Dossiê — Tecnologias Digitais em Matemática na Educação Infantil e Anos Iniciais
Por trás das telas: conectando experiências e tecnologia, na pandemia, sobre ensinar Matemática nos Anos Iniciais
Behind the screens: connecting experiences and technology, in the pandemic, about teaching Mathematics in the Elementary School
Detrás de las pantallas: conectando experiencias y tecnología, en la pandemia, sobre la enseñanza de Matemáticas en los Primeros Años
Por trás das telas: conectando experiências e tecnologia, na pandemia, sobre ensinar Matemática nos Anos Iniciais
Educação Matemática Debate, vol. 7, núm. 13, pp. 1-25, 2023
Universidade Estadual de Montes Claros
Recepção: 30 Março 2023
Aprovação: 30 Junho 2023
Publicado: 02 Julho 2023
Resumo: Este trabalho objetiva compreender o lugar que o conhecimento, produzido pela experiência, ocupa no ensino de Matemática nos Anos Iniciais, a partir da pandemia da Covid-19. Toma por referência as abordagens que tratam sobre os impactos pandêmicos para ensinar Matemática nessa etapa escolar, à luz dos saberes da experiência e do uso de diferentes recursos tecnológicos. Tem por base a abordagem teórico-metodológica da narrativa presente nas interlocuções com as professoras participantes. O estudo evidenciou, dentre outros elementos, que abordagens como debates, desenhos, brincadeiras e manipulação de objetos manipuláveis foram preponderantes para a aprendizagem matemática em contexto remoto. Indicou, ainda, que a apropriação dos recursos tecnológicos pelas professoras, sobretudo os digitais, sinalizando um processo de letramento digital, ocorreu individualmente, em caráter de autoformação, tendo predominância suas experiências em sala de aula.
Palavras-chave: Saberes da Experiência, Ensino de Matemática, Pandemia, Tecnologia.
Abstract: This work aims to understand the place that knowledge, produced by experience, occupies in the teaching of Mathematics in the Elementary School, from the Covid-19 pandemic. It takes as a reference the approaches that deal with the pandemic impacts to teach Mathematics in this school stage, in the light of the knowledge of experience and the use of different technological resources. It is based on the theoretical-methodological approach of the narrative present in the dialogues with the participating teachers. The study showed, among other elements, that approaches such as debates, drawings, games and manipulation of manipulable objects were predominant for learning mathematics in a remote context. It also indicated that the appropriation of technological resources by the teachers, especially the digital ones, highlighting a process of digital literacy, occurred individually, as a form of self-training, with their experiences in the classroom predominating.
Keywords: Experience Knowledge, Mathematics Teaching, Pandemic, Technology.
Resumen: Este trabajo tiene como objetivo comprender el lugar que el conocimiento, producido por la experiencia, ocupa en la enseñanza de las Matemáticas en los Primeros Años, a partir de la pandemia de la Covid-19. Toma como referencia los enfoques que abordan los impactos de la pandemia para la enseñanza de las Matemáticas en esta etapa escolar, a la luz de los saberes de la experiencia y el uso de diferentes recursos tecnológicos. Se fundamenta en el abordaje teórico-metodológico de la narrativa presente en los diálogos con las docentes participantes. El estudio mostró, entre otros elementos, que enfoques como debates, dibujos, juegos y manipulación de objetos manipulables eran predominantes para el aprendizaje de las matemáticas en un contexto remoto. También indicó que la apropiación de los recursos tecnológicos por parte de las docentes, en especial los digitales, señalando un proceso de alfabetización digital, se dio de manera individual, como una forma de autoformación, predominando sus experiencias en el aula.
Palabras clave: Experiencia Conocimiento, Enseñanza de las Matemáticas, Pandemia, Tecnología.
1 Introdução[1]
Ensinar Matemática nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental é uma tarefa de extrema relevância e se reveste de muitos desafios para todos os professores desse segmento, já que é nessa fase que as crianças começam a desenvolver habilidades matemáticas básicas, como: contar; reconhecer formas; entender conceitos numéricos e lidar de maneira mais estruturada com a resolução de problemas. Essas competências podem ser constituídas de significados e sentidos a partir das estratégias implementadas pelos professores no decorrer das atividades propostas, buscando viabilizar a formulação de conceitos e suas aplicações. Utilizar materiais estruturados, objetos manipuláveis, atividades lúdicas, quadros, lousas interativas, atividades de registro, recursos tecnológicos, dentre outros, colaboram com a estruturação do pensamento e com as variadas formas de se aprender Matemática.
É igualmente importante não perder de vista que uma das funções a ser desenvolvida pelos professores junto aos estudantes consiste na formação para a vida cotidiana e “para o mundo que terão que viver” (SANTALÓ, 1996, p. 17). Isso significa dizer que, além de estar imersa na ampla realidade social, a escola é diretamente afetada pela velocidade com que o conhecimento e as informações se instauram na sociedade.
Dessa forma, há cada vez mais a necessidade de se enxergar os desafios postos ao professor no que se refere a uma educação escolar que ultrapasse discussões sobre o que ensinar (currículo e conteúdos), sobre o como ensinar (metodologias e recursos), que considere a concepção da disciplina como elemento fundamental para a compreensão do conhecimento desenvolvido na escola e sua aplicabilidade na realidade cotidiana do estudante, possibilitando-lhe uma leitura do mundo em que está inserido e no qual ele opera. Assim, uma grande aliada do ensino da Matemática é a contextualização desta na vida prática dos estudantes. Além de permitir compreender novos significados ao que se ensina/aprende, a contextualização estabelece uma interlocução com outras áreas de conhecimento (PESSOA, 2016; THIESEN, 2013; SALGADO, 2017).
Frente a esses desafios ora postos, afora tantos outros que emergem nesse cenário, os professores que ensinam Matemática ainda lidam com as diferentes habilidades e estilos de aprendizagem dos estudantes, o que implica em outros desdobramentos de cunho pedagógico que estão intimamente relacionados à forma de conceber a Matemática, os seus conceitos, suas possibilidades e seus saberes. Resulta numa discussão sempre premente sobre a constituição desse professor, em formação inicial e continuada, dadas as características do segmento, das demandas e de como se deu essa escolha para a docência. Nesse sentido, Nacarato (2017) sinaliza:
Há que considerar que os professores que ensinam Matemática nos Anos Iniciais, na sua grande maioria, provêm de cursos de formação que deixam sérias lacunas conceituais para o ensino de Matemática. Muitas vezes anseiam por programas de formação continuada que lhes deem subsídios para suprir essas lacunas e formadores que se coloquem à sua escuta, com propostas que partam de suas necessidades, num diálogo reflexivo com a teoria, e não apenas oferta de modelos prontos de aula (p. 120).
A realidade à qual a autora nos remete também evidencia um outro aspecto que diz respeito à formação: o de saber expressar-se matematicamente. Gomes e Rodrigues (2014) enfatizam ser esse um dos canais possíveis para transformar a compreensão dos problemas da realidade em problemas matemáticos e resolvê-los por meio da interpretação de suas soluções, na linguagem do mundo em que vivemos. Esse contexto, por si só, já aponta inúmeras possibilidades de investigação sobre a docência e o ensino de Matemática nos Anos Iniciais, uma vez que é um ambiente rico de análises e produções.
