Resumo: Tradução do texto Sobre as oposições de virtudes e vícios de Evágrio Pôntico com uma breve introdução. Trata-se, muito provavelmente, de um opúsculo que acompanhava o texto maior A Eulogio, sendo este uma apresentação de elementos básicos da vida monástica, por isso chamado de O Segundo discurso a Eulogio. Sobre as oposições de virtudes e vícios apresenta em forma condensada o texto A Eulogio, descrevendo sinteticamente a doutrina básica das divisões (em oito ou nove) dos demônios que fazem batalha aos humanos, mas em especial aos monges do deserto. As oposições são uma descrição poético-definidora, na forma literária das hóroi kai epigráphai (definições e inscrições) dos demônios/paixões e suas virtudes opostas: gula e continência; luxúria e temperança; avareza e pobreza; tristeza e contentamento; ira e paciência; acídia e perseverança; vaidade e ausência de vaidade; inveja e falta de inveja; orgulho e humildade. Estas definições (por volta de quinze para cada um dos vícios e cada uma das virtudes) são compostas, em sua maioria, de dois termos relacionados, em que um qualifica o outro, de forma por vezes metafórica, indicando um sistema complexo e muito bem articulado. O texto em grego que aqui se reproduz foi estabelecido por Fogielman (2015).
Palavras-chave: Monasticismo, Evágrio Pôntico, Antiguidade Tardia, Demônios, Sete Pecados Mortais, Virtude, Ascese, Cuidado de Si.
Abstract: Translation of On the vices opposed to the virtues, of Evagrius Ponticus, with a brief introduction. This text is probably an oppuscule that accompanied To Eulogius, which is an introduction to the basic elements of monastic life, being thus also called, Second Discourse to Eulogius. On the vices opposed to the virtues describes in condensed form To Eulogius and presents synthetically the basic doctrine of the division (in 8 or 9) of the demons that fight humans and especially the desert monks. On the vices opposed to the virtues are a description in a poetic and definitory way, in the literary form of hóroi kai epigraphaí (definitions and inscriptions), of these demons/passions and its opposing virtues: gluttony and abstinence, fornication and chastity, avarice and freedom from possessions, sadness and joy, anger and patience, acedia and perseverance, vainglory and freedom from vainglory, jealousy and freedom from jealousy, pride and humility. These definitions (around 15 for each of the vices and virtues) are composed mostly of two related terms, in which one qualifies the other, some of them in a metaphoric way, indicating a complex and very well-articulated system. The Greek text was established by Fogielman (2015).
Keywords: Monasticism, Evagrius of Ponticus, Late Antiquity, Demons, Seven Deadly Sins, Virtue, Asceticism, Self-care.
Tradução | Translation
Tradução de Sobre as oposições de virtudes e vícios ou Segundo discurso a Eulogio, de Evágrio Pôntico
Translation of On the vices opposed to the virtues or Second discourse to Eulogios, by Evagrius Ponticus
Recepción: 19 Mayo 2021
Aprobación: 06 Octubre 2021
Evágrio Pôntico (346-399 d.C.), monge-teólogo dos inícios do movimento monástico, é um dos primeiros autores cristãos a fazer uma grande sistematização dos demônios que incitam paixões doentias. Contra esses demônios, os Padres do Deserto, ascetas dos inícios do movimento monástico,1 se dirigiam para o deserto, seguindo os passos de Jesus (Mc 1,12-13; Mt 4, 1-11; Lu 4, 1-13). Evágrio é um dos poucos monges que, em exercendo a vida prática do deserto, também foi um pensador teórico da vida monástica.2 Ele realiza um minucioso estudo e detalhamento das características específicas desses demônios, organizando-os em um sistema de oito demônios (ou nove, como veremos), antecessor aos sete pecados capitais. O texto aqui traduzido é um condensado em forma de definições simples desses demônios/paixões e das virtudes correspondentes que ajudam os monges a vencê-los.
