Resumo: Este artigo apresenta os resultados preliminares de um mapeamento de ocorrências de uma raiz da língua acadiana, šrh, conhecida também por sua forma verbal padrão, šarāhu. A raiz tem sua principal acepção dentro do campo semântico do esplendor e da magnificência. Nas Inscrições Reais Assírias, essa raiz traz implicações com a luminosidade e a experiência visual, veiculando, assim defendemos, um significado material. Assim, há a associação entre o campo semântico do esplendor, portando conotações relativas à luz, ao brilho e à irradiação, e uma dimensão material.
Palavras-chave: Mesopotâmia, acadiano, Inscrições Reais Assírias, esplendor.
Abstract: This paper presents the preliminary results of a survey among the occurrences of Akkadian root, šrh, which is known as the basic verbal form šarāhu as well. This root has its main meaning connected to the semantic field of splendour and magnificence. In the Assyrian Royal Inscriptions, this root implies luminosity and visual perception, and it carries, we argue, a material meaning. Thus, there is an association between the semantic field of splendour, with connotations related to light, brightness and radiance, and a material dimension.
Keywords: Mesopotamia, Akkadian, Assyrian Royal Inscriptions, splendour.
Artigo | Article
“Fazer resplandecer sua grande divindade”: notas preliminares sobre as nuances de um verbo acadiano
“Making her great divinity resplendent ”: preliminary notes on the nuances of an Akkadian verb
Recepción: 11 Octubre 2021
Aprobación: 11 Enero 2022
Este estudo apresenta os resultados preliminares de um mapeamento de ocorrências de uma raiz da língua acadiana, šrh, conhecida por sua forma verbal padrão, šarāhu.2 Essa raiz expressa um campo semântico compósito, que tem, por um lado, tanto positiva como negativamente o sentido de orgulho, por outro, significa esplendor, magnificência e glória (CAD Š-2, p. 36-40; 61-3; Š-3, p. 133-4; 360-1). Quando a palavra é traduzida como esplendor, a partir das derivações dos sistemas verbais e especialmente nas edições das Inscrições Reais Assírias (IRA) em língua inglesa, ela aparece relacionada à construção de monumentos, em excertos que chamamos de seções de construção. Não obstante, em nossa visão, não é claro se e quando uma coisa esplendorosa é descrita como tal devido a alguma de suas propriedades físicas e materiais, que realçam as qualidades visuais e luminosas.
A ambiguidade do esplendor como algo abstrato ou como algo material nos leva a perscrutar o significado de šrh como uma qualidade que possui, acreditamos, aspectos relacionados a propriedades físicas e, potencialmente, a fenômenos luminosos – daí a existência de uma relação entre esplendor e algo irradiante, brilhante, cintilante e reluzente. Assim, contando com nosso mapeamento,3 o objetivo aqui é contextualizar referências a šrh nas IRA, enfocando seu subcampo semântico relativo ao esplendor. O interesse por essa palavra engloba a consideração de muitas outras que ocorrem em contexto textual próximo, como namru, šalummatu e melammu, dentre outras, todas com acepção em torno do campo semântico do brilho, da irradiação e da luminosidade. Na oportunidade deste artigo, essas outras ocorrências, como veremos, ajudarão em nossa argumentação sobre a conotação material de šrh.
Uma primeira publicação direcionada a um vocabulário relacionado ao brilho e à irradiação em textos mesopotâmicos é a de Oppenheim (1943). O autor destaca dois termos, puluhtu e melammu, associados tanto a um terror irradiado, como à majestade e glória. O autor nota as distinções entre os usos dos termos: mesmo que ambos sirvam para descrever não somente divindades e reis, mas também objetos divinos, puluhtu é uma espécie de coberta sobrenatural (p. 34), enquanto melammu “denota um atributo característico dos deuses, consistindo em uma auréola ou círculo de luz extremamente brilhante que envolve a divindade” (p. 31), assim como parece estar localizado corporalmente na cabeça e se referir a uma máscara (p. 34). Em síntese, o sentido dos termos engloba “formato corporal, semelhança, personalidade, por um lado, e máscara com a implicação de admiração e terror, por outro” (p. 34).
