Resumo: O artigo faz uma homenagem à professora Eli Napoleão de Lima a partir de revisão de sua obra acadêmica que deixa um legado importante para os estudos do mundo rural brasileiro. As fontes para este debate serão capítulos de livros, artigos, trabalhos de orientados e orientandas e ementas das disciplinas ministradas pela professora Eli nas décadas de trabalho de formação, pesquisa, docência no CPDA/UFRRJ. O texto “vaivém” dentro de edição e seleção de três eixos temáticos. O primeiro trata da interdisciplinaridade e paixão na encruzilhada de história, ciências sociais e literatura a partir do tema do sertão e o “lugar” no imaginário de região/nação. Os estudos de Eli Napoleão de Lima analisaram a construção nacional, regionalismos e projetos de Estado, tendo foco a obra de Euclides da Cunha e sua influência durante século XX. Um segundo eixo é o de literatura e mundo rural como fonte de análise: “saber ler e saber perguntar como um texto funciona” foi o lema dos trabalhos de Eli Napoleão de Lima em um arco que vai de Euclides da Cunha até debates com autores como Graciliano Ramos e mesmo clássicos da literatura mundial. Um terceiro eixo trata de sua atividade docente: das orientações acadêmicas a intervenções feitas em eventos comemorativos do Programa de Pós-graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade e, principalmente, pela disciplina Raízes agrárias da formação social brasileira, que marcou gerações de alunos e alunas do CPDA.
Palavras-chave: ruralidade, literatura, tragédia, história, México.
Abstract: The social sciences and humanities contains some dilemmas that reflect empirical and theoretical problems; one such challenge is interdisciplinarity and the place of subjectivity. This article discusses these issues while also serving as a tribute to Eli Napoleão de Lima, a professor and researcher whose work centered around Brazil’s sertão backlands, the nation and region, Amazon rainforest, and literature about the countryside. She pursued her work with great passion, precisely at the conflicting intersection of the social sciences, history, and literature. Her class entitled “Agrarian Roots of Social Formation in Brazil” made important impressions on generations of young social scientists. In this specific interdisciplinary place of knowledge, Professor Napoleão de Lima helped to make the CPDA/UFRRJ the main center for research on social and rural studies in Brazil.
Keywords: Eli Napoleão de Lima, CPDA, sertão, literature, nation, region, Amazon rainforest.
Resumen: El artículo rinde homenaje a la profesora Eli Napoleão de Lima a partir de una revisión de su obra académica, que deja un importante legado para los estudios del mundo rural brasileño. Las fuentes para este debate serán capítulos de libros, artículos, trabajos de asesorados y asesorados y menús de disciplinas impartidas por la profesora Eli en las décadas de formación, investigación, docencia en el CPDA/UFRRJ. El texto “vaivém” dentro de la edición y selección de tres ejes temáticos. El primero aborda la interdisciplinariedad y la pasión en la encrucijada de la historia, las ciencias sociales y la literatura a partir del tema del hinterland y el “lugar” en el imaginario de la región/nación. Los estudios de Eli Napoleão de Lima analizaron la construcción nacional, los regionalismos y los proyectos de Estado, centrándose en la obra de Euclides da Cunha y su influencia durante el siglo XX. Un segundo eje es el de la literatura y el mundo rural como fuente de análisis: “saber leer y saber preguntar cómo funciona un texto” fue el lema de las obras de Eli Napoleão de Lima en un arco que va desde Euclides da Cunha a debates con autores como Graciliano Ramos e incluso clásicos de la literatura universal. Un tercer eje trata de su actividad docente: desde la orientación académica hasta las intervenciones realizadas en eventos conmemorativos del Programa de Posgrado en Ciencias Sociales en Desarrollo, Agricultura y Sociedad y, principalmente, por la disciplina Raíces Agrarias de la Formación Social Brasileña, que marcó generaciones de CPDA estudiantes.
Palabras clave: Eli Napoleão de Lima, CPDA, sertão, literatura, nación, región, Amazonía.
