em 1981 e 1982, R$ 982.877,28 referentes à extração ilegal de madeira entre 1985 e 1987, R$ 3.000.000,00 de indenização por danos morais e R$ 5.928.666,06 destinados ao Fundo de Defesa dos Direitos Difusos. A sentença de primeira instância foi confirmada em acórdão proferido pela 5ª turma do Tribunal Regional Federal. Os defensores do réu Orleir Messias Cameli e da empresa Marmud Cameli & Cia LTDA interpuseram Recurso Especial junto ao Superior Tribunal da Justiça, em janeiro de 2008. Ainda assim, em 2020, como mencionado, o valor acertado na conciliação com o representante dos Cameli foi de R$ 14 milhões para a Associação Ashaninka do Rio Amônia e mais R$ 6 milhões para o Fundo de Defesa dos Direitos Difusos.
A diferença entre o valor inicialmente calculado (R$ 10.390.217,30) e o valor acordado (R$ 20.000.000,00) provavelmente se deve a juros compostos e correção monetária, cujo índice foi definido na sentença (correção monetária pelo IPC desde a data do laudo pericial, em 21/08/1998 e juros de mora, em juros compostos, de 1% ao mês a partir de fevereiro de 1985, Processo 96.0001206-7, fls. 3269). Digo provavelmente porque não há, no processo, qualquer documento que materialize os cálculos realizados para atualização do valor. É importante notar, também, que enquanto o valor da madeira foi estipulado com base em muitos cálculos realizados por uma engenheira florestal e mantidos, o valor da indenização por danos morais, ao contrário, sofreu um tipo de “arrendondamento” que não teria razão de existir se o que estivesse em jogo fosse a justa, precisa e exata determinação de valores. Dos 3.588.000,00 inicialmente estipulados, o valor passa a ser referido como R$ 3.000.000,00, sem que tenha havido justificativa para isso.
Com base nessa observação e na ausência de documentos de cálculos de reajuste, é importante sublinhar a natureza da mediação que foi realizada entre 2019 e 2020. Os cálculos, estipulados por meio de perícias técnicas (inclusive a antropológica), serviram como um horizonte para a negociação. O “arredondamento” de valores, bem como a ausência de documentação com os cálculos dos juros e correções, reforçam os contornos das atividades de conciliação e mediação que estabeleceram a decisão final sobre os valores a serem pagos. Nessa circunstância, parecem ser inapropriadas exigências de cálculos exatos. O que estava em jogo, afinal, era a conciliação entre as partes. Veremos, no próximo item, as percepções dos agentes envolvidos nesse processo de negociação, considerando suas motivações, suas expectativas e os efeitos produzidos.
O acordo da indenização
O processo de negociação de valores indenizatórios realizado junto à Câmara de Conciliação e Arbitragem da Administração Federal (CCAF) não foi a primeira tentativa dos Cameli de encerrar o processo com pagamento de indenização. Segundo o advogado dos Cameli, Marcelo Turbay, teria havido ao menos uma tentativa de acordo desde que entrou no caso, em 2009. Essa negociação ocorreu no âmbito da Procuradoria Geral da República, na figura de Deborah Duprat. Em tal ocasião, o advogado avaliou que a negociação não evoluiria muito porque, em sua percepção, havia uma certa intransigência em relação a valores, resultado do “conhecimento muito aprofundado em relação às comunidades e ao dano ambiental relativo à terra indígena” da representante do MPF. Um valor teria sido apresentado não como um valor inicial para debate, mas como algo que “teria que ser pago”. Foram R$ 80 milhões. Após isso, os defensores dos Cameli se desengajaram do processo, de forma que a segunda conversa já não ocorreu.