Posteriormente, Cassin (1968) se debruça sobre as manifestações de brilho e esplendor relativas sobretudo às manifestações divinas em textos mesopotâmicos. A autora analisa os termos que aparecem em textos religiosos: namrirrû (brilhar, ser luminoso), especialmente voltado à emanação luminosa de um ser divino ou de algo considerado sobre-humano, como as insígnias de uma divindade ou os muros de um templo (p. 2); rasubbatu, como esplendor flamejante oriundo de objetos incandescentes; palāhu e derivados da raiz plh, como puluhtu e pulhu, como uma espécie de irradiação poderosa que é instilada seja por astros celestes, seja pelas divindades e pela realeza (p. 3-4); melammu (uma espécie de brilho aparente de certas divindades), que contém o aspecto de incandescência e irradiação, em muitos casos centrado na cabeça da divindade, mas que também é aplicado a construções (p. 5-6); e šalummatu (completo, perfeito). Para a autora, há uma ambivalência, pois esses termos qualificam tanto o que é considerado benéfico, favorável e admirável, como o que é tido por nefasto, perigoso e temoroso (p. 7).
Cassin caracteriza dois tipos de esplendor: uma irradiação que parte do corpo de um deus ou de sua manifestação material (por exemplo, o templo, as armas) em direção ao exterior (p. 17); e a irradiação que envelopa seu corpo, sendo, então, um brilho não irradiado, mas concentrado no objeto que o emana (p. 17; 20). Melammu parece partir de uma parte específica do corpo da divindade, como já tinha apontado Oppenheim,4 e isso se relaciona com alguns verbos próximos a melammu, como portar (našû), colocar (na) ou cobrir a cabeça (apāru, p. 23). Assim, o termo se diferencia dos outros por sua localização na cabeça da divindade, inclusive implicando um objeto posto na cabeça e possuindo, então, um correlato material específico, cuja peculiaridade conflui para seu sentido como objeto de onde se propaga a irradiação luminosa (p. 26). Em síntese, ela conclui:
No pensamento dos mesopotâmios, toda forma intensa de vitalidade – tomando essa palavra num sentido bem largo: beleza, juventude, alegria, poder, vigor, seja aquele do guerreiro, seja do vigor sexual, tudo que é transbordamento da vida, como que é perfeitamente puro e íntegro – se manifesta por uma emanação deslumbrante de luz. (Cassin, 1968, p. 121)
[...]
Brilho, irradiação, cintilação, auréola luminosa que caracterizam não somente os deuses, mas também os reis; brilho e irradiação do homem são e puro; soberania, virtude militar, força física, potência sexual, beleza; prazer, volúpia, fertilidade e exuberância da terra e das águas; beleza florescente das obras de arte, nós vimos que tudo isso se exprime em “termos de luz” e traduz uma mesma realidade. (Cassin, 1968, p. 132)
Também mencionando Cassin, Garelli (1990) enquadra o brilho luminoso na noção de beleza, sobretudo a partir da descrição das obras realizadas pelos soberanos nas inscrições reais, que manifestam o poder real e o esplendor das construções – que brilham como o dia – e das oferendas suntuosas (p. 173-4). É essa acepção, de suntuosidade, que ele associa a šarāhu, assim como magnificência e majestade. Os feitos construtivos, com o emprego custoso de materiais, possuem um brilho luminoso que evoca admiração (p. 174-6), ou seja, as construções não são simplesmente belas, mas possuem uma “suntuosidade deslumbrante” e projetam uma “irradiação luminosa” (p. 176).
Posteriormente, Winter (1994) trata do valor da irradiação, especialmente associado à palavra melammu, enquadrada numa perspectiva estética. A autora destaca a luminosidade em textos mesopotâmicos, onde aparecem o brilho dos principais astros celestes, a intensidade do fogo, o cintilar das águas, o lampejo de metais preciosos e de outros materiais. Em suas palavras, “[...] a combinação de luz mais brilho é produtora de um tipo de luzir que é visto como particularmente positivo e auspicioso” (p. 123) e “[...] o observador informado verá o luzir não somente como propriedade física, mas como um sinal que porta uma carga afetiva altamente positiva” (p. 124). A menção aos templos que brilham como astros não se resume somente à prática de colocação de metais e pedras reluzentes nas paredes, mas ao valor associado à luz como manifestação divina. Na mesma linha, as menções às estátuas que brilham nada mais são do que uma manifestação da divindade no mundo material (p. 124). Além disso, o elemento luminoso é também associado a um poder emanador, que provoca admiração e terror, tanto da parte dos deuses, como, por extensão, dos reis. Nesse sentido, Winter trata melammu como esplendor genérico que é considerado uma emanação física ou uma aura em torno de seu portador (p. 125).
Em outro texto, Winter (2012) defende que propriedades reluzentes do ouro têm significância, ao lado de sua escassez, imutabilidade e seu custo de obtenção e de manejo (p. 153; 156-7). Reitera que o “[...] contato com o divino é frequentemente manifestado como luz, materiais que brilham eram vistos como sinais de pureza e sacralidade” (p. 157-8). Ou seja, essa irradiação, que aparece com termos namru ou melammu, é “manifestação luminosa visível, associada com poder protetivo e destrutivo, frequentemente associada com a cabeça” (p. 159).