Neste texto, a lista é composta por nove demônios, o que lhe é peculiar, pois na maioria dos textos que tratam dos demônios sistematicamente, eles aparecem como oito (a inveja aqui ganha um destaque especial que não há em outros textos).3 Assim, temos a gastrimargia (gula) em oposição à enkráteia (continência); a porneía (luxúria) e a sophrosýne (temperança); philarguría (avareza) e aktemosúne (pobreza); a orgé (ira) e a makrothymía (paciência); a lypé (tristeza) e a chara (contentamento); a akedía (acídia) e a hypomoné (perseverança); a kenodoxía (vaidade) e a akenodoxía (falta de vaidade); a phthónos (inveja) e a aphthonía (falta de vaidade); a hyperephanía (orgulho) e a tapeínosis (humildade).
Natural de Ibora no Ponto, hoje na região da Turquia, Evágrio4 teve sua educação e início de carreira estreitamente vinculados a Basílio de Cesareia e Gregório de Nazianzo. O primeiro, quando era bispo de Cesareia, atribuiu a Evágrio a posição de lector, mas é Gregório de Nazianzo o grande professor de Evágrio. Quando Gregório se torna bispo de Constantinopla, Evágrio faz-se seu diácono, e ambos participam do Concílio de Constantinopla em 381 d.C. Nesse mesmo ano, depois que Gregório deixa o episcopado, Evágrio ainda permanece em Constantinopla, mas uma reviravolta amorosa o força a fugir. Ele se apaixona por uma mulher casada e foge para Jerusalém, para junto de Melânia, a Antiga, e de Rufino, que o acolhem e o aconselham a ir para o Egito. Chega, então, a Nitria (hoje, Wadi el Natrum), um dos centros monásticos mais conhecidos. Dois anos depois, adentra ainda mais o deserto, indo para Kellia, ou “as Celas”, onde ficará até 399, ano de sua morte.
Evágrio, tendo tido uma excelente educação com grandes eruditos de sua época, é o primeiro teólogo que sistematiza o pensamento por trás do movimento monástico. A obra de Evágrio como um todo pode ser dividida em duas grandes seções: uma ascética e outra mística, isto é, uma vinculada à prática (praktiké) da disciplina, outra à realização da gnose de Deus. Primeiramente, temos os textos vinculados à praktiké, a prática ascética, com seus regimes e controle dos desejos e, especialmente, sua sabedoria no combate aos demônios. Em segundo lugar, temos os textos vinculados à vida gnostiké, vida gnóstica ou contemplativa. A via gnostiké está centrada em pelo menos três níveis de contemplação de realidades sagradas, numa certa hierarquia, começando pelo mundo sensível, passando pelas inteligências espirituais, chegando por fim na contemplação da própria Trindade, ápice da vida gnóstica.5
Os textos vinculados à praktiké, além de serem uma introdução à vida monástica, são ensinamentos que visam à compreensão das táticas de batalha contra esses demônios, ou grupo de demônios, que nos incitam desejos obsedantes, impulsos degenerados e mortíferos. Ao descrevê-los, com suas artimanhas e disfarces, os textos de Evágrio buscam instruir os monges a como vencer esses demônios. Afastar-se do mundo e se sentir um estrangeiro frente a tudo é o primeiro passo para esse enfrentamento: a prática da anachorésis6e da xeneteía,7 isto é, do se retirar e de se tornar um estrangeiro ao mundo. Estes não são só uma primeira etapa, mas são como um núcleo fundamental e persistente em toda prática ascética: o monge se afasta do mundo, ou melhor, de uma identificação com o mundo, da ideia de que sua essência depende do quadro histórico que ali o colocou: a cidade, os pais, a tradição geograficamente construída.8 Esse quadro histórico em que todos são colocados no mundo ao nascerem, pensam os monges, não determina o ser humano naquilo que ele tem de mais fundamental, que seria, em verdade, a nossa comunhão com o divino. O mundo físico e nossa dependência psíquica dele são repletos de forças que nos oprimem e impedem uma fruição contemplativa da divindade.9 Temos, então, uma cena de batalha na vida do monge: sua natureza mais íntima o inclina para a vida contemplativa, mas forças das mais complexas (demônios, memória, ignorância etc.) o assaltam e o arrastam para longe do prazer espiritual contemplativo. Portanto, nada melhor para combatê-los do que estudar suas qualidades e características: por isso, temos uma catalogação dos demônios.10