Homenaje
Raízes agrárias, lugar no sertão, lugar no CPDA: uma homenagem à professora Eli Napoleão de Lima
Agrarian roots, sertão, and rural studies: in honor of Professor Eli Napoleão de Lima (CPDA/UFRRJ)
Raíces agrarias, lugar en el sertão, lugar en el CPDA: un homenaje a la profesora Eli Napoleão de Lima

Recepción: 27/07/2022
Aprobación: 10/01/2023
Publicación: 31/01/2023
Escrito com “cheiro” de saudade e com profunda gratidão, este artigo tem como proposta construir algumas estratégias de pesquisa e reflexão nos estudos rurais brasileiros a partir do legado dos trabalhos da professora Eli Napoleão de Lima. Os elementos biográficos2 aqui aparecerão diluídos para dar ênfase ao direcionamento acadêmico interdisciplinar dos trabalhos de Eli Napoleão de Lima (2001, 2002a, 2002b, 2005, 2007, 2008, 2014a, 2014b, 2014c, 2014d, 2016a, 2016b, 2019, 2020) e sua destacada paixão pelos temas das interpretações do Brasil, do sertão e da literatura e mundo rural. A partir disso, demarco também o trabalho constante da professora Eli em fixar o lugar do CPDA na diversidade regional nos estudos rurais brasileiros.3 Nas suas conclusões, o artigo faz uma proposta de novas linhas e agendas de pesquisa.
***
Alguns espectros rondam as formas contemporâneas de produzir conhecimento das ciências humanas. O primeiro trata do desafio da interdisciplinaridade – palavra muitas vezes usada como adorno, aceno ou promessa simplista de mencionar sem confrontar as diferentes abordagens nas pesquisas e teorias. A demanda aqui é que produza conhecimento válido usando do variado ferramental teórico e empírico produzido na já quase bicentenária trajetória das ciências humanas, em boa parte fundadas e institucionalizadas no século XIX. Fato também é que se as ciências humanas conseguiram alguma legitimidade, fruto de um legado já centenário, isso não se fez de forma “harmônica”: ciências sociais, história, geografia, economia, dentre outras ciências e saberes avançaram acumulando vários conflitos incessantes e inesgotáveis. Desse vasto universo, surgiram críticas internas, escolas de pensamento e até disputas ferozes entre as ciências, por exemplo, aquelas entre os fundamentos da sociologia e da história. Em sua raiz, uma mirou nas regularidades e generalidades e, a outra, nas particularidades históricas dos processos sociais. Por isso, essas ciências nem sempre são boas vizinhas (BURKE, 1991). Um pesquisador desavisado que adentra fronteiras das ciências humanas e se vê diante de agressivas trincheiras fica tal qual verso de um conhecido ponto de umbanda também cantado no maracatu da banda pernambucana Mestre Ambrósio: “Terra alheia, pisa no chão devagar”!4
Um segundo espectro que ronda as ciências humanas e sociais trata de como produzir conhecimento relevante sobre o mundo social e, ao mesmo tempo, lidar com paixões, apegos e valores? Como trabalhar com aquilo que, por vezes, é definido como “subjetividade” dos pesquisadores e pesquisadoras? Para lidar com essa tensão alguns ainda insistem na busca pela cientificidade, refutabilidade de dar hipóteses “verdadeiras ou falsas”, oferecer um enquadramento “popperiano” para o universo socioantropológico (PASSERON, 1995). Também há linhas que atestam incapacidade de cientificidade e assumem as ciências humanas como saberes, narrativas fora do modelo de ciência criado e espelhado no século XIX – algo que foi muito recorrente em crises e viradas conceituais e teóricas, como o feminismo, o colonialismo, a natureza/cultura, o racismo, a linguagem, entre outros –, que gerou intensas disputas epistemológicas multidisciplinares nas últimas décadas do século XX (ALVES, 2010). Desse processo ainda sentimos efeitos epistêmicos: de leves “tremores” a grandes terremotos e movimentos de placas “tectônicas” das certezas e confianças aparentemente sólidas das ciências humanas durante quase todo o século passado.
