Resumo: Em tempos de globalização, o artigo propõe a aplicação do conceito de circuitos espaciais produtivos como procedimento metodológico para a análise da patrimonialização no mundo contemporâneo. O contexto em discussão envolve inter-relações dos projetos de reestruturação urbana com bens patrimoniais e, como estratégia de city marketing, políticas de patrimonialização que se valem da proliferação de equipamentos culturais, tombados ou não, para participar ativamente da indústria cultural globalizada. Por meio de pesquisa visando identificar os circuitos espaciais produtivos envolvidos na construção e operação do Museu do Amanhã, o estudo compreende a espacialização dos agentes envolvidos nessas atividades, bem como o papel desempenhado por organizações nacionais e internacionais responsáveis pela produção desse novo ícone da paisagem e do imaginário carioca.
Palavras-chave:espaçoespaço,patrimonializaçãopatrimonialização,patrimônio culturalpatrimônio cultural,circuito espacial produtivocircuito espacial produtivo,Museu do AmanhãMuseu do Amanhã.
Resumen: En tiempos de globalización, el artículo propone la aplicación del concepto de circuitos espaciales productivos como procedimiento metodológico para el análisis de la patrimonialización en el mundo contemporáneo. El contexto en discusión involucra interrelaciones de los proyectos de reestructuración urbana con bienes patrimoniales y, como estrategia de city marketing, políticas de patrimonialización que se valen de la proliferación de equipamientos culturales, reconocido o no, para participar activamente en la industria cultural globalizada. Por medio de investigación para identificar los circuitos espaciales productivos involucrados en la construcción y operación del Museu do Amanhã, el estudio comprende la espacialización de los agentes involucrados en esas actividades, así como el papel desempeñado por organizaciones nacionales e internacionales responsables por la producción de ese nuevo icono del paisaje y, del imaginario carioca.
Palabras clave: espacio, patrimonialización, patrimonio cultural, circuito espacial productivo, Museo del Mañana.
Abstract: In times of globalization, the article proposes the application of the concept of productive spatial circuits as a methodological procedure for the analysis of the patrimonialization in the contemporary world. The context under discussion involves the interrelations of urban restructuring projects with patrimonial assets and, as a strategy of city marketing, patrimonial policies that use the proliferation of cultural equipment, whether or not listed, to participate actively in the globalized cultural industry. Through research aimed at identifying the productive spatial circuits involved in the construction and operation of the Museu do Amanhã, the study includes the spatialization of the agents involved in these activities, as well as the role played by national and international organizations responsible for the production of this new icon of the landscape and of the Carioca imagination.
Keywords: space, patrimonialization, cultural heritage, productive spatial circuit, Museu do Amanhã.
Artigos
Patrimonialização e circuitos espaciais produtivos do Museu do Amanha, Rio de Janeiro

Recepção: 30 Junho 2019
Aprovação: 17 Setembro 2019
Publicado: 01 Março 2020
Laura De Bona[1]
Manoel Lemes da Silva Neto[2]
Resumo: Em tempos de globalização, o artigo propõe a aplicação do conceito de circuitos espaciais produtivos como procedimento metodológico para a análise da patrimonialização no mundo contemporâneo. O contexto em discussão envolve inter-relações dos projetos de reestruturação urbana com bens patrimoniais e, como estratégia de city marketing, políticas de patrimonialização que se valem da proliferação de equipamentos culturais, tombados ou não, para participar ativamente da indústria cultural globalizada. Por meio de pesquisa visando identificar os circuitos espaciais produtivos envolvidos na construção e operação do Museu do Amanhã, o estudo compreende a espacialização dos agentes envolvidos nessas atividades, bem como o papel desempenhado por organizações nacionais e internacionais responsáveis pela produção desse novo ícone da paisagem e do imaginário carioca.
Palavras-chave: espaço; patrimonialização; patrimônio cultural; circuito espacial produtivo; Museu do Amanhã.
Patrimonialización y circuitos espaciales productivos del Museu do Amanhã, Rio de Janeiro
Resumen: En tiempos de globalización, el artículo propone la aplicación del concepto de circuitos espaciales productivos como procedimiento metodológico para el análisis de la patrimonialización en el mundo contemporáneo. El contexto en discusión involucra interrelaciones de los proyectos de reestructuración urbana con bienes patrimoniales y, como estrategia de city marketing, políticas de patrimonialización que se valen de la proliferación de equipamientos culturales, reconocido o no, para participar activamente en la industria cultural globalizada. Por medio de investigación para identificar los circuitos espaciales productivos involucrados en la construcción y operación del Museu do Amanhã, el estudio comprende la espacialización de los agentes involucrados en esas actividades, así como el papel desempeñado por organizaciones nacionales e internacionales responsables por la producción de ese nuevo icono del paisaje y, del imaginario carioca.
Palabras-clave espacio; patrimonialización; patrimonio cultural; circuito espacial productivo; Museo del Mañana.