O estudo das emoções na antiguidade e também das doenças e distúrbios mentais é algo bastante complexo, que já tem certa história.11 A simples transposição de conceitos contemporâneos para termos antigos deve ser vista com cautela, especialmente por um possível anacronismo reducionista que impossibilitaria a percepção de diferenças e sutilezas úteis para o avanço nas pesquisas. Não se pode dizer que o que hoje se conhece por tristeza, por exemplo, seja o mesmo que se entendia por lýpe nos textos de Evágrio, e o presente texto é uma importante contribuição para a história das emoções. Isto se torna mais claro quando se sublinha que o que hoje conhecemos por sete pecados capitais tem uma de suas origens cruciais em Evágrio e sua catalogação dos demônios ou emoções ou pensamentos em oito grandes tipos (ou nove, como no presente texto). Evágrio defende que os pensamentos (logismoí) que nos sobrevêm podem ter as mais diversas origens,12 e uma delas são os demônios, sempre à espreita de nos tentarem para os desejos obsedantes que nos afastam da contemplação divina. Aqui, já teríamos uma característica que distingue a forma de Evágrio pensar a subjetividade, na medida em que nossos próprios pensamentos não são frutos de uma atividade interior do sujeito pensante, isto é, seu surgimento na consciência individual provém de entidades exteriores.
O termo logismós,13 pensamento, por vezes, é utilizado como sinônimo de daímon ou de páthos, apesar de podermos delinear suas diferenças: o logismós é o conteúdo representacional em nossa consciência; o daímon é um ente realmente existente no mundo que nos insufla o pensamento; e o páthos é a carga emocional vinculada ao pensamento em questão. Assim, por exemplo, ao estarmos em oração, um prato de comida caro e extravagante pode vir a nossa mente (logismós), a partir da agência de um demônio que percebeu nossa fraqueza por aquele prato. Por isso, a emoção da gula, um desejo de comer aquele prato, pode surgir em nós, nos afastando da prática contemplativa cerne da oração.14
Vale salientar que há toda uma psicologia com base estoica15 própria a Evágrio. Nela, afirma-se a liberdade do assentimento humano frente aos pensamentos que lhe sobrevém. O ser humano é responsável por aceitar ou não, por assim dizer, as sugestões dos logismoí/daímones. O capítulo 6 do Tratado prático16 apresenta a famosa distinção estoica17 entre aquilo que está e aquilo que não está sob meu encargo: o demônio nos tenta para além de nossa vontade, isto é, não é encargo meu ser ou não tentado pelo demônio, mas aceitar ou não sua tentação é encargo da minha livre escolha. Como está bem explicitado no Tratado prático 6, o poder dos demônios vai somente até a sugestão pelos logismoí das paixões, mas o ser humano é responsável por escolher a tentação, sendo assim sua responsabilidade a vida afastada de Deus, a vida que se entrega às paixões.
Essa tipologização demonológica, isto é, esta categorização em grandes grupos de demônios, vai claramente desembocar18 na divisão tão famosa em sete pecados capitais. Pela importância e proeminência dessa catalogação de pecados, há um interesse peculiar pela forma como Evágrio os determina e os cataloga. Seus antecedentes também são bem interessantes de serem estudados, tendo destaque para as três tentações de Cristo já citadas, mas aqui não é o lugar para desenvolver nem os antecedentes nem as ideias que foram influenciadas pelos textos ascéticos de Evágrio.
A relevância do presente texto vai além do interesse pela história dos termos vinculados aos sete pecados capitais. Intrínseco a sua demonologia, há uma intricada psicologia em Evágrio, representando muito bem a perspicácia própria dos padres do deserto, mestres do dom do discernimento dos espíritos. Sua psicologia visa, especialmente, a desmascarar motivos escondidos por trás de atos aparentemente de boa intenção.