Entretanto, afora essas possibilidades, a docência — assim como outros setores — deparou-se, em março de 2020, aqui no Brasil, com a pandemia da Covid-19, que nos assolou de diferentes formas, em variados contextos, impactando, sobretudo, a educação em todo o mundo. Com o intuito de reduzir a propagação do vírus e manter as crianças e suas famílias seguras, houve o fechamento de escolas, que, por outro lado, afetou a educação de milhões de estudantes, segundo pesquisas de Couto, Couto e Cruz (2020); Gestrado (2020); Unesco (2020); Santos e Sant’Anna (2020), dentre outras.
Diante dessa nova realidade, muitas instituições de ensino, em nosso país, implementaram o ensino emergencial on-line[2], para garantir que os estudantes continuassem vinculados à escola, tendo aula em casa. Isso incluiu recursos digitais, como: aulas on-line; atividades e trabalhos enviados por e-mail; uso de aplicativos; redes sociais; plataformas de ensino. Mas também houve a manutenção do envio de materiais impressos; uso de livros; dentre outros recursos.
Se havia a busca pela estruturação e funcionamento de um modelo de ensino em formato remoto, este, infelizmente, não alcançou a todos os estudantes matriculados nas redes de ensino, acentuando a desigualdade educacional. Igualmente, outra desigualdade veio à tona: as dificuldades estruturais no retorno presencial às aulas. À medida que a pandemia se prolongou, algumas escolas adaptaram suas instalações para permitir o retorno seguro dos discentes. Isso incluiu o uso de equipamentos de proteção, distanciamento social e higienização rigorosa. Essas medidas também evidenciaram outras impossibilidades individuais: a de nem sempre dispor das condições básicas para lavar as mãos; para comprar máscara ou álcool gel; sinônimo da lentidão de políticas governamentais de garantias à saúde e à vida, como bem registra Santos e Sant’Anna (2020).
Nesse quadro pandêmico, para além de todos os aspectos concernentes a salvaguardar a vida, pais e responsáveis tiveram que assumir um papel mais ativo no ensino de seus filhos, adicionando pressão e responsabilidade para muitas famílias. Ainda que um vasto investimento e acompanhamento tenha ocorrido, a pandemia resultou em atraso no aprendizado para muitos estudntes, com interrupções significativas em seus estudos. Esse período destacou a necessidade de novas soluções educacionais capazes de permitir que os discentes sigam com a escolarização ainda que em situações de crise. Isso inclui tecnologia educacional, programas de ensino híbrido e outras soluções inovadoras.
A partir dessas demandas que emergiram das vivências do chão da escola, cabe questionar sobre as atribuições do professor no exercício da sua função. Mais especificamente, como ensinar Matemática em contexto tão adverso, para estudantes tão pequenos? Quais recursos (tecnológicos ou não) para lecionar? Quais metodologias? O que fazer diante desse cenário? Este trabalho nasce desses e de outros questionamentos, que tensionam a relação entre uso da tecnologia, experiência e ensino de Matemática. Sendo assim, o que pode ter sido mais preponderante no contexto pandêmico: ter o domínio tecnológico para ensinar ou ter a experiência da sala de aula?
2 Sobre a pesquisa e suas intencionalidades
A discussão sobre as necessidades e urgências apontadas no contexto pandêmico para a continuidade das atividades escolares focou em diversos temas e, dentre eles, podemos citar as questões específicas sobre o professor, a instrumentalização do uso dos recursos, a organização do trabalho pedagógico, bem como a adequação ou “transferência” de uma aula presencial para uma em ambiente virtual. Atualmente, entretanto, ainda há uma grande preocupação com o trato sobre o conhecimento, os diferentes saberes e as práticas docentes, levando a questionamentos como: o que e como ensinar? Como a prática construída durante a experiência docente aparece nesse contexto de ensino remoto? Quais informações e aportes essa prática fornece? A esse respeito, Freire (2016, p. 44) nos diz que “é pensando criticamente a prática de hoje ou de ontem que se pode melhorar a próxima prática”.
Em diálogo com os pontos aqui sinalizados, temos o ensino de Matemática nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental que, dentre as mais variadas questões, lida com a imagem da Matemática como uma disciplina complexa, que muitos estudantes possuem dificuldades para aprender. Assim, não podemos desconsiderar que, afora todos os desafios já existentes para ensiná-la no formato presencial, tantos outros obstáculos se apresentaram a esses professores, no modelo remoto.
É nesse contexto que buscamos compreender o lugar que o conhecimento produzido pela experiência ocupa no ensino de Matemática nos Anos Iniciais a partir da pandemia da Covid-19. A pesquisa de doutorado é de caráter qualitativo, com abordagem teórico-metodológica narrativa, apoiando-se nos saberes da experiência (JOSSO, 2010) para o ensino de Matemática nos Anos Iniciais (NACARATO, 2017; NACARATO, MENGALE e PASSOS, 2011; SMOLE e DINIZ, 2001) e sobre o uso de tecnologia no ensino de Matemática (BAIRRAL, 2019; BEHAR, 2020; FANTIN, 2017).
O instrumento de pesquisa foi a entrevista narrativa realizada com dez professoras que relataram sobre as suas vivências com Matemática enquanto estudantes; a relação com a docência e sobre ensinar Matemática em contexto de pandemia. Buscaremos tecer um diálogo sobre as questões inicialmente apresentadas pelas professoras, bem como trazer os subsídios iniciais sobre a relação que estas estabeleceram entre pandemia, tecnologia e Matemática em suas “salas de aula”, fora da escola, em modelo remoto.
As professoras participantes desta pesquisa são todas graduadas em Pedagogia. Dentre as dez entrevistadas, oito cursaram especialização e/ou mestrado na área de Educação ou afins e possuem experiência em sala de aula há, pelo menos, cinco anos. Pertencem a diferentes estados da federação, estão vinculadas à rede pública e/ou privada de ensino e lecionam exclusivamente em turmas do 1º ao 5º Ano do Ensino Fundamental. Foram selecionadas em função de critérios preestabelecidos para a pesquisa e, dentre eles, a faixa etária foi um diferenciador, uma vez que compõe as narrativas construídas a partir da relação das professoras com a tecnologia, segundo o conceito de Palfrey e Gasser (2011) sobre nativos digitais.
Há em comum, entre elas, o fato de terem vivenciado o ensino emergencial on-line a partir das buscas pessoais por apropriação da tecnologia, desenvolvimento de estratégias e de aportes não digitais para desenvolver as atividades pedagógicas e a realização das aulas com as suas devidas turmas. As entrevistas foram transcritas, lidas e separadas por temáticas recorrentes para que, a partir disso, construíssemos este artigo.
A experiência e a história de cada participante serão consideradas na produção de seus saberes profissionais. Na pesquisa, utilizamos como referencial para análise das narrativas a Tematização, a partir dos estudos de Fontoura (2011). À luz do que propõe a autora, as narrações das professoras podem ser entendidas como elementos que demandam uma interlocução entre os sentidos, percepções, experiências e vivências narradas e o embasamento teórico sobre o qual se estrutura a pesquisa.
O trabalho de investigação, a partir da tematização, é constituído por sete passos (ou etapas), conforme descrito a seguir: 1) transcrição de todo o material coletado; 2) leitura cuidadosa do conhecimento do material; 3) distinção do que é importante; 4) investigação temática; 5) definição das unidades contextuais; 6) esclarecimento do tratamento dos dados, separação da unidade contextual do corpus; 7) interpretação propriamente dita segundo referenciais teóricos.