Simmel (1964) afirma que o conflito é constitutivo das interações sociais. Segundo o autor, o conflito é uma forma de resolver a tensão entre contrastes (idem, 14), o que, em muitos casos, é feito a partir de um “terceiro elemento”, que compõe a tríade, categoria importante para as perspectivas do autor. A bibliografia especializada do campo do direito sobre mediação também vai nesse sentido. Para Pinho (2005), a mediação é o processo por meio do qual as partes buscam um terceiro imparcial para auxiliar na solução do conflito[5]. Historicamente, na sociedade brasileira, o conflito é compreendido como fenômeno ameaçador à própria existência da sociedade (Mendes 2012, 451). Em nosso ordenamento legal, coube ao judiciário, através de seus juízes, pacificar a sociedade, extirpando o conflito (Mendes 2012, 451 e 455). No que se refere à prática conciliatória, o tema da “verdade real”, tal como explorado pela autora, perde relevância em face do objetivo de conciliação. Talvez porque, no curso da Ação Civil Pública, a “verdade real” tenha sido revelada, foi possível partir para a conciliação sem que houvesse grandes disputas de narrativas sobre os “fatos” relativos às invasões madeireiras.
Assim, quando a defesa dos Cameli procura a CCAF interessada em negociar com os Ashaninka, eles foram em busca de um mediador com disposição e habilidade para negociar. De fato, foi o que encontraram. José Roberto da Cunha Peixoto, Diretor da CCAF e conciliador naquela ação, foi referido com igual admiração pelos advogados das duas partes. Inspirado por perspectivas como a comunicação não-violenta e a teoria dos jogos, o entrevistado demonstrou grande envolvimento com o tema da conciliação.
Depois que eu provoquei, a gente acabou ficando um longo tempo aqui, uma hora e meia, mais ou menos, tentando entender o que tinha acontecido e por que eles estavam buscando a compensação. E aí, os indígenas tiveram oportunidade de falar. Eles estavam aqui e eles falaram. Eles disseram o que aconteceu. Falaram da questão do Rio Amônia, que ficou vermelho de tanta poluição, de tanta madeira. Dos abusos que aconteceram com as mulheres, as filhas. Todo conflito que aconteceu na região e a necessidade de um pedido de desculpas. E isso, muitas vezes, vale mais que dinheiro, que é a parte do restabelecimento de uma relação. Ou de compensação de um impacto emocional que aconteceu numa mesa. (Entrevista com José Roberto da Cunha Peixoto, outubro de 2023).
Se, como vimos na abertura deste texto, os Ashaninka e seus representantes legais não pareciam muito interessados nessa negociação, em pouco tempo, eles aceitam negociar. Os estudos de Oliveira (2004, 2008 e 2022) sobre os conflitos apontam para a existência de uma dimensão moral, nem sempre visível aos operadores do Direito, mas fundamental para o equacionamento possível dos conflitos. Para o autor, o insulto moral é algo do âmbito da agressão objetiva a direitos que, contudo, não pode ser adequadamente traduzido em termos de evidências materiais. Além disso, o insulto moral implica em uma desvalorização ou negação da identidade do outro (Oliveira 2008, 136). Em 2020, durante as tratativas de conciliação realizadas no âmbito da CCAF, estavam menos em jogo os danos objetivos dos Ashaninka (como a extração ilegal de madeira) e mais as violências contra a comunidade, as mulheres e a defesa dos direitos indígenas de maneira geral. O processo de conciliação e negociação de valores entre os Ashaninka e os representantes dos Cameli durou cerca de um ano. O conciliador afirma que o ideal são 180 dias (6 meses), mas entendendo que cada situação tem as suas complexidades, não problematiza o tempo de duração da conciliação no caso dos Ashaninka.
Em artigo recente, Barbot e Dodier (2023) consideram a reparação como “tudo aquilo que as pessoas que se sentem vítimas de injustiças ou sofrimentos podem demandar ou reclamar em compensação a seus danos” (idem, 2). No campo dos direitos humanos, as medidas de reparação são consideradas como um “direito do cidadão” e uma “obrigação do Estado” (Buford e Van der Merwe 2004). Nesse contexto, complementar ao debate que apresentamos acima a respeito das indenizações no âmbito do Direito Civil, as práticas de reparação consistem em um conjunto de medidas que tem como propósito a não repetição do dano, envolvendo reparação material, emocional e moral (Caravellas 2009). Segundo o advogado dos Cameli, teria sido o Dr. Antonio Rodrigo, representante legal dos Ashaninka, quem sugeriu o pedido de desculpas, contando com a concordância da FUNAI e da própria comunidade Ashaninka. Marcelo Turbay e sua equipe, ao levarem a demanda aos clientes, não teriam enfrentado resistência por parte dos Cameli. O pedido de desculpas figura do seguinte modo no termo de conciliação:
CLÁUSULA TERCEIRA – DO PEDIDO DE DESCULPAS
3.1 O Espólio de Orleir Messias Cameli e a empresa Marmud Cameli & Cia. Ltda. e respectivos sócios, diante de todos os fatos narrados e longamente discutidos por anos na Justiça, vem formalmente registrar um pedido de desculpas à Comunidade Ashaninka do Rio Amônia por todos os males causados, reconhecendo respeitosamente a enorme importância do povo Ashaninka como guardiões da floresta, zelosos na preservação do meio ambiente e na conservação e disseminação de seus costumes e cultura. (Processo 96.0001206-7, s/fls. Grifos originais).