Patrimonialization and productive spatial circuits of the Museu do Amanhã, Rio de Janeiro
Abstract: In times of globalization, the article proposes the application of the concept of productive spatial circuits as a methodological procedure for the analysis of the patrimonialization in the contemporary world. The context under discussion involves the interrelations of urban restructuring projects with patrimonial assets and, as a strategy of city marketing, patrimonial policies that use the proliferation of cultural equipment, whether or not listed, to participate actively in the globalized cultural industry. Through research aimed at identifying the productive spatial circuits involved in the construction and operation of the Museu do Amanhã, the study includes the spatialization of the agents involved in these activities, as well as the role played by national and international organizations responsible for the production of this new icon of the landscape and of the Carioca imagination.
Keywords: space; patrimonialization; cultural heritage; productive spatial circuit; Museu do Amanhã.
DOI: https://doi.org/10.26512/patryter.v3i5.25518
Como citar este artigo: De Bona; L.; Silva Neto, M. L. (2020). Patrimonialização e circuitos espaciais produtivos do Museu do Amanhã, Rio de Janeiro. PatryTer – Revista Latinoamericana e Caribenha de Geografia e Humanidades, 3 (5), 1-17. DOI: https://doi.org/10.26512/patryter.v3i5.25518
1. Introdução
Idealizado como um dos principais equipamentos culturais da Operação Urbana Consorciada Porto do Rio (conhecida como projeto Porto Maravilha), o Museu do Amanhã, na Praça Mauá, Rio de Janeiro (RJ), foi inaugurado em dezembro de 2015. Diferentemente dos museus tradicionais, seu projeto propõe pensar o futuro a partir do momento histórico presente, trazendo discussões contemporâneas sobre o ambiente e a sociedade.

Projetado pelo arquiteto espanhol Santiago Calatrava e com a colaboração de projetistas brasileiros e estrangeiros, o edifício foi concebido obedecendo diretrizes técnicas internacionais de sustentabilidade. Arquitetura singular, proposta inovadora e papel destacado na divulgação do projeto de reestruturação urbana da zona portuária. São traços que inserem o Museu do Amanhã como mais um ícone a compor as belas paisagens do Rio de Janeiro.
Embora não seja um patrimônio institucionalizado por tombamento, o edifício pode ser considerado como um novo elemento constituinte da identidade carioca, inclusive por exercer uma função de marco do último projeto de modernização da zona portuária (Figura 1), em execução desde 2009.
Impulsionado pela Operação Urbana Consorciada Porto do Rio, esse projeto de modernização é o mais recente dos projetos de intervenção urbanística que, desde a década de 1980, foram sucessivamente propostos com a justificativa de reagir à decadência das atividades portuárias nos bairros da Saúde, Gamboa e Santo Cristo (Moreira, 2004).
De modo exemplar, e correspondendo ao ideário promovido pelos projetos iconizados pelas cidades globais, as circunstâncias que marcaram a viabilidade do projeto Porto Maravilha podem ser atribuídas à realização de megaeventos internacionais sediados na cidade. A Copa do Mundo de Futebol, em 2014, e os Jogos Olímpicos, em 2016.
Nesse cenário, o projeto e sua concretização depararam-se, por um lado, pela inserção do equipamento na tradicional Praça Mauá (próximo ao Museu de Arte do Rio, também localizado na Praça Mauá, e inaugurado em 2013), e, de outro pelo chamamento atrativo que o Museu do Amanhã representa como estratégia de city marketing, como equipamento cultural não tombado, dotado, em potência, de enorme força de patrimonialização a movimentar a indústria cultural globalizada e polarizada no Rio de Janeiro.
O contexto da produção do Museu do Amanhã indica que, para compreendê-lo em totalidade, há necessidade de analisar sua materialização em dimensões mais amplas que o entorno imediato.
A análise implica elucidar relações complexas que o Museu do Amanhã mantém com o Rio de Janeiro, com o país e com o mundo.
É nessa perspectiva que se apresenta os circuitos espaciais produtivos (Santos, 1986). O conceito permite ensaiar relações econômicas, técnicas e sociais articuladas na produção de um determinado objeto. No caso, de um equipamento candidato a integrar-se ao patrimônio contemporâneo brasileiro.
2. Patrimonialização no contexto da globalização: níveis analíticos
O espaço, constituído pela articulação de sistemas de objetos e sistemas de ações (Santos, 2014), reúne as condições técnicas e sociais que configuram a singularidade de dado lugar, em dado momento histórico. Essas condições são também o resultado empírico de transformações contínuas decorrentes de ações e eventos que ocorrem na dimensão dos lugares, mas também no mundo: totalizações de uma totalidade em constante movimento.
Se a globalização aciona verticalidades portadoras de projetos hegemônicos, sua efetividade se dá no domínio das horizontalidades onde se acham os meios para que se realizem, concretamente, nos lugares.
Com a patrimonialização não é diferente. Entendido como um processo de duplo alcance (Leite & Proença, 2009), o conceito, hegemonizante (Torelly, 2012), acirra conflitos entre sua apropriação globalizada, a serviço dos agentes dominantes, e os interesses locais que com eles interagem, com maior ou menor constrangimento.