3 Pandemia, escola e professores de Matemática
Em consonância com o que foi exposto inicialmente, o relatório Todos pela Educação (2021, p. 19) evidencia a magnitude do impacto que o fechamento das escolas causou à “vida de mais de 48 milhões de estudantes e 2 milhões de professores [...] para se organizarem para o ensino remoto ou não”. A partir de então, a urgência da adaptação ao ensino emergencial on-line, por parte dos professores, exigiu a busca por novas maneiras de ensinar, bem como de manter seus estudantes engajados e motivados durante as aulas (CORREA e BRANDEMBERG, 2021). Em paralelo a essa demanda, outros sentimentos — como insegurança, dúvidas e medo diante do que estava posto — também se apresentaram, como podemos identificar nas falas das professoras participantes desta pesquisa:
O novo: MEDO. Então o medo ele paralisa. Então a princípio foi essa questão do medo. Eu disse “não vou conseguir”. “Não vou conseguir” (Larissa Bezerra, PB).
No primeiro momento achei assim: Meu Deus! Só sinto terror e pânico (Kátia Vieira, RJ).
Nossa! Foi... Nossa! Terror. Terror, assim. Quando eu recebi essa notícia mesmo, a partir de agora é isso aí. É on-line. Amanhã eles estão... 13h, estão todos aqui prontinhos para ter aula. Foi bem punk. Não sei te descrever o que eu senti. Foi muito difícil. Por isso. Pelo momento que a gente estava vivendo, a primeira coisa que eu queria fazer era abraçar as crianças. E isso foi o maior sentimento de impossibilidade... “o maior não pode!”, porque não é, não foi só uma distância (Verônica, RJ).
Nessa realidade, os professores de Matemática, em particular os que lecionam do 1º ao 5º ano do Ensino Fundamental, enfrentaram desafios únicos durante a pandemia (UTIMURA e CURI, 2022). A Matemática é uma disciplina que, muitas vezes, exige uma abordagem mais prática e visual, análises sobre leitura e resolução de problemas (individual e em grupo), discussão em sala de aula, trabalho em equipe, uso de materiais manipuláveis, dentre outras abordagens.
No quadro pandêmico, muitos professores precisaram encontrar novos caminhos a partir da realidade educacional na qual estavam inseridos, para manter a interação durante o ensino remoto (SILVA et al., 2022), sobretudo em função da faixa etária e da brusca saída das atividades presenciais e cotidianas na escola. Eles estavam diante de um espaço fora desse contexto, completamente novo no sentido didático-pedagógico, estruturado num tempo-espaço a partir de linhas e conexões digitais. Essa realidade é também narrada pelas professoras, quando relatam que:
A gente teve que se adaptar ao novo e a uma nova proposta. Então as práticas elas foram reinventadas. Tudo novo nessa questão, como eu falei antes pra você, como eu entendi esse novo, esse conhecimento. Eu pensava: “como vou ensinar usando algo que eu não sei? Pra onde eu me viro, tudo é desconhecido dentro da realidade da tecnologia e da sala de aula... e se eu não souber usar, não der conta desse mundo remoto, eu não dou aula, não vou conseguir seguir com os meus alunos”... A gente usava no dia a dia para estudar, redigir trabalhos acadêmicos..., mas não como recurso pedagógico. Como vou interagir com os alunos, trazê-los para as atividades? Como se faz isso? (Larissa, PB).
[...] falando de primeiro ano, foi muito difícil. É uma faixa etária e é um ano em que a gente precisa mais ainda do contato físico, do olho no olho, do abraço, do apoio, de “você vai conseguir”, de segurar a mãozinha, sabe? Assim, desse concreto, concreto mesmo, né. Quando eu falo concreto é ele pegar ali na maçã, meia maçã, cortar o chocolatinho, sabe? Assim, trabalhar com tudo isso, sabe? Assim, essa parte do sensorial, do emocional. Isso é muito forte ainda na educação infantil e primeiro ano, que foi muito prejudicado. Muito (Verônica, RJ).
Larissa menciona que era usuária das tecnologias, mas de uma hora para outra teria que utilizá-las para ministrar aulas, ou seja, um aparato tecnológico empregado para uso pessoal transformou-se numa proposta educacional. Isso a desestruturou, como ela mesma menciona: “como vou ensinar usando algo que eu não sei?”. Assim como Verônica, que foi desafiada a utilizar a tecnologia, cercada de dúvidas sobre como manter o “olho no olho”, a interação com as crianças, ainda mais premente e necessária, numa turma do 1º ano em contexto de alfabetização.
É fato, entretanto, que esses questionamentos não se voltaram apenas para os professores que migraram do ensino presencial para o remoto, amplamente cercados de tecnologia. Segundo Stevanim (2020), as diferenças e a exclusão digital foram trazidas ainda mais à tona diante de tantas e inúmeras limitações enfrentadas por estudantes de realidades sociais mais precárias. Nesse sentido, o desafio didático para pensar outras possibilidades de incluir esses discentes também numa realidade aprendente, foi ainda mais desafiador. Essa foi a prática vivida por Tereza, professora da rede pública municipal, no interior de Pernambuco. A riqueza da sua narrativa nos acena para os inéditos viáveis[3], conforme nos ensina Freire (2016), atentando para todas as oportunidades ali presentes:
Então, quem não tivesse internet na hora poderia gravar um vídeo depois mostrando qual foi o raciocínio que utilizou e mandando para a turma. Poderia fazer por telefone. Por chamada de telefone. E falar, passar, tirar dúvida. Então, a participação vai contando (Tereza, PE).
Em muitos casos, como o de Tereza, que precisou disponibilizar diversos conteúdos e materiais em formato de gravação devido à impossibilidade de acessos às tecnologias digitais que conectavam uns aos outros numa “sala de aula virtual”, houve muitas perdas. Associado a uma ausência de gerenciamento do poder público quanto a uma logística funcional de distribuição de material e atividades escolares para esses estudantes sem nenhum acesso ao digital, ficou clara a falta de equidade educacional, como assinala Neri e Osório (2020, p. 1): “[...] 13,5% dos estudantes de 6 a 15 anos não receberam materiais dos gestores educacionais e professores. [...] Quanto mais pobre é o indivíduo, menor é a frequência na escola”, resultando no aumento da desigualdade social.
Os currículos também foram ajustados e, em larga escala, essas adaptações podem ter provocado outros impactos na aprendizagem dos estudantes (COSTA e MOREIRA, 2021). Por outro lado, foi uma oportunidade de vivenciar a flexibilização desse currículo, posto à luz das demandas emergenciais e, conforme questionam Basso, Fioratti e Costa (2020, p. 196), “a disciplina de Matemática é alvo de preocupações, pois o que e como se ensina pode ser feito de forma remota?”. A busca didático-metodológica para tal, em prol de abordagens e aplicabilidades ainda mais funcionais e práticas para o cotidiano dos estudantes, apresenta-se na narrativa de Isabela:
A gente teve que reorganizar tudo. A escola que tinha uma proposta mais lúdica [...] aprende a silenciar o microfone. Tudo isso foi muito desafiador. Até a gente criar estratégia: “não, vou tornar isso... vou “gameficar”, vou “gameficar” as regras, vou “gameficar” os combinados, vou trazer algo como recompensa”, e aí para ver se dá certo, é como se fosse um quebra cabeça. A gente vai tentando e tentando e experimentando e fazendo até chegar no ponto que encontrei a minha forma de dar certo, a aula vai dar certo dessa forma (Isabela, PB).