De fato, o pedido de desculpas foi mencionado na Assembleia Geral da Comunidade Ashaninka do Rio Amônia, realizada em 22 de dezembro de 2019, quando se decidiu por aceitar a negociação proposta no âmbito da CCAF (Processo 96.0001206-7, s/ fls). O trabalho de Jimeno (2010) sobre a construção de comunidades emocionais é uma referência importante para o presente estudo ao demonstrar como a reparação pode contribuir na criação de laços internos à comunidade que sofreu violências. Consta da ata da assembleia que cerca de 225 pessoas estavam presentes quando Francisco Piyãko comunicou os valores propostos no acordo e a forma de pagamento, informando também que havia um pedido de desculpas. Quando a palavra foi aberta para a assembleia, “muitos fizeram uso [da palavra] relembrando os tempos difíceis que envolveram os momentos que antecederam o início dessa disputa, marcando os nomes de muitos dos que sofreram já não estão mais entre nós” (Processo 96.0001206-7, s/fls).
Em entrevista, Francisco Piyãko pontuou que, para os Ashaninka, era impensável sentar-se na mesma mesa que os Cameli para negociar. Em sua avaliação, embora a indenização fosse devida (tanto pela madeira extraída ilegalmente quanto pelo trabalho de recomposição territorial feito pelo povo Ashaninka e também pelos “momentos muito difíceis”), o mero pagamento de uma quantia em dinheiro seria, para os Cameli, o mesmo que “comprar madeira”[6]. Para Francisco,
o que eles fizeram com o nosso povo na época marcou tanto que sentar com eles talvez seria pra nós… A gente não conseguiria…(...) Marcou tanto… Pra eles, é muito fácil pagar por uma coisa que ele fez. Pra nós não. Não paga nunca. Nós passamos… Eu se criei, meus irmãos, nossas famílias, nós se criamos em cima de um processo de muita luta. (Entrevista com Francisco Piyãko, novembro de 2023).
Estudos sobre processos de reparação, apesar de um certo entusiasmo com as práticas da justiça considerada restaurativa, apontam a insuficiência das medidas na efetiva reparação do dano sofrido (Oliveira 2010, Schritzmeyer 2012). No entanto, se as medidas disponíveis são insuficientes, parece pior renunciar às estratégias disponíveis para reconhecer a gravidade do dano causado e, com isso, reconhecer como vítima aqueles que sofreram o dano. Desse modo, observo que as medidas de reparação são reconhecidas em sua insuficiência, e é importante que seja exatamente dessa forma, pois, do ponto de vista dos seus operadores, a reparação não representa um ponto final em experiências dolorosas que precisam ser lembradas, narradas e recontadas. Reconhecer que foram causados “males” ao povo Ashaninka, é uma forma de reconhecê-los como vítimas no processo de invasão. Em outro sentido, reconhecê-los como “guardiões da floresta” e “zelosos na preservação do meio ambiente” são maneiras de valorizar a ação e a identidade do povo indígena (Pimenta 2004, APIWTXA s.d.). Mais uma vez, a dimensão do “reconhecimento”, como trabalhada por Oliveira (2004, 2008 e 2022) revela ser aspecto absolutamente central para a compreensão de processos de julgamentos, inclusive os que envolvem indenizações.