Diante dessas encruzilhadas, a proposta desse texto-homenagem busca as condições de possibilidade de um esforço realista da interdisciplinaridade – ou seja, reconhecendo seus conflitos inerentes. Sem comprometer a dar resolução de dilemas e atritos epistemológicos, fazer a “travessia” bibliográfica dos trabalhos de Eli Napoleão de Lima evidencia enérgico encontro de tradições de conhecimento – nas linhas da História, Ciências Sociais e Literatura –, encontro esse guiado pela paixão por um tema – o “sertão” brasileiro em suas variadas formas regionais e conceituais, da Amazônia ao semiárido, das ideias coloniais ao imaginário de nação, mundo rural e Estado brasileiro. Os lugares reflexivos estabelecidos nos trabalhos da prof.. Eli Napoleão de Lima e suas possíveis direções e agendas de pesquisas são valiosos para novas gerações de estudiosos e estudiosas dos temas do mundo rural. Assim, procuro neste texto reafirmar o legado de nossa querida “Ly”: somada à sua energia agregadora e gentil, recordá-la também pela potência criativa que emana dos seus trabalhos.
O artigo está organizado em três partes. O primeiro trata da interdisciplinaridade focada na categoria sertão e seus “lugares” no imaginário de nação. Dos sertões verdes e aquosos amazônicos ao sertão abrasado e ressequido de Canudos – no século XIX era parte do antigo “Norte”, atual Nordeste semiárido do Brasil –, os estudos de Eli Napoleão de Lima analisaram a construção nacional e os regionalismos dentro de projetos de Estado brasileiro. Aqui, o foco de sua tese de doutorado, bem como artigos e verbetes em dicionários foi a obra de Euclides da Cunha “amazônico” e sua influência nos imaginários e projetos de Estado no século XX. Um segundo eixo de análise trata da literatura como fonte de avaliação da cultura e do mundo rural. Atravessa aqui autores clássicos latino-americanos de língua hispânica e também da língua inglesa. Um terceiro eixo versa sobre a sua atividade docente: intervenções feitas em eventos comemorativos do CPDA, temas de orientações de teses e dissertações e, principalmente, na disciplina Raízes agrárias da formação social brasileira, que marcou gerações de alunos e alunas do CPDA.
Um dado relevante dos estudos de Lima (2002a, 2014a, 2014d) está no exame que faz dos escritos de Euclides da Cunha (1866-1909) tomando como entrada não a famosa obra Sertões da Guerra de Canudos (1896-1897), mas sim a visão de sertão e nação dos escritos amazônicos:
A Amazônia tem sido cenário de práticas sociais, ideológicas e políticas a partir de uma estrutura de atitudes e referências veiculada pela narrativa de viajantes, por narrativas contidas em obras de caráter ficcional e não ficcional (romances, crônicas, ensaios etc.). Dentre tais narrativas destacamos a produção do imaginário euclidiano da Amazônia, sua veiculação e assimilação (...). (LIMA, 2019, p. 87)
Embora tenha analisado Canudos,5 o foco está no chamado “inferno verde” e seu imaginário apresentado por escritos “amazônicos”6 de um Euclides da Cunha já consagrado no século XX, fase essa que antecede o fim trágico do escritor, assassinado na tentativa de lavar sua “honra” matrimonial em 1909. O ponto central da análise sociológica e historiográfica de Lima (2001, p. 80) mostra como na criação literária euclidiana sobre a Amazônia seria canalizada a construção da nação em projetos de Estado brasileiro durante todo século XX.
Mesmo diante do cenário abrasado e ressequido do sertão e da imensidão no “sertão de imensidão verde e aquosa da Amazônia [Euclides da Cunha] manteve uma mesma atitude verbal: transformou os elementos de sua grandiloquência (...) será precisamente nessa perspectiva de construção de uma história “nossa”, do caráter documental de sua obra que se apropriará do projeto de nacionalidade inaugurado pelo Estado Novo. (LIMA, 2001, p. 80)
Foi ao longo do capítulo quarto de sua tese que Lima (2002a) aprofundou essa análise sobre o imaginário amazônico. Parte de um elemento biográfico na formação militar de Euclides da Cunha em sua inserção em uma geração de elite intelectual de um positivismo pressionado pela entrada de novas ideias do abolicionismo e republicanismo da segunda metade do século XIX. Nesse sentido, vem o imaginário da Amazônia em atávica questão militar da região fronteiriça da grande floresta tropical: daí os termos “região tumultuária”; “estéril”; “inóspita”; “pré-histórica”. O debate sobre a natureza e o comportamento dos habitantes – tônica naturalista do final do século XIX – fundamentou a (im)possibilidade do progresso nessa região na região.