Isabela procurou manter nas aulas on-line a mesma proposta lúdica das aulas presenciais. Inicialmente, a alternativa que buscou para implementar processos pedagógicos, junto aos estudantes, foi por meio da gameficação. Conforme ela bem relata, foi como montar um quebra-cabeça, “tentando e experimentando”.
Importante dizer que as atividades remotas vivenciadas pelos professores também representaram momentos de solidão e estresse. A carga de trabalho foi ampliada com largueza de tempo, que envolveu não apenas a preparação das aulas, mas também a aprendizagem/domínio dos recursos tecnológicos necessários para a realidade, de modo a: atender às demandas em pauta; gerenciar o ambiente virtual da turma; responder às perguntas; propor situações didáticas; desenvolver metodologias e buscar, minimamente, que os estudantes pudessem aprender. Dois estudos realizados pelo Gestrado, em 2020, identificaram total falta de assistência institucional para o ensino remoto: “sem planejamento prévio, obviamente, já que a pandemia nos pegou de surpresa, mas também, em muitos casos, sem o devido suporte e a formação necessária, que deveriam ser oferecidos por parte das instituições empregadoras” (GESTRADO, 2020, p. 27).
Os relatos das professoras ratificam as evidências das pesquisas citadas anteriormente. Tereza (PE) fala das perdas:
Eu perdi familiares para Covid, porque o hospital estava muito lotado. E aí piorou, agravou mais, né? É um sentimento muito, muito duro.
Fátima (RJ) trata das ausências em seu cotidiano:
Me ver sozinha em casa foi muito difícil. [...] Tendo que dar conta de tudo, da casa, de todo mundo em casa, das coisas de casa, e ainda ter que se deparar com dar aula remotamente. Eu sempre me senti bastante aflita, aterrorizada mesmo.
Esses e inúmeros outros relatos nos trazem o paralelo causado pela pandemia no que concerne aos impactos pessoais e profissionais. O distanciamento social estabeleceu e impôs novos limites para a realização do trabalho docente. O professor viu a sala de sua casa transformada em “sala de aula”, enquanto as suas redes sociais – como Facebook, Messenger, WhatsApp e Instagram – tornaram-se espaços de comunicação para dar aula, esclarecer dúvidas, dirimir dificuldades e manter contato o máximo possível (MORAES, COSTA e PASSOS, 2020, p. 3).
No que se refere a essa questão, Paludo (2020) enfatiza que
Os métodos até então usados para driblar todas as dificuldades já não estão disponíveis de forma integral. Há todo tipo de dificuldade em manejar distintas plataformas e, justamente nesse aspecto, entramos num crucial aspecto da vida docente em quarentena: o rompimento dos limites entre o pessoal e o profissional (p. 48).
A respeito do imbricamento da vida pessoal com a vida profissional, os sentimentos, o cansaço, as dúvidas e incertezas na fala da Izabela (PE) sinalizam também que havia a própria ampliação da “sala de aula” para outros componentes que estavam no entorno dos estudantes, bem como a exposição da vida privada de todos os atores envolvidos nesse contexto remoto: professor, estudantes e familiares. Ou seja, temos o espaço privado que se torna público:
Exaustão. Sentimento claro de exaustão... numa turma de 25, você dividindo os grupos, eu dava a mesma aula até 3 vezes no mesmo dia, da mesma coisa... pensar nisso um mês... dois... o ano letivo todo? É exaustão. Parece que tô vendo todas aquelas janelinhas na minha frente... eu sonhava muito com a sala virtual, acredita? Conexão caindo, criança chorando, pai reclamando... e aula, aula, aula... A minha casa estava na casa deles e a deles na minha. Coisa louca, isso! Não havia um corte, um limite. A porta não fechava para irmos embora e eu voltar para o meu espaço. Se a conexão caía, chegava um e-mail, uma mensagem no WhatsApp... uma coisa de louco... eu não saía da escola hora alguma... um looping... eu trabalhava manhã, tarde, só que era manhã, tarde, noite, madrugada, né? Era uma coisa fora de comum (Izabela, PE).
No que se refere ao ensino de Matemática, outras tantas dificuldades foram sinalizadas pelas professoras. Dentre elas, elucidamos: a) a dificuldade dos registros por parte dos estudantes; b) a impossibilidade de “lançar mão” de diferentes estratégias de ensino para tratar sobre os conceitos, as operações, a geometria; c) atribuir sentido às atividades propostas, como o uso didático de jogos e outros aplicativos (não só para ocupar o tempo e reproduzir modelos); d) pensar efetivamente sobre o seu papel docente e estabelecer uma interlocução que viabilizasse metodologias e otimizasse a interação entre a aprendizagem matemática e o tempo didático; e) a restrição de atividades mais práticas e concretas, que são fundamentais nessa faixa etária; f) esclarecer as mais diferentes dúvidas que apareciam durante as aulas, muitas vezes, sem ter recursos apropriados para isso. Parte dessas sinalizações estão situadas nos relatos que se seguem:
Então meus problemas eram mesmo a matemática ali... eu pensava em trazer uma coisa diferente, uma coisa nova, o novo... A gente trabalha com o livro, mas o livro não podia ser só o livro. Eu tinha que fazer algo para que eles pudessem estar ali, comigo, mas com algum sentido... Então assim, sabe a coisa do lúdico também, da brincadeira, sabe? Então assim, fiz uso de fantoches... a boneca é uma mais estressada, o outro é mais calmo, aí ela falava que estava nervosa, que não tinha entendido e tal. E eu perguntava se tinha alguém ali que assim como a boneca não tinha entendido o que a gente estava fazendo... até que eles começaram a dizer: “Nadja, eu quero tirar dúvida com você. Você pode ficar um pouquinho?” Falei: “Posso!” Então todo mundo saia eu ficava com a criança, eu e a criança... não era o ideal, mas era o possível (Nadja, RJ).
Por exemplo, o que estava planejado, a gente não podia fugir muito. E isso para mim é muito difícil dentro da prática porque muitas vezes eu estou aqui falando com você e você fez um olhar de “não estou entendendo”, eu mudo, eu troco. Então não, vamos lá, parou aqui. Vamos sentar aqui no chão, vamos... isso não tinha. Isso foi muito difícil também dentro da prática, do ensinar matemática... Sabe assim, a dona Aranha subindo número a número. E quando eu via um olhinho, tudo que eu queria era, “cara, para, senta aqui, pega a tampinha, vamos lá”. E não tinha isso (Verônica, RJ).
Tudo que a gente tinha era o computador. Claro que, julgando que são crianças pequenas a gente teve também a dificuldade do se aproximar delas. Eu não tive muita pressa com a parte de conteúdo porque tinha criança insegura, tinha criança que não queria computador. Porque a gente só consegue de fato fazer intervenção na interação com o outro. Não existe eu falar, falar, falar e achar que está todo mundo aprendendo só com o que eu estou falando, né? Então muita coisa não foi possível de fato. Eu tive muita criança com problema no processo de entendimento mesmo do sistema de numeração decimal. Entender a troca da unidade pela dezena, que a dezena como valor maior... Porque eles não conseguiam visualizar (Izabela, PE).