Para os operadores do direito envolvidos na conciliação, o acordo entre a comunidade Ashaninka e os Cameli significa um grande acontecimento. Marcelo Turbay, advogado dos Cameli, avalia que eles conseguiram construir algo excepcional que “foi bom pra todo mundo”. Antonio Rodrigo, advogado dos Ashaninka, acredita que eles conseguiram fazer “um acordo histórico para o estado brasileiro”. E José Roberto, o conciliador, disse que o “caso era sensacional”. Dois fatores explicam o sentimento de satisfação dos advogados dos litigantes e da União: a perspectiva de que foi possível construir uma dinâmica comunicacional baseada no consenso, e não no contraditório ou na busca da “verdade real” (Kant de Lima e Baptista 2014, Mendes 2012) e na ideia de que estavam produzindo acordo em um processo difícil que envolvia grupos com posições antagônicas e que tramitava na justiça há décadas.
A dimensão de encerramento de um ciclo foi parte das percepções de Francisco Piyãko. Para ele, a conciliação permitiu que o caso tivesse um desfecho a tempo de os idosos da comunidade saberem que houve a responsabilização dos invasores naqueles “tempos difíceis”. O dinheiro da indenização pôde ser utilizado de forma a “dar apoio” às pessoas mais antigas da comunidade e, ainda segundo Piyãko, vem sendo utilizado de forma a fornecer cuidado de saúde aos mais velhos. O dinheiro, para o entrevistado, é “um patrimônio coletivo para valorizar o nosso trabalho”, mas, diante de outros recursos que a comunidade gere, acaba sendo utilizado como um “recurso de reserva”. De fato, apenas como exemplo, durante a realização desta pesquisa, foi assinado um projeto de gestão territorial no valor de R$ 34 milhões. O projeto, que vai beneficiar 14 terras indígenas, foi resultado de uma articulação do povo Ashaninka, conforme ressaltou Marina Silva, ministra do Meio Ambiente (G1 AC 2023)[7].
Apesar das informações de que os Ashaninka tinham a expectativa de que a indenização orbitaria em torno de R$ 80 milhões, pelas entrevistas e pelo processo, não parece ter havido grandes impasses quando o valor de R$ 20 milhões foi proposto. Uma interpretação possível seria entender que o valor apresentado pelos Cameli foi aceito porque não havia margem para aumento, o que foi dito por Turbay. Mas, na verdade, o que a posição dos envolvidos na negociação sugere é que, para a aceitação da proposta por parte dos Ashaninka, foi menos relevante o montante do valor do que a expectativa em torno do encerramento de um ciclo, a tempo de uma certa geração de Ashaninkas poderem ter retorno sobre o seu desfecho. De fato, a proposta do valor, da forma de pagamento e do pedido de desculpas foi aceita por unanimidade na assembleia do povo, como vimos. E, é claro, como vários entrevistados do campo do direito ressaltaram: R$14 milhões não podem ser considerados um valor inexpressivo.
Perspectivas finais
Ao longo da pesquisa sobre reparações, tenho tido interesse em observar as estratégias empregadas pelos sujeitos, sobretudo por aqueles que sofreram algum tipo de dano, mas também por seus apoiadores, no processo quase sempre longo de uma negociação de indenização em seus termos e valores. Na verdade, o que tenho observado é que frequentemente existem falas espontâneas ou formais que tentam fazer com que a negociação das indenizações pareça algo diferente de uma negociação propriamente dita (Lacerda 2020, Lacerda 2021). Assim, afirmar e reafirmar que vidas não se negociam, que o sofrimento é inquantificável, que dinheiro algum é capaz de (a)pagar sofrimentos e, até que, o dinheiro da indenização “não mudou nada”, como dito por Francisco Piyãko, vão nesse sentido. Essa observação encontra respaldo também em pesquisas sobre políticas de reparação e de indenização em outros contextos (Tello 2003, Gonçalves 2009, Luzzi 2012, Azevedo 2016, Zenobi 2017, Ferreira 2021, Fillion e Torny 2015) e nas perspectivas de Oliveira (2019, 2023) relativas às possibilidades de incorporação das demandas das partes na decisão (ou acordo) final.