Aqui temos a pauta de disputa entre autores brasileiros: nesse ponto, Euclides da Cunha “venceu” o tabuleiro intelectual contra José Veríssimo (1850-1916) e Ferreira de Castro (1898-1974). Mas por que a vitória da narrativa euclidiana sobre a visão do Estado brasileiro sobre a Amazônia? Para construir uma das possíveis respostas, o capítulo da tese internacionaliza o olhar no que chama de textos canônicos dos trabalhos amazônicos de Euclides da Cunha comparando-os com os textos de Joseph Conrad (1857-1924): a questão é da representação do “mundo desconhecido” que Conrad faz da África na história de Marlow e a personalidade trágica de Kurz e sua empreitada sangrenta7 em Coração das Trevas (1902). A entrada euclidiana do universo “bárbaro” e sertanejo da Amazônia e o imaginário africano de Conrad coincidem na vitória da visão no exotismo da revelação de um “mundo desconhecido” que, no crivo da percepção ocidental e imperial, seriam regiões e populações que vivem um frenesi de violência, estando “apartadas” do mundo. Isso que se chama de “visão consolidada”8 de uma região, segundo debate de Lima (2002a, 2012, 2015).
No quarto capítulo da tese, Lima (2002a) ainda indicou mais uma preocupação de estudos que pressionam as dualidades atraso/moderno; “bárbaro/civilizado” sobre a Amazônia: o ingresso de uma cultura urbana de belle époque em cidades como Manaus e Belém na transição do XX para XXI. A formação da elite manauara, o papel do monumentalismo das exposições universais e a entrada de bens de consumo e estruturas de controle social – vestuário europeu, novas comidas e bebidas, teatros com espetáculos de ópera, asilos de mendigos e indesejáveis, entre outros) nas capitais da borracha. Paralelo aos investimentos literários euclidianos, o imaginário exótico era visto como legitimador do Estado e como uma missão técnica capaz de controlar e oferecer efeitos civilizadores – na ordem social de “raças” indígenas e ribeirinhos até as doenças da floresta e a própria imposição da natureza, da mata e do clima. A ferro, fogo e vapor e uma alta carga ideológica é que esse projeto político era firmado através dos portos e ferrovias cortando o terreno amazônico (LIMA, 2008).
Por fim, a grande questão que finaliza a tese de Lima (2002a) e que vai guiar trabalhos posteriores é a relação dos projetos do Estado brasileiro com a obra de Euclides da Cunha como eixo intelectual e legitimador de políticas de integração nacional no século XX. O projeto de nação incidiuu não somente sobre a Amazônia mas na conquista dos sertões como espaços fronteiriços da nacionalidade brasileira. E foi construído em dois momentos do século XX: primeiro, pela geração intelectual da chamada “República Velha” (Alberto Torres, Manoel Bonfim, Oliveira Vianna, Belisário Pena, dentre outros) e uma missão da busca pela identidade coletiva: daí o “sertão” – em suas diferentes acepções dos rios e florestas as zonas castigadas pelas secas cíclicas ou até os interiores paulistanos – ser constantemente reivindicado como lugar de autenticidade destaque na ficção e ensaísmos (LIMA, 2008, p. 18). O sertão está em toda parte e em diferentes lugares: ele abarca um campo semântico de incorporação, progresso, civilização e conquista (LIMA, 2002b, p. 324). E, segundo, com mais força e longevidade estratégica, está o Estado Novo: a partir dos anos 1930, os investimentos no conceito de “homem brasileiro” em detrimento dos debates racistas do final do XIX trouxeram o tema regionalismo como elemento de ideal de progresso, controle sanitário e disciplinamento do trabalhador, principalmente o rural – eis a cruel rima do tripé dado por Belisário Pena de que o Brasil precisa de “botina, necatorina9 e latrina” (LIMA, 2002a, p. IV). A permanente tensão simbólica e dualista da nação brasileira (interior/litoral; atraso/progresso) que produz e reproduz a obra euclidiana ganhou novos tons e direções a partir do projeto varguista fundado na Revolução de 1930.
