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Diálogo sobre os conhecimentos aritméticos contidos na manipulação das duas réguas para cálculo de William Oughtred
Amanda Cardoso Benicio de Lima; Kawoana da Costa Soares; Ana Carolina Costa Pereira
Amanda Cardoso Benicio de Lima; Kawoana da Costa Soares; Ana Carolina Costa Pereira
Diálogo sobre os conhecimentos aritméticos contidos na manipulação das duas réguas para cálculo de William Oughtred
Dialogue on the arithmetic knowledge contained in the manipulation of two slide rules by William Oughtred
Diálogo sobre el conocimiento aritmético contenido en la manipulación de dos reglas de cálculo por William Oughtred
Educação Matemática Debate, vol. 7, núm. 13, pp. 1-18, 2023
Universidade Estadual de Montes Claros
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Resumo: Esse artigo apresenta o processo multiplicativo envolvendo as duas réguas para cálculo de William Oughtred (1574-1660), publicada em 1639 na The Declaration of The Two Rulers for Calculations, uma adição ao tratado The Circles of Proportion and the Horizontall Instrvment. Para isso, utilizamos uma abordagem metodológica da pesquisa documental, buscando em fontes primárias e secundárias. Dessa forma, podemos perceber que a operação de multiplicação realizada pelo aparato pode desenvolver no docente em formação inicial e continuada conceitos relacionados à proporcionalidade, ordem e classe do sistema decimal e propriedade dos logaritmos, trazendo um significado prático a uma matemática escolar já sedimentada historicamente.

Palavras-chave:Operação de MultiplicaçãoOperação de Multiplicação,Duas Réguas Para CálculoDuas Réguas Para Cálculo,História da MatemáticaHistória da Matemática,Recurso DidáticoRecurso Didático.

Abstract: This article presents the multiplicative process involving William Oughtred's (1574-1660) two rulers for calculations, published in 1639 in The Declaration of The Two Rulers for Calculations, an addition to the treatise The Circles of Proportion and the Horizontall Instrvment. For this, we used a methodological approach of documentary research, searching through primary and secondary sources. Thus, we can see that the multiplication operation performed by the apparatus can develop in teachers in initial and continuing education concepts related to proportionality, order and class of the decimal system and properties of logarithms, bringing a practical meaning to a historically sedimented school mathematics.

Keywords: Multiplication Operation, Two Slide Rules, Math History, Didactic Resource.

Resumen: Este artículo presenta el proceso multiplicativo de las dos reglas para cálculos de William Oughtred (1574-1660), publicado en 1639 en The Declaration of The Two Rulers for Calculations, una adición al tratado The Circles of Proportion and the Horizontall Instrvment. Para ello, utilizamos un enfoque metodológico de investigación documental, buscando en fuentes primarias y secundarias. De esta forma, podemos darnos cuenta de que la operación de multiplicación realizada por el aparato puede desarrollar en el profesor en formación inicial y continuada conceptos relacionados con la proporcionalidad, orden y clase del sistema decimal y propiedad de los logaritmos, aportando un sentido práctico a una matemática escolar ya históricamente sedimentada.

Palabras clave: Operación de Multiplicación, Dos Reglas de Cálculo, Historia de las Matemáticas, Recurso Didáctico.

Carátula del artículo

Artigos

Diálogo sobre os conhecimentos aritméticos contidos na manipulação das duas réguas para cálculo de William Oughtred

Dialogue on the arithmetic knowledge contained in the manipulation of two slide rules by William Oughtred

Diálogo sobre el conocimiento aritmético contenido en la manipulación de dos reglas de cálculo por William Oughtred

Amanda Cardoso Benicio de Lima
Universidade Estadual do Ceará Fortaleza, Brasil
Kawoana da Costa Soares
Universidade Estadual do Ceará Fortaleza, Brasil
Ana Carolina Costa Pereira
Universidade Estadual do Ceará Fortaleza, Brasil
Educação Matemática Debate, vol. 7, núm. 13, pp. 1-18, 2023
Universidade Estadual de Montes Claros

Recepção: 25 Janeiro 2023

Aprovação: 10 Maio 2023

Publicado: 09 Setembro 2023

1 Introdução

Estudos envolvendo recursos didáticos advindos da História da Matemática, utilizando no seu escopo fontes primárias, ou seja, tratados antigos, ainda estão em desenvolvimento no Brasil. Em particular, pesquisas utilizando instrumentos matemáticos como objeto didático (Albuquerque et al., 2018; Pereira, 2022) para o uso em sala de aula adentram nessa categoria possibilitando a experimentação prática, desenvolvendo habilidades e ressignificando conceitos contidos na matemática escolar já consolidados historicamente.

