Seção Temática
Recepción: 01 Enero 2018
Aprobación: 15 Enero 2018
Resumo: : (Meio século de oligarquia, uma década de assentamento: a herança da Fazenda Cabaceiras no Assentamento 26 de Março, em Marabá – PA). Este trabalho analisa de que maneira as transformações, especialmente o desmatamento, durante o domínio das oligarquias agrárias por meio século influenciam no cotidiano de famílias camponesas assentadas. Trata-se da área da Fazenda Cabaceiras, onde hoje é o Assentamento 26 de Março, em Marabá (PA), organizado pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). A metodologia utilizada apoiou- se em levantamento bibliográfico-documental e pesquisa de campo com a realização de entrevistas. Conclui-se que os limites atuais na área de estudo resultam de uma herança histórica de ocupação e uso da terra por troncos familiares da oligarquia local e do atual modelo de reforma agrária projetado para o Sudeste do Pará.
Palavras-chave: Reforma agrária, desmatamento, uso da terra, Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, Amazônia.
Abstract: : (Half a century of oligarchy, one decade of settlement: the inheritance from the Cabaceiras Farm in the Settlement 26 of March, in Marabá, State of Pará, Brazil). This article analyzes how transformations, especially deforestation, during the domination of agrarian oligarchies for half a century influence the daily lives of settled peasant families. This study is focused on the area of the Fazenda Cabaceiras, where today is the Settlement 26 of March, in Marabá (Pará), organized by the Movement of Landless Rural Workers (MST). The methodology used was based on a bibliographical-documentary survey and field research with interviews. It was concluded that the current limits on the area of study result from a historical heritage of occupation and land use by families of the local oligarchy and from the current model of agrarian reform designed for the Southeast of Pará.
Keywords: Agrarian reform, deforestation, landuse, Movement of the Landless Rural Workers, Amazon.
Introdução
O tema deste trabalho refere-se ao tempo e ao espaço do Assentamento 26 de Março, localizado no município de Marabá, Sudeste do estado do Pará. Resulta de uma pesquisa no contexto do projeto “Na rua, no campo: estudo comparativo entre movimentos sociais contemporâneos” da Universidade Federal do Pará. Este trabalho analisa de que maneira as transformações, especialmente o desmatamento, durante o domínio das oligarquias agrárias por meio século na Fazenda Cabaceiras influenciam no cotidiano de famílias camponesas assentadas nessa área, que hoje é o Assentamento 26 de Março, em Marabá (PA), organizado pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).
O debate teórico que orienta a argumentação deste texto compreende o processo de ocupação e formação de Marabá e, consequentemente, as cobiças que se estabeleceram nesse município. Analisou-se a trajetória desde a Colônia Agrícola de Itacaiúnas, no fim do século XIX, até a formação do município de Marabá, na primeira quadra do século XX. Diante dessa realidade, identificou-se que foram estabelecidas diversas atividades econômicas em Marabá, em função da abundância de recursos naturais. Em decorrência da combinação de fatores políticos e econômicos, alguns troncos familiares de comerciantes locais e de participantes da vida política local exerceram domínio sobre grandes áreas do município. No entanto, o domínio não ocorreu apenas em relação às atividades econômicas, uma vez que distintas ferramentas políticas foram utilizadas para legitimar o domínio da terra.
A partir da segunda metade do século XX, a política de abertura da fronteira agrícola da Amazônia intensificou um novo uso da terra, em função da reconfiguração das atividades econômicas até então estabelecidas em Marabá. Presenciou-se a transição de uma economia extrativista mercantil, exercida sobretudo pelos troncos familiares comerciantes da castanha, para uma economia industrial exportadora — cedendo espaço para os novos representantes do capital financeiro (HÉBETTE, 2004a). A extração da castanha (Bertholletia excelsa) na Fazenda Cabaceiras, atividade que se destacava como vetor econômico após o declínio da economia da borracha, cedeu lugar à nova lógica capitalista. Iniciou-se a derrubada da cobertura florestal da fazenda em razão das atividades madeireiras e agropecuárias, incentivadas pela fronteira agrícola.
A derrubada da floresta para fins lucrativos, em decorrência da atividade madeireira e agropecuária, originou um passivo ambiental no Assentamento 26 de Março, que foi analisado em diversos trabalhos (CASTRO; WATRIN, 2013; WATRIN; CRUZ; SHIMABUKURO, 2005). Os
dados da pesquisa bibliográfico-documental e as pesquisas de campo nos levam a afirmar que as pastagens que hoje constituem a cobertura vegetal do Assentamento 26 de Março representam o padrão dominante do uso da terra no Assentamento. Pode-se deduzir então que a atual condição do solo na área de estudo é uma herança das oligarquias agrárias de outrora, aliada às políticas atuais que incentivam atividades como a pecuária, por meio de crédito. A área de estudo em questão acaba sendo uma expressão da problemática regional: as áreas designadas aos assentamentos rurais no Sudeste paraense são, em sua maioria, antigas fazendas, nas quais foram estabelecidas a exploração de madeireiras e a pecuária extensiva (ALENCAR et al., 2016).
A pesquisa baseou-se em um levantamento bibliográfico-documental sobre o tema abordado, além de pesquisas de campo, realizadas em março e julho de 2017 e fevereiro de 2018. A metodologia aplicada compreendeu observação participante do cotidiano dos assentados e entrevistas não diretivas (MICHELAT, 1987) realizadas com os coordenadores representantes do MST e com os assentados, os quais são identificados por codinomes.
Contextualizando o debate
A história de Marabá iniciou com a criação da Colônia Agrícola de Itacaiúnas, em 1895, por Carlos Gomes Leitão, então deputado estadual, que chegou no rio Itacaiúnas liderando um contingente de criadores e de comerciantes. Sua descida pelo rio Tocantins3 até sua chegada no rio Itacaiúnas foi resultado de conflitos de interesses políticos em Boa Vista do Tocantins (GO) com o então chefe político e intendente local Francisco Maciel Perna. A chegada dos novos habitantes aconteceu no contexto de plena autonomia dos estados de dispor de terras devolutas de seu território, de acordo com a primeira Constituição Republicana de 1891, o que garantiu o estabelecimento de um contrato de caráter comercial entre o então governador do Pará Lauro Sodré e Gomes Leitão para criar a Colônia Agrícola de Itacaiúnas. Em 1896, havia, aproximadamente, 222 habitantes na região, constituindo 55 famílias agrícolas em Itacaiúnas. As atividades produtivas baseavam-se na agricultura, na coleta da castanha, e algumas famílias já haviam iniciado a criação de gado. A constituição da colônia teve como consequência o povoamento da margem esquerda do rio Tocantins, no atual bairro Velha Marabá, onde esteve instalado. Seus habitantes procuravam os “campos gerais”,4 descobertos pelas expedições que também constataram a presença de árvores de caucho (Castilla ulei) em pleno contexto econômico da borracha no Pará (EMMI, 1987; VELHO, 2009).
Desde então, a extração do caucho foi realizada em Itacaiúnas por causa do seu valor de troca, fato que introduziu modificações nas relações de produção preexistentes. Como consequência, houve um deslocamento da população para uma área de maior incidência das árvores de caucho, onde hoje é o bairro Marabá Pioneira. Em decorrência desse deslocamento, surgiu o aglomerado de Marabá (VELHO, 2009). A desagregação da colônia agrícola e a criação de Marabá aconteceram de acordo com os interesses de um grupo de comerciantes do qual Carlos Gomes Leitão fazia parte. O interesse desse grupo estava orientado para a exploração do caucho, uma vez que nele estavam “representantes locais de interesses muito bem definidos num contexto muito mais amplo da busca do lucro mercantil” (EMMI, 1987, p. 30). Esse momento marcou o fim da colônia e o nascimento de um centro comercial, Marabá.
Várias incursões já haviam sido realizadas antes da chegada de Gomes Leitão, quando foi instalada a Colônia Agrícola de Itacaiúnas. A área foi habitada por índios gaviões quando presenciou a visita de “religiosos, comerciantes, garimpeiros, bandeirantes e exploradores profissionais” (EMMI, 1987, p. 19). Alguns núcleos populacionais haviam sido criados às margens do rio Tocantins, como Cametá (1635) e Mocajuba (1853), a partir da subida de Belém. Na confluência com o rio Araguaia, havia uma colônia militar denominada São João do Araguaia. “Apesar das várias incursões, a região próxima a Marabá não tinha sido ainda economicamente explorada pelos colonizadores” (EMMI, 1987, p. 19). A Colônia Agrícola de Itacaiúnas foi, dessa Os interesses de um grupo de comerciantes em ascendência influenciaram para que o governo elevasse Marabá à categoria de município, em 27 de fevereiro de 1913, momento no qual o governo do Pará empossou uma junta governativa que dirigiu o município por dois anos. No entanto, essa iniciativa não tinha apenas pretensões eminentemente políticas, uma vez que era composta por comerciantes locais. Assim, iniciou-se uma oligarquia agrária que iria se firmar “graças à apropriação progressiva da terra, que sua posição na hierarquia administrativa lhes facilitaria” (EMMI, 1987, p. 37). Essa oligarquia se beneficiava pelo contexto da transferência de terras devolutas do patrimônio da União para o patrimônio do estado, como previa a Constituição de 1891. Foi assim que teve início a oligarquia do Tocantins, constituída em torno de famílias, políticos e, principalmente após os anos 1960, empresas.
A oligarquia agrária do Tocantins associou seu poder econômico às potencialidades naturais de Marabá. Após o desfecho do ciclo econômico da borracha, sucedeu-se a fase de extração da castanha, para atender o capital mercantil então instalado. Durante o auge da exploração do caucho, Marabá também produzia castanha, mas apenas em 1927 tornou- se o principal e maior produtor de castanha, com safras de relativa importância no mercado, o que permitiu a continuidade do controle das oligarquias locais em uma economia mercantil, mesmo com o enfraquecimento econômico, decorrente da diminuição da relevância da borracha no mercado (EMMI, 2002).
Segundo Velho (2009), a extração da castanha após o enfraquecimento econômico da borracha representou a tendência de uma época econômica que, anos mais tarde, só teria sentido em função do mercado, que não era o local, seguindo a mesma sina do contexto anterior. Dessa maneira, o produto perdeu o sentido de uso para o coletor, uma vez que o capital e os meios de comercialização eram controlados pelos comerciantes que deixaram os coletores à sua mercê. Essa fase econômica, sucessora e com características muito parecidas com a economia da borracha, é mencionada na bibliografia como fase do capitalismo mercantil aliada à oligarquia extrativista comercial da castanha em Marabá (EMMI, 1987; HÉBETTE, 2004a; LOUREIRO, 2004; VELHO, 2009).
A partir de 1925, as iniciativas governamentais para garantir o controle das terras sob o domínio dos comerciantes basearam-se nos aforamentos. É nesse contexto de controle fundiário que se trava um intenso conflito com as populações locais que viviam na terra e que, após o fortalecimento dos comerciantes, passaram a compor uma forma de organização social baseada na exploração (EMMI, 1987; EMMI, 2002; VELHO, 2009). Nesse mesmo contexto apareciam também as notícias sobre o Castanhal Cabaceiras, uma área de aproximadamente 10.000 hectares, sob o domínio
da Família Almeida, entre os anos de 1959 a 1989, uma família de comerciantes no contexto dos castanhais aforados. Em seguida, a partir de 1989, o Castanhal esteve sob o domínio dos Mutran, uma família que chegou em Marabá em fins dos anos 1920 e, a partir de 1930, começou a aforar grandes áreas de castanhais. A partir dos anos 1990, essa família desmatou o Castanhal Cabaceiras e deu início à exploração madeireira e à pecuária, transformando o castanhal em fazenda (CRMB, 2012).
O domínio fundiário realizado por diversas famílias que se estabeleceram em Marabá deu início à organização dos lavradores para canalizar suas reivindicações em relação à concentração fundiária. Foi nesse contexto que se formaram os Sindicatos dos Trabalhadores Rurais do Sudeste do Pará e o MST, nos anos 1980, ambos instrumentos de luta dos lavradores. Foi assim que em 1999, período em que a família Mutran ainda era proprietária legal da então Fazenda Cabaceiras, o MST — movimento criado nos anos 1980 e que teve em sua base os lavradores expropriados de suas terras (SILVA, 2003) — se manifestou na trajetória da Cabaceiras e reconfigurou o histórico dos sujeitos que ali se estabeleceram. A coexistência de sujeitos com interesses diferentes no mesmo espaço fez da Cabaceiras palco de conflitos do qual resultou o acampamento do MST (1999-2008) e o Assentamento 26 de Março, de 2008 em diante.
Por muito tempo, a Fazenda Cabaceiras esteve sob o domínio de troncos familiares pertencentes à oligarquia agrária de Marabá. O fato de que a oligarquia sempre esteve orientada para a exploração dos recursos naturais e para as potencialidades produtivas do município em busca de ganhos financeiros nos leva à seguinte afirmação: a oligarquia agrária de Marabá deixou marcas históricas que hoje influenciam de maneira negativa o cotidiano das famílias assentadas em assentamentos rurais com histórico de exploração madeireira e agropecuária. Consequentemente, o fator negativo constitui os principais desafios materializados no dia a dia dos assentados e dos movimentos sociais de luta pela terra no Sudeste do Pará. O histórico de ocupação e formação do município evidencia o que afirmamos: “Marabá brota da ganância do dinheiro” (EMMI, 1987, p. 33).
A fim de prestigiar os 10 anos5 da conquista do assentamento pelo MST, foi destinado um empenho para entender as influências de meio século de oligarquia para os assentados no Assentamento 26 de Março, em Marabá, que herdaram o passivo ambiental correspondente ao passado. Espera-se que este estudo possa contribuir para uma análise crítica no atual entendimento dos processos da dinâmica do uso da terra no assentamento e também refletir sobre a necessidade de revisão das políticas de fomento para que possam incentivar os assentados a executar atividades de recuperação de áreas degradadas, uma vez que suas atividades de sobrevivência são percebidas como agravantes do passivo ambiental já existente.
A oligarquia da castanha em Marabá
Na década de 1920, a extração da castanha foi reorientada para se transformar em vetor econômico como tentativa de revigorar a enfraquecida economia de Marabá, em virude da diminuição da importância da borracha no mercado. Logo, onde predominava o valor de uso do coletor da castanha, passou a predominar o valor de troca do comerciante.
Com o sucesso da castanha no mercado exterior e a queda do preço da borracha, o capital mercantil liberado e tornado ocioso se volta para a castanha, passando a reproduzir na extração desta essas formas de organização e de exploração similares à da extração da borracha (EMMI, 1987, p. 70).
Diante desse cenário, a extração da castanha foi a solução para revigorar economicamente a região amazônica. Até a criação do sistema de arrendamento em 1925, a extração da castanha acontecia nos Castanhais Livres.6 Posteriormente, a produção foi incorporada a um controle político que resultou do fortalecimento econômico dos comerciantes locais pela apropriação dos castanhais, obtida por meio da política de arrendamento, a qual
constituiu uma arma usada pela oligarquia castanheira para exercer o poder político e econômico sobre alguns médios e pequenos produtores que se dedicavam à coleta da castanha. O arrendamento acabou na prática com a “extração livre” e interessou de modo especial para a oligarquia como forma de monopolizar o comércio da castanha (EMMI, 2002, p. 6).
Foi dessa maneira que foram estabelecidas as condições para o controle da produção da castanha. Delineiam-se, então, dois momentos distintos: até 1925, a terra tinha o sentido de fonte de riqueza natural para pequenos coletores; depois, a terra foi transformada em mercadoria para atender os interesses dos comerciantes locais.
Os comerciantes detinham o controle das comunicações através dos rios, os meios necessários para o comércio da castanha, a influência política e, consequentemente, a terra. Esses eram os meios a sua disposição para controlar a comercialização da castanha e subordinar os pequenos produtores. De uma maneira ou de outra, Marabá continuava reproduzindo as relações de subordinação mercantil da economia da borracha (LOUREIRO, 2004).
Mas o controle não ocorreu apenas nas relações de exploração da produção, afirma Velho (2009):
[...] o mesmo ocorreu ao nível da política. A área havia de integrar-se no esquema da política dos coronéis da República Velha. Isso era fundamental em relação às áreas novas do ponto de vista da política dominante, pois caso contrário poderia surgir um subsistema relativamente independente e incontrolado. E seria especialmente ameaçador, após a queda da borracha, se justamente uma das áreas agora mais importantes do estado do Pará conseguisse manter-se à margem. A plena incorporação da área exigia a formação de uma estrutura de lideranças definidas, comprometidas com o sistema dominante, e que prolongassem no nível local a escala de hierarquias em que se apoiava. A permanência de um sistema de exploração livre era incompatível com tal exigência (VELHO, 2009, p. 53).
Nota-se que havia uma necessidade de controle da produção da castanha para assegurar os interesses dos comerciantes e garantir a continuidade do controle político que esteve associado ao controle da terra. Portanto, o controle da terra conduziu a oligarquia ao poder político de modo que seu domínio latifundiário fosse legitimado e garantido (EMMI, 1987; VELHO, 2009).
A partir do controle político, foi mais fácil iniciar o aforamento dos castanhais e, em função disso, a oligarquia se fortaleceu. O sistema de aforamento confirmou o fim da extração livre e o poder dos comerciantes sobre a produção da castanha até os anos 1950. Esse fenômeno no Pará abrangeu um período de concessão de terras entre 1955 e 1966, sendo 70% destas concessões destinadas para Marabá (EMMI, 2002). A partir desse período, iniciam-se as informações sobre a Fazenda Cabaceiras: em 1959, Nilo Alves de Almeida conseguiu o título de aforamento para extrair castanha nessa área (CRMB, 2012). Sob seu domínio, a Cabaceiras produziu principalmente castanha, embora em Marabá já houvesse casos do surgimento da agropecuária, ainda em consolidação.
Marabá possuía rebanhos bovinos já nos anos 50, para o abastecimento local. Os custos de implantação dos pastos eram altos, pois incluíam a prévia derrubada ou queima da mata, já que não havia muitos campos naturais naquelas paragens. A falta de estradas para escoamento da produção, o fato de que a castanha era a atividade predominante e a inexistência de estímulos creditícios foram fatores limitantes à expansão da pecuária até fins dos anos 60 (LOUREIRO, 2004, p. 58).
A necessidade da derrubada e queima da mata em razão dos poucos campos naturais e, principalmente, a falta de estímulos creditícios até os anos 1950, apontada por Loureiro (2004), decorreu, segundo Velho (2009), da insegurança da posse da terra, na medida em que poderia ser perdida se houvesse descumprimento ou a não renovação dos contratos entre os comerciantes e o governo do estado. Algumas relações estabelecidas entre os comerciantes e o governo eram bastante pessoais. Houve casos, nos quais os aforamentos eram perpétuos em consequência de negócios comerciais e políticos entre ambas as partes (EMMI, 1987). Foi dessa maneira que os aforamentos asseveraram a segurança da posse da terra e permitiram que vários investimentos fossem direcionados para outras atividades além da produção da castanha, economicamente enfraquecida desde os anos 1940. Vários incentivos direcionados para a pecuária possibilitaram a permanência da combinação de atividades comerciais produtivas em Marabá. Essas mudanças já sinalizavam a incorporação de Marabá ao mercado nacional de terras, mão de obra, capitais, bens e serviços em decorrência da expansão da fronteira nacional. Duas atividades começaram a se destacar: a exploração da madeira e a pecuária (HÉBETTE, 2004b).
Paralelamente à expansão da fronteira agrícola amazônica, houve um aumento populacional considerável na capital do Pará que estimulou o crescimento da pecuária em Marabá. Em 1950, a população estimada em Belém era de 254.949 habitantes e, em 1960, de 402.170 (EMMI, 1987). Nesse contexto, Marabá se estabelecia como um mercado produtor de carne bovina para a capital, ainda que modesto, e para a própria população local que, de 2.984 habitantes, em 1940, passou para 4.973, em 1950. Então,
é nessas circunstâncias que irá estimular-se o desenvolvimento de novas soluções, que implicarão uma criação em plena Amazônia de uma pecuária de características capitalistas modernas, no Baixo Amazonas (em torno de Santarém) e no Sul do Pará (VELHO, 2009, p. 71).
Quando a família Almeida conseguiu o título de aforamento para explorar castanha na Cabaceiras, a economia mercantil baseada no extrativismo cedia espaço para uma economia industrial que se instalava na Amazônia paraense. A partir de 1960, as características de exploração da castanha deixaram de ser exclusivas a um dono de castanhal e passaram a configurar uma rede comercial de várias regiões produtoras, em decorrência do modelo industrial. Nilo Alves de Almeida dirigia a então Nelito Indústria e Comércio. Consequentemente, a economia da castanha deixou de ser tão interessante aos comerciantes, diante da nova realidade que se instalava no Pará, tanto do ponto de vista econômico como do social, em razão do surgimento de novas atividades. Vários setores econômicos foram expandidos, sobretudo os que estavam ligados às explorações agropecuária, mineral e madeireira. Empresas como a Companhia Vale do Rio Doce, Rio Impex S.A e alguns troncos familiares disputavam espaço no novo cenário econômico (EMMI, 1987).
Em 1989, a família Almeida vendeu o Castanhal Cabaceiras para a Jorge Mutran Exportação e Importação Ltda., empresa de exploração madeireira de propriedade da família Mutran (CRMB, 2012). Quando os Mutran compraram o Castanhal, a exploração da madeira e a pecuária na Amazônia foram um estímulo para novas soluções de desenvolvimento da oligarquia. Foi dessa maneira que a família acompanhou o processo de mudança econômica pela qual passava a região. Os Mutran, então representados por Evandro Mutran, Celso Mutran e Délio Mutran, já tinham influência econômica e política pelo seu forte dinamismo na produção da castanha nos anos anteriores. Mas com a decisão de desmatar o Castanhal Cabaceiras para a produção de bovinos e para a exploração madeireira inauguraram uma nova face da família Mutran, ante um novo contexto econômico em Marabá, o da pecuária, diferentemente de outros troncos familiares que sucumbiram diante da transição econômica (EMMI, 2002).
A sociedade se move para quebrar a oligarquia
À medida que a oligarquia agrária de Marabá se consolidava e detinha o domínio fundiário, desencadeava um conjunto de reivindicações de pessoas que dependiam da terra para sua sobrevivência. Enquanto a família Mutran acompanhava o processo de mudança econômica na Amazônia, vários segmentos da sociedade se manifestavam em torno da disputa pela terra. Destacou-se, então, a atuação dos Sindicatos de Trabalhadores Rurais no Sudeste do Pará. Além disso, o MST, desde sua chegada em Marabá nos anos 1990, após a experiência numa área em torno da Floresta Nacional de Carajás,7 organizava famílias por meio de Trabalhos de Base e iniciava as mobilizações para a ocupação de terras. Foi então que em 1999 o Movimento ocupou a Fazenda Cabaceiras, a fim de destinar a área para a reforma agrária. As pessoas se organizaram para atuar coletivamente, com base em objetivos comuns, diante de um cenário não favorável aos seus interesses. As ocupações de terras organizadas pelos Sindicatos e pelo MST compuseram o repertório (TILLY, 1981) de luta das pessoas em determinado contexto e corresponderam às ações limitadas dessas pessoas em um cenário conflituoso. Desse modo, os repertórios são ações construídas entre os mobilizados para agir a fim de alcançar alguma mudança. Além da ocupação de terras, várias formas de agitação foram perceptíveis, nas quais o uso de vestimentas específicas, canções e poemas foram importantes para a constituição do esprit de corps (BLUMER, 1995 [1951]) e para despertar as pessoas impulsos e ideias que as tornassem insatisfeitas. Foi a partir dessas maneiras de agir que o MST ganhou mais visibilidade em Marabá e, consequentemente, garantiu mais visibilidade da luta pela terra no Sudeste paraense, por projetar suas ações para as principais mídias, como o Correio Tocantins (ASSIS, 2014).
A ocupação de terras sempre se constitui como a principal forma do MST de conquistar os direitos dos sem-terra, e na Fazenda Cabaceiras não foi diferente. Simbolicamente, o Movimento atingia diretamente a família que representava o poder político e econômico em Marabá e unia as pessoas para agir em favor das suas necessidades, esperanças e interesses em torno da conquista da terra. Para entender as maneiras de reivindicar o direito dos sem-terra, mergulhamos no universo teórico de Tilly (1981),
o qual identificou que as pessoas não agem apenas de maneira coletiva, mas a partir de repertórios. Repertório corresponde às formas pelas quais as pessoas agem diante de seus adversários num processo deliberado de escolha. Na execução de suas ações, elas sempre buscam uma renovação de acordo com as condições e o contexto histórico. Mas para inovar é preciso saber o que inovar. Então, por qual motivos os repertórios são inovados? Para uma resposta à questão é necessário entender que os repertórios não pertencem às pessoas, mas sim a uma estrutura social de conflito, na qual repetidamente são colocados em prática. Se a estrutura de conflito e as condições sociais mudam, certamente os repertórios também o fazem. Em diferentes contextos, as pessoas inovam os repertórios, utilizando ações mais eficazes do que outras. Foi assim que as ocupações realizadas pelo MST em Marabá deram prosseguimento às experiências anteriores dos Sindicatos de Trabalhadores Rurais de Marabá e Conceição do Araguaia. Nesse sentido, o novo na ação do MST se constituía no entendimento de que além de ocupar um latifúndio, sacudir a própria estrutura de poder existente era uma exigência nova na luta pela terra. Nesse caso, a ocupação da propriedade dos Mutran respondia bem a essa novidade.
De acampamento a Assentamento 26 de Março
A ocupação da Cabaceiras deixava bem evidente que o tronco familiar dos Mutran em Marabá sempre foi considerado pelo MST um inimigo da luta pela terra no Sudeste paraense. E, como toda ocupação, tem uma história que merece ser contada. Entender a ocupação da Cabaceiras exige que voltemos para 1998, quando cerca de quinhentas famílias ocuparam a então Fazenda Goiás II, em Parauapebas. Em meio aos conflitos com os pistoleiros da fazenda, os integrantes do MST desocuparam a área e, no dia 26 de março daquele mesmo ano, transferiram o acampamento para uma área próxima à Fazenda Carajás, ainda no Sudeste do Pará, momento em que foram cercados por funcionários da fazenda, com os quais inevitavelmente entraram em confronto. A superioridade foi evidente no resultado do confronto: nove camponeses gravemente feridos e dois deles mortos: Onacílio Araújo Barros, conhecido como Fusquinha, e Valentin Serra, conhecido como Doutor (ASSIS, 2014).
Tal resultado simbolizou a desigualdade de forças entre o MST e os latifundiários na luta pela terra no Pará. A resposta do MST foi mobilizar famílias para a ocupação de terras. Para homenagear os dois representantes assassinados em 26 de março 1998, o Movimento reuniu mil e duzentas famílias, aproximadamente, para ocupar a Fazenda Cabaceiras, no dia 26 de março de 1999. Hoje, o nome do Assentamento faz referência à data de ocupação e, consequentemente, ao motivo que levou o Movimento a ocupar a área: a morte de duas lideranças na data de 26 de março de 1998. Assim, para além de uma data, 26 de Março se constitui como símbolo de lembrança e toponímia política, elemento contestador diante da violência contra os camponeses e homenagem às duas lideranças que tombaram enquanto lutavam por justiça. É possível perceber a magnitude da ocupação da Cabaceiras na seguinte entrevista com um assentado do 26 de Março.
Muitas famílias foram mobilizadas pra que a gente pudesse fazer essa ocupação. Não era apenas uma ocupação como a gente tava acostumado a fazer. Era a família Mutran, proprietária de terra, eles tinham gente da família no governo, então eles tinham poder. Eles tinham muito poder aqui em Marabá. Até hoje ainda têm. E quando estávamos marchando em direção à fazenda e algumas famílias souberam que íamos ocupar uma área dos Mutran, muitos desistiram da ocupação (C. Onça, entrevistado em julho de 2017).
É evidente no enunciado do interlocutor que a influência social e política dessa família desafiava a busca dos camponeses por terra. Se, por um lado, as pessoas se mobilizavam para ocupar terras, por outro, a oligarquia se mobilizava para mantê-la. Os artifícios usados eram bem diferentes e superiores aos dos camponeses. Contavam com o apoio da polícia militar e dos políticos locais. Nesse cenário, se constituíram conflitos em torno da terra, os quais ficaram na memória social do município e influenciaram o imaginário das pessoas em relação à família Mutran.
Além dos obstáculos já impostos, ainda havia a dificuldade na relação com o e Estado, percebida nos primeiros anos de ocupação. Durante a ocupação da Fazenda Cabaceiras, houve pelo menos três vistorias que dificultavam a consolidação das famílias acampadas. A primeira foi realizada no mês de março de 1999. Os ocupantes tiveram que deixar a área para que uma vistoria fosse feita, como previsto no procedimento formal, e transferiram o acampamento para as margens do rio Sororó, ao sul da Cabaceiras. Com o atraso e a demora na execução da vistoria técnica, o MST retornou e se instalou na sede da Fazenda no ano de 2000. Depois disso, foram novamente despejados por uma força de liminar que alegava a necessidade de mais uma vistoria. Diante de tal realidade, o MST ocupou a sede do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) em Marabá, a fim de dialogar com representantes do governo de Almir Gabriel, para que pudessem acelerar o processo de vistoria. Sem sucesso na tentativa, alguns meses depois, já no ano de 2001, retornaram novamente para a Cabaceiras, desta vez às margens da BR-
155. Neste episódio, foram despejados mais uma vez, e ficaram aproximadamente 30 dias acampados fora da área da Fazenda Cabaceiras, para mais uma vistoria. Diante da demora da execução da vistoria, o MST decidiu retornar à Fazenda. Após vários despejos, o Movimento realizou o loteamento e a distribuição da terra entre as famílias nos anos de 2003 e 2004. Para isso, o MST e seus participantes contrataram profissionais da agrimensura e topografia, antecipando por iniciativa própria o que deveria ser feito pelo Estado. O pagamento aos profissionais resultou da contribuição financeira das famílias acampadas. Essas ações do Movimento traduziram a sua maneira de agir ante uma estrutura de conflito social. Portanto, as sucessivas ocupações e a iniciativa de demarcar a terra constituíram um repertório específico daquele momento histórico da ação do Movimento no Assentamento 26 de Março. Diante da pressão exercida pelo MST, finalmente, em 19 de dezembro de 2008, foi criado o assentamento, conforme Portaria no 67, publicada em 23 de dezembro de 2008 no Diário Oficial da União (EMATER, 2013).

A insistência do MST em montar e desmontar o acampamento na Fazenda levou à desmobilização dos latifundiários, na figura dos Mutran e do próprio Estado, na figura do Incra. As ocupações tiveram um caráter estratégico: a cada nova ocupação ou retorno após um despejo para a realização das vistorias, o Movimento ocupava uma área diferente, abrangia o conhecimento sobre a extensão territorial da fazenda e refinava suas rotinas de ocupação. São estas formas de ação das mobilizações coletivas — que se repetem, inovam-se e se refinam — que Tilly (1981) descreveu como repertório.
Três aspectos denunciativos sustentavam as ocupações do MST na Cabaceiras: prática de trabalho escravo; crime ambiental por meio da extração ilegal de madeira; e, a maior covardia à dignidade humana, um cemitério clandestino,8 conforme informou um antigo trabalhador da Cabaceiras ao MST, hoje assentado no 26 de Março. Tais denúncias caracterizaram a primeira desapropriação de uma área rural para fins de reforma agrária no Brasil, justificada pelo descumprimento da função social da terra, de acordo com a Constituição de 1988, por ser considerada ociosa e em decorrência da exploração de trabalho em condições análogas às de escravo, como prevê o artigo 149 do Código Penal Brasileiro (BARROS, 2011).
A herança da oligarquia: limites e possibilidades
Ao falar de herança, se considera aquilo que é deixado para os sucessores. Podem ser bens, e, em alguns casos, até obrigações. Pode ser algo bom, o que reflete na continuidade de um futuro promissor, mas também algo ruim, que vai constituir desafios e dificuldades. É desse ponto de vista que este trabalho se propõe a entender como as atividades relacionadas ao desmatamento no século XIX, ainda no período da Fazenda Cabaceiras, influenciam o dia a dia dos assentados no Assentamento 26 de Março. Em virtude do desmatamento para a exploração madeireira e para o estabelecimento da pecuária, hoje o Assentamento é constituído por mosaicos de paisagens distintas em relação ao uso e à cobertura vegetal, nos quais predominam as pastagens .CASTRO; WATRIN, 2013; WATRIN; CRUZ; SHIMABUKURO, 2005; GAMA, 2016).
O desmatamento produziu problemas referentes à cobertura vegetal do Assentamento: a diminuição da floresta nativa e os efeitos sobre a biodiversidade, além da perda de capacidade produtiva do solo. Em um estudo sobre o desmatamento em fins do século XX, Fearnside (2005) concluiu que entre os impactos mais relevantes do desmatamento, que impedem um bom nível de produtividade, estão a erosão e a compactação do solo. A combinação desses dois fatores é diretamente proporcional à queda da qualidade produtiva do solo. Como consequência do desmatamento para o exercício de atividades específicas, o uso do solo no Assentamento apresenta as características evidenciadas no Gráfico 1.

Os dados se referem ao período da chegada das pessoas na Fazenda Cabaceiras até o ano de 2013 e permitem entender que, enquanto as áreas de mata primária diminuíram devido ao desmatamento, as áreas de pasto aumentaram (a área total de pasto limpo é de 47,23%, mais 13,77% de juquira9 ou solo exposto). Os fatores que causaram a diminuição da mata estão relacionados com o desmatamento para a extração de madeira, para o estabelecimento de atividades agrícolas e para a implantação de pastos. Evidencia-se no Gráfico 1 um dos problemas que persiste no Assentamento: o desmatamento. Um dos interlocutores da pesquisa, assentado no 26 de Março, quando entrevistado, afirmou que:
Infelizmente a mata que a gente pegou aqui tá sendo queimada. A gente fala que não pode, não pode, mas as pessoas continuam fazendo. Aqui tem dois tipos de desmatamento. Um tá relacionado com a agricultura, né? A gente queima a juquira pra conseguir plantar. Esse ta sendo porque a gente quer plantar. Mas tem gente aí que desmata o lote tudo pra extrair madeira. Esse tipo de atividade não dá nenhum retorno pra quem vive aqui. Aqui a gente queima a juquira e faz o quê? A gente planta o cacau, a mandioca, o cupu (cupuaçu), a castanha. Então essas são atividades que daqui a algum tempo vai dar retorno pra gente. Da mandioca a gente faz a farinha, né? Aí já é uma coisa que a gente pode vender na feira de Marabá, ou pra alguém que passa aqui na estrada e compra, né? Tem gente que compra assim também (Benedito, entrevistado em fevereiro de 2018).
A entrevista com o assentado nos faz refletir sobre o desmatamento realizado com o objetivo de extrair madeira para comercializá-la, tanto in natura como na forma de carvão vegetal, após carbonização. Chama a atenção também o desmatamento para fins agrícolas. Quando o interlocutor diz “não pode, não pode”, ele refere-se à queima para a extração de madeira nas áreas de mata que constituem 25% da cobertura vegetal do Assentamento, atividade que não dá retorno para os assentados, a não ser um benefício provisório para quem vende a madeira. Já em relação à derrubada da juquira para a atividade agrícola, o interlocutor diz ser uma atividade favorável em relação à primeira por apresentar resultados positivos para os assentados, porque possibilita exercer a atividade agrícola e comercializar os produtos, ou seja, permite ao agricultor se reproduzir enquanto tal a partir da agricultura.
Do ponto de vista ambiental, as áreas de mata mencionadas na entrevista com Benedito constituem a Reserva Legal10 do Assentamento e, em função do passivo ambiental existente antes da chegada do MST na Fazenda Cabaceiras, faz-se necessário sua conservação. No entanto, percebe-se que algumas áreas da Reserva Legal estão sendo desmatadas para fins lucrativos próprios, como a extração de madeira. Já o desmatamento efetuado no sistema “corte e queima” (agricultura itinerante) para fins agrícolas acontece pouco em áreas com juquira, onde historicamente predominam as pastagens. Portanto, pode-se dizer que mesmo as áreas que deveriam ser preservadas continuam sofrendo consequências devido à ação humana relacionada com o desmatamento.
Gama (2016) identificou áreas de expansão do desmatamento com o uso de “corte e queima” no Assentamento, com a finalidade de efetivar a pecuária ou atividades agrícolas. Em relação à agricultura de “corte e queima”, entende-se que essa prática envolve um caráter diversificado e itinerante, além de ser sustentável na medida que a prática ocorre tradicionalmente e diante de uma densidade populacional baixa. Dessa maneira, garante a reprodução social de populações que vivem no campo (JÚNIOR; MURRIETA; ADAMS, 2008). Mas a problemática que resulta dessa prática no Assentamento está relacionada com a pequena quantidade da mata que constitui a Reserva Legal, que continua sofrendo as consequências do desmatamento. Nesse sentido, acredita-se que produzir culturas anuais por mais tempo, na mesma área (SCHMITZ et al., 2001), pode ser uma maneira de reduzir o passivo ambiental existente.
O desmatamento para o estabelecimento das áreas de pasto é reflexo de uma política de incentivos à pecuária que promove essas práticas no Assentamento 26 de Março. Tanto o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf-A) como o Mais Alimentos, financiado pela Secretária de Agricultura Familiar do Ministério do Desenvolvimento Agrário, funcionam como fio condutor para impulsionar o crescimento da pecuária. Esse fato explica os 61% do pasto total que constitui a cobertura vegetal do Assentamento. Em contrapartida, as potencialidades do modo de viver camponês que poderiam ser beneficiadas com políticas orientadas para suas experiências não são exploradas. Um dos interlocutores afirma:
Criar gado é depender de um modelo que não tá ao nosso alcance. A gente pra fazer isso fica dependendo da política de crédito. E que no caso, aqui, sai. Tem muito recurso destinado pra criação de boi, de vaca. O forte mesmo é a produção do leite. Mas por outro lado, a gente não tem como plantar outras coisas porque o crédito é bem direcionado. A gente até planta, quando dá. Mas e as famílias que pegaram lote no sorteio e que é quase totalmente coberta por área de pasto? A gente aprende que a diversidade produtiva é importante pro ecossistema, pra própria vida do homem do campo, mas na prática a realidade é outra (Monteiro, entrevistado em julho de 2017).
O trecho da entrevista é referente ao descontentamento do jovem de 27 anos, estudante de Agronomia do Campus Rural de Marabá, filho de assentados no 26 de Março. Durante o curso, ele aprendeu a importância da diversidade produtiva não apenas para a qualidade do solo, mas para a própria vida do agricultor. Mas a realidade no Assentamento tem sido outra: os incentivos dos governamentais têm sido destinados para a pecuária, pois o solo do Assentamento é propício a esta atividade produtiva. Tais incentivos, portanto, reproduzem uma problemática de outrora e influenciam negativamente o cotidiano dos assentados, e em seus discursos isso fica evidente.
A gente derruba a mata porque é preciso fazer isso. Se a gente não derrubar, como a gente fica? Tem gente que só tem área de pasto e se não fizer isso vai ter que deixar o lote. Então acaba sendo uma necessidade pra quem pretende ficar na terra, né?[...] Aqui o acompanhamento técnico é pouco. Se a gente quer fazer uma plantação, uma coisa diferente, é difícil. Tem que ter a reparação do solo, todo um procedimento que muitas vezes não conseguimos fazer sozinho. Então quem tem área de pasto no lote acaba investindo na atividade porque tem a possibilidade de receber os créditos pra isso e não pra outra coisa, como agricultura (Jacinto, entrevistado em julho de 2017).
O trecho da entrevista remete a uma questão importante no Assentamento: a distribuição dos lotes, evidenciado no Mapa 2, com as áreas preservadas e antropizadas.

A organização espacial do Assentamento em raios de sol possibilita um mosaico de paisagens distintas em relação às atividades produtivas. Após o sorteio dos lotes, ainda no período do acampamento, foi verificado que algumas famílias receberam lotes com cobertura total de pastagens, localizadas nas áreas antropizadas, enquanto outras receberam áreas propícias à agricultura, localizadas nas áreas preservadas. Os assentados que receberam lotes com áreas completamente cobertas de pastagens, como no caso do entrevistado, encontram uma solução, diante de pouco “acompanhamento técnico”, investindo na pecuária.
Os dados do MST recolhidos na Secretaria Estadual indicam que as atividades que caracterizam essa territorialidade são identificadas por grupos de sistemas de produção desenvolvidos pelas famílias. O grupo que prioriza a pecuária possui mais de quatro bovinos e menos de 1,0 ha de atividade agrícolas (culturas anuais, perenes e horticultura), e soma 23% dos assentados. O grupo que prioriza a agricultura com no máximo três bovinos e cultiva no mínimo 1,2 ha para a agricultura, soma 21%. O grupo que prioriza a diversificação possui bovinos, áreas cultivadas e um número significativo de pequenos e médios animais, e soma 26%. O grupo que prioriza a criação de pequenos animais (aves, suínos, piscicultura e ovinos), soma 14% dos assentados. Por último, o grupo sem produção ou pouca produção agropecuária é constituído por famílias que possuem menos de dois ou nenhum bovino, menos de 1,0 ha ou nenhuma área cultivada e poucas criações. Verifica-se que nos quatro grupos de sistemas de produção a criação de bovinos está presente e, em certa medida, é a principal atividade produtiva para algumas famílias. Com a
ausência de incentivos para a diversificação produtiva, alguns investem esforços nos incentivos fornecidos pelas medidas governamentais e, em função disso, limitam suas práticas cotidianas.
O aumento das áreas de pastagem e da agricultura de “corte e queima”está relacionado com o modelo de reforma agrária projetado para os assentamentos no Sudeste do Pará. Os incentivos se materializam em recursos que variam de R$ 80.000 a R$ 100.000, no caso do Pronaf-A, ou de R$ 20.000 a R$ 40.000, no caso de Mais Alimentos para assentados interessados na criação de gado. Em decorrência do endividamento, muitos assentados não têm interesse, ainda que criem gado. Os incentivos nos levam a pensar o próprio modelo de reforma agrária instituído no Assentamento 26 de Março, porque impulsiona uma atividade que historicamente causou um passivo ambiental na área em consequência da derrubada da mata.
A realidade na qual está inserida o Assentamento é reflexo da própria consolidação da estratégia do Estado em relação à mudança da reforma agrária instituída pelo Incra, a partir de 1990, que combinava uma relação entre as áreas degradadas e a função dos agricultores em recuperá-las. De acordo com Fearnside (2005), o Incra mudou a natureza dos assentamentos de reforma agrária quando passou a exigir que os novos assentamentos fossem alocados em áreas já desmatadas, propiciando um solo pouco produtivo e causando consequências diretas na vida dos assentados. Ainda que o nível produtivo seja baixo, ele pode ser mantido por sistemas de alternância de cultivo (FEARNSIDE, 2005), mas, no caso do Assentamento 26 de Março, não há incentivos para tais práticas.
Diante dessa realidade, o MST organiza a experiência cotidiana dos assentados por meio de iniciativas que potencializam as possibilidades da vida no campo. Em 2007, o MST cedeu um lote para a criação da Escola Agrotécnica de Marabá, hoje Campus Rural de Marabá do Instituto Federal do Para (IFPA), com o objetivo de planejar uma aproximação com o conhecimento científico e superar as dificuldades existentes naquele contexto. E, recentemente, o Setor de Produção do MST tem investido esforços para a criação da Cooperativa Coara Amazônica, uma cooperativa orientada para o gado leiteiro e diversas outras atividades agrícolas, mas ainda não recebeu os recursos para a construção de uma infraestrutura necessária para seu funcionamento, embora juridicamente esteja certificada. O Movimento busca a cooperação agrícola para beneficiar o escoamento, a produção, o estoque e a comercialização do leite e de seus derivados e das diversas atividades agrícolas no Assentamento. A combinação dessas duas iniciativas pode refletir positivamente no cotidiano dos assentados, como no caso de Oliveira, assentado de 50 anos, que nunca recebeu nenhum projeto relacionado ao Pronaf ou Mais Alimentos e ainda assim cria gado. É conhecido no
Assentamento pela produção de hortaliças e leite. No entanto, sua maior dificuldade não está na produção, mas na comercialização. Ele não tem incentivos para fortalecer sua atividade agrícola e, por opção, nem para a pecuária, e a comercialização de seus produtos depende do tempo disponível para se deslocar para os centros consumidores. Outro exemplo é de Maria, assentada de 56 anos, formada por um curso técnico no Campus Rural de Marabá, que cria 56 cabeças de gado obtidos pelo Pronaf-A e produz leite, queijo e iogurte. Com poucos recursos para a comercialização de seus produtos derivados do leite e de sua atividade agrícola, é um exemplo da dificuldade enfrentada pelos assentados do 26 de Março.
As dificuldades cotidianas de Oliveira e Maria demonstram a limitação para a comercialização de seus produtos e refletem o modelo de reforma agrária que não viabiliza recursos para outras atividades além da pecuária. Oliveira optou por não participar dos programas de fomento à pecuária, e sua maior dificuldade reside na comercialização. Por outro lado, Maria optou por ser beneficiada pelo Pronaf-A, mas ainda assim a comercialização dos produtos também é uma tarefa difícil. É nesse cenário que as iniciativas do MST podem garantir mais facilidade na comercialização dos produtos dos assentados. Nesse sentido, os assentamentos rurais, como o 26 de Março, materializam experiências cotidianas que resultam da luta pela conquista da terra e se configuram como uma nova proposição de territorialidade, ainda que em um contexto que não favoreça seu modo de viver baseado na agricultura.
Considerações finais
A história dos castanhais remonta a um contexto histórico do controle político e econômico em Marabá. À medida que o capital industrial se consolidou no Sudeste paraense, a economia extrativista do comércio da castanha sucumbiu. Consequentemente, os castanhais ganharam novos conteúdos e sujeitos que se apropriaram destes espaços para construir novas experiências; umas relacionadas com a nova face do capital que se instalara, outras distintas desta nova face. A partir desse pressuposto, foi destinado um empenho para demonstrar a reconstrução da história social de um castanhal em Marabá, baseada na conquista, e a distribuição da terra pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra.
Considera-se que o Assentamento 26 de Março é a expressão dos assentamentos rurais que representam uma maneira de produção e reorganização do espaço agrário paraense. Organizado pelo MST, configura um sentido para além da moradia dos assentados. Está relacionado com a valorização da vida camponesa, construção de novos significados e de novos tempos. Os limites apresentados refletem o contexto de ocupação e uso da terra dos anos anteriores e do modelo de reforma agrária projetado pelo Estado. O alto percentual da cobertura vegetal de pastagem é resultado de um considerável investimento nessa atividade, realizado pela família Mutran, a partir de 1990, fato que reflete negativamente no cotidiano dos assentados e nas iniciativas do MST. Algumas famílias assentadas não têm experiência com o gado, e a ausência de estímulos à atividade agrícola aumenta a dificuldade na terra conquistada. É nesse cenário que o MST se organiza e tenta transformar esse limite em novas possibilidades, com o objetivo de fortalecer um modo de viver baseado na agricultura, nas necessidades das pessoas que vivem no/do campo. Tanto a criação da Cooperativa Coara Amazônica como do Campus Rural de Marabá do Instituto Federal do Para (IFPA), na área do Assentamento 26 de Março, traduzem os esforços e a estratégia do Movimento em tentar reescrever um novo conteúdo na memória social de um castanhal de Marabá.
Outros estudos necessitam ser elaborados no sentido de entender a permanência da atividade da pecuária no Assentamento, que tem sido a principal atividade produtiva em vários assentamentos no Sudeste do Pará, em função das políticas de fomento. Por fim, este estudo tentou evidenciar os limites vivenciados em um assentamento que foi projetado diante de um modelo específico de reforma agrária, que privilegia algumas atividades em detrimento de outras.
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Notas