Importante mencionar que o interesse de Eli Napoleão de Lima pela chave euclidiana de um sertão da Amazônia acompanha um raro encontro de pertencimento pessoal, paixão e trajetória acadêmica: primeiro, a origem paraense de Eli Napoleão de Lima e, segundo, a produção de sua dissertação de mestrado Produção de alimentos e extrativismo: Belém e os núcleos subsidiários da ilha do Marajó e da Zona Bragantina (1850-1920), defendida no CPDA em 1987. Nesse momento, a pesquisadora em formação inicial já tinha preocupações com a história agrária e os sistemas de abastecimento coloniais. Abordagens essas que a influenciaram fortemente a partir dos trabalhos dos professores Maria Yedda Linhares e Francisco Carlos Teixeira – que foi seu orientador.10
Há pelo menos duas frases que se repetem nos artigos e que eram bastante usuais nas reuniões de orientação com Eli Napoleão de Lima. Essas frases dão boas estratégias epistemológicas para analisar fontes escritas, sejam elas documentos oficiais produzidos pelo Estado e outras instituições, sejam elas textos consagrados – como clássicos da literatura. A primeira delas trata de “perguntar a um texto não somente o que ele significa, mas também como ele funciona” (LIMA, 2014a, p. 121). Aqui reside um importante ponto para quem está na fronteira entre literatura e história e suas condicionantes: contexto histórico, contexto histórico-literário, literatura e realidade social, literatura e socidade, literatura e documento, literatura e ciências sociais, no sentido das possibilidades interpretativas da relação história/ciências sociais/literatura (LIMA, 2020, p. 551). Esse amplo exame do que há de interno/externo em uma obra/texto a partir de como ele funciona estava direcionando a autora a pensar acerca de Graciliano Ramos, nos seus trabalhos recentes. Uma segunda frase bastante recorrente nas orientações e artigos de Lima (2007, p. 33) trata de questionar os usos do passado: a relação de invocar algo pretérito como estratégias de poder mais usuais para interpretação do presente:
O que queremos destacar é que, mais importante que o próprio passado, não é o apego ou desapego a ele, e sim as formas de recuperação do passado, entendido como um passado remoto que não mais refletiria as “realidades” do país. (LIMA, 2007 p. 33)
Esse entendimento do passado vem de uma forte crítica à periodização de “ciclos econômicos” e seu teor determinista e compartimentado dos processos sociais e históricos (LIMA, 2002b).11 Pau-Brasil, mineração, pecuária, borracha, café, nenhum desses produtos “desapareceu” e deu lugar de forma linear a outras atividades que os sucederam (LIMA, 2007, p. 31). Para superar essa história cíclica é preciso regionalizar cada vez mais as análises de mercados internos, zonas e populações para além da face oculta de processos centenários feitos por anônimos trabalhadores do campo no interior do país que abriram trilhas e terras que somente depois seriam dominadas pela grande propriedade da terra.