O uso de instrumentos históricos no ensino de matemática, tanto direcionado à sua construção (reconstituição histórica) quanto ao seu manuseio, articula história e ensino a partir da eventualidade histórica ocasionada por documentos originais. Saito (2014, p. 28) destaca que

a interface, nesses termos, é construída pautando-se em aspectos essenciais do fazer matemático de uma época, evitando-se adotar uma perspectiva normativa (ou filosófica) estranha ao contexto desse mesmo fazer matemático. Desse modo, a interface propicia ao discente o acesso à matemática do passado tal como ela era vista no passado, e não como ela deveria ser vista segundo uma perspectiva filosófica (ou epistemológica) ou didática pré-concebida.

Nesse sentido, o estudo de instrumentos matemáticos possibilita ao discente visitar o passado com os conhecimentos deste mesmo passado, movimentando o pensamento sem a atuação do anacronismo histórico. Nesse trabalho, iremos apresentar a inserção de um instrumento matemático, resultante do estudo da História da Matemática, na Educação básica, de maneira a proporcionar o vínculo de vários conteúdos matemáticos que, na maioria das vezes, são explanados de forma distinta, sem significação para o estudante.

Nesta mesma direção, Alves e Batista (2016), ainda num estudo inicial, destacam três formas de inserção do instrumento matemático em sala de aula. Duas delas convergem para nosso estudo: (1) utilizar reconstituições de instrumentos matemáticos já confeccionado, trabalhando sua manipulação e (2) fazer a reconstituição dos instrumentos matemáticos em conjunto com os discentes a partir de excertos de textos históricos, já com seu devido tratamento didático.

Dentre os aparatos destinados ao ensino de Aritmética, podemos encontrar as réguas de cálculo, muito utilizadas a partir do século XVII para facilitar operações matemáticas no comércio, na agrimensura, na navegação, na astronomia, entre outros. Nesse artigo, destacaremos a primeira forma de inserção do instrumento matemático, visto que nosso objetivo é apresentar o processo multiplicativo envolvendo as duas réguas para cálculo de William Oughtred (1574-1660), publicada em 1639 na The Declaration of The Two Rulers for Calculations, uma adição ao tratado The Circles of Proportion and the Horizontall Instrvment.

2 As duas réguas para cálculo de William Oughtred

Dentre a diversidade de instrumentos matemáticos construídos entre os séculos XVI e XVII, as duas réguas para cálculo de William Oughtred (1574-1660) se caracterizam por serem aparatos de origem inglesa, cuja funcionalidade está atrelada à resolução de questões aritméticas, geométricas e trigonométricas. Essas réguas apresentam tamanhos diferentes, sendo a mais longa denominada Staffee a mais curta denominada Transversarie,tendo um comprimento de quase três para dois.

A respeito de seu formato, Lima, Soares e Alves (2021) enunciam que as réguas têm apenas quatro quadrados, com ângulos retos e iguais em tamanho, apresentando em sua extensão as indicações com as letras S, T, E e N, que correspondem, respectivamente, à escala dos senos, tangentes, partes iguais e números. O Quadro 1 apresenta a descrição específica de cada uma das escalas que compõem as réguas.

Quadro 1
Escalas das réguas Staffe e Transversarie

Elaboração Própria (2023)

Na descrição das escalas, podemos observar que é mencionado o termo “linha do raio”, que, durante a formulação desse estudo, supomos se referir a metade das réguas retratadas. Outro fato importante de ser relatado refere-se às escalas dos senos, tangentes e números presentes na régua Staffe que são as mesmas presentes na régua Tranversarie. Entretanto, como a Staffe apresenta um comprimento mais alongado, as graduações são continuadas para além da linha do raio.

As informações acerca da descrição, manuseio e utilização das réguas Staffe . Transversarie se encontram no documento The Declaration of The Two Rulers for Calculations, uma declaração que está contida em uma adição ao tratado The Circles of Proportion and the Horizontall Instrvment (Figura 1), publicado em 1639, escrita pelo clérigo inglês e praticante das matemáticas William Oughtred, traduzida para o inglês por William Forster, um de seus alunos[1].