No material da pesquisa mais ampla, embora os “casos” utilizados tenham sido politicamente construídos a partir de situações concretas sofridas por indivíduos específicos, os danos/prejuízos/violências se referem a problemas amplos que afetam coletividades, como moradores de favela ou periferias, mulheres negras, população carcerária, comunidades indígenas. Para que isso fosse possível, existiram movimentos prévios de normatizações, mas, sobretudo, a inscrição dessas coletividades enquanto grupos detentores de direitos. No caso da indenização dos Ashaninka, contudo, a composição entre ter direitos e vulnerabilidade se apresenta de maneira complexa. Na cronologia que o povo Ashaninka apresenta por meio do website da APIWTXA, a década de 1980 é referida como um período de atividade madeireira e também de “luta pela terra” (APIWTXA, s/d). As movimentações da década de 1990 são descritas como “libertação dos patrões e fortalecimento da autonomia do nosso povo”, que culmina na demarcação territorial em 1992. O período seguinte é representado como de autonomia, em que são realizadas ações de planejamento da gestão territorial e ambiental, organização comunitária e consolidação de projetos e parcerias de projeção nacional e internacional (idem). Cotejando essa cronologia aos materiais do processo e das entrevistas, podemos dizer que a década de 1980 foi lembrada a partir das invasões em suas terras para exploração madeireira.
Nessa época, os costumes tradicionais, inclusive aqueles ligados à subsistência (como a caça), foram drasticamente afetados, pelo tamanho do impacto nas florestas onde o povo vivia. Ashaninkas mulheres foram vítimas de violência sexual no contexto e fora do contexto da festa tradicional. Era o tempo em que uma tora de madeira nobre valia o mesmo que um sabonete. O aviamento produzia não só o sistema de escravidão por dívida, mas tornava possível situações como a que vimos, em que um comerciante tenta obter sexo em troca de transporte. No entanto, Francisco Piyãko, que viveu todo esse período, não detalha essas situações sofridas décadas depois, durante nossa entrevista. Elas aparecem em suas palavras de forma geral como “um processo de luta muito grande”. Em resumo, o que poderia aparecer como “sofrimento”, aparece como “luta”.
Frequentemente, as reflexões de operadores do direito acerca do tema das indenizações afirmam que elas não podem produzir o enriquecimento sem causa[8], mas também não podem ser insignificantes a ponto de comprometerem o efeito pedagógico que nelas está investido (Antunes 2009, Silva 2016, Batista 2012). A pesquisa sobre indenizações tem demonstrado que embora a capacidade econômica dos causadores dos danos, invariavelmente, seja bastante expressiva (já que estamos falando de grandes empresas e do setor público), os valores são modulados de acordo com o perfil da vítima (Lacerda 2020). Trata-se de algo frequentemente notado pela bibliografia do campo da Antropologia do Direito, a respeito do “tratamento desigual aos desiguais” (Kant de Lima 2004, Mendes 2012, Amorim 2017, Guimarães 2020), o que funciona, como vimos, como forma esperada de fazer justiça. Aplicando essas reflexões ao caso analisado, indígenas e madeireiros precisariam ser tratados de forma desigual, em vista da assimetria de poder que oportunizou tanto a invasão territorial para exploração ilegal de madeira quanto a impunidade que se perpetuou ao longo das décadas seguintes.
Assim, quase sempre estamos diante de situações em que as indenizações são de baixo valor, já que as vítimas são moradores/as de favelas, usuários/as de serviços públicos, população carcerária. No caso dos Ashaninka, ao contrário, por mais que houvesse a expectativa de uma indenização de maior montante, os valores negociados apenas com um dos réus não foram considerados inexpressivos. O caso da indenização do povo Ashaninka, mesmo não se tratando do resultado de uma condenação, mas de um processo de conciliação, pode contribuir para as discussões sobre o instituto dos punitive damages no Brasil, tal como apresentadas por Guimarães (2021). Segundo a autora, no Brasil, juristas apontam que a aplicação dos punitive damages encontra óbice em nosso ordenamento jurídico, o que tem resultado em indenizações de baixo valor, sem o componente punitivo e, com isso, o ato lesivo tende à repetição. Considerando outros casos de indenização em favor de povos indígenas, o valor negociado com os Ashaninka continua tendo destaque[9]. Recentemente, obtive, por intermédio do advogado Antonio Rodrigo, o termo de acordo firmado com Abrahão Cândido da Silva, envolvido nos mesmos eventos de invasão, em que foi firmado o compromisso de indenização de R$ 10 milhões de reais. Esse acordo foi feito direto com as partes (ou seja, sem a necessidade de mediação da Administração Federal) e foi visto, pelo advogado, como consequência do acordo de conciliação estabelecido com a outra empresa. Parte do montante ajustado será quitado na forma de terrenos em Cruzeiro do Sul, no Acre.