Esse ponto de vista reforça ainda mais o pertencimento do legado de Eli Lima aos estudos já citados de história agrária/história do abastecimento (centrado em grupos de pesquisadores do CPDA e, posteriormente, da UFF) que atestam impossibilidade de uma história nacional generalizante. Nesse ponto, Lima (2007) fecha seu arco de análise em elo com o imaginário de nação e literatura nos estudos “sertanejos” e amazônicos. Estão destrinchados a partir dos termos região, território, localidade. A partir disso, são dadas as seguintes agendas para superar impasses:
1) Interpretações consagradas x universo conceitual complexo regional do Brasil. 2) História regional e local, estudo das estruturas e paisagens agrárias 3) Do continuum agrícola ao novo rural. 4) Concepções alternativas de desenvolvimento: equidade social, prudência ecológica e viabilidade econômica. 5) Lugar dos saberes sobre a natureza de grupos indígenas e comunidades tradicionais no debate sobre preservação de ecossistemas. (LIMA, 2007, p. 36)
O lugar de possibilidades de realizar tais agendas não seria outro senão o CPDA/UFRRJ. Eis um ambiente interdisciplinar realista: na medida em que pela sua história singular de formação, sempre vai trabalhar no ponto conflituoso, ou seja, de gerar energia no “choque”, tensões identitárias e disciplinares (MOREIRA, 2007, p. 16). A força motriz de produzir conhecimento sobre o rural virá não de um encontro harmônico mas de tensões que “molduram” trajetórias profissionais e conhecimentos de diferentes ciências humanas e da natureza. Termos como desenvolvimento, agricultura e sociedade não são debates pacificados, estão sempre em aberto às tensões que as pesquisas e teorias provocam: quando canalizado de forma produtiva, o conflito move e transforma positivamente o mundo intelectual e social.
Portanto, além da já citada influência das pesquisas em história agrária e dos sistemas de abastecimento, a experiência de fazer parte do Projeto de Intercâmbio de Pesquisa Social e Agricultura (Pipsa) – atual Rede de Estudos Rurais – ao longo de sua formação dentro do CPDA, desde o final da década de 1970 até os anos 1990, marcou profundamente a trajetória de debates acadêmicos de Eli Napoleão de Lima. Ela também se inscreve nessa tradição do Pipsa-Rede de Estudos Rurais na condição de protagonismo de intelectuais mulheres no meio acadêmico.12 Em síntese, foi nesse fluxo e fixada no CPDA que Eli Lima – como aluna, professora e ocupando funções administrativas – fez seu legado por meio de atividades de orientação, pesquisa e de docência centradas principalmente na disciplina Raízes agrárias da formação social brasileira.
O tema da interdisciplinaridade na história do CPDA foi enfatizado em artigo de Cesco, Lima e Moreira (2014d), entendendo que a produção desse Programa ultrapassa divisões clássicas das Ciências Sociais (Sociologia, Antropologia e Ciência Política), além de incluir história e economia nos seus quadros e um amplo trânsito com as ciências agrárias. Essa institucionalização singular do CPDA está em uma nova visão de mundo rural que foi sendo transformada na medida em que mudava a própria proposta de formação do Programa: primeiro centro de formação de quadros governamentais de desenvolvimento agrícola da FGV:
pode ser considerado o primeiro centro planejado para pensar o mundo rural brasileiro com suas crises e possibilidades no cenário político e econômico dos anos 1970. (MOREIRA; LIMA, 2018, p. 32)
A partir dos anos 1990, o CPDA passou a formar cada vez mais docentes para ingresso no intermédio de setores públicos (universidades) e privados (ONGs) na área de pesquisa, ensino e extensão sobre o mundo rural brasileiro. Nessa metamorfose do CPDA, a atuação docente de Eli Napoleão de Lima teve fundamental influência na disciplina Raízes agrárias da formação social brasileira.13 Ministrada desde a década de 1990, foi a principal “porta de entrada” de mestrandos e doutorandos nos clássicos do pensamento social brasileiro. Realizada anualmente no primeiro semestre letivo, ela começava geralmente por leituras de obras de Sérgio Buarque, Caio Prado Jr., Gilberto Freyre, Maria Isaura Pereira de Queiroz, Vitor Nunes Leal e Antônio Candido. Em seguida, adentrava na historiografia sobre agricultura e sistemas de abastecimento e seus estudos de caso e regionais do Brasil. Era frequente também a leitura dos chamados “brasilianistas” como Shepard Forman ou Linda Lewin. Dessa maneira, os alunos e alunas tinham uma formação interdisciplinar necessária e basilar para quem vai analisar o mundo rural brasileiro: Sociologia, Antropologia, Economia, História e Literatura “enlaçadas” para treinar o olhar analítico acerca do papel da agricultura e da população à margem dos processos e projetos desenvolvimentistas e governamentais. Aqueles grupos que estiveram envolvidos em todo processo de dominação colonial, a escravidão, coronelismo, banditismo, messianismo e industrialização, dentre outros conceitos que tratam da dramática modernização do rural e urbano do Brasil durante o século XX. Nesse sentido, termos como “êxodo rural” são estáticos e insuficientes demais para analisar um instável processo que até hoje nos traz dívidas e contradições históricas.