Figura 1
Frontispício do tratado The Circles of Proportion and the Horizontall Instrvment 1639 (à esquerda) e da adição ao tratado (à direita)
(Oughtred, 1639, frontispício).

A declaração das duas réguas para cálculo apresenta uma extensão de 12 páginas, tendo como principal objetivo explicar ao leitor o que é o instrumento e sua funcionalidade por meio do manuseio das réguas separadamente e de forma cruzada. Por estar inserida em uma adição ao tratado The Circles of Proportion and the Horizontall Instrvment,Oughtred (1639), destaca que as funcionalidades das réguas Staffe. Transversarie assemelham-se às de sua régua de cálculo circular, chamada de Círculos de Proporção.

Assim, tem-se nas duas réguas as mesmas linhas que estão em Círculos de Proporção e tudo o que pode ser feito por esses círculos também pode ser executado pelas duas réguas; e as regras, que foram anteriormente definidas para esse instrumento, podem também ser praticadas sobre eles, de modo que se tenha o cuidado de observar as diferentes propriedades no trabalho. Portanto, não será necessário fazer qualquer discurso novo e longo sobre essas réguas, mas apenas mostrar a maneira como elas devem ser usadas para o cálculo de qualquer proporção dada (Oughtred, 1639, p. 65, tradução nossa).

A fala de Oughtred (1639) deixa claro que, pelo fato de as duas réguas apresentarem as mesmas escalas do instrumento Círculos de Proporção, as regras definidas e aplicadas para a utilização desse instrumento também podem ser aplicadas para a utilização das réguas, desde que ainda seja considerada a diferenciabilidade dos instrumentos e suas propriedades de trabalho.

Embora a declaração apresente diferentes exemplos a respeito do uso das escalas contidas nas réguas, em nenhum momento Oughtred (1639) deixa claro ao leitor o processo de construção delas. Portanto, para a realização desse estudo, buscamos referências secundárias que indicaram informações a respeito da construção de algumas escalas, dentre elas enfocamos nesse artigo a escala logarítmica dos números.


Figura 2
Carta de William Oughtred a Elias Allen em 1638
(Cambridge, 2021, carta)

Em 1638, um ano antes de sua publicação como anexo ao tratado The Circles of Proportion and the Horizontall Instrvment, William Oughtred envia uma carta (Figura 2) para o fabricante de instrumentos matemáticos Elias Allen (1588-1653), na qual relata algumas “instruções e orientações a respeito da construção das duas réguas para cálculo” (Lima, Soares e Alves, 2021, p. 31).

A carta encontra-se disponível na coleção Macclesfield da Biblioteca da Universidade de Cambridge, e junto com ela também foi encontrada uma impressão reversa da régua Transversarie (Figura 3), que apresenta todas as escalas contidas nessa régua.


Figura 3
Impressão reversa da régua Transversarie
(CAMBRIDGE, 2021, carta)

Dentre as informações contidas nela, destacamos a descrita no item 3 que diz “as linhas de Números, Senos e Tangentes devem ser definidas no Tranversarie, da mesma maneira que são definidas no Staffe e no Crosse-Staffe do Sr. Gunter” (Lima, Soares e Alves, 2021, p. 35). Se observarmos essa citação, notaremos que o autor faz uma correspondência entre as réguas e o instrumento Crosse-Staffe.

O instrumento Crosse-Staffe de Edmund Gunter é descrito no tratado The description and vse of the Sector, the Crosse-Staffe, and other instruments, for such as are studious of Mathematicall practice (1623), e é caracterizado por suas escalas serem construídas com base nos logaritmos estudados por John Napier (1550-1617) e Henry Briggs (1561-1630). Nesse artigo, nos deteremos em apresentar a operação de multiplicação utilizando a escala dos números das duas réguas para cálculo, portanto explicaremos a seguir, de maneira sucinta, a construção da escala dos números que será utilizada na resolução dos problemas abordados.

3 Uma breve discussão a respeito da escala logarítmica dos números e sua construção

Apesar do processo de construção da escala de William Oughtred ser semelhante ao da escala de Edmund Gunter devido ao tamanho adotado por Oughtred (1639), existem alguns passos específicos que foram adotados para a construção das duas réguas para cálculo. A respeito, Santos (2022, p. 61) destaca que

o autor não dá mais evidências de como fazer as marcações da escala, então, aqui, é apresentada uma ideia matemática incorporada na construção da escala, considerando cada logaritmo das tabelas de Briggs. Entretanto, o autor pode tê-la construído partindo de outro pensamento, talvez considerando os logaritmos primos e encontrando os demais pela propriedade de multiplicação.