Sua tripartição psicológica é, marcadamente, platônica,19 absorvendo literalmente a tripartição que encontramos na República ou no Fedro. Temos, assim, três partes na alma: 1. apetitiva (epitymethikon) ; 2. irascível (thymoeidês); 3. calculativa ou inteligível (logistikón, noûs). Os grandes tipos de demônios são compreendidos e divididos entre si a partir dessa tripartição, sendo, talvez, um dos motivos por que Evágrio, aqui neste texto, apresenta nove demônios e não oito, como é mais comum. A divisão por nove permite uma equivalência de demônios por parte da alma, sendo estruturada no seguinte modelo: gula, luxúria e avareza, vinculados à parte apetitiva; tristeza, ira e acídia, ao irascível; e por fim, vaidade, inveja e orgulho ao inteligível.
Uma rápida nota sobre o estilo literário do Sobre as oposições de vícios e virtudes: o que se apresenta aqui nesta tradução, pela primeira vez em português, é um texto bem peculiar de Evágrio. De acordo com Fogielman, o texto segue o estilo das horoí kaì hypographoi,20 que pode ser encontrado em diversos contextos21 na antiguidade tardia. Temos um excelente exemplo no Apophategma patrum22 de Rufino, em que definições são apresentadas para a hesykhía, a tranquilidade: “[...] Oh, tranquilidade, progresso dos solitários, oh, tranquilidade, escada celeste, oh, tranquilidade, mãe da compunção, oh tranquilidade, que busca a penitência, oh, tranquilidade, imagem das faltas, [...]”. Sua importância é atestada por Evágrio no Gnostiké 17, em que é dito que, para o progresso espiritual, é necessário conhecer as definições. Aliás, um dos textos de Evágrio, o Kaphalaia Gnostiká, tem também esse formato de definições, mas não se compara no aspecto poético ao Sobre as oposições de vícios e virtudes.
O texto aqui traduzido é composto por uma introdução densa e, por vezes, obscura, seguindo pelas definições dos nove demônios na ordem já descrita (gula, luxuria, avareza etc.). Na estrutura formal da parte das definições de cada um dos vícios e virtudes, temos um conjunto de mais ou menos 15 expressões formadas por um par de termos, normalmente um genitivo (“de que”) e um nominativo (“o que”).23 Fogielman (2015, p. 155), em seu trabalho sobre o presente texto, afirma que, com pequenas definições, Evágrio procede por pequenos toques, operando aproximações abertas, dando um ar de impressionismo com seu estilo sublime e lírico. Fogielman entende que, em comparação com os outros exemplos de definições da antiguidade, o presente texto realiza uma proeza literária, pois nela o estilo é muito mais rebuscado, com escolhas de palavras refinadas e pouco utilizadas.
Podemos entrever pelo menos três relações básicas entre os dois termos: 1. o nominativo pode afirmar, reforçar ou auxiliar a execução do primeiro termo; 2. ele pode também negar, impedir ou obstruir o primeiro termo; 3. o nominativo pode, enfim, indicar o modo como o primeiro termo é realizado ou experimentado pelo monge, descrevendo a relação que o monge tem com o vício ou a virtude em questão. Peguemos como exemplo para analisar as 5 primeiras definições da virtude da enkráteia, a Continência, oposta à Gula. “A Continência é do estômago, um freio; da insaciabilidade, um chicote;24 da boa medida, a estabilidade; do glutão, o bridão; ao repouso, a renúncia; da austeridade, assunção [...]”. Destes, “chicote, freio, bridão e renúncia” negam ou restringem o que é a eles relativo. Já a “estabilidade e assunção” afirmam ou garantem o termo que descrevem. Vale indicar também que estas definições funcionam em duplas ou trincas, sendo agrupadas ou pelo sentido expresso ou por aspectos sonoros dos termos. Por exemplo, na vaidade, temos: προκοπῆς ἀλλοτρίωσις, ἐγκοπῆς δε οἰκείωσις, “do progresso, alienação; dos obstáculos, a familiaridade”. Em português, perde-se a sonoridade das expressões que se alinham em grego.
No entanto, o texto deve “falar por si mesmo” e nada melhor do que ir ao próprio texto para que ele possa apresentar suas ideias e contribuições.