Outra disciplina importante, embora mais específica da linha de pesquisa Estudos de Cultura e Mundo Rural – e também comumente cursada por alunos orientandos de Ly –, foi a Mundo rural e nação em representações literárias. Ministrada desde 1989, essa disciplina era o lugar em que alunos e alunas poderiam se “deliciar” ao mergulhar no treino de como “saber ler” um texto literário – exercício esse feito com profundidade na tese de Napoleão de Lima (2002a). Importantes escritores, como José de Alencar e Guimarães Rosa, mas também outros clássicos da língua hispânica – atenção especial a Juan Rulfo, José Fernández, José Maria Arguedas –, dentre muitos outros que colocaram questões de sociedade, mundo rural e nação em tensões que envolvem o lugar da intelectualidade e desse ambiente brasileiro e latino-americano sob a condição colonial. O olhar dessa disciplina era treinado para a leitura profunda de autores como Fredric Jameson, Edward Said, Walter Benjamin e Domingos Sarniento. Nesse contexto, o discente realmente era instigado a aprender a máxima já citada de que é preciso “perguntar a um texto não somente o que ele significa, mas também como ele funciona (LIMA, 2014a, p. 121).
Quanto às orientações, há um acúmulo de 17 dissertações de mestrado e 12 teses de doutorado orientadas por Eli Napoleão de Lima, desde a década de 1990 no CPDA.


Na leitura dos Quadros 1 e 2 destaca-se a diversidade de temas de orientação de pesquisa como o imaginário de sertão, região, nação, do pensamento social brasileiro, mundo rural e cultura, literatura, gênero, até estudos de caso do campesinato, educação rural, assentamentos rurais e territórios indígenas. Nessa diversidade impressiona também a riqueza regional de temas e origem dos alunos e alunas: Pará, Acre, São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Paraíba, Piauí, Maranhão, dentre outros. O legado de orientações da professora Eli no CPDA firma na prática o compromisso dessa instituição com a interdisciplinaridade e o olhar heterogêneo para o rural brasileiro.
Dessa forma, há vários caminhos a serem explorados diante das “encruzilhadas” epistemológicas, teóricas e empíricas abertas pela herança da prof.. Eli Napoleão de Lima como orientadora. Reforço aqui o importante desmonte de narrativas generalizantes do mundo rural rumo a uma efetiva regionalização dos estudos agrários e do mundo rural. Suas orientações abriram e reabriram múltiplas “veredas” e agendas de pesquisa na linha de Estudos de Cultura e Mundo Rural, dentre outras linhas15 e áreas de concentração16 do CPDA: sertões e literatura; sertão e memória regional do mundo rural; estudos sociológicos e historiográficos, entre outras. “Não existe tema batido e ultrapassado”: frase ouvida muitas vezes em reuniões de orientação, quando estava em momentos de certa desilusão e desânimo com o tema.
Ao revisar as orientações e disciplinas de Eli Napoleão pode-se dizer que estão abertas as possibilidades de novos trabalhos: pesquisas a serem feitas no CPDA e em outras instituições de ensino do país em que seus orientandos e orientandas se inseriram como professores após a formação. Se nos faltam investimentos em pesquisa e os tempos sombrios na política nos “espremem”, temos ainda muita paixão por pensar e dar continuidade a questões sobre o mundo rural brasileiro. E muito dessa energia para lidar com os desânimos atuais pode ser extraída do exercício de interdisciplinaridade do legado acadêmico deixado pela querida Ly.
Como citar: MENESES, Valdênio Freitas. Raízes agrárias, lugar no sertão, lugar no CPDA: uma homenagem à professora Eli Napoleão de Lima. Estudos Sociedade e Agricultura, Rio de Janeiro, v. 31, n. 1, e2331103, 31 jan. 2023. DOI: https://doi.org/10.36920/esa31-1_03.