Reafirmamos que cada professora buscou recursos dos mais diversos para ministrar as suas aulas, bem como identificar limitações sobre a regência em formato remoto. No relato da Nadja, o uso de fantoche para expressar seus sentimentos foi uma abordagem que também possibilitou às crianças manifestarem o que estavam sentindo. Verônica sinaliza a preocupação em não conseguir identificar as dúvidas dos estudantes do 1º ano, porque não havia o “olho no olho”. Já Izabela trouxe a dificuldade das crianças em compreender o Sistema de Numeração Decimal, que, para ela, tinha como justificativa a falta de visualização dos recursos concretos, manipulados coletivamente. No entanto, entendemos que essa questão vai muito além da simples visualização. Ademais, concordamos com Lerner, Sadovsky e Wolman (1996, p. 118), ao afirmarem que as atividades para compreensão do Sistema de Numeração Decimal seriam “operar, ordenar, produzir e interpretar números”. Portanto, a visualização não seria pertinente para o conteúdo que Izabela pretendia trabalhar com as crianças.
Apesar do contexto desafiador e dos sentimentos que acompanhavam o processo das aulas remotas, também foi possível identificar alguns ganhos ou avanços dentro dessa realidade. Sobre essa questão, a narrativa de Verônica evidencia a busca pela compreensão do que estava em pauta junto aos seus estudantes:
Eu sou uma analfabeta digital, mas essa galerinha não é. Essa galera é toda automática, toda informatizada. Eu falei, “então vamos lá. Eu preciso falar a linguagem deles.” Agora é o momento disso. Então fui atrás de jogos, fui atrás de conseguir fazer vídeo, de conseguir tornar aquilo, foi o que eu brinquei, não concreto, no tocar, no segurar, mas no concreto que ele mexa, que ele pudesse botar, jogar para lá e para cá e fazer um pouquinho do que a gente poderia fazer em sala. Então, World Wall, e assim, para você ver como eu sou tão analfabeta digital, gente, tem mil tecnologias, eu fazia meu jogo na memória no PowerPoint. Quinhentas mil setinhas e recursos e não sei o quê, mas saiu o jogo da memória, batalha naval (Verônica, RJ).
Talvez seja lugar comum reafirmar que a pandemia forçou muitos professores a usarem novas tecnologias e adequar suas práticas para o ambiente remoto. Esse quadro se institui em vasta realidade, sem formação devida para tal, mesmo quando a temporalidade dessa conjuntura já estava efetiva e longeva.
Não houve processos formativos que pudessem colaborar com os professores para “agir na urgência e decidir na incerteza” (FONTOURA e TAVARES, 2020, p. 18), tal qual se configurava então. Ainda assim, para efetivar a sua prática, muitos tiveram que lançar mão das tecnologias digitais, seja pelo uso de plataformas on-line ou das redes sociais, aplicativos, vídeos e jogos, de modo a tornar o aprendizado de Matemática mais interativo e envolvente.
4 Tecnologias para ensinar Matemática
Habilidades matemáticas são principalmente aprendidas na escola formal, incluindo nessa assertiva a premissa de que, nos Anos Iniciais — que atendem a uma gama maior da sociedade —, elas são sintetizadas em três pontos básicos: ler, escrever e calcular (PARRA e SAIZ, 1996). No entanto, a partir das mudanças ocorridas no meio social no final do século XX, estudos e pesquisas na área apontam para ampliação desses requisitos. É fortalecido no ensino de Matemática a capacidade de resolver problemas que contemplem questões da vida cotidiana dos estudantes, extrapolando os muros da escola.
De certo modo, os recursos digitais disponibilizados amplamente e de forma gratuita a partir da pandemia — sejam em sites na internet ou em formato de aplicativos para uso no celular —, desafiaram os professores a ampliarem suas estratégias para que essas habilidades matemáticas pudessem ser trabalhadas numa abordagem mais inclusiva às suas práticas. Essa perspectiva é retratada na fala da Isabela:
Ninguém vai “ah, eu vou intuir que isso daqui invés de usar uma lapiseira, eu vou apertar aqui” (aperta a caneta). A intuição segue uma lógica. E matemática é lógica, é relação, é tudo em relação... relação coisas com coisas de diferentes ordens, sejam numéricas ou não numéricas, né? Botar em relação. E a tecnologia foi isso, foi eu perceber, “poxa, eu agora não tenho como estar com os meus alunos, mas eu posso perguntar: ‘e como você pensou?’ E quando ele me diz como você pensou, eu estava com o quadro virtual aberto, “ah então você pensou assim’. Ele estava me contando o que ele dizia e eu ia estruturando o pensamento por ele. Então eu fiz muito quadro de hipótese de pensamento. As crianças, como eles pensam... Um pensa numa situação problema com desenho, outro pensa falando, outro pensa com cálculo... E aí eu fazia assim: “então vamos experimentar agora... você pensou desse jeito. Experimenta agora o jeito que algum outro amigo pensou” (Isabela, PE).
Isabela transpôs para o espaço virtual uma estratégia didática que era utilizada na presencialidade, o que possibilitou o acompanhamento do raciocínio de seus estudantes quando ela solicitava que falassem como pensaram para resolver uma determinada situação. Além disso, percebemos, por meio da pesquisa, que a pandemia aumentou a colaboração e o compartilhamento de recursos entre professores de Matemática.
Muitos professores criaram grupos on-line para compartilhar ideias e materiais de aprendizagem, bem como participar de conferências virtuais, webinars e outros eventos para aprender novas estratégias e estabelecer trocas sobre recursos e metodologias para o ensino de Matemática. Ter pares e possibilidades de trocas significou fortalecimento, identidade e amparo, denotando, ainda, empatia e estudo, simetrias e assimetrias, reconhecimento do lugar do outro como contributo ao próprio processo aprendente.
As falas e intercâmbios entre as experiências docentes revestiram de significado o fazer pedagógico, numa perspectiva não homogênea, em um território desconhecido, viabilizando em sua totalidade a liberdade de ensinar, tomando como premissa a demanda advinda dos discentes e não os limites delineados pelos documentos e normativas regulatórios. A educação é partilha, é vínculo, como bem definem os depoimentos abaixo:
Sempre comecei com esse momento [da aula] de acolhida. Vi que deu certo e aí tem o famoso grupinho do WhatsApp das colegas de trabalho para trocar figurinha. Tem que ter. Tem que ter. E aí fui trocando as figurinhas, “eu fiz assim, deu certo”, “ah, vou fazer também”, “deu certo na minha turma”. Mesmo que muitas vezes eu pense em determinadas estratégias sozinhas, elas nunca ficam só para mim. Dai de graça o que de graça recebeis [...] sempre vai haver essa partilha. “Gente, eu tive essa ideia”. “Gente, eu pensei dessa forma, o que é que vocês acham?”, “Na sala de vocês é assim?”, “Alguém já testou isso?”. O estar junto. O fazer junto. Porque a educação ela é assim. É de vínculo. Não tem como ser diferente (Larissa, PB).
Você vai trocando com suas colegas e vai descobrindo recursos que a internet pode te oferecer e que ajudam muito. A escola, na verdade, as professoras se organizavam, e a gente tinha tempos semanais de reuniões. E nessas reuniões a gente conseguia trocar, com relação ao planejamento, alguns recursos que uma tinha encontrado, que a outra... e até de como fazer (Fátima, RJ).
A docência constitui um fazer em conjunto com as professoras, como disse Larissa, que pensava alguma estratégia, mas compartilhava com as colegas pelo WhatsApp, porque, na sua perspectiva, “a educação é vínculo”. A troca com uma ou com as outras também foi mencionada por Fátima. Os conteúdos de Matemática precisavam ser trabalhados, mas a descoberta de caminhos em parceria, sobre como poderiam ser ensinados, tornou-se muito mais fácil.
Nesse aspecto, elementos como dificuldades no acesso, autonomia e uso, bem como a falta de interação de forma mais sistemática entre estudantes e professores e estudantes entre si, associados à vulnerabilidade de como os conteúdos estavam sendo, de fato, apreendidos ou não pelos discentes, implicaram numa busca por entender efetivamente esse processo. O relato abaixo ilustra bem esse ponto:
Tinha hora que eles não estavam entendendo nada do que eu estava dizendo, eu dizia assim, vamos fazer o seguinte? Por exemplo: para fazer ideia da multiplicação, aí eu fazia, “agora é o seguinte, vocês vão ter que pegar quatro lápis”, aí eles pegavam quatro lápis. “E se eu colocar... e se eu tivesse agora, imagina que vocês têm três potes. Vocês têm quatro lápis na mão, né?” Aí eles “é!”. Então imagina agora três potes. Aí ela: “não estou conseguindo imaginar”. “Desenha! Desenha.” “Pega papel”. “Pega não sei o que”. Aí ficava naquela coisa. Então, “mas vocês não têm aí mais lápis do que isso. Vocês vão ter que imaginar. Vamos lá”. Aí cada lápis você tem que botar a mesma quantidade em cada pote. Quantos lápis vocês vão ter?” Aí fazia. Aí ele pegava o quadro, aí ficava quatro. Aí daqui a pouco fazia (coloca todos os quatro lápis imaginários em outro pote) “cinco, seis, sete oito”, “nove...”. “Doze!” Aí “Pronto!” Falei que ia fazer outro jogo. “Vocês agora vão pegar dois... duas meias. Agora eu quero que pegue menos blusas do que pegar meias”. Aí vinha fazer assim, “mas, Bela, se eu peguei três meias, eu tenho que pegar duas blusas?”, aí eu disse, “vamos parar”, aí quando a criança trazia essa pergunta, eu disse, “stop, volta todo mundo para a tela. Vou escrever a pergunta”. Isso é, para mim, saber o que eles sabem, como eles estão aprendendo (Isabela, PE).
A narrativa de Isabela sinaliza alguns pontos que são fundamentais para a docência, estando ou não em pandemia. O primeiro diz respeito à relação com os estudantes, o segundo ao domínio dos conceitos da disciplina e à associação com o conteúdo, e o terceiro refere-se à apropriação de estratégias possíveis para ensinar Matemática.
Em um dos relatos anteriores, a mesma professora sinalizou a importância de saber como os estudantes se organizavam para resolver uma determinada situação. Para ela, isso é algo fundamental, porque, dessa forma, podia contribuir para a estruturação do pensamento deles. Nesse relato, a percepção da professora sobre o que os discentes estavam ou não sabendo evidencia que ela tem clareza de quem são e, sobretudo, do seu papel junto a eles no que se refere a buscar possibilidades para que o conteúdo pudesse ser entendido, ainda que lançando mão de recursos não tecnológicos.
Igualmente, afora todas as discussões sobre ensinar Matemática nos Anos Iniciais e a limitação existente na formação inicial do pedagogo para tal (NACARATO, 2017), o contexto da pandemia acentuou as dificuldades e/ou limitações existentes para ensinar quando, além do domínio do currículo/série/ano, os professores também precisaram minimamente se apropriarem de ferramentas que fossem compatíveis para que esse currículo pudesse ser desenvolvido com sua turma (PEREIRA e SCHERER, 2022). Nesse sentido, embora os caminhos empreendidos pelas professoras em prol dessa apropriação tenham ocorrido de forma individual e sem o contexto de um processo formativo organizado pela escola, julgamos adequado dizer que elas vivenciaram o que Valente (2007) assinala como um processo de letramento digital, ao afirmar que “o letramento digital envolve o domínio das tecnologias digitais, mas que não seja mecanizado a ponto de [...] ser um mero apertador de botões [...]” (VALENTE, 2007, p. 12).
No caso da Isabela, o recurso não foi necessariamente um aplicativo, software ou outros recursos digitais, mas ferramentas igualmente tecnológicas[4] que puderam alcançar sua turma e estabelecer uma relação de ensino e aprendizagem, como ela diz: “‘agora é o seguinte, vocês vão ter que pegar quatro lápis’, aí eles pegavam quatro lápis. ‘E se eu colocar... imagina que vocês têm três potes. Vocês têm quatro lápis na mão, né?’ Aí eles ‘é!’”. Esse aspecto metodológico reforça a constatação da pesquisa de que, em muitos momentos, a transposição de práticas presenciais para o ambiente remoto foi indispensável para que, efetivamente, pudesse ocorrer uma apropriação sobre determinado conteúdo matemático. Essa realidade é ainda mais premente quando o uso de materiais não estruturados são apoios para abordar as operações fundamentais, otimizar conceitos de grandezas e medidas, compreender a ideia de quantificar, resolver problemas, dentre outros conteúdos.
As possibilidades das estratégias de idas e vindas para tratar sobre um determinado conteúdo — a questão da multiplicação, por exemplo —, tornou-se possível devido à apropriação docente. Em quantas outras realidades podem ter ocorrido a mera repetição de padrões multiplicativos a partir de um modelo instrucional, sem a contextualização e a discussão? Quantos estudantes puderam vivenciar a situação presente no relato: “‘Imagina agora três potes’. Aí ela: ‘não estou conseguindo imaginar’. ‘Desenha, desenha...’”?
De fato, nem sempre é possível usar a imaginação para tratar de um determinado conteúdo de Matemática, principalmente se considerarmos a faixa etária para tal, pois, ainda se demanda muito do elemento concreto. Nesse aspecto o desenho, enquanto registro, serve também para os discentes comunicarem o que pensam, pois “permite-se uma maior reflexão dos alunos sobre a atividade [...]surge como possibilidade de a criança iniciar a construção de uma significação para as novas ideias e conceitos com os quais terá contato ao longo da escolaridade” (CÂNDIDO, 2001, p. 19).
A partir das questões trazidas nesta seção, cabe uma discussão sobre quais tecnologias nos referimos, seja nos relatos trazidos pelas professoras, seja na própria compreensão do termo quando pensamos sobre o ensino de Matemática para os Anos Iniciais. Côrrea e Brandemberg (2021) discutem o conceito de tecnologia à luz das contribuições de Kenski (2013, p. 15) apudCôrrea e Brandemberg (2021, p. 38): “as tecnologias são tão antigas quanto a espécie humana. Na verdade, a engenhosidade humana, em todos os tempos, que deu origem às mais diferenciadas tecnologias”. Concordamos com a assertiva de Kenski (2013), de que todos os recursos aplicados, materiais estruturados ou não, e outros diferentes modos de comunicar e registrar o pensamento no processo de ensino e aprendizagem da Matemática, podem ser entendidos como recursos tecnológicos.
Dessa forma, entendemos que as professoras lançaram mão de diversas tecnologias e seus desdobramentos: do material impresso com conteúdo e atividades para os estudantes que não tinham acesso a nenhum recurso digital, passando pelo lápis, pelo giz, pelos objetos concretos para trabalhar conceitos numéricos, até as plataformas, os softwares, aplicativos, óculos de realidade virtual, dentre outros. Essa compreensão a respeito de como nos referimos ao uso da tecnologia para ensinar Matemática em formato síncrono ou assíncrono é fundamental neste trabalho, uma vez que ela reveste de sentido e pertinência a prática das professoras. Reconhecemos essa tecnologia em seus relatos:
A gente fez a caça ao tesouro na geometria com os objetos dentro de casa, então eles corriam pela casa buscando formas que se assemelhavam ao prisma, ao cubo. Tudo! Foi de uma riqueza! Por isso que eu digo que a educação vive. O professor é peça fundamental (Kátia, RJ).
No começo [...]você primeiro é muito primária. Mas depois eu entendi que nem tudo podia ser feito usando aplicativos. Eles precisavam do concreto, também, ali, na mão... Eu pegava lápis, potes e eu tive que dar multiplicação. Eu pegava o porta-lápis e botava três lápis em cada porta-lápis e ficava mostrando assim na tela e fui explicando e discutindo com eles o que isso significava. Essa construção nenhum aplicativo é capaz de fazer, só a experiência ensina (Fátima, RJ).
Eu procurei o máximo possível de material concreto que pudesse me ajudar. Como, por exemplo, material dourado na parte da matemática, né? Usar o material dourado para que eles pudessem visualizar ali. A visualização é o básico com esse material dourado. E aí eles estão visualizando, pelo menos fica um pouco mais concreto do que só fazer atividade no livro ou só fazer uma atividade na apostila. Na matemática, a manipulação contribui com o pensamento. Dentro da minha limitação digital, usei o possível... teve YouTube, teve aula online, teve as atividades impressas, para trabalhar também os problemas de matemática, a leitura e a resolução. Eles me mandavam, né, áudio pelo WhatsApp lendo, fazendo a leitura do problema e a foto de como eles resolveram. Aí eu mandava o outro áudio relendo, fazendo a correção e explicando o processo. Se existisse dúvida, outra imagem ou áudio chegava por mensagem de WhatsApp e eu respondia (Tereza, PE).
As colocações feitas por Kátia, Fátima e Tereza elucidam elementos que enriquecem as aulas de Matemática e fortalecem a aprendizagem dos conceitos, sobretudo na faixa etária em pauta. A ludicidade (no caso dos jogos e brincadeiras como a caça ao tesouro), a experiência docente que permite elaborar metodologias de trabalho que englobam as especificidades que o momento da aula e a realidade em que a turma se insere demandam, o domínio do conteúdo matemático em estudo (no caso geometria, multiplicação e resoluções de problemas) e a utilização dos recursos digitais, ainda que não houvesse o domínio de um vasto conhecimento sobre eles, torna muito significativa a forma como as professoras aplicam os recursos que podem utilizar com segurança, como encontramos na fala de Tereza: “Aí eu mandava o outro áudio relendo, fazendo a correção e explicando o processo. Se existisse dúvida, outra imagem ou áudio chegava por mensagem de WhatsApp e eu respondia”. Percebe-se a preocupação da professora em acompanhar a aprendizagem de seus estudantes, mesmo remotamente, com os meios possíveis para tal.
Entendemos que as professoras utilizaram recursos como lápis, potes, material dourado, dentre outros para ensinar Matemática. Em outras palavras, elas perceberam que “nem tudo podia ser feito usando aplicativo” como foi mencionado por Fátima. Notamos que as professoras usaram diferentes tecnologias (não somente as digitais) para ensinar Matemática, o que pode ser confirmado por Côrrea e Brandemberg (2021, p. 38), ao afirmarem que as Tecnologias da Informação e Comunicação se referem aos “dispositivos eletrônicos mais antigos, em que se incluem o rádio, a televisão, o jornal, mimeógrafo, e até as mais atuais como o computador, a internet, o tablet e smartphone os quais tem a finalidade de informar e comunicar.”
A pandemia também evidenciou que ter uma escola tecnologicamente aparelhada não significava professores formados para a utilização dela. Na verdade, constatamos que, para além de todo e qualquer recurso existente no ambiente escolar, a ação docente se configurou como determinante para a existência de um processo de ensino e aprendizagem no contexto remoto, independentemente de como ele tenha ocorrido, seja em tempo real ou não, síncrono ou assíncrono, com uso de recursos digitais ou com envios de materiais impressos para casa.
No caso do ensino de Matemática, essa ação foi fundamental para que a interlocução entre o conteúdo a ser trabalhado, a aplicação do recurso que havia disponível[5](em sites, plataformas, aplicativos, softwares, mídias sociais, dentre outros) para utilização dos estudantes, bem como as abordagens metodológicas para ensinar esse conteúdo, contribuiu para a atribuição de sentido ao que estava sendo ensinado e aprendido (AUSUBEL, 1963), apesar das limitações impostas pela circunstância. Essa assertiva é claramente identificada nos relatos das professoras abaixo:
Eu consegui descobrir um site que tinha o material dourado que a criança podia mexer, era só clicar no link, eu só apresentava na tela, compartilhava a tela e apresentava para eles. Então, assim, você vai descobrindo recursos para aquilo lá que você está fazendo. Eu descobri muitos recursos on-line para trabalhar com conteúdo de matemática, que me ajudaram muito. Houve muita pesquisa mesmo. Minha. Mas eu estava só, por mais tecnológica que a escola fosse. Eu dividia com as outras professoras, mas nada além disso. Nem sempre o que estava disponível era de boa qualidade, tinha muita reprodução de contas, de modelos de problemas e aquilo me preocupava... Conforme o conteúdo ia aparecendo eu ia pesquisando, pesquisando, pesquisava sites, pesquisava jogo, pesquisava uma porção de coisas. Eu me vi sozinha numa escola onde a tecnologia impera (Fátima, RJ).
Para onde eu me viro, tudo é desconhecido dentro da realidade da tecnologia e da sala de aula... e se eu não souber usar, não der conta desse mundo remoto, eu não dou aula, não vou conseguir seguir com os meus alunos... A gente usava no dia a dia para estudar, redigir trabalhos acadêmicos..., mas não como recurso pedagógico. Cada aluno com um celular, óculos de realidade virtual, Chromebook, então... os próprios livros trazem recursos digitais. Mas o que se faz com isso? Eu olhava o planejamento de matemática, as atividades, os conteúdos... gente... como vou fazer para ensinar problemas, para discutir com eles as etapas, as possibilidades? Eu olhava os sites e achava tudo muito instrucional, aquele padrão de repete, repete, repete mil vezes a mesma coisa... aquelas perguntas ao final do problema que já diz a conta pra ser feita. Eu ficava meio apavorada, com receio de regredir... Por outro lado, tantos materiais na escola, toda a aparelhagem tecnológica estava na escola e a gente naquele meio, sem ter a menor ideia do que fazer. Além do que, os recursos todos estavam na escola e nós, professores, estávamos em casa, sem acesso a nada disso, porque não nos foi disponibilizado. Tudo o que fiz, desenvolvi, foi por mim mesma, com recursos particulares (Larissa, PB).
As colocações apresentadas por Fátima e Larissa sinalizam a preocupação sobre como ensinar Matemática a partir das tecnologias disponíveis. É notória a realidade de que o aparato tecnológico era presente na escola, que, fechada por conta do isolamento social, não teve mecanismos de expansão para dar um suporte às professoras. Cada uma, a seu modo, dentro das suas possibilidades, buscou a melhor forma de trabalhar com seus planejamentos e conteúdo da disciplina citada, ainda que reconhecessem as divergências existentes como o que havia disponível para acesso gratuito.