Antes de explicitar os passos para a construção da escala dos números das duas réguas para cálculo, queremos ressaltar que a escala apresentada aqui foi construída utilizando o software digital GeoGebra, para, assim, obter uma precisão nas marcações. Entretanto, os passos expostos podem ser reproduzidos utilizando régua, compasso e uma folha de papel A4, o que contribui para o ensino do desenho geométrico, uma disciplina que experimentou um descaso no âmbito educacional brasileiro (Altoé, Romão e Jesus, 2016, p. 14).

(1) Primeiramente, escolhemos o tamanho da régua Transversarie, para a qual adotamos o mesmo tamanho de uma régua convencional atual, 30 centímetros. Com isso, por meio do comando “círculo centro & raio” no GeoGebra, traçamos o diâmetro que terá o tamanho escolhido para a régua Transversarie. Em seguida, dividimos por dois o tamanho do diâmetro adotado e, com o comando “segmento com o comprimento fixo”, faremos a marcação desse resultado, 15 centímetros (Figura 4).


Figura 4
Segundo passo da construção da escala dos números
(Elaboração Própria, 2023)

(2) Dessa forma, graduamos, no primeiro momento, uma das metades da escala, também usando o comando “segmento com o comprimento fixo” no GeoGebra. Após, aplicamos o mesmo processo na outra metade. O passo consiste em multiplicamos o valor correspondente à metade da escada, ou seja, 15 centímetros, pelos logaritmos inseridos na tabela de Henry Briggs (Figura 5) e, em seguida, referindo-se ao ponto de início a metade da régua, fizemos a marcação correspondente a esse produto.


Figura 5
Tabela de logaritmos de Henry Briggs
(Briggs, 1617, p. 2)

Como os logaritmos de Henry Briggs apresentam 14 casas decimais (Figura 5), consideramos uma aproximação de apenas duas casas decimais[2], conforme apresentado no Quadro 2.

Quadro 2
Marcação da escala dos números

Elaboração Própria (2023)

Em vista disso, as distâncias entre os logaritmos terão parte inteira e decimal. Podemos observar, na Figura 6, a marcação do logaritmo de 2 na escala dos números. As duas primeiras marcações da Figura 6 correspondem aos logaritmos de 1 e de 2. Isto significa que a distância da marcação de 1 a 2 equivale ao produto do logaritmo de 2 por 15, ou seja, 4,5.


Figura 6
Terceiro passo da construção da escala dos números
(Elaboração Própria, 2023)

(3) Em seguida, repetindo o mesmo processo para a outra metade e realizando as marcações, percebemos que o número 1 na metade do lado esquerdo da régua Transversarie não fica evidente na escala. Isso se refere à condição dos números serem infinitos e à continuidade da escala dos números, que será evidenciada durante a resolução de problemas envolvendo-a.

(4) Feito isso, realizamos o mesmo processo para a construção da escala na régua Staffe. A seguir, apresentamos as escalas dos números das duas réguas que serão utilizadas para a resolução de problemas envolvendo a operação de multiplicação.


Figura 7
A escala dos números nas réguas Staffe e Transversarie
(Elaboração Própria, 2023)

Apesar das réguas apresentarem tamanhos diferentes, por meio de leituras e de cálculos realizados, observamos que a escala dos números, em específico, é utilizada com tamanhos iguais, para que sejam efetuados os cálculos de maneira correta. É válido destacar que foram escolhidas 10 marcações com números decimais para realizar a graduação da escala, isso ocorreu devido ao objetivo de o artigo não ser apresentar a construção da escala, mas explicar ao leitor como ocorre a operação de multiplicação utilizando as réguas. Sendo assim, não será possível obter o resultado preciso da multiplicação de muitos exemplos, entretanto, na impressão reversa da régua Transversarie (Figura 3) o leitor consegue encontrar a escala dos números precisamente graduada.

Dessa forma, a partir da compreensão da construção da escala dos números, a seguir, descreveremos o processo de multiplicação contido na declaração das duas réguas para cálculo.