No caso do Museu do Amanhã, “pátria, empresa e mercadoria” (Vainer, 2000) são dimensões que se mesclam para dificultar a identificação do real alcance dessa classe de projetos e do quanto constrangem os lugares.
O debate que envolve tal confronto não é recente.
Observa-se que, desde a década de 1960, movimentos sociais, artísticos e acadêmicos estimulam o debate sobre a preservação de monumentos e patrimônios históricos. Com a corrente preservacionista (Choay, 2006), reafirmam-se as identidades dos lugares em um momento de intensificação de circulação de pessoas e mercadorias na escala global.
Paradoxalmente, com o preservacionismo e potencialização da dimensão cultural, impulsiona-se a constituição de uma indústria cultural, especialmente pautada no turismo (Vaz, 2004), indicando, com isso, o amálgama dos projetos globais com a heterogeneidade dos lugares e contextos.
Nessa indústria cultural, as principais mercadorias são os bens patrimoniais, a materialidade de valores simbólicos inerentes às identidades e práticas culturais, e que formulam novas territorialidades pautadas no consumo mundializado.
Inserido na lógica de uma fase semiótica do capitalismo, o turismo legitima práticas de preservação do patrimônio e a consolidação de narrativas consagradas por um grupo cultural dominante (Paes-Luchiari, 2005). Na medida em que os monumentos, patrimônios e ícones são elementos constituintes da paisagem e que a paisagem pode ser reestruturada por projetos urbanos, esses bens patrimoniais podem ser (e são) instrumentalizados para uma inversão simbólica planejada.
É desse modo que a patrimonialização de elementos existentes ou construídos com a finalidade de legado permite, em princípio, a atribuição do valor econômico pelo tombamento institucional e pela “reinvenção” discursiva dos lugares, tendo na culturalização (Vaz, 2004) estímulo à implantação de equipamentos culturais como âncoras desses projetos de reestruturação.
As transformações espaciais não são consideradas somente na sua dimensão físico-territorial, mas envolvem, em grau crescente, ponderações de ordem simbólica, onde o lugar, a imagem e a identidade, elementos profundamente ancorados na cultura local se tornaram fundamentais. No mundo global, onde a modernização gerou a estandardização e a homogeneidade, e em que muitas cidades industriais viram diluir sua identidade pelo deslocamento dessas atividades industriais para outros lugares, a diferenciação através da pujança da identidade local se torna um trunfo essencial.
Museus, além de equipamentos culturais, são também instituições que preservam e salvaguardam acervos que representam a cultura, seja ela local, étnica, estrangeira, humana. Enquanto a culturalização promove a apropriação da cultura como forma de reforçar a identidade dos lugares contra a homogeneização decorrente da globalização, esses museus representam a institucionalização da memória. Ao implantar esses e outros equipamentos culturais associados a intervenções urbanísticas como estratégia de recuperação de áreas degradadas, recorre-se, também, à patrimonialização desses lugares para a valorização simbólica como justificativa discursiva de “retorno às origens”.
O Museu do Amanhã é fruto desse processo (Figura 2). É o legado dos megaeventos que viabilizaram a reestruturação da zona portuária do Rio de Janeiro, e marco de um futuro sustentável, tecnológico e global. É proposto como elo entre a globalização e as heranças da formação da cidade do Rio de Janeiro.

3. Monumento, patrimônio histórico, ícone e indústria cultural: notas sobre os conceitos
Para Pierre Nora (1993), frequentemente citado em reflexões sobre bens patrimoniais e identidade cultural por ter cunhado a expressão “lugares de memória”, devemos reconhecer a história e a memória como oposições entre razão e emoção, estático e dinâmico, universal e particular, passado e presente. Como agente estruturador entre esses termos, em níveis científico, pedagógico e prático: o Estado-Nação.
Entretanto, o entendimento da memória enquanto fenômeno plural, coletivo e dinâmico, a descompassa em relação à regulação exercida pelo Estado, que exerce seu poder sob princípios culturais-ideológicos legitimadores dessa instituição (Barrios, 1986). Essa legitimação se dá, dentre outros meios, pela responsabilidade da instituição na construção de uma história nacional.
No caso francês explorado por Pierre Nora, a revolução de 1789 construiu uma narrativa histórica sobre elementos de memórias coletivas que pudessem firmar a nação.
Outro exemplo desse processo de construção identitária, vinculada à produção simbólica de marcos referenciais, é apontada em “A invenção das tradições”, obra organizada por Eric Hobsbawm e Terence Ranger (2015).
Na introdução do livro, Hobsbawm destaca que tradições profundamente enraizadas no imaginário coletivo e no cotidiano por vezes não são tão antigas, sendo em alguns casos deliberadamente inventadas para consolidar novos valores: a tradição é marcada pela invariabilidade, enquanto o costume é mais espontâneo, dinâmico. Ambos, no entanto, têm papel pedