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Fissuras no processo de elaboração e implementação de políticas públicas: ensaio sobre a experiência com populações rurais

Maria Rocha Kalil
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil

Fissuras no processo de elaboração e implementação de políticas públicas: ensaio sobre a experiência com populações rurais

Estudos Sociedade e Agricultura, vol. 26, núm. 1, pp. 225-252, 2018

Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro

Recepción: 01 Agosto 2017

Aprobación: 15 Enero 2018

Resumo: : (Fissuras no processo de elaboração e implementação de políticas públicas: ensaio sobre a experiência com populações rurais). O objetivo deste artigo se concentra em apresentar e discutir alguns ruídos identificados no diálogo existente entre o Estado – através do processo de elaboração e implementação de políticas públicas – e os usuários aos quais se destinam tais políticas. Tomando como ponto de partida a

perspectiva de lideranças e moradores de duas comunidades quilombolas localizadas no município de Seabra – BA e de entrevistas com agentes públicos e agentes interlocutores locais, são apresentados e debatidos os problemas e impasses enfrentados pelos atores envolvidos durante o processo de implementação de políticas públicas. Busca-se, então, analisar o papel dos agentes públicos e dos agentes interlocutores na relação que se estabelece entre o Estado e essas populações rurais e os diversos impasses envolvidos.

Palavras-chave: políticas públicas, estado, populações rurais, agentes burocráticos, diálogo.

Abstract: : (Fractures in the process of elaboration and implementation of public policies: essay on the experience with rural populations). The aim of this research is to present and discuss some of the noise identified in the dialogue between the State – through the process of elaboration and implementation of public policies – and the users for which such policies are intended. Taking as a starting point the perspective of leaders and

residents of two quilombola communities located in the municipality of Seabra – BA and interviews with public agents and local interlocutors, there are presented and debated problems and deadlocks faced by the actors involved during the implementation process of public policies. Thus the aim of this paper is to analyse the role of public agents and local interlocutors regarding the relationship between the State and these rural populations and the various struggles involved.

Keywords: public policy, state, rural populations, bureaucratic agents, dialogue.

Introdução

O presente artigo pretende debater a atuação do Estado em localidades rurais através da análise das dificuldades encontradas na elaboração e implementação de políticas públicas nessas áreas e suas repercussões na dinâmica social local. A partir da identificação do que estamos chamando de fissuras existentes na relação estabelecida entre as políticas públicas e seus usuários, seguiremos na tentativa de apresentar e discutir a distância entre a elaboração e a execução de tais políticas, que se manifesta de múltiplas formas, incluindo a burocratização da ação pública versus as especificidades locais e o papel dos agentes burocráticos e dos agentes interlocutores2 nesse processo.

Para tanto, parte-se de uma breve apresentação sobre a dinâmica do Estado no atendimento às demandas sociais, com ênfase no debate sobre políticas públicas direcionadas, em particular, aquelas voltadas à população rural. Em seguida, utilizando dados da pesquisa de campo3 realizada em duas comunidades quilombolas localizadas no município de Seabra-BA e de entrevistas com agentes públicos e outros agentes atuantes no processo, apresentamos algumas questões enfrentadas pelos atores envolvidos durante o processo de implementação de políticas públicas e sua percepção acerca dessa dinâmica. Assim, de modo a dialogar com aquilo que a pesquisa de campo trouxe como problemática, trataremos da relação dos atores com programas específicos e com situações mais gerais relativas às políticas públicas, visto que a pesquisa propiciou uma perspectiva mais ampla da relação das lideranças e das comunidades com o modus operandi da burocracia estatal.

Busca-se, então, analisar o diálogo entre o Estado e as populações rurais, considerando aspectos que dizem respeito à participação dos atores na formulação e implementação das políticas, aos diferentes interesses envolvidos, ao grau de flexibilidade das normativas, à adequação dos programas e projetos à realidade local e à visão, tanto do corpo técnico do Estado quanto dos usuários, sobre as políticas implementadas.

A partir disso, torna-se importante debater sobre a relevância do corpo institucional e dos agentes burocráticos, como formuladores e executores das políticas, e as múltiplas e variadas formas de intervenção, constatando, a partir da pesquisa realizada, a flexibilidade das ações desses agentes, o extrapolamento de suas atribuições institucionais específicas e, sobretudo, a importância do grau de discricionaridade e de envolvimento pessoal deles com as políticas implementadas.

Paralelo a isso, e decorrente das diversas fissuras que existem nesse diálogo, foi possível também observar a presença de outros atores, aqui chamados de agentes interlocutores, entendidos como indivíduos que fazem uma ponte extrainstitucional entre a política pública e seu público- alvo.

Assim, a partir das fissuras encontradas no processo de elaboração e implementação das políticas e do protagonismo de agentes públicos e agentes interlocutores nesse contexto, este trabalho visa contribuir para o diálogo (a redução de distâncias) entre os agentes envolvidos com vistas a fortalecer mecanismos e processos de governança através de práticas e métodos de execução pública e atendimento social que contemplem as especificidades das localidades atendidas, bem como as diversas incongruências e racionalidades existentes no (longo e necessário) processo de elaboração e implementação de políticas públicas.

Contextualização do debate: o Estado e o atendimento às populações rurais

Assim como a atuação macro do Estado está estreitamente relacionada ao seu contexto histórico e à concepção político-ideológica do governo vigente e das diversas forças que o cercam, a “oferta” de políticas públicas – incluindo as formas de elaboração, a quem se destina, quanto de recursos se disponibiliza, quais os resultados esperados etc. – também está condicionada a certos preceitos que variam no tempo e no espaço.

Dito isto, a partir de uma compreensão política da esfera pública e do Estado como agente de fomento e provimento realmente existente de certos bens e serviços, entende-se que a formulação e implementação dessas políticas estão envoltas em uma dinâmica de tensionamento entre diferentes atores que disputam assimetricamente os resultados do processo político em termos de acesso a benefícios “escassos” (fundos públicos) e de poder político propriamente.

Nesse sentido, como marco histórico dessa disputa em torno de políticas e direitos sociais, a efervescência de inúmeros movimentos sociais na década de 1980, dinamizada pelo processo de redemocratização do Estado brasileiro, projetou no cenário político-institucional uma série de reivindicações populares e colocou em xeque os pressupostos da cidadania parcial então vigente, inclusive com a introdução e consolidação de novos atores/sujeitos políticos, por meio da mobilização e da luta, conseguindo garantir a ampliação de políticas públicas mais comprometidas com o público-alvo e direcionadas às suas especificidades. Sem dúvida, considerando o caráter de análise do papel do Estado e das políticas públicas no Brasil, a Constituição de 1988 se põe em destaque em função da ampliação dos direitos sociais e do alargamento e redefinição das atribuições do Estado.

Segmentos da sociedade brasileira historicamente invisibilizados, sujeitos de formas de organização social e cultural diferenciadas (como os povos e comunidades tradicionais), também foram contemplados no novo texto constitucional. Esse reconhecimento por parte do Estado brasileiro – motivado, especialmente, pela pressão dos movimentos sociais e demais atores da sociedade civil – perpassou pela legitimação e pela assunção da diversidade sociocultural existente no país, assim como pela pertinência (e urgência) em se discutir e (re)elaborar formas de atendimento que incluíssem nos seus princípios o respeito às particularidades desses grupos.

No bojo das (re)configurações associadas à participação de outros atores na agenda das políticas públicas, a partir da década de 1990, intensifica-se o surgimento de entidades da sociedade civil organizada não só para participar das definições, como também para executar as políticas públicas em um contexto de descentralização das ações. Assim, ao ser sacramentado o discurso de fragilidade do Estado na implementação de serviços e políticas sociais, crescem significativamente as experiências de execução dessas políticas por meio de entidades do chamado “terceiro setor” ou ONGs. Diante da assimilação cada vez maior de preceitos e práticas identificadas pelo que se convencionou chamar de neoliberalismo, com o argumento da crise do Estado e suas dificuldades na gestão e alocação de recursos para bens e serviços sociais, as parcerias com entidades privadas sem fins lucrativos foram gradativamente incentivadas através da facilitação de mecanismos de financiamento direto e indireto na área social – processo levado a cabo pelos governos Collor e Fernando Henrique Cardoso, nos quais se verificou um reordenamento da agenda pública, priorizando políticas de “ajuste estrutural” e uma estratégia de maior internacionalização da economia, em detrimento de demandas sociais historicamente vinculadas à intervenção direta do Estado.

O estreitamento dessa relação entre Estado e organizações não governamentais representa uma das formas da “confluência perversa” descrita por Dagnino (2004). A autora demonstra que houve um aprofundamento das instâncias de participação, com a constituição de espaços públicos para discussão e formulação de políticas públicas – frutos, principalmente, da luta pela democratização que culminou na Constituição de 1988 –, mas, por outro lado, alguns preceitos de um Estado mínimo se impuseram, reduzindo o monopólio estatal no provimento de direitos sociais em prol da maior atuação da sociedade civil. Assim, segundo a autora, se estabelece uma confluência perversa, pois mesmo “apontando para direções opostas e até antagônicas, ambos os projetos requerem uma sociedade civil ativa e propositiva” (DAGNINO, 2004, p. 97). Desse modo, o discurso em prol da participação é evocado para estimular moralmente os indivíduos a se engajarem, e a serem empreendedores de si mesmos, segundo um paradigma de enxugamento do Estado e de suas funções. De acordo com a autora, no interior dos espaços abertos à participação,

o que se espera deles [setores da sociedade civil] é muito mais assumir funções e responsabilidades restritas à implementação e execução de políticas públicas, provendo serviços antes considerados como deveres do Estado, do que compartilhar o poder de decisão quanto à formulação dessas políticas (DAGNINO, 2004, p. 102).

Assim, a defesa da redução da ação do Estado – ao creditar os percalços econômicos à própria “intervenção excessiva” deste – traz à tona a operacionalidade do mercado e da sociedade civil como alternativa ao reajuste de funções antes desempenhadas pelos órgãos públicos. A partir dessa concepção, o Estado deixa de ser o provedor exclusivo de serviços públicos e passa a ser, além disso, coordenador e fiscalizador dos serviços prestados por meio de parceria com os outros setores da sociedade ou diante da ação direta da sociedade civil ou de instituições ligadas ao mercado.

Em que pese a limitação e os conflitos inerentes ao processo de discussão nessas arenas, o tema da participação ganhou relevância como elemento-chave para a definição das políticas públicas no país, na tentativa de reduzir a distância entre os que participam das instâncias de decisão e os usuários das políticas. Paralelo a isso, o Estado brasileiro, a partir dos anos 2000, entra em um processo de guinada rumo a uma maior atuação visando beneficiar os povos e as comunidades tradicionais e outros agrupamentos rurais (grupos historicamente excluídos – ou preteridos – do escopo de atendimento do Estado), através da criação de programas, comissões e conselhos, e alterando internamente sua estrutura, com a criação de setores e órgãos direcionados ao atendimento destes segmentos sociais.4

Contudo, embora a dinâmica estatal tenha direcionado esforços para atender às particularidades de segmentos específicos da sociedade e tenha avançado na ampliação de programas e projetos voltados para esse público, pode-se argumentar que certas dificuldades não foram superadas. Os programas e projetos, de forma geral, mas principalmente aqueles direcionados para populações rurais, estão, em certa medida, embebidos por uma lógica (e uma linguagem) racional, burocrática e tecnicista que muitas vezes não dialoga com as realidades locais. Isto coloca em perspectiva a importância de se compreender o complexo arranjo institucional brasileiro que, apesar de ter sofrido uma série de modificações ao longo da sua história, mantém na sua configuração desde heranças do seu passado colonial até novas tendências e processos do mundo que se convencionou chamar de “globalizado e moderno”.

Nesse sentido, com o relativo reposicionamento do aparato estatal num contexto de mais visibilidade das populações rurais, trazendo novas dinâmicas e particularidades ao atendimento e elevando o fomento de políticas específicas direcionadas à diversidade sociocultural brasileira, em consequência, foi manifestada e reiterada uma clara fricção entre modalidades ideológicas e organizacionais no atendimento a essas populações, revelando as diferentes racionalidades, linguagens e saberes dos agentes envolvidos no escopo das políticas públicas.

As fissuras no diálogo

Tem muitos projetos para comunidades quilombolas. Eles põem o projeto, mas eles põem 200 obstáculos pra gente não chegar lá! Nós, de comunidade quilombola, nós não temos pessoas capacitadas, formadas pra estar nos ajudando. Então, eles põem o projeto, mas dificultam pra gente. O que acontece?

A gente acaba desistindo, porque a gente não tem ninguém pra nos ajudar.

A fala acima é da presidente da associação de uma comunidade quilombola. Sua insatisfação diz respeito a uma situação recorrente para diversas populações rurais espalhadas pelo país. Embora a orientação incutida na Constituição de 1988 referente às atribuições do Estado seja a de garantir direitos e acolher demandas oriundas dos movimentos sociais, diversos são os obstáculos encontrados. Segundo a prerrogativa constitucional da construção de políticas públicas adequadas à realidade local, uma das dificuldades inerentes é a distância entre a elaboração e a aplicação, principalmente para aquelas comunidades com elevadas singularidades.

Ainda que possamos observar uma inserção cada vez maior de lideranças e movimentos rurais no processo de execução de políticas públicas locais – e que isso esteja trazendo maior mobilização e participação desta população nos espaços institucionais e maior interlocução com o Estado –, esse movimento também tem revelado algumas fragilidades às quais está exposto este público. Segundo os autores Comerford, Almeida e Palmeira (2014), a partir de entrevistas com dirigentes, militantes e assessores de movimentos rurais, há nesta relação Estado-sociedade alguns “gargalos” que podem, inclusive, inibir a participação mais ampla dos segmentos no acesso às políticas públicas. Dentre as questões levantadas pelos entrevistados, destacam-se “a burocratização, a necessidade de elaborar projetos, as dificuldades de prestar contas de recursos, a possibilidade de ser criminalizado por falhas na execução ou prestação de contas de projetos” (COMERFORD; ALMEIDA;

PALMEIRA, 2014, p. 84). Assim, eles se veem

[…] submetidos às exigências de um estilo de gestão marcado pela sistemática auditagem, por metas a serem alcançadas dentro de determinados prazos, por uma considerável complexidade administrativa e por um horizonte de criminalização, necessitando de pessoal que domine técnicas informáticas, princípios contábeis e os meandros da administração pública em mais de um nível (COMERFORD; ALMEIDA; PALMEIRA, 2014, p. 84).

Essa análise, facilmente comprovada em contato com a realidade de populações que vivem nas zonas rurais, nos traz alguns elementos constitutivos do que estamos chamando de fissuras no processo de elaboração e implementação de políticas públicas. Para permitir uma reflexão sobre como se dá a interação entre o Estado e as populações rurais e entender como esses segmentos se veem alijados dos processos sociais dentro da dinâmica estatal, serão relatadas algumas experiências da pesquisa de campo realizada nas comunidades quilombolas de Cachoeira da Várzea/Mocambo da Cachoeira5 e Vão das Palmeiras.

Por meio da pesquisa, pude adentrar no universo das políticas públicas implementadas em localidades rurais, a partir da vivência com os moradores e da escuta sobre as inúmeras dificuldades enfrentadas no que tange à garantia do acesso aos direitos prescritos, inclusive ao me colocar como partícipe (atuante) do processo de auxílio à população analisada. A possibilidade de estar “na ponta” do processo e de ver e ouvir pessoalmente os obstáculos encontrados pela população rural no acesso aos programas e projetos – e no escasso poder de ingerência que ela tem sobre eles – ajuda a compreender as diversas fissuras das quais estamos tratando.

Essa narrativa se inicia no município de Seabra-BA,6 conhecido como a capital da Chapada Diamantina. Dentre as comunidades que se localizam na zona rural do município, 10 são identificadas e certificadas como quilombolas pela Fundação Cultural Palmares (FCP), restando ainda uma sem reconhecimento, segundo informações locais. Percorrendo cerca de

18 km desde o centro da cidade, chegamos à comunidade de Cachoeira/Mocambo. Apesar de apresentar uma maior concentração de casas à margem do rio Ribeirão, aproximadamente 100 famílias se dispersam pelo território, que totaliza uma área de 1800 hectares. Muitos moradores ainda obtêm sua renda a partir da agricultura, embora os mais jovens já não tenham o mesmo apreço que seus ascendentes pela roça. Além da atividade agrícola, a maioria das famílias é beneficiária do Programa Bolsa Família e depende também da aposentadoria dos idosos.

Vão das Palmeiras possui cerca de 180 famílias. Segundo o presidente da associação, a comunidade sofre bastante pela falta de recursos hídricos para a plantação.7 Os moradores ainda plantam, principalmente, mandioca através da agricultura de sequeiro. Assim como em Cachoeira/Mocambo, os benefícios advindos do Programa Bolsa Família e da aposentadoria também são imprescindíveis para as famílias de Vão das Palmeiras.

As duas comunidades quilombolas pesquisadas foram certificadas em conjunto pela FCP, em 2005,8 e tiveram seus territórios titulados pela Coordenação de Desenvolvimento Agrário do Estado da Bahia em novembro de 2014.9 A formação da consciência étnica das comunidades tem um fio condutor em comum: os irmãos Cupertino, lideranças da comunidade de Baixão Velho.10 Os irmãos – já falecidos – foram as referências de luta da causa quilombola na região e são sempre citados como incentivadores da mobilização comunitária, inclusive para a obtenção do reconhecimento de comunidade quilombola.

De certo, a certificação quilombola potencializou a capacidade reivindicativa destas comunidades – ou poderíamos dizer que fortaleceu seus próprios moradores. Nesse sentido, cabe refletir sobre duas dimensões proporcionadas pela obtenção desta certificação: uma dimensão prática, que diz respeito ao acesso, propriamente dito, às políticas públicas, como público-alvo de diversos programas, inclusive com atendimento prioritário; e uma dimensão subjetiva, que se relaciona diretamente com a absorção de certos pressupostos, gerando autoestima e autoconfiança na população quilombola e, consequentemente, dando força à luta cotidiana por visibilidade e pela garantia de direitos.

Mas, para ter os serviços e políticas hoje usufruídos pelas comunidades (que não são muitos), foi um longo caminho. Da constituição de uma associação comunitária – relatada pelos “antigos” como algo que não se sabia como funcionava – a uma postura mais reivindicativa e participante, as lideranças dessas comunidades ressaltam a importância de entidades e atores incentivadores desse processo. Dentre eles, os Sindicatos dos Trabalhadores Rurais e o dos Produtores Rurais de Seabra, como entidades de referência e suporte às comunidades, tanto para obter conhecimento sobre programas e projetos quanto para ajudar as associações a acessá-los. Além dos sindicatos, essas comunidades também se apoiam em pessoas conhecidas na sede de Seabra – em alguns casos, funcionários públicos do município. De acordo com a liderança de Cachoeira/Mocambo, a ajuda de outras pessoas de fora da comunidade foi essencial “para estar onde estão hoje”.

Embora apresentem algumas similaridades, as duas comunidades se diferenciam em relação aos recursos naturais e ao acesso às políticas. Em Vão das Palmeiras, segundo o presidente da associação, os terrenos são muito secos, chove pouco, então “nem todo ano dá para plantar”. Muitos jovens e adultos deixam temporariamente suas mulheres e filhos na comunidade para trabalhar em São Paulo e garantir um montante que mantenha a família nos períodos mais difíceis. Em Cachoeira/Mocambo, diferentemente de Vão das Palmeiras, as terras são agraciadas por um rio que corta a comunidade, o que torna a plantação mais diversificada e farta. Essa característica permite à comunidade de Cachoeira/Mocambo, por exemplo, acessar o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA),11 importante fonte de renda dos moradores desta comunidade e por onde iremos iniciar os relatos.

Na ocasião da pesquisa de campo, a comunidade de Cachoeira/Mocambo estava no período de renovação anual de contrato com o PAA e, para tal, precisava preencher formulários com dados de cada agricultor da comunidade participante do projeto. Ainda que o formulário fosse curto e solicitasse pouquíssimas informações (tais como: nome, endereço, número da DAP e CPF), as lideranças da associação diziam ter pouca desenvoltura com o computador e precisavam de ajuda para recolher a documentação e preencher os formulários em tempo hábil. Ofereci-me para ajudá-las e estive, em diferentes momentos, dedicada ao preenchimento dos documentos. Esta foi uma situação oportuna para começar a compreender a relação das lideranças com os programas e políticas públicas disponíveis para as comunidades e identificar as fissuras existentes.

Também foram observadas questões relativas à política habitacional, de forma geral, e, em particular, ao Programa Nacional de Habitação Rural (PNHR)12 implementado em uma das comunidades visitadas. Os moradores atendidos pelo programa que foram entrevistados afirmaram gostar da casa que receberam. Como uma das beneficiárias que, ao ser questionada se gostou da casa e se mudaria alguma coisa, respondeu que “queria assim... no que fosse só dois cômodos, [...] tava feliz”. Em alguns casos, os moradores fizeram pequenas alterações no desenho original, relacionadas, principalmente, com os ambientes da cozinha e da área de serviço.

Nesse aspecto, tive a oportunidade de ouvir informalmente a fala de outra moradora atendida pelo projeto. Éramos cerca de seis mulheres reunidas na cozinha de uma casa de taipa desativada para preparar uma grande feijoada que seria oferecida no evento do Dia da Consciência Negra, a ser realizado na comunidade no dia seguinte. Até então, não sabia de quem era a casa e se de fato havia pessoas morando ali. No meio da prosa, uma das mulheres disse que tinha vontade de voltar a morar ali. Então, entendi que aquela era a antiga casa de uma família atendida pelo PNHR – que não havia sido demolida, como normalmente determina a política habitacional. As outras mulheres perguntaram se ela não gostava da casa nova, e ela respondeu que sim, mas que a cozinha era muito pequena, “não dava para nada”, e a casa antiga era bem maior do que a atual. De fato, aquela situação na qual nos encontrávamos, com várias mulheres cozinhando juntas, jamais poderia acontecer na cozinha da casa nova entregue pelo programa.

Ainda sobre a utilização das cozinhas (de forma geral, não necessariamente das casas entregues pelo programa), pude observar que muitas casas possuem fogão elétrico, mas eles ainda mantêm o hábito de cozinhar no fogão a lenha. Na casa da vice-presidente da associação, por exemplo, existe uma cozinha dentro de casa, com fogão elétrico, armários, mesa grande, uma cozinha “convencional”. Mas a alimentação diária da família é concebida e realizada numa cozinha à parte, com entrada pela varanda, onde está o fogão a lenha. É nessa cozinha que as mulheres da casa preparam as refeições e onde comem também. A dona da casa explica que a cozinha interna é para quando eles recebem visitas, quando tem mais gente para comer, mas não vi sendo usada.

Essa situação dialoga com o argumento defendido por Antrosio (2002), no seu trabalho sobre uma cidade serrana no sudoeste da Colômbia, de que há uma estigmatização dessas comunidades como “atrasadas e primitivas”. Em seus estudos, ele relata a introdução do fogão a gás nessa comunidade, fundamentada pelo discurso de “desenvolvimento”, no qual as ideias de “econômico, rápido e limpo” foram introjetadas ou, em outras palavras, aceitas e reproduzidas pelos moradores. Mais do que uma imposição (políticas top-down), ele alerta que o poder do discurso de desenvolvimento resulta de sua incorporação dentro de hierarquias (simbólicas) estabelecidas – que determinam que o uso do fogão a lenha, por exemplo, é atrasado e pouco saudável. Dessa forma, o autor entende que “a resposta popular em se apropriar ou rejeitar o discurso do desenvolvimento é uma reação a essa hierarquia e uma tentativa de combater o estigma”13 (ANTROSIO, 2002, p. 1121).

Na tentativa de traçar um paralelo com o uso do fogão a lenha versus fogão a gás nas comunidades referenciadas nesta pesquisa, embora lá não sejam reproduzidos explicitamente os valores da “economia, rapidez e limpeza”, identifica-se uma percepção desse estigma no momento em que há uma cozinha para “visitas” (para pessoas “da cidade”, que “se preocupam mais com a higiene”, coadunados a uma noção hegemônica de “civilidade”) e uma cozinha com fogão a lenha para o uso diário deles.

Esse “paradigma da civilidade”, de determinação dos hábitos e ações coerentes com a “modernidade”, paira sobre nosso imaginário e encontra refúgio seguro nas políticas públicas, que reforçam, inconscientemente ou não, esses estigmas, como pode ser atestado na própria adoção de projetos (plantas) que apresentam uma cozinha com espaço restrito, sem adaptação para fogões a lenha. Essa situação remete, inclusive, a outro projeto de construção de unidades habitacionais numa aldeia indígena no interior da Bahia,14 no qual, após o início das obras (e sem que o projeto tivesse sido discutido com os moradores previamente), os indígenas tentaram pleitear que fosse feita uma estrutura externa à casa para o fogão a lenha, pois esse era o modelo de cozinha tradicionalmente adotado pelas famílias locais.

Na medida em que o projeto é feito sem considerar essas especificidades, abre-se espaço para a imposição de um “padrão arquitetônico convencional” (sala, cozinha, dois quartos e banheiro) ao qual as famílias atendidas (quaisquer que sejam) devem se adequar.

Isso demonstra, por um lado, que embora esteja crescendo o número de programas que incluem as áreas rurais e, principalmente, que atendem às reivindicações dos moradores dessas áreas, por outro, é possível identificar muitas vezes a falta de discussão prévia sobre os projetos. Normalmente, estes já chegam prontos e, muitas vezes, são aceitos pelas comunidades, pois são vistos como “dádivas” e não como direitos.

Outro momento no qual a perspectiva de elaboração e implementação de uma política pública revela o choque entre racionalidades e linguagens se relaciona ao uso de procedimentos operacionais e tecnologias para acessar as políticas, como a internet. Assunto pontuado por diferentes lideranças, o presidente da associação de Vão das Palmeiras afirma que existem muitos projetos que poderiam ser acessados pela comunidade, mas que os moradores ainda não têm conhecimento: “Eu acho que a internet hoje é um fator que ‘divide’ mesmo a comunidade.” Para ele, o fato de a comunidade não ter internet, dificulta tanto o acesso às informações sobre os programas quanto a própria questão operacional. Um caso relevante diz respeito ao Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), cuja inscrição deveria ser realizada exclusivamente pela internet, o que, segundo ele, impediu muitos jovens da comunidade de participarem do Exame, por não terem acesso à rede: “O Enem passa na televisão todo dia, as pessoas ouvem falar do Enem, mas não têm a possibilidade de fazer a inscrição, porque aqui não tem acesso à internet”, explica a liderança local. Ele conta que conseguiu realizar a inscrição de alguns moradores que pediram a ele com antecedência no Sindicato (onde trabalha), em Seabra, mas muitos ficaram de fora. A questão do acesso à internet e da habilidade em manejá-la também é mencionada pela liderança de Cachoeira/Mocambo, quando diz que “o mundo é dos espertos. Se você não tem informação, você não consegue nada. E nessas comunidades, as pessoas mal sabem mexer em internet, e aí ficam sem informação sobre os programas”.

Essa dificuldade também pode ser observada em casos nos quais certa documentação exigida para o acesso aos tais programas não é de fácil obtenção por parte dos usuários. Em outros casos, além de documentação pessoal e jurídica (das associações, cooperativas etc.), são exigidos formulários e/ou projetos para se candidatar a receber recursos públicos ou privados – e, logo, a necessidade de um know-how específico referente a esses procedimentos.

Embora diversas populações rurais, que sempre estiveram à margem do atendimento do Estado, estejam cada vez mais “conectadas” com o “padrão moderno-urbano” e buscando – seja por necessidade, seja por vontade – assimilar novas tecnologias e dinâmicas no seu dia a dia, este é um exemplo sintomático de como as políticas públicas podem estar desconectadas dos seus usuários em potencial.

Paralelo à dificuldade em atender os trâmites burocráticos para acessar os programas, o receio quanto à prestação de contas também é uma constante. Em conversa com a liderança de Cachoeira/Mocambo sobre o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), ela informou que, periodicamente, técnicos da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab)15 de Brasília vão à comunidade para fiscalizar o andamento do programa. É certo que a fiscalização se faz importante para garantir a qualidade dos produtos oferecidos, os procedimentos exigidos pelo Programa etc. Mas, ao mesmo tempo, há uma insegurança em relação às possíveis consequências de qualquer “incongruência” detectada pelos técnicos. Na fala da liderança, ela expõe: “se der algo errado com nossa prestação de contas, ou alguma irregularidade, todas as comunidades do município perdem o contrato com o Programa”. Não é à toa que um agente externo à comunidade (agente interlocutor) faz a prestação de contas e outros procedimentos burocráticos relativos ao Programa.

Esses exemplos refletem claramente questões ligadas à burocratização da vida e à necessidade de convergência de valores e saberes para que os diversos segmentos sociais possam acessar autonomamente os esforços empreendidos pela ação estatal, que são embebidos por lógicas e racionalidades determinadas e, sobretudo, pela necessidade de assimilação de determinadas “competências” dos usuários que, deixados à própria sorte, são, muitas vezes, incapazes de acessar tais políticas, por maior que tenha sido o empenho de adequação à realidade local no momento de sua formulação.

Nessa perspectiva, a partir deste estudo que realizei sobre o diálogo e seus ruídos entre as políticas públicas e as populações rurais – que também podem ser identificados em outros contextos espaciais e sociais –, algumas considerações sobre o tema podem ser elencadas.

Inicialmente, podemos pontuar a fase de elaboração das políticas públicas, na qual, constitucionalmente, deveria haver forte participação dos segmentos interessados. Utilizando aqui as entrevistas com as lideranças das comunidades pesquisadas no trabalho de campo, foi possível perceber que existe certo grau de participação em reuniões e eventos, mas muitas vezes essas lideranças se restringem apenas a convidados, sem direito a voz e voto.

Existe, claramente, uma oscilação desse grau de participação nas instâncias deliberativas, seja em função (da abertura) do governo vigente, seja a partir (da receptividade) de órgãos e políticas específicas. Diversas pesquisas apontam para essa heterogeneidade dentro do Estado, a partir da ótica dos movimentos e de lideranças:

O “governo”, portanto, não é visto como algo monolítico, assim como o conjunto dos Conselhos subordinados aos diferentes ministérios também são avaliados de modo distinto do ponto de vista dos movimentos. Em relação aos “movimentos rurais”, os Ministérios do Desenvolvimento Agrário e o de Combate à Fome e Desenvolvimento Social parecem ser aqueles com os quais há uma relação mais ativa. Outros Ministérios citados como interlocutores mais “fechados”, mas sobre os quais incidem as demandas desses movimentos, foram o Ministério do Meio Ambiente, da Educação e da Justiça (COMERFORD; ALMEIDA; PALMEIRA, 2014, p. 73).

Em outra pesquisa sobre a participação dos movimentos de povos e comunidades tradicionais nas esferas de governo, por exemplo, é assinalada essa variação:

Tomamos emprestados os termos de Hasenbalg (1992) para argumentar que existem “áreas moles” e “áreas duras” para a participação social nas esferas do governo. Ou seja, há espaços onde a participação social é bem-vinda e aceita e há outros onde ela é tratada como entrave e empecilho – especialmente aqueles ligados a uma visão desenvolvimentista do projeto de governo (GUEDES, MELLO; PEREIRA, 2014, p. 107).

Este quadro, por si só, já permite problematizar as chances das políticas públicas não abarcarem as complexidades inerentes aos diversos segmentos a serem atendidos e suas necessidades, principalmente, quando há outros interesses em jogo, como o agronegócio, e outros atores mais poderosos, como a bancada ruralista no governo. Poderia ser “apenas” uma luta de braço, se os personagens não estivessem em posições tão desiguais. Assim sendo, dentre os diversos atores que estão envolvidos na elaboração e implementação de políticas públicas, há de se considerar que o poder de ingerência de cada um deles irá depender de um conjunto de aspectos que variam no tempo e no espaço e das dinâmicas e compreensões inerentes às instituições e aos agentes institucionais atuantes.

Passada a fase de elaboração (no plano macro), as políticas se materializam em programas e projetos regidos por leis e normativas que podem, por um lado, servir apenas de orientação geral para o funcionamento desses programas e, por outro, engessar o processo de implementação e não permitir a inclusão de casos particulares. Na fala de todos que entrevistei – moradores e lideranças das comunidades, agentes públicos, agentes interlocutores e também na pesquisa bibliográfica –, foram reveladas as inúmeras dificuldades encontradas nessa etapa, como mencionado anteriormente, sendo as principais sistematizadas abaixo:

1. Falta de acesso à internet e a equipamentos: os moradores dependem, muitas vezes, de computadores e acesso à internet disponibilizados pelos sindicatos locais ou outras estruturas para acionar os programas e projetos. Além disso, a falta de internet prejudica bastante a obtenção de informação sobre os programas e editais disponíveis.

2. Falta de conhecimento sobre os trâmites burocráticos: em geral, as populações rurais têm pouca aproximação com a documentação formal exigida pelos programas. Outro ponto importante é que o perfil da maioria é de baixa escolaridade, o que também dificulta esse processo, tanto por uma dificuldade objetiva de entendimento quanto pela dimensão subjetiva de que eles não se sentem capazes de realizar tais ações.

3. Falta de assistência técnica: a referência ao “projetista” (denominação dada pelos interlocutores da pesquisa às pessoas que têm capacidade de escrever projetos para captar recursos) circulou nos discursos tanto de lideranças quanto dos outros agentes entrevistados. A elaboração de projetos é uma atividade complexa, e não há um bom suporte para essas populações que dependem de pessoas que tenham know-how no assunto. A ausência desse “profissional” ou de capacitação para que os moradores aprendam “a andar com as próprias pernas” implica a perda recorrente de oportunidades de acesso aos recursos.

4. Preocupação quanto às punições: quando os movimentos conseguem acessar os programas, há um receio no que se refere à prestação de contas e às sanções relativas às possíveis irregularidades encontradas.

Embora existam movimentos sociais com um histórico antigo de luta, é só a partir da redemocratização do país, na década de 1980, que surge uma maior abertura do Estado no atendimento às demandas de alguns segmentos da sociedade e, ainda assim, é apenas nos anos 2000 que eles realmente conseguem ter mais voz e acesso às políticas públicas implementadas. Considerando, então, que o cenário de participação das populações rurais nos processos decisórios e que a garantia de acesso às políticas públicas direcionadas são elementos recentes (muitas comunidades só começaram a buscar seus direitos e serem atendidas após a certificação de comunidade remanescente de quilombo, por exemplo), entende-se a atuação muitas vezes “tímida” de diversas lideranças de pequenas comunidades país afora. Ainda existem muitas “incertezas” sobre os trâmites burocráticos do Estado, os caminhos e as formas de inserção nos espaços de discussão e disputa política. Em suma, para muitas lideranças e comunidades, esse ainda é um terreno permeado por receios e dúvidas, o que se reflete nas fissuras realmente existentes e de difíceis contornos no atendimento social no Brasil.

É a partir dessas fissuras que se destaca a importância dos agentes atuantes no processo e “ligados à causa” e dos órgãos e espaços nos quais essas populações podem encontrar apoios. Nesse sentido, a atuação dos agentes burocráticos – agentes públicos envolvidos no policycycle16 – pode ser determinante na implementação das políticas públicas, na medida em que eles detêm certo domínio sobre as normativas existentes e podem, a partir de um comprometimento pessoal e/ou institucional, estabelecer um diálogo com as entidades ou os usuários com o intuito de desatar os nós existentes em busca da inclusão dos diversos segmentos nas políticas públicas – ou seja, esses agentes podem fazer uma intermediação entre as normativas e o público-alvo.

O papel dos agentes burocráticos e agentes interlocutores

Se, anteriormente, a proposta foi partir da ótica dos usuários para uma melhor compreensão dos processos e das lacunas que envolvem a elaboração e a implementação de políticas públicas e, dentro dessa dinâmica, os limites e as possibilidades que o contexto institucional proporciona a esses atores, aqui se propõe fomentar o debate e reiterar a existência dessas fissuras a partir da perspectiva de agentes de fora da comunidade que estão, de alguma maneira, vinculados à efetivação das políticas implementadas e que expressam, segundo sua atuação no processo, certas lacunas existentes no diálogo entre o Estado e os usuários das políticas.

Dessa forma, através da análise de entrevistas realizadas com agentes públicos – atuando “na ponta” –, pretende-se revelar a percepção e o grau de discricionaridade de representantes do Estado em relação aos trâmites burocráticos concernentes às políticas, o tipo de relação e abertura que são dadas aos usuários, a forma específica que cada programa, órgão ou corpo técnico lida com as demandas colocadas pela população e de que maneira elas repercutem na avaliação e redefinição das políticas públicas.

Do mesmo modo, para além da própria configuração institucional e da agência pública per se, é igualmente importante apontar, como forma manifesta das dificuldades em torno da elaboração e implementação das políticas públicas territorial e identitariamente localizadas, a existência de outros agentes que estão envolvidos nos processos referentes às políticas, ainda que não efetivamente como corpo técnico do Estado, mas fazendo as vias de intermediador, aqui denominados agentes interlocutores.

Dos agentes burocráticos

A formulação de políticas públicas está condicionada aos diversos fatores que a envolvem, desde o contexto político, econômico e social do país até a concepção de mundo individual daqueles que as formulam e os embates travados nessa arena. Assim, ainda que, supostamente, haja a perspectiva de garantir, por meio de normativas, o pleno atendimento das demandas sinalizadas pela população (ou do que se acredita que sejam essas demandas) – incluídas, aqui, as deliberações advindas dos conselhos e outros instrumentos de participação –, o desenho dessas políticas parte de um plano alto de abstração. Quer dizer, a aplicabilidade dos programas e projetos e seus efeitos (considerados positivos ou negativos em termos de resultado) só poderá ser mensurada e qualificada ao longo da sua implementação. Em outras palavras, as políticas públicas só existem de fato quando se atualizam e somente a partir dessa perspectiva “pragmática” é possível avaliá-las.

Para além da discussão acerca da elaboração de políticas públicas que, muitas vezes, acontecem do alto dos escritórios governamentais, peça- chave nesse processo de aplicação de tais políticas diz respeito aos funcionários que estão na “ponta” dos órgãos públicos, “porque são eles que de fato traduzem os programas em bens e serviços concretos” (OLIVEIRA, 2012, p. 1553). Assim, as diferentes concepções que “se confrontam” no momento da elaboração da política, também reaparecem no momento de sua implementação.

Nesse contexto, embora existam normas e legislações que incidam sobre as políticas e que as regulamentem, há, na esfera de atuação de agentes públicos, certa “liberdade” que lhes é conferida através dos chamados “atos discricionários”. Nesse procedimento, pode-se recorrer a uma análise mais subjetiva de casos concretos, levando em consideração a diversidade e a complexidade das situações existentes. Isso porque, em geral, os fazedores de políticas públicas as elaboram a partir de certo grau de abstração do que sejam os problemas e da percepção acerca de seus demandantes. Entretanto, os executores têm que lidar diretamente com os casos e os usuários concretos da política.

Assim, defende Oliveira (2012, p. 1556)

[que] o exercício da discrição é inevitável e necessário, porque as regras formais não podem dar conta de todos os casos concretos e, em geral, os recursos da agência estão aquém dos necessários para atender aos cidadãos, e, devido a isso, o poder discricionário do agente da base torna-se imprescindível para que a organização se amolde à realidade, funcione e atenda às pessoas.

Esse ambiente de incertezas17 e “apostas” que cerca a formulação das políticas públicas pode ser encarado como uma “brecha” que, claramente, poderá ser utilizada para diferentes fins no processo de implementação.

Os autores Silva e Melo (2000, p. 10) sustentam a afirmação de que

planos ou programas são documentos que delimitam apenas um conjunto limitado de cursos de ação e decisões que os agentes devem seguir ou tomar. Um amplo espaço para o comportamento discricionário dos agentes implementadores está aberto. Frequentemente avaliado de forma negativa pela cultura burocrática dominante, esse espaço é o lugar de práticas inovadoras e criativas.

Ou seja, há, no debate sobre a implementação de políticas públicas, a colocação dos agentes da base numa posição relevante – ainda que seja em diferentes graus, a depender da função exercida e da área de atuação. Pois, quanto mais próximo do público-alvo, dos usuários, de quem, de fato, acessa a política, em tese, maior será o conhecimento sobre a realidade, a cultura local e os chamados “gargalos” existentes. Deixa-se o plano abstrato e parte-se para o concreto. E isso abre diversas possibilidades ao “jogo burocrático”, segundo expressão de Bourdieu.18

Nesse “jogo burocrático”, as regras podem ser aplicadas por esses agentes que dispõem de uma “margem de liberdade que qualquer posto deixa sempre aos que o ocupam” (2006, p. 175), tendo a possibilidade de fazerem-se cumprir tais regras ou de fazer “vista grossa” para as transgressões, “segundo o seu interesse material ou simbólico em mostrarem-se estritos ou flexíveis” (2006, p. 174-75). O autor coloca que essa margem de ação (e de negociação) é utilizada a partir da posição de superioridade conferida aos agentes públicos (em relação a leigos, por exemplo, dando proeminência à valorização da técnica), e será o habitus desses funcionários que preencherá as lacunas das regras estabelecidas. Ou seja, o conjunto de suas preferências e de seus valores individuais conduz a ação desses agentes que “‘cumprem as suas funções’ com todas as características, desejáveis ou indesejáveis, do seu habitus” (2006, p. 177). Ademais, as regras e normativas, em certa medida, estão sujeitas à interpretação, o que amplia o escopo de negociação no momento de sua aplicação.

A disponibilidade do agente em ser mais “humano” e “compreensivo” pode estar relacionada às vantagens obtidas (uma notoriedade num determinado território e num determinado grupo), ao garantir “um capital social de relações úteis e um capital simbólico de reconhecimento graças a esta forma específica de troca em que a principal ‘moeda de troca’ não é outra coisa senão a excepção à regra ou a adaptação de regras estabelecidas ou fabricadas, como um ‘serviço’ a um utente19 ou mais”, analisa Bourdieu (2006, p. 178-9).

Assim, a possibilidade de escapar do rigor e da formalidade, dependerá, provavelmente, dos “apoios” encontrados ou não nos agentes burocráticos responsáveis por determinadas políticas. Exemplo interessante de como os agentes públicos (sejam eles gestores ou técnicos) podem “fazer a diferença” no alcance das políticas e programas do governo, temos na análise de Guedes, Mello e Pereira (2014, p. 103) sobre como funciona a inserção das lideranças quilombolas nos espaços institucionais no Brasil:

o acesso a outras instâncias governamentais passa pelo estabelecimento de relações, alianças e compromissos com indivíduos específicos desses órgãos. Se, como coloca Arilson Ventura, representante da Conaq no CNPIR, existe uma “bancada quilombola dentro do governo” – isto é, ministérios e órgãos que desenvolvem ações voltadas para as comunidades quilombolas – tal “bancada” não tem uma existência por si mesma. Como a própria definição de Arilson Ventura sugere, em meio a um campo mais amplo, apenas um conjunto de agentes, gestores e técnicos governamentais são, efetivamente, “comprometidos” com a “pauta quilombola”.

Se, por um lado, independente de interesses pessoais, os agentes podem utilizar essa relativa “liberdade de ação” para compreender, atender ou adequar os programas e serviços às necessidades específicas de casos concretos, por outro, esses mesmos agentes também teriam o “poder” inverso, ou seja, o de dificultar a aproximação com o público-alvo, não abarcando suas demandas e seguindo à risca as normativas, mesmo quando estas dificultam o acesso dos usuários às políticas a eles destinadas.

Embora possa haver discordâncias em relação à prática discricionária dos agentes, o que se pretende ressaltar aqui é a relevância desses “corpos” que formam o Estado, a possibilidade ou não de encontrar apoios, como um aspecto inerente aos agentes públicos que podem contribuir ou atravancar o acesso às políticas públicas.

De todo modo, a implementação apresenta-se como fator imprescindível para o processo de avaliação das políticas públicas, a partir do feedback trazido por agentes da ponta e usuários, revelando o que funciona ou não, como funciona etc. Consequentemente, seja encaminhando as demandas para instâncias deliberativas ou, a partir dos casos, flexibilizando ou buscando alternativas para os “gargalos”, é possível reavaliar o projeto inicial e lançar novas determinações na tentativa de se aproximar das situações que surgem no momento da implementação. Quer dizer, “como a implementação implica tomada de decisões, ela própria se constitui em fonte de informações para a formulação de políticas” (SILVA; MELO, 2000, p. 11).

No caso concreto da pesquisa de campo realizada, pudemos extrair diversas observações que corroboram com essa argumentação. Em entrevista com técnicos da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), foi relatada a demanda dos agricultores em relação à parte documental e burocrática do programa: “Eles queixam-se muito... acham que é burocrático, que é muita documentação, mas é uma burocracia necessária. Porque todas as outras políticas exigem”. E acrescentam: “É preciso existir, precisa de um estatuto, precisa de uma ata de criação, né? Precisa de uma documentação”. Além desse aspecto, a própria falta de dinheiro das associações para o pagamento das taxas de regularização da documentação se apresenta como um empecilho para acessar o programa. Nesse sentido, embora o PAA contribua para o processo organizativo dos agricultores – uma vez que demanda a formação de associações e cooperativas com a documentação regular e atualizada –, “a falta de organização não pode se constituir em um elemento de exclusão dos agricultores, já que são justamente aqueles com organizações representativas mais frágeis (ou mesmo sem organizações) que [possuem] mais dificuldades” (ROCHA; CERQUEIRA; COELHO, 2007, p. 21).

E, ainda sobre essa temática, outras análises – inclusive a partir da ótica dos próprios usuários do programa – também identificam as dificuldades de acesso ao PAA, em virtude da falta de aproximação com os trâmites burocráticos do programa. No Relatório-Síntese de uma oficina do PAA realizada na região Centro-Oeste (2006, p. 19), dentre os desafios, dificuldades e pontos negativos levantados na plenária final, foram citados, por exemplo, “3. Processo para acessar o PAA é muito burocrático e lento” e “6. As organizações também enfrentam dificuldades e limitações para fazer projetos”. Em outro estudo sobre o PAA (SANTOS; SOARES; BENEVIDES, 2015, p. 178), realizado com os

agricultores do município de Ibicaraí-BA, um dos pontos fracos do programa, segundo os entrevistados, é que “o programa exige muita documentação e o agricultor é uma pessoa simples, que não domina a tecnologia”. Esses dados revelam alguns obstáculos comuns para as diversas regiões e realidades brasileiras.

A pesquisa de campo realizada neste trabalho, os artigos publicados sobre o programa e as entrevistas feitas com os agentes envolvidos demonstram a grande importância do PAA para os agricultores familiares e o interesse de todos em dar continuidade aos projetos. Cabe, talvez, eliminar certos “gargalos” que impedem o acesso ao programa por parte daqueles que mais precisam, mas que não possuem os recursos materiais e simbólicos para dar início ao processo.

Corroborando com o pressuposto de que os agentes burocráticos têm um papel decisivo na implementação das políticas públicas, o trabalho de Naime (2012) sobre a política habitacional no Brasil, com foco na produção por autogestão, revela como a ação desses agentes operadores da política não é neutra e impacta, inclusive, nas diferenças quantitativas de contratação de projetos por estado/região do país (apesar de outras variáveis também influenciarem nesses números). A autora relata, por exemplo, a conduta dos técnicos alocados na Gidur/Caixa de Porto Alegre – o Rio Grande do Sul destaca-se como um dos estados que mais contrata empreendimentos de habitação de interesse social via Caixa no Brasil – que participaram de um seminário e sentaram com os movimentos e entidades para discutir os “problemas e gargalos” encontrados na execução da política, iniciativa na qual “se notou que o envolvimento dos técnicos foi além das suas atribuições como funcionários de um órgão de fomento à habitação” (2012, p. 101), defende a autora.

Por meio de entrevistas com funcionários da Gidur, Naime confirmou que houve um alinhamento da equipe, entre gestores e técnicos, no sentido de se comprometer com as demandas dos movimentos e tentar superar as dificuldades advindas da própria complexidade do programa. Em outras palavras, houve um comprometimento desses agentes que, para além de seguir as determinações formais do programa, se propuseram a “indicar caminhos e aperfeiçoamentos de forma a tornar os projetos ‘aprováveis’” (NAIME, 2012, p. 108), demonstrando como a mesma política habitacional e o mesmo agente operador (CEF) podem encontrar diferentes “tratamentos” em cada estado, a partir da disponibilidade de seus gestores e técnicos. Assim, a autora (2012, p. 103) conclui: “Sabemos que eles podem se ater às regras, cumprindo fielmente o disposto em seu normativo funcional, ou irem além desse papel, fazendo a mediação entre a norma e a realidade sobre a qual pretendem operar, segundo interesses específicos.”

Apesar de o corpo técnico estatal muitas vezes procurar adequar as políticas e os trâmites burocráticos às necessidades dos usuários, o que se mostra uma constante são as diferentes percepções e condutas em relação a questões subjetivas e objetivas de realização das políticas. Nesse sentido, a flexibilidade dos agentes pode ir ao encontro de demandas e racionalidades que coadunem com as particularidades do local ou da comunidade, principalmente, em se tratando de populações rurais, nas quais uma distância física pode se revelar como uma distância simbólica. Em virtude dessa complexa e imbricada relação (diálogo), é comum observar a atuação de agentes intermediadores, como veremos a seguir.

Dos agentes interlocutores

Assim como os agentes públicos, que, no seio do seu espaço laboral e para além dele, tentam “fazer a diferença” para garantir a efetivação das políticas e o estreitamento dos laços entre o aparelho estatal e determinados segmentos nos programas e projetos, também foram identificados outros agentes que, voluntariamente, estabelecem uma interlocução entre o Estado (através das políticas públicas) e os usuários. Em outras palavras, no percurso da pesquisa, encontramos aqueles (por acaso, também funcionários públicos, mas que realizam intervenções fora do âmbito do seu órgão de trabalho) que tentam suprir as lacunas existentes (como a falta de assistência técnica) para que as lideranças e associações possam acessar os programas disponíveis localmente – a exemplo do PAA e do PNHR, programas que foram implementados em uma das comunidades quilombolas estudadas na pesquisa e que contaram com o suporte desses agentes externos.

Para as lideranças de Cachoeira/Mocambo, o agente externo foi o articulador que conseguiu garantir o contrato do PAA para a comunidade. Funcionário público do município, nosso interlocutor afirma que, para levar informações sobre o PAA para o município, ele participou de algumas reuniões na Conab, “mas de maneira voluntária, apenas por curiosidade”, explica. “A agricultura familiar não tinha assim um apoio, nunca teve. Principalmente pra produzir e escoar. O grande problema era esse.” Ele ajudou a associação de Cachoeira/Mocambo a se estruturar burocraticamente (regularizar a documentação) para então buscar resolução para as demandas da comunidade.

Mesmo após quatro anos participando do programa (o contrato é renovado anualmente), a comunidade ainda depende da ajuda desse agente interlocutor para organizar a documentação exigida no contrato e para realizar a prestação de contas à Conab. Sobre o papel dele de intermediador para alcançar esta política, pergunto se existe alguma dificuldade para as associações fazerem esse trabalho diretamente com o órgão responsável. Ele responde:

Tinha... Pra falar a verdade, ainda hoje eles têm muita dificuldade. A gente tá precisando passar demais esse conhecimento pra alguém. Apesar de já ter quatro anos, a gente ainda tem dificuldade... eles dependem 99% do meu apoio ainda. As pessoas têm medo do desconhecido... eles têm medo de errar. Então você não encontra ainda alguém, nem disposto ou com coragem pra fazer nem a prestação de contas mensal, os repasses. […] Ainda sou eu, tem uma pessoa que ajuda a fazer, a prestação de contas de quatro projetos, todos quatro ainda é a gente que faz. Tentou colocar umas pessoas pra ajudar 'ah, é muito difícil, não tem como', tem essa dificuldade. Então até hoje ainda eles dependem muito da minha ajuda, mesmo depois de três, quatro anos de projeto, são muito dependentes. Algumas coisas já conseguem resolver. A presidente [da associação] já vem pra Salvador, já vai na Conab, já participa de curso e tudo, mas […] ainda sou eu que participo de todas essas atividades, organização de agenda...

Mais uma vez é enfatizada a dependência das comunidades para dar prosseguimento aos projetos. Pergunto se ele consegue vislumbrar quando esse cenário mudaria, quando as comunidades ficariam (mais) autônomas, e ele responde: “Não vejo ainda uma perspectiva lá a curto prazo.”

A partir da mesma perspectiva de afinidade entre agente e comunidade, outra interlocutora inicia a entrevista contando sua aproximação com as comunidades quilombolas do município. Sua antiga militância e trabalho com as populações rurais a tornaram uma referência de apoio. Assim, as lideranças começaram a requisitá-la sempre que tinham alguma dificuldade, como para escrever projetos, ofícios, atas, e, ainda, para acompanhá-las em reuniões e outros espaços institucionais. Nesse sentido, ela brinca: “eu também não sou especialista em projetos, eu aprendo ‘na tora’20, fazendo, porque dá vontade de fazer”.

Nossa interlocutora é pedagoga e foi responsável pela elaboração e execução do Projeto de Trabalho Técnico Social (PTTS)21 em dois programas habitacionais implementados nas comunidades quilombolas pesquisadas. Apesar de ter sido contratada pelas entidades executoras dos projetos, ela realizou uma mobilização prévia com os moradores para que as comunidades estivessem aptas a concorrer aos recursos. Ela relata que, por falta de gente disponível para ajudar na elaboração dos projetos, “perdem-se” muitos editais, porque as comunidades “não sabem fazer”. Ela reforça a dificuldade de certos “conhecimentos tecnológicos” chegarem até as comunidades e de como essa situação faz com que eles sempre dependam de outras pessoas para ajudá-los, interferindo, assim, no processo de autonomia das comunidades. Desse modo, embora ela acredite que muitas vezes haja interesse dos órgãos públicos na oferta de assistência técnica, as formas de viabilização nem sempre são adequadas às necessidades do público-alvo.

Os agentes interlocutores entrevistados e citados neste trabalho foram contatados por indicação próprias lideranças das comunidades. Isto revela a importância de uma relação estabelecida entre eles, uma troca de conhecimentos e aprendizado que reverbera em mais possibilidades de acessar as políticas e programas disponíveis. Contudo, não há a intenção de romantizar a ação desses agentes, que podem agir de acordo com interesses pessoais diversos ou até inibir a autonomia das comunidades, apenas pretende-se trazer à tona a importância da presença deles na dinâmica concernente ao policycycle.

Nesse sentido, pode-se concluir que a presença desses agentes funciona

como um elo entre as distintas racionalidades que permeiam o processo de implementação de políticas públicas. A sua atuação revela uma insuficiência de assistência técnica necessária para que certos procedimentos e linguagens “inerentes” ao sistema burocrático estatal possam ser “traduzidos” ao referencial simbólico de determinados segmentos da população.

Analisar o papel desses agentes e traçar o perfil de quem são esses sujeitos que desempenham a atividade de interlocução é fundamental para a compreensão dos processos aqui tratados, tornando-se um campo aberto de investigação para os pesquisadores da área social que, na sua prática profissional, também podem atuar como um elo entre as políticas públicas e os usuários.

Considerações finais

Em perspectiva, partimos da proposta de analisar o diálogo entre as políticas públicas e as populações rurais, ou seja, discutir a relação que se estabelece entre esses dois polos, considerando aspectos que dizem respeito à participação dos agentes na formulação e implementação de tais políticas, ao grau de flexibilidade das normativas, à adequação dos programas e projetos à realidade local etc. Embora estejamos tratando de políticas públicas, não interessa realizar uma avaliação pro forma, baseada em critérios e parâmetros estabelecidos de eficiência, efetividade ou custo-benefício, para classificá-las em positivas ou negativas, mas, sim, desvendar os processos que as envolvem e a disposição dos diferentes agentes nessa dinâmica, uma vez que, inclusive, as políticas públicas estão sempre em processo de ressignificação, de mudança.

Inicialmente, nota-se que o contexto de implementação de políticas públicas é bastante complexo ao envolver diferentes agentes e depender de diferentes órgãos para que as políticas sejam efetivadas. Os autores Silva e Melo (2000, p. 12) confirmam esta análise utilizando-se do conceito de redes de implementação:

o conceito de redes de implementação é particularmente apropriado para capturar o fato de que as políticas públicas são implementadas fundamentalmente através de redes de agentes públicos e, cada vez mais frequentemente, também por agentes não-governamentais. A implementação quase nunca está a cargo de um agente apenas e não ocorre no âmbito de uma organização apenas mas de um campo interorganizacional.

A ideia de um policycycle “representado por redes complexas de formuladores, implementadores, stakeholders e usuários que dão sustentação à política; e por ‘nós’ críticos” (SILVA; MELO, 2000, p. 13-14) corrobora com a necessidade de melhor conhecer esses atores, seu papel e as especificidades de sua ação. Nesse sentido, tendo em vista esse campo interorganizacional que remete à constituição de redes de implementação

que ultrapassam o escopo burocrático da atuação do poder público, a proposta deste trabalho surge em decorrência de certo protagonismo assumido por esses agentes burocráticos – e pelo “extrapolamento” de suas atribuições institucionais – e pelos que chamei de agentes interlocutores no contexto de elaboração e implementação de políticas públicas.

Não se deve perder de vista, entretanto, a ocorrência da atuação de agentes “de fora” da órbita estatal, tanto em seu aspecto colaborativo quanto no entendimento de que essa atuação pode estar estreitamente relacionada à atribuição de funções, antes desempenhadas pelo corpo do Estado, a agentes externos, por meio de parcerias público-privado ou de terceirizações e subcontratações. Embora possa existir a necessidade de descentralizar as ações do Estado, a delegação de certas atribuições a outros agentes tende a estar associada à ideia de enxugamento do Estado e de suas funções (Estado mínimo), tornando-o não mais o provedor exclusivo dos serviços públicos, mas assumindo o papel de coordenador e fiscalizador. Além disso, como nos mostrou Dagnino (2004) com relação à abertura à participação da sociedade civil organizada nas políticas públicas, alguns mecanismos se mostram mais restritos à esfera da execução do que da discussão e da deliberação dessas políticas.

Torna-se importante, portanto, a observação e a análise desse processo como uma tendência em curso na administração pública nacional, na perspectiva de identificar seus benefícios, mas, principalmente, os limites e as consequências desse distanciamento (e desresponsabilização) cada vez maior do Estado na provisão dos direitos sociais através das políticas públicas.

Do mesmo modo, a atual administração federal (2016-2018) vem se caracterizando pela implementação de certo receituário (como o congelamento de gastos públicos reais) que remete a uma maior escassez na provisão de recursos públicos, gerando incertezas quanto à criação e à continuidade de políticas sociais direcionadas para as populações rurais e outros segmentos da sociedade.

Destaca-se, portanto, a importância tanto de órgãos e instituições que se fazem presentes e têm como finalidade o apoio e o atendimento aos diversos segmentos da população quanto desses agentes comprometidos com a causa (estatais e não estatais), que vão, muitas vezes, além das suas atribuições como funcionários públicos, e que se dedicam a contribuir em diversos aspectos para as comunidades e populações atendidas ou não pelos projetos em execução. Essa análise, não só ajuda a compreender melhor a efetivação concreta das políticas públicas, com todas as suas particularidades e meandros, como demonstra a necessidade de refletir sobre o atendimento social de forma mais abrangente em todo o processo de formulação, gestão, execução, avaliação etc.

Assim, a proposta deste trabalho foi demonstrar, por meio desses casos e desses personagens (sejam eles do Estado, das comunidades ou outros agentes), como a política pública sai do papel e se “materializa” (ou como dialoga com os seus usuários) e o papel-chave dos agentes (da agência) no processo de implementação das políticas. Há ainda um longo caminho a ser trilhado para facilitar essa relação entre Estado e sociedade, uma relação permeada por diversos agentes e com graus diferentes de envolvimento.

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Notas

1 Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), especialista em Política e Planejamento Urbano e mestre em Planejamento Urbano e Regional pelo Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR/UFRJ). E-mail:mariakalil@hotmail.com.
2 Denominamos agentes interlocutores aqueles agentes que podem estar envolvidos em diferentes fases dos processos de elaboração e implementação de políticas públicas, ainda que não efetivamente como corpo técnico do Estado, mas fazendo as vias de intermediador entre as políticas públicas e seus usuários. Em geral, esses agentes ofertam algum tipo de assistência técnica – voluntariamente ou não – aos usuários e/ou coletivos que apresentam dificuldade em acessar, acompanhar ou prestar contas a programas e projetos.
3 Pesquisa realizada nas comunidades de Cachoeira da Várzea/Mocambo da Cachoeira e Vão das Palmeiras entre junho de 2015 e julho de 2016.
4 Sobre esse assunto, Almeida (2008, p. 34) afirma que “se porventura, foram instituídos novos órgãos públicos pertinentes à questão, sublinhe-se que a competência de operacionalização ficou invariavelmente a cargo de aparatos já existentes”, reforçando que as novas disposições constitucionais foram articuladas com estruturas administrativas preexistentes, apenas sendo acrescidos os atributos étnicos.
5 No decorrer deste artigo, irei utilizar apenas “Cachoeira/Mocambo” para referir-me à comunidade de Cachoeira da Várzea/Mocambo da Cachoeira.
6 O município de Seabra, centro geográfico da Bahia, está localizado a cerca de 475 km de Salvador, e pertence ao Território de Identidade da Chapada Diamantina.
7 Ele me contou sobre uma lenda que diz que, quando alguém briga pela água, ela acaba. E, dessa forma, as nascentes da comunidade secaram.
8 As comunidades de Cachoeira/Mocambo e Vão das Palmeiras foram certificadas no dia 10/8/2005, Processos nos 01420.001806/2005-50 e 01420.001805/2005-13, respectivamente. Disponível em: www.palmares.gov.br.
9 Disponível em: www.incra.gov.br.
10 Outra comunidade quilombola do município de Seabra.
11 O PAA, segundo sua cartilha (BRASIL, 2012), tem a atuação direcionada para duas finalidades: “promover o acesso à alimentação e incentivar a agricultura familiar”. A dinâmica do programa busca aliar o apoio aos agricultores familiares, a partir da compra de sua produção (sem licitação), à garantia de alimentação às pessoas em situação de insegurança alimentar e nutricional, através da doação desses alimentos. Os produtos adquiridos pelo PAA são diversificados, desde frutas e hortigranjeiros até carnes, sementes e laticínios. A ideia do programa é valorizar a vocação produtiva regional e respeitar os hábitos alimentares de cada local.
12 O contexto de surgimento do PNHR, lançado em 2009, foi o de atender ao antigo déficit habitacional das áreas rurais, impulsionado pela grande pressão exercida pelos movimentos sociais à época. O PNHR está inserido no Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV) e tem como objetivo produzir novas moradias nas áreas rurais ou reformar as já existentes, suprindo o déficit de todos os municípios do país, de acordo com a necessidade de cada região
13 Tradução livre de: “Popular response to appropriate or reject development discourse is areaction to this hierarchy and an attempt to counter stigma.”
14 Projeto realizado no município de Porto Seguro, o qual pude acompanhar como técnica da Secretaria de Desenvolvimento Urbano do estado da Bahia (Sedur).
15 Órgão federal que executa o PAA.
16 O policycycle ou ciclo de políticas públicas é um esquema que compreende e organiza as diferentes fases da vida de uma política pública. Ainda que haja discordâncias em relação à sequência das fases (ou da linearidade ou não desse processo), algumas etapas fundamentais do ciclo são: identificação do problema, formulação de alternativas, tomada de decisão, implementação, avaliação, dentre outras.
17 Segundo os autores Silva e Melo (2000), esse ambiente de incertezas que cerca a formulação das políticas públicas pode se manifestar em diferentes níveis: 1. Limitações cognitivas dos formuladores sobre os fenômenos sobre os quais intervêm; 2. Falta de controle sobre as contingências que podem afetar o policy environment no futuro; 3. Limitação prática dos planos ou programas; 4. Possível divergência entre preferências individuais dos formuladores e da coletividade.
18 O autor discute o campo dos poderes locais “dentro do jogo” através da análise da política de habitação na França.
19 Utente: refere-se ao indivíduo que possui ou desfruta de alguma coisa pelo direito de uso, usuário.
20 “Na tora”: expressão usada para referir-se a algo feito à força, “na cara e na coragem”.
21 O PTTS é item obrigatório nos projetos e programas habitacionais.
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