4 A operação de multiplicação sob a visão de Oughtred (1639)

Como dito anteriormente, na Seção 2, as regras com respeito a operação de multiplicação aplicadas ao instrumento Círculos de Proporção são as mesmas utilizadas para a resolução de problemas envolvendo as réguas Staffe e Transversarie. Mediante essa perspectiva, levaremos em consideração os exemplos e indicações feitos por William Oughtred nas edições de 1633 e 1639 do tratado The Circles of Proportion and the Horizontall Instrvment. A seção que descreve o processo multiplicativo utilizando as duas réguas para cálculo é a de número cinco, na qual Oughtred (1633, p. 6, tradução nossa) relata que:

Na multiplicação, como uma unidade é para um dos fatores (de números a serem multiplicados) assim é o outro dos fatores, para o produto.

E o produto de dois números terá tantos lugares como os dois fatores, se o menor deles exceder tantos dos primeiros números do produto. Mas se não exceder, terá um a menos.

Para podermos compreender os termos da multiplicação enunciada, e como eles estão dispostos nas réguas, é importante destacar que, “na Multiplicação, o primeiro termo da proporção implícita é sempre 1” (Oughtred, 1639, p. 7). A respeito da explicação de se escolher o número 1 como primeiro termo explicaremos na próxima seção. Assim, o primeiro termo é o número 1, e os outros dois fatores adotados são os números 5 e 4. Dessa forma, Oughtred (1639) estabelece a relação de proporcionalidade quando relaciona a unidade com um dos fatores, logo 1 está para 5, e em seguida o segundo fator relacionado ao produto de 5 por 4, então 4 está para 20.

Além disso, Oughtred (1639) também estabelece a noção da quantidade de algarismos que o produto procurado deve ter, o que hoje conhecemos por sistema de numeração decimal. Nesse sentido, ele explica ao leitor que, ao realizar a multiplicação, o produto dos fatores poderá ter a quantidade de algarismos equivalentes à soma da quantidade de algarismos desses fatores se o menor deles não ultrapassar o valor correspondente aos primeiros números do produto. Sendo assim, o produto de 5 por 4 terá dois algarismos porque 4 é maior que 2, que é o primeiro algarismo do produto de 5 por 4. Porém, se 4 não fosse maior que o primeiro algarismo do produto, então o resultado da multiplicação teria apenas um algarismo.

A seguir, apresentaremos como essas regras de multiplicação são aplicadas nas duas réguas por meio de seu manuseio.

5 A Matemática presente no processo manipulativo envolvendo as duas réguas para cálculo

Após descrever as duas réguas e suas escalas, Oughtred (1639, p. 65, tradução nossa) inicia uma explicação a respeito do manuseio das réguas:

Trabalhando uma proporção pelas réguas, segure o Transversarie em sua mão esquerda, com a extremidade com o fim em que a linha do raio ou linha da unidade está para sua direção, girando esse lado da régua para a frente, em que está a linha do tipo do primeiro termo, seja ele número, seno ou tangente, e nele busque o primeiro termo e o outro que lhe é homogêneo. Em seguida, pegue o Staffe em sua mão direita com o lado para cima, em que está a linha do tipo do quarto termo procurado e procure nele o termo homogêneo para o quarto. Aplique isso ao primeiro termo no Transversarie e o outro termo homogêneo deverá mostrar no Staffe o quarto termo.

Para entendermos o processo de manipulação das réguas vamos analisar as partes desse trecho detalhadamente. Inicialmente, Oughtred (1639) expõe que será estabelecida uma relação de proporcionalidade entre as réguas, sendo assim, o leitor que está com o instrumento em mãos deve segurar a régua Transversarie na sua mão esquerda e a régua Staffe na direita. Em seguida, deve procurar na Transversarieo primeiro termo da multiplicação e o outro que Oughtred chama de “homogêneo”, isto é, que possui a mesma grandeza. Então, se queremos multiplicar 5 por 4, e considerando a informação dita na sessão anterior de que o primeiro termo da proporção implícita é sempre 1 na operação de multiplicação, então procuraremos na Transversarieos números 1 e 5 (Figura 8).


Figura 8
Os números 1 e 5 na régua Transversarie
(Elaboração Própria, 2023)

Após isso, o leitor deve procurar no Staffe o outro termo que vai ser multiplicado; no caso, o número 4; e assim aplicar uma régua na outra (Figura 9).