Por esse ângulo é possível observar, em ambas as narrativas, a compreensão do formato disponível nos sites acessados a respeito de uma aplicação Matemática muito voltada para o cálculo e reprodução de modelos. Da mesma forma, as professoras também indicam as limitações quanto às estruturas das atividades on-line e dos problemas propostos: repetições de contas; utilização de palavras-chave (“já diz a conta a ser feita”). Essa maneira de tratar os conteúdos matemáticos está na contramão do que as pesquisas no campo da Educação Matemática sinalizam. Passos e Nacarato (2018) reiteram que
a natureza do conhecimento matemático deve estar intrínseca ao trabalho do professor de modo que ele possibilite ao estudante fazer Matemática, que significa construí-la, produzi-la, por meio de resolução de problemas inteligentes ou desafiadores. O estudante deve ter a oportunidade de dialogar, formular perguntas, elaborar hipóteses, exercitar conjecturas, realizar experimentações e procurar comprovações para encontrar a solução. Isso deve ocorrer em um ambiente de comunicação de ideias e de negociação e produção de significados que vão sendo construídos nas interações espontâneas que o ambiente permite (p. 120).
Diante disso, o nosso intuito não é desenvolver uma crítica quanto ao uso desses sites ou aplicativos pelas professoras, tampouco tecer análises a respeito do mercado vasto que a tecnologia digital encontra no meio educacional. A nossa proposição consiste em reconhecer que as limitações impostas pelo cenário vivido e pela lentidão de ações mais efetivas das instituições escolares, das redes de ensino dessas organizações e das ingerências governamentais, que pudessem traçar diretrizes com maior eficácia e prontidão, desdobraram-se em todos os usos possíveis do que estava disponível de forma preferencialmente gratuita e acessível — tanto à faixa etária quanto ao conteúdo.
Assim, retomando as colocações feitas por Passos e Nacarato (2018), é possível reconhecer que, para essas professoras (e certamente para inúmeras outras), ao tentarem viabilizar o “fazer matemático” por meio do diálogo, das perguntas, das hipóteses e da resolução de problemas desafiadores, todo e qualquer recurso tecnológico — digital ou não — foi apropriado e aplicado em busca de uma construção mais significativa e plausível, conforme o contexto permitia.
5 Algumas considerações
Retomamos a questão norteadora sobre o conhecimento produzido pela experiência pelas professoras entrevistadas. Primeiramente, notamos que as professoras precisaram se instrumentalizar para ensinar remotamente. Esse movimento de busca e de apropriação dos recursos tecnológicos, sobretudo os digitais, sinalizaram um processo de letramento digital, ainda que em caráter de autoformação, frente à urgência do momento e tão necessário para que a prática pudesse ser estruturada a partir de um lugar minimamente possível e para ampliar seus saberes e fazeres.
Entretanto, é um movimento que também sinaliza o que Fantin (2017, p. 97) assinala a respeito da necessidade de processos formativos, tanto na formação inicial quanto na continuada, que deem conta da “aprendizagem que integre significativamente a tecnologia nos processos de ensino-aprendizagem”.
Nessa mesma linha do letramento digital, também as crianças necessitaram de orientação para acessarem as plataformas e os demais recursos tecnológicos, de forma estruturada, para participarem das aulas remotas. Embora elas estivessem imersas numa cultura digital e demonstrassem facilidade em manipular objetos eletrônicos, o contexto vivenciado não se estruturou de forma tão simples e fácil para os estudantes menores, principalmente no que se refere ao acompanhamento das aulas. Isto se justifica pelo fato de as atividades educativas terem um direcionamento específico para conteúdos curriculares, que exigiam especificidades na sua manipulação e na sua forma de comunicação, uma vez que estão organizadas de modos bem diferentes de um usuário de redes sociais, streaming, jogos ou outros.
Além disso, as professoras estiveram atentas para a especificidade das crianças dos Anos Iniciais nas aulas de Matemática, que é a escrita numérica (cálculos, sentenças e representações) e as construções geométricas. Estas prescindem de uma habilidade motora, muitas vezes ainda não desenvolvida em sua totalidade por parte desses estudantes. Ressalta-se o fato de que a escrita matemática para determinados conteúdos demanda extensões complementares nos equipamentos digitais, nem sempre presentes nos computadores, celulares, versões de plataformas ou de navegadores de internet. Mais do que isso, nem sempre acessíveis, tampouco disponíveis para manipulação autônoma e clara para os estudantes, ainda que ao alcance dos dedos.
Assim, enquanto espaço de aprendizagem e de formação, também é fundamental a percepção de que as atividades desenvolvidas em contexto remoto, e que utilizam ferramentas digitais, necessitam da orientação, discussão e diferentes experimentações para que a manipulação seja efetiva, tanto para o estudantes quanto para o professor. Isso pode ser confirmado pelos estudos de Bairral (2019), que aponta a especificidade de cada cenário e contexto social que influi na forma de implementação e intervenções didáticas variadas.
As entrevistas nos apontam o quanto a prática docente foi influenciada pelo cenário pandêmico, o quanto foi desgastante e desafiador para as professoras buscar por alternativas e recursos para ensinar Matemática nessa etapa escolar, de modo a implementar diferentes intervenções didáticas a partir do uso das tecnologias. Por outro lado, a pesquisa evidenciou que as entrevistadas não ficaram imobilizadas diante de tantos desafios pessoais e profissionais. Elas procuraram manter os princípios educativos das escolas em que trabalhavam, sobretudo nas ações que envolviam práticas matemáticas, privilegiando a resolução de problemas, a discussão de respostas, o registro, dentre outras habilidades.
As professoras também buscaram acompanhar o processo de aprendizagem dos estudantes, inserindo-os nas discussões, contribuindo com os registros sobre como pensavam para resolver determinada questão, e encontraram meios para manter a interlocução com suas turmas e esclarecer dúvidas, utilizando, por exemplo, de redes como o WhatsApp. Concordamos com Passos e Nacarato (2018) ao afirmarem que existem vários caminhos para ensinar Matemática e cabe ao professor autonomia para propor estratégias que atendam às necessidades de sua classe.
Finalizamos este artigo sabendo que emergem outros olhares e novas discussões sobre o que e como ensinar, para quê e por que ensinar esse ou aquele conteúdo matemático e como eles perpassam a formação e a prática docente. Krenak (2020), referindo-se à pandemia, afirma que “se essa tragédia serve para alguma coisa é mostrar quem nós somos”. Parafraseando a sua afirmação, cabem alguns questionamentos: quem nós somos enquanto professoras que ensinam Matemática, depois de tudo o que foi vivenciado durante o isolamento e após ele? O quanto aprendemos e desaprendemos sobre ensinar e aprender Matemática? Estamos, talvez, experienciando de forma não planejada o que tão bem afirmou Walsh (2017, p. 56): “podemos aprender a desaprender, para aprender de outra maneira, em outro lugar”.
Assim, reafirmamos que o diálogo entre a experiência docente para ensinar Matemática na pandemia, os saberes advindos dessa vivência e a interlocução com as diferentes tecnologias (digitais ou não) apontam para um cenário no qual ainda cabem mais as vozes dos professores como elemento para uma prática colaborativa entre os pares. É, portanto, imprescindível considerar essas vozes e práticas como referenciais formativos para aquilo que se demanda na realidade da escola, articulado com uma Matemática que prime pela aplicabilidade na vida cotidiana e seja preenchida de sentido.
Referências
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Notas
Ligação alternative
https://www.periodicos.unimontes.br/index.php/emd/article/view/6401/6528 (pdf)