O protagonismo dos Ashaninka em ações de recuperação e preservação ambiental durante o final dos anos 1980 e década de 1990, ou seja, muito antes do acordo de conciliação que estabeleceu os valores das indenizações, pode ser apontado como decisivo para esse desfecho. Pimenta (2022) afirma que, com a criação da APIWTXA, os Ashaninka se uniram e implementaram uma ambiciosa política de proteção e recuperação ambiental de seu território, contando, para isso, com o apoio de ONGs e de setores do estado regional e nacional na elaboração de projetos (idem, 180). As pioneiras e exitosas experiências dos Ashaninka com projetos de “desenvolvimento sustentável” garantiram grande visibilidade política a esse grupo, convertendo-os em principais promotores da ideologia do “desenvolvimento sustentável”, tão em voga. Assim, de algum modo, a proposição de um valor a título de indenização precisaria ser compatível com essa imagem que os Ashaninka construíram nas últimas quatro décadas. A opção de não ter envolvido os outros réus, prepostos dos mais importantes comerciantes do Juruá, vai nesse sentido também: eles dificilmente poderiam dispor de valores compatíveis com a posição social e política dos Ashaninka.
Por fim, chamo a atenção para o fato de que conceder uma indenização de R$ 14 milhões para um povo indígena poderia ter sido motivo de questionamentos diversos, sobretudo considerando os efeitos conflituosos, desagregadores e faccionalistas passíveis de serem provocados pelo dinheiro. De fato, em entrevista, a perita Maria Eliza Requejo Ribeiro Leite comenta ter visto o que o dinheiro do garimpo fez com os Gorotire no Pará, tendo se referido à “desestruturação”, “alcoolismo”, “desconsideração das lideranças tradicionais”. Como ela e outros interlocutores afirmaram, essa não foi uma preocupação no caso dos Ashaninka porque eles já eram conhecidos por sua organização social e política, e também eram tidos como “experientes gestores de projetos” com expressivos recursos. Inclusive, como alguns entrevistados ressaltaram, as ações de preservação ambiental relacionadas ao dano ambiental sofrido já haviam sido realizadas, antes mesmo do acordo de conciliação, por meio de outros projetos, recursos e parcerias.
O caso dos Ashaninka permite observar que estamos diante de formas de indenizar que podem se afastar da pretensão de restituir um estado de coisas anterior ao dano. Nesse caso, a indenização reforça a dimensão de reconhecimento das ações e da identidade desse povo enquanto experientes agentes socioambientais. É interessante que, apesar de mantida a “ideologia da desigualdade de tratamento juridicamente desigual”, durante o processo de conciliação, não houve relatos de inferiorização ou minorização das vítimas, seja na percepção dos operadores do direito envolvidos, seja na percepção das próprias vítimas. Assim, o efeito problemático apontado por Batista (2012) – de que o papel compensatório do direito transformaria os cidadãos em menores inimputáveis e incapazes de serem vistos como sujeitos de direito (idem, 285) – parece não ter ocorrido aqui. A decisão de não se sentar na mesma mesa que os madeireiros (ou seus novos prepostos, os defensores) é um dos aspectos de manifestação da postura e da escolha dos Ashaninka. Provavelmente por isso, na narrativa de Francisco Piyãko sobre o processo de indenização, estejam menos presentes relatos das violações que o seu povo sofreu do que as ações que a APIWTXA tem protagonizado e produzido de transformação no Alto Juruá.
Sobre a autora
Paula Lacerda é bacharel em Ciências Sociais e mestre em Saúde Coletiva pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, doutora em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Atualmente é professora de Antropologia na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, bolsista Prociência/UERJ, Jovem Cientista Nosso Estado/FAPERJ e Bolsista de Produtividade do CNPq nível 2.
E-mail: lacerdapaula@gmail.com
Contribuição da autora
Paula Lacerda realizou as seguintes atividades referentes à construção do artigo: produção de dados, conceitualização, análise de dados, elaboração da metodologia e escrita.
Declaração de disponibilidade de dados
Não houve depósito das informações analisadas no artigo em repositório de dados abertos.
Referências
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Notas