Figura 9
O número 4 na régua Staffe
(Elaboração Própria, 2023)

Embora não esteja explícito nas palavras de Oughtred (1639) o uso das réguas através do deslizamento, pelo protótipo construído e pelas orientações dele, concluímos que essa aplicação se dá na forma do emparelhamento das réguas e o produto da multiplicação é obtido por meio do deslizamento delas. Desse modo, quando aplicarmos uma régua na outra o número 1 na Transversarieestará alinhado ao número 4 no Staffe, e o número 5 na Transversarie estará alinhado ao produto esperado (Figura 10).


Figura 10
Emparelhamento das réguas
(Elaboração Própria, 2023)

Observamos que, na Figura 10, o número 5 está alinhado ao número 2, porém o número 2 não está indicado em unidades, mas sim em dezenas. Isso acontece porque as réguas estão divididas em duas metades, como mostra a Figura 11. A metade da direita parte do número 1 e vai até o número 9, enquanto a metade da esquerda não contém o número 1, porém apresenta sua extensão até o número 9, sinalizando a ideia de continuidade da escala dos números. Essa ideia de continuidade é atribuída quando ocorre a obtenção do produto da multiplicação.


Figura 11
As duas metades das réguas Staffe e Transversarie
(Elaboração Própria, 2023)

No exemplo abordado, consideramos a metade da direita da régua Transversarie como sendo as unidades de 1 a 9, e escolhemos o número 1 e o número 5 nessa régua para realizarmos a multiplicação. Já na régua Staffe, adotaremos a metade da esquerda como sendo referente às unidades e a metade da direita como a de dezenas, visto que, depois do número 9 das unidades, o número 1 corresponde ao número 10 das dezenas, o número 2 corresponde a 20 das dezenas e assim por diante. Sendo assim, na régua Staffe escolhemos o número 4 na metade da esquerda e, ao emparelharmos e deslizarmos as réguas uma na outra, o número 5 na Tranversarie estará alinhado ao produto da multiplicação. Para o leitor reconhecer o resultado, basta realizar a contagem, da esquerda para a direita na régua Staffe, até chegar ao número indicado como sendo o produto. Logo, o leitor contará as graduações 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10 e irá parar no número 20, sendo este o resultado da multiplicação (Figura 12).


Figura 12
Resultado da multiplicação
(Elaboração Própria, 2023)

É importante destacar que o processo de construção da escala dos números está intrinsecamente ligado à efetuação dos cálculos para se realizar a operação de multiplicação, isso porque o número 1 escolhido para ser o primeiro termo corresponde ao Log(1) que é igual a 0. Sendo assim, seu valor não influenciará no produto da multiplicação. Além disso, pela propriedade dos logaritmos, o logaritmo de um produto pode ser calculado por: Log (x . y) = Log(x) + Log(y).

Sob esse viés, realizando a multiplicação de 5 por 4, é encontrado o produto como sendo igual a 20, dessa forma Log (20) = Log (5 .4) = Log(5) + Log(4). Para comprovar a veracidade dessa informação, observamos, no recorte da tabela de Henry Briggs (Figura 5), os valores que correspondem aos logaritmos de 5 e 4, que, ao serem somados, correspondem ao valor do

Desse modo, Log (5 .4) = Log(20) = Log(5) + Log(4) = 0,69897000433602 + 0,60205999132796 ⇒ Log (20) = 1,30102999566398.

Dessa forma, é perceptível a presença de vários conceitos da matemática na operação de multiplicação utilizando as duas réguas para cálculo. Então, após relatar o manuseio da régua na sua declaração, Oughtred (1639, p. 65, tradução nossa) enuncia o primeiro exemplo:

Como se você fosse multiplicar 355 por 48; Diga: 1 . 355 :: 48 . 17040.

Pois, se na linha de números no Staffe você conta 355, e aplicar o mesmo a 1 na linha de números no Transversarie; então 48 no Transversarie, mostrando 17040 no Staffe.

Nesse exemplo, Oughtred (1639) declara o cálculo da operação de multiplicação de 355 por 48, então mostramos como encontrar, a seguir, o produto utilizando o emparelhamento e deslizamento das réguas. Primeiramente, segurando a régua Transversarie com a mão esquerda encontramos nela os números 1 e 48, considerando a metade direita da régua referente às unidades e a metade esquerda referente às dezenas. Não é possível afirmar precisamente a graduação do número 48, então consideramos uma aproximação para indicar esse valor.


Figura 13
Os números 1 e 48 na régua Transversarie
(Elaboração Própria, 2023)

Agora, na régua Staffe, consideramos a metade da direita referente às centenas e a da esquerda referente às unidades de milhar, sendo assim encontramos o número 355 por aproximação na régua Staffe.


Figura 14
O número 355 na régua Staffe
(Elaboração Própria, 2023)

Dessa forma, aplicando o emparelhamento das réguas e o deslizamento entre elas, o número 1 estará alinhado ao número 355 e o número 48 estará alinhado ao produto da multiplicação. Para reconhecer o resultado obtido, o leitor deve realizar a contagem na régua Staffe partindo do fator que está sendo multiplicado até chegar na marcação do produto obtido, ou seja, o número 355 até um número que está entre 10.000 e 20.000.


Figura 15
Emparelhamento das réguas
(Elaboração Própria, 2023)

Como a marcação da graduação escolhida não oferece uma precisão maior ao leitor, não é possível afirmar a posição precisa do número obtido. Entretanto, como utilizamos um exemplo respondido pelo autor da declaração, temos que o produto de 355 por 48 vale 17.040. Porém, se utilizada a graduação precisa da impressão reversa (Figura 3), o leitor perceberá que o resultado obtido será exatamente 17.040.

6 Possibilidades didáticas do manuseio das duas réguas para cálculo de William Oughtred

Na Educação Básica, as operações aritméticas são consideradas elementos essenciais no desenvolvimento cognitivo matemático dos alunos. Isso recai na confecção de diversos artefatos que possibilitem uma aprendizagem mais significativa e compreensiva, fazendo com que o processo de passagem do concreto para o abstrato se torne mais tranquilo. A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) ressalta que

Além dos diferentes recursos didáticos e materiais, como malhas quadriculadas, ábacos, jogos, calculadoras, planilhas eletrônicas e softwares de geometria dinâmica, é importante incluir a história da Matemática como recurso que pode despertar interesse e representar um contexto significativo para aprender e ensinar Matemática. (BRASIL, 2017, p. 298)

Nesse sentido, as “duas réguas” de Oughtred possibilitam essa inclusão da História da Matemática na Educação Básica, despertando, além da curiosidade, a construção de saberes que historicamente foram construídos pela humanidade. Além disso, possibilitam estudar múltiplos conceitos matemáticos que atualmente são vistos separadamente.

Nessa pesquisa, dentre as operações estudadas no Ensino Fundamental e Médio, observamos que a multiplicação é um objeto de conhecimento da unidade temática Números, proposta na BNCC, inicialmente apresentada no 2. ano do Ensino Fundamental. Segundo Brasil (2017, p. 283), ela está vinculada com problemas envolvendo adição de parcelas iguais, tendo como habilidade “resolver e elaborar problemas de multiplicação (por 2, 3, 4 e 5) com a ideia de adição de parcelas iguais por meio de estratégias e formas de registro pessoais, utilizando ou não suporte de imagens e/ou material manipulável”.

A proposta é a manipulação das réguas para a multiplicação de outros conhecimentos não incorporados, tais como a proporcionalidade e o sistema de numeração decimal, em específico sua ordem e classe, além da propriedade do logaritmo de um produto. Assim, agregando diferentes conceitos que podem ser estudados ao longo do Ensino Fundamental, anos iniciais e finais, e no Ensino Médio, conforme podemos observar no Quadro 3.

Quadro 3
Conceitos do Ensino Fundamental e Ensino Médio segundo a BNC

Elaboração Própria a partir da BNCC (Brasil, 2017, 2018)

Dessa forma, a escala dos números das réguas Staffe e Transversarie pode servir como material manipulativo em toda a Educação Básica, a fim de estabelecer desde as primeiras ideias que permeiam a operação de multiplicação, como adição de parcelas, até o estudo das propriedades dos logaritmos no Ensino Médio.

7 Considerações finais

O artigo apresenta a inserção de um instrumento advindo da História da Matemática na Educação Básica, ou seja, as duas réguas para cálculo, de forma a possibilitar o entrelaçamento de vários conteúdos matemáticos que muitas vezes são estudados separadamente, sem significado real para o aluno.