Já Ataç (2007) relaciona a irradiação divina aos aspectos cosmológicos e metafísicos, bem como à noção de epifania na religião mesopotâmica (p. 295). Revisitando as publicações prévias, o autor foca no poder transformador da experiência religiosa sobre quem é exposto à manifestação divina por meio da irradiação deslumbrante (p. 296). Por sua vez, Pongratz-Leisten (2012) relembra o sentido amplo de melammu, destacando tanto a acepção corrente de irradiação e de instilar admiração ou deslumbramento, como a relação com a luminosidade e o esplendor. Considera também o potencial destrutivo desse atributo e que ele seja um elemento importante na habilitação do rei (e de sua aparência) à realeza.
Até aqui, a síntese de Hundley é representativa da tematização sobre esses termos:
Na maior parte, seja ou não sua divindade inerente ou herdada, deuses são percebidos como envoltos por uma irradiação divina, especialmente no primeiro milênio. Esse brilho atrativo é mais associado ao termo melammu e mais frequentemente aplicado a divindades antropomórficas. Não obstante, a mesma linguagem é aplicada a corpos celestes, que brilham com uma irradiação divina, e mesmo se estende às imagens divinas de culto, as quais partilham conceitual e literalmente da irradiação divina, já que elas são feitas de elementos mais preciosos do mundo material. Por extensão, já que os elementos mais preciosos fazem a imagem divina e são frequentemente mais preciosos por causa de sua luminosidade, eles também partilham da irradiação divina, especialmente quando são estreitamente ligados a uma divindade. (Hundley, 2013, p. 80)
Benzel (2015) investiga as noções de pureza, luminosidade e sacralidade sobretudo da prata e do ouro, considerando quais são “propriedades físicas inerentes” e quais são “qualidades atribuídas pelos agentes humanos”, e como ambas interagem (p. 89).5 Busca entender também como e por que esses materiais têm a capacidade de animar objetos com sacralidade, ou seja, como produzem o divino, em vez de somente reproduzi-lo (p. 89). Sua proposta questiona se a sacralidade se dá pela associação do material com objeto em construção, ou se o próprio material anima o objeto (p. 93). A tese da autora é a de que
[...] em certos contextos, as propriedades naturais, inerentes, de certos materiais têm o potencial intrínseco de dar aos humanos (fazedores e consumidores) uma percepção de sacralidade e divindade inerente, que, por sua vez, habilita esses fazedores e consumidores a atribuir sacralidade e divindade como uma qualidade de volta ao próprio material, e não só ao objeto que ele se torna. (Benzel, 2015, p. 96)
Ou seja, não só objetos manufaturados emanam o sagrado, a pureza e o divino, mas assim são considerados também pelo valor inerentemente sagrado dos materiais que os compõem, dadas suas propriedades de brilho e pureza (p. 98-99).6 Thavapalan (2018) realça que “devido à íntima conexão entre brilho e o divino no pensamento mesopotâmico, o primeiro é uma força palpável, um poder emanador que evoca admiração, temor ou terror em quem o encontra” (p. VII-14), o que vale especialmente para a acepção ampla de melammu. Segundo a autora, a palavra é frequentemente traduzida envolvendo luminosidade e esplendor, mas tais traduções perdem a ideia de que melammu seja uma “propriedade e uma força ativa”, e não um mero atributo de objetos feitos de matérias-primas preciosas (p. VII-15) – e que são reluzentes.
Após essa passagem em revista das pesquisas sobre os termos relacionados ao esplendor e à irradiação, especialmente associados ao divino, observamos que, em meio a esse vocabulário mormente formado por substantivos e adjetivos, derivados ou não de raízes verbais, aparece uma raiz que tem sido comumente traduzida no campo semântico do esplendor: šrh / šarāhu. Contudo, do mesmo modo que esses estudos prévios o fazem para os outros vocábulos, as nuances dessa palavra foram pouco estudadas. Ao nosso ver, a qualificação pela raiz šrh se refere a um fenômeno que ultrapassa e que é realçado, algo incomum, e que se liga a uma base material e luminosa. Os fenômenos luminosos, bem como seus efeitos e qualificações, precisam ser enquadrados num conjunto de referências a princípio utilizado de modo abstrato para qualificar coisas, mas que tem uma conexão material.
Neste artigo, lançaremos mão de uma seleção de exemplos após levantamento completo nas Inscrições Reais Assírias (IRA), dentre cerca de 180 ocorrências da raiz šrh.7 Os exemplos trazidos aqui são representativos das categorias em que o verbo e suas derivações se enquadram.
Com relação às fontes, as IRA foram exumadas sobretudo de construções monumentais das capitais assírias e datam do segundo e do primeiro milênio a.C. Elas contêm narrativas das principais conquistas dos reis assírios, especialmente relacionadas aos feitos militares e às construções monumentais, ambas precedidas por epítetos e titulações da realeza e sucedidas por fórmulas destinadas às futuras gerações e aos deuses. Por meio das IRA, nós observamos: 1) quem é o rei e por que lhe é dado o comando; 2) o que e como o rei conquista, destrói e recebe tributos e espólios, como consequência de suas ações militares; 3) o que e como o rei (re)constrói e faz oferendas adequadas aos deuses; e 4) como as gerações futuras devem cuidar de suas inscrições.
Geralmente, na segunda metade de inscrições mais longas, as quais foram feitas em suportes materiais maiores (como cilindros e prismas), descrevem-se os projetos de construção monumental. A descrição dos projetos de construção, principalmente palácios e templos, tem função literária, servindo para destacar a grandeza das conquistas de construções – que envolviam também a obtenção difícil de matérias-primas prestigiosas – e a originalidade em superar as ações de soberanos prévios, bem como para mostrar a magnificência em dedicações de todos os feitos alcançados pelos reis.
As ocorrências de šrh nas IRA começam a aparecer durante o período Médio Assírio (sécs. XIV-XI a.C.). A palavra é usada para qualificar positivamente deuses, reis e rainhas, construções monumentais e suas propriedades, tais como paredes, portas, soquetes, tetos, decorações, estátuas de deuses, patamares para os tronos e portais. Esses objetos incomuns parecem ser valorizados tanto pelo emprego de matérias-primas preciosas, como metais e pedras, como pela habilidade artesanal empregada.8 Por outro lado, pessoas, como os inimigos dos assírios, e suas ações podem ser pejorativamente qualificadas pela palavra. Ambos os casos servem para caracterizar uma qualificação, seja visualmente como “esplendor, magnificência”, ou em termos de caráter ou comportamento, que por sua vez têm o sentido positivo de “orgulho”, ou o sentido negativo de “presunção”.
Outrossim, šrh é atestada nas IRA em diferentes padrões ou sistemas de base verbal da língua acadiana: G (verbos ativos, sentido básico) e D (conotação de fazer a ação expressa por um verbo no sistema G). No sistema G, nós encontramos os adjetivos verbais (šarhu/šaruhtu, CAD Š-2, p. 61-3), o infinitivo Gt (šitrahu/šitarhu, usado como adjetivo, cf. CAD Š-3, p. 133-4) e o particípio Gt (muštarhu, CAD M, p. 192; 286-7).9 Já no sistema D, nós encontramos a forma finita do pretérito (ušarrih/Dt uštarrih) e o infinitivo D (šurruhu, CAD Š-3, p. 360-1), usado adjetivalmente. A forma nominal no sistema D, tašrihtu (CAD T, p. 295-6), ocorre mormente para descrever algum tipo de oferenda, relacionada ou não a algum tipo de festival. Por fim, temos as formas šutarruhūtu (um substantivo derivado do sistema Dt, “glorificação, louvor”, CAD Š-3, p. 398) e šutarruhu (forma do estativo no sistema Dt, traduzido como adjetivo “exaltado”).
A forma finita no sistema D ušarrih é aplicada a coisas, no sentido de “fazer algo esplêndido”, “fazer algo esplendidamente”, ou “fazer algo resplandecer”, forma que somente ocorre na descrição de projetos construtivos nas IRA. Nessas seções, há menções a matérias-primas de destaque, seja por sua preciosidade, seja por alguma de suas propriedades físicas.
As nuances de šrh foram agrupadas em quatro tipos de ocorrências: formas finitas no sistema D em seções de construção (grupo A1); formas finitas no sistema D e Dt fora de seções de construção (grupo A2); formas não-finitas, adjetivais e nominais, seja dentro (grupo B1) e fora de seções de construção (grupo B2).
Esses grupos incluem uma variável importante de ser distinguida dentre as ocorrências de šrh: seções de construção são blocos textuais em que o significado implica: a lida com objetos ou matérias-primas (prestigiosas), como tipos de pedras e metais; as ações de construção, que são expressas por verbos específicos (construir, completar, alargar, aumentar, tornar perfeito, decorar, adornar etc.); e as partes construídas (muros, paredes, portas, tetos etc.). Então, um contraste entre a ocorrência de šrh em seções de construção e fora delas é útil em termos do exame das nuances das palavras usadas dentro da esfera temática da construção, para descrever ações e coisas construídas.
No período Médio Assírio, há ocorrências de formas finitas de šrh no sistema D (ušarrih) a partir das inscrições do reinado de Tiglath-Pileser I (1114-1076).10 Elas aparecem entre outros verbos:11 (w)sm (D ussim, “fazer adequado”);12 rṣp (G, “erigir, construir”); kll (šuklulu, “fazer completo, integral, completar, aperfeiçoar”). Nós observamos que aparecem matérias-primas utilizadas para construção, assim como elementos que emitem luz (nesse caso, as estrelas).



No período neoassírio (sécs. X-VII a.C.), nós vemos, a partir das inscrições de Adad-nerari II (911-891), a cadeia usual rṣp + kll + (w)sm + šrh (RIMA 2 A.0.99.2 37b).15 Nas inscrições de Assurnasirpal II (883-859), nós atestamos šrh D (ušarrih), nas frases do tipo “Eu (re)construí (o palácio / o muro / o templo) de cima a baixo”, mas o verbo ocorre excepcionalmente,16 já que tais frases aparecem mais com rṣp e kll. Outrossim, ušarrih ocorre ou em dupla com (w)sm,17 ou com ’pš (“fazer”), rṣp, kll, izuzzu (“levantar, erigir”).18 Entre essas ocorrências, mencionam-se materiais de construção, como tipos de pedra e metais.

Duas ocorrências mencionam, respectivamente e com a forma ušarrih, a frase “Eu fiz (algo) resplandecente”: a base (da estátua) do deus Ninurta19 e as imagens/estátuas de deuses em templos, esses também decorados.20
Dentre três atestações da forma finita de šrh nas seções de construção das inscrições do período de Senaqueribe (704-681),21 uma delas refere-se às qualidades do arsenal (ēkal māšarti), com o uso da raiz rb’ (“ser, tornar-se grande, fazer maior”, sistema Š), seguida de uma segunda sentença com kll + šrh.

Nas inscrições do reinado de Senaqueribe, uma das três atestações de forma finita de šrh (ušarrih) é precedida por uma sentença contendo ’pš. No excerto, aparece também a menção a nabnītu (“aparência”), que entendemos como referência ao aspecto visual dos objetos descritos.22 Há também a menção à pedra calcária branca (pīlu peṣû) como matéria-prima.

Nas inscrições de Esarhaddon (680-669), o verbo šrh (forma ušarrih) aparece em dois contextos diferentes.24 Nós observamos num deles nossa palavra com o verbo šaqû (“elevar”).25

Em um segundo contexto, descreve-se o processo de construção de templos. Nossa palavra aparece, ao lado das menções a matérias-primas e aspectos visuais, em meio a outras palavras interessantes. No primeiro excerto mais longo, menciona-se “propriedades” (nabnītu) que, juntamente com a primeira ocorrência de ušarrih, foi traduzida como “Eu adornei suntuosamente suas propriedades...”, o que em nossa leitura é uma opção de tradução, ao lado de “Eu fiz resplandecer suas propriedades...”. Na sentença seguinte, são mencionados “ornamentos magníficos” e “joias preciosas”. Por fim, ainda no mesmo excerto, esses elementos “adornam grandemente” – e aqui é a segunda ocorrência de ušarrih – as imagens divinas no templo e dão a elas um “vigor admirável” (bal-tú ú-šag-li-du, galātu Š, “tremer, assustar”) e as fazem “brilhar como o sol” (usando o verbo nabāṭu, “ser, tornar-se brilhante”).

No segundo excerto, encontramos šrh próximo à menção a “(fazer) um objeto de maravilhamento” (anatabrat), o que é também, ao nosso ver, uma referência a aspectos visuais.

Similarmente a ocorrências de Assurnasirpal II neste grupo, šrh D aparece na descrição do processo de decoração do templo de Esagil (com ouro e prata) em uma seção de construção de inscrição de Esarhaddon, mas aplicada à qualificação de “ritos sagrados”.

Finalmente, nas inscrições de Assurbanipal, nós vemos o uso de ušarrih com outros verbos [rṣp + rpš (“ampliar, alargar, aumentar”) + šrh]:

Os três próximos exemplos têm sentido similar. No primeiro, também aparece a menção à “forma, aparência” (nabnītu), que em nosso entendimento se refere ao aspecto visual da construção; no segundo, há uma conexão de šrh + kll com uma partícula, potencialmente criando um acoplamento verbal28 e, no terceiro, há a menção à quantidade de metal diretamente empregada na decoração – pelo uso do sumerograma GUN = biltû, “talentos” – na decoração de estátuas.



Em um outro excerto, šrh D no pretérito ocorre sozinho, num contexto de menção ao emblema e base do trono de Ištar.

Há três ocorrências30 idênticas na apresentação do rei Assurnasirpal II em que aparece a forma ušarrih. Destaca-se que são também atestadas outras palavras com sentido de irradiação, como šalummatu (“irradiação”) e melammu/melemmu (“irradiação deslumbrante”), formando um contexto de uso de šrh dentre outras palavras com sentido relativo a um aspecto ou fenômeno visual.

Nas inscrições de Assurbanipal II, ušarrih aparece em outro contexto, traduzido por “glorificar”.

Nas inscrições de Assurnasirpal II, nós vemos šrh, agora em sua forma não-finita (tašrihtu), como o nome de um festival “Esplendor” (RIMA 2 A.0.101.30 73b-74).31 Além disso, aparece como šitrahu, forma do sistema Gt utilizada como adjetivo, que se refere ao símbolo “resplendente” da deusa Ištar, em um contexto com menções a outras matérias-primas.

Uma atestação de šarhu (forma adjetiva no sistema G) nas inscrições de Senaqueribe é uma qualificação de uma área do palácio, sobre seu “esplendor”.32 Há também ocorrências idênticas da forma nominal tašrihtu recorrentemente utilizadas para qualificar oferendas (nīqu tašrihtu “oferenda(s) esplêndida(s)”) ao final de seções de construção, as quais são mais atestadas nas inscrições de Esarhaddon e Assurbanipal II.33
Ainda nas inscrições de Senaqueribe, há duas atestações de šurruhu em que aparece a menção de um tipo específico de metal (chamado cobre-urudû) e sua qualidade brilhante (expressa pela palavra namru, “brilho, luzir”).

Uma forma excepcional aparece nas inscrições de Senaqueribe: šrh como um advérbio (šerhiš), para qualificar os detalhes de um portão, feito com metais preciosos.

Por fim, šurruhu aparece nas inscrições de Assurbanipal II.

Nós observamos outras palavras com a mesma raiz šrh usadas como adjetivo, principalmente para qualificar o rei e divindades. Nas inscrições de Tiglath-Pileser I, a forma šurruhu aparece na descrição do rei e, interessantemente para nosso escopo, ele é também qualificado com palavras relacionadas à luminosidade (ūmu napardû “dia radiante”, e novamente melammu “brilho”), ao lado da própria atestação de šurruhu para qualificar o substantivo nablu (“chama”).

Nas inscrições de Salmanasar III (858-824) e Šamši-Adad V (823-811),35 o rei e divindades são descritos com as formas šarhu, šitarhu/šitrahu (em RIMA 3 A.0.102.5 i 5b-6a) e šurruhu (“esplêndido” vice-regente / sacerdote do deus Aššur, por exemplo, em RIMA 3 A.0.102.28 3b; 56 2-3a).






Em três linhas consecutivas de uma inscrição de Adad-nerari II, nós observamos duas formas excepcionais: além da forma finita de šrh Dt,36 nós vemos šutarruhūtu (um substantivo, traduzido na edição como “glorificação, louvor”) e šutarruhu (traduzido como o adjetivo “exaltado”).37 Nas inscrições de Adad-nerari II e Adad-nerari III (810-783), šrh aparece em algumas descrições: sobre o rei (com šurruhu, “Eu sou magnificente”, Adad-nerari II RIMA 2 A.0.99.2 14); sobre o deus Adad (com šarhu: “[...] qar-du šar-┌ḫu┐ / ┌gít┐-ma-┌lu [...]”, “[...] o herói esplêndido, perfeito [...]”, Adad-nerari III RIMA 3 A.0.104.6 1b-2a); sobre uma estátua antropomórfica de Nabû (com šitrahu: “[...] IGI.GÁL šit-ra-ḫu [...]”, “[...] sábio (e) esplêndido [...]”, Adad-nerari III RIMA 3 A.0.104.2002 1).
Nas inscrições de Assurnasirpal II, vemos šrh em forma adjetival (adjetivo G šarhu e infinitivo D šurruhu). Além disso, todas as outras ocorrências aparecem nas aberturas das inscrições, qualificando o deus Ninurta (šarhu, “esplêndido”) ou o próprio rei (šarhu ou šurruhu, “esplêndido, magnificente, magnânimo”).
Em Senaqueribe, šušruhu (no sistema Š, traduzida por “fazer magnífico, fazer resplandecer”) aparece relacionada a uma adoração ao deus Assur: “[...] ta-nit-[ti] / qar-ra-du-ti-šú šu-uš-ru-ḫu gi-mir ab-ra-a-ti [...]”, “[...] que toda a humanidade faça resplandecer o louvor a seu heroísmo [...]” (RINAP 3/2, 230 108b-109a). Notamos a forma adjetiva no sistema G šarhu para descrever uma divindade (provavelmente Aššur) no início de uma inscrição (“[...] šar-ḫu gít-ma-lu [...]”, “[...] esplêndido, perfeito [...]”, RINAP 3/2, 161 4). Como contraponto, a forma šarhu ocorre para qualificar positivamente o deus Marduk ou algum templo (numa passagem fragmentada, RINAP 4, 48 r. 106), assim como šitrāhu e šurruhu aparecem numa descrição fragmentária do rei Esarhaddon (com [Eu sou] “esplêndido” – ou “glorioso” –, “orgulhoso”, RINAP 4, 101 r. 2’-3’). Outrossim, formas adjetivas (šitrahtu, šaruhtu, fem. de šarhu, e šurruhu) qualificam deuses e deusas nas dedicações encontradas nas aberturas das inscrições: a deusa Nanāya, que é filha esplêndida de Anu (šit-ra-ah-ti, RINAP 4, 135 1-2a); deusa Rainha-de-Nippur, que é esplêndida dentre os deuses (šá-ru-uḫ-tu DINGIR.MEŠ, RINAP 4, 128 1); deusa Ištar, esplêndida (šá-ru-uḫ-ti, RINAP 4, 133 1); e Ištar de Uruk, “[...] cujas palavras são esplêndidas no céu e no mundo inferior [...]” (“[...] ša ina er-me a-nu ù ki-gal-li šur-ru-ḫu zik-ru-šá [...]”, RINAP 4, 134 3b).38
Nesse mesmo grupo e nesse mesmo contexto, observamos šarhu / šaruhtu (šaruhtum ilātu, “esplêndida das deusas”, RINAP 5/1, 23 1) e šitrāhu (qualificando outra divindade como esplêndida, RINAP 5/1, 62 2).
Algumas atestações de šrh e suas traduções como “fazer resplandecer” são encontradas em contextos textuais de atividades de construção, nas quais matérias-primas, mormente preciosas, são mostradas como um dispositivo ideológico, destacando o poder do rei em trazê-las e construir algo com elas. Argumentamos que no mesmo contexto e pelo seu uso, šrh contém uma conotação material, no sentido de se referir às matérias-primas e suas qualidades na descrição de construções, que são também mencionadas pelo seu brilho. O sentido de šrh não é estritamente redutível a um fenômeno luminoso, mas o “esplendor” das coisas qualificadas está relacionado a um aspecto luminoso, realçado pela menção a alguma matéria-prima específica e às suas propriedades.
Então, considerando nosso interesse no campo semântico de šrh nas IRA, as ocorrências atestadas sobretudo nas seções de construção significam ações envolvendo matérias-primas valorizadas. Por sua vez, esses materiais são qualificados por suas propriedades (físicas), tais como brilho e irradiação, e, por consequência, são relacionados a efeitos luminosos. Portanto, devido a essa cadeia de correlação no uso de šrh, nós acreditamos que sua nuance (e tradução) como “esplendor” e derivados tem um significado material e luminoso.
A implicação de se estudar esse campo semântico é multifacetada: permite compreender aspectos relacionados à visualidade (percepção visual, seus modos e conteúdo, a importância desse sentido para portar uma mensagem relevante de poder e autoridade); reconhece o valor positivo da luz, especialmente em um nível incomum e realçado, assim como os aspectos relacionados ao modo em que reis, deuses e suas imagens são qualificados. Fazer resplandecer as divindades e suas imagens implica o sentido de luminosidade, materialmente marcada, e por sua vez revela concepções do divino no antigo Oriente Próximo.



