Como visto, esses conteúdos matemáticos não apenas emergem do manuseio e utilização das réguas, mas também de sua construção, o que dá ao professor de matemática recursos para se utilizar das “duas réguas” como material manipulativo em suas aulas. Além disso, o instrumento matemático pode ser utilizado para ressignificar o conceito da operação de multiplicação visto em sala de aula já que, por meio das instruções dadas nos documentos The Declaration of The Two Rulers for Calculations (1639), e The Circles of Proportion and the Horizontall Instrvment (1639), William Oughtred a define com base na proporcionalidade e não em adição de parcela iguais.

Dessa forma, a multiplicação é apenas uma das operações que pode ser efetuada com a escala dos números das réguas Staffe e Transversarie. Ainda é preciso um aprofundamento das outras escalas, buscando elementos que possam integralizar e mesclar conteúdos, ressignificando a matemática. Também ressaltamos que é interessante uma aplicação do manuseio com as “duas réguas” na Educação Básica para verificar as possíveis potencialidade didática, tanto da imersão na História da Matemática como para os conceitos matemáticos relacionados ao instrumento.

Material suplementar
Referências
ALBUQUERQUE, Suziê Maria; OLIVEIRA, Francisco Wagner Soares; MARTINS, Eugeniano Brito; PEREIRA, Ana Carolina Costa. Pesquisas envolvendo instrumentos históricos matemáticos e a interface entre história e ensino: uma visão dos trabalhos desenvolvidos no GPEHM. Boletim Online de Educação Matemática, Florianópolis, v. 6, n. 12, p. 128-144, 2018.
ALTOÉ, Renan Oliveira; ROMÃO, Gabriel Nazarh Aprahamian de Oliveira; JESUS, Thamires Belo de. Contribuições de uma oficina na formação de professores: discussão sobre a importância do desenho geométrico nas aulas de Geometria. Debates em Educação Científica e Tecnológica, Vila Velha, v. 6, n 3, p. 13-26, 2016.
ALVES, Verusca Batista; BATISTA, Antonia Naiara de Sousa. Uma breve discussão teórica acerca do uso de instrumentos matemáticos históricos no ensino da Matemática. Boletim Cearense de Educação e História da Matemática, Fortaleza, v. 3, n. 8, p. 48-59, 2016.
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Notas
Notas
[1] Para informações detalhadas a respeito da descrição das réguas Staffe e Transversarie vide Lima, Soares e Alves (2021) e Lima, Soares e Pereira (2022).
[2] Para mais informações a respeito da construção da escala dos números das réguas para cálculo de William Oughtred com base nos logaritmos de Napier e Briggs vide Lima, Soares e Pereira (2022).
Quadro 1
Escalas das réguas Staffe e Transversarie

Elaboração Própria (2023)

Figura 1
Frontispício do tratado The Circles of Proportion and the Horizontall Instrvment 1639 (à esquerda) e da adição ao tratado (à direita)
(Oughtred, 1639, frontispício).

Figura 2
Carta de William Oughtred a Elias Allen em 1638
(Cambridge, 2021, carta)

Figura 3
Impressão reversa da régua Transversarie
(CAMBRIDGE, 2021, carta)

Figura 4
Segundo passo da construção da escala dos números
(Elaboração Própria, 2023)

Figura 5
Tabela de logaritmos de Henry Briggs
(Briggs, 1617, p. 2)
Quadro 2
Marcação da escala dos números

Elaboração Própria (2023)

Figura 6
Terceiro passo da construção da escala dos números
(Elaboração Própria, 2023)

Figura 7
A escala dos números nas réguas Staffe e Transversarie
(Elaboração Própria, 2023)

Figura 8
Os números 1 e 5 na régua Transversarie
(Elaboração Própria, 2023)

Figura 9
O número 4 na régua Staffe
(Elaboração Própria, 2023)

Figura 10
Emparelhamento das réguas
(Elaboração Própria, 2023)

Figura 11
As duas metades das réguas Staffe e Transversarie
(Elaboração Própria, 2023)

Figura 12
Resultado da multiplicação
(Elaboração Própria, 2023)

Figura 13
Os números 1 e 48 na régua Transversarie
(Elaboração Própria, 2023)

Figura 14
O número 355 na régua Staffe
(Elaboração Própria, 2023)

Figura 15
Emparelhamento das réguas
(Elaboração Própria, 2023)
Quadro 3
Conceitos do Ensino Fundamental e Ensino Médio segundo a BNC

Elaboração Própria a partir da BNCC (Brasil, 2017, 2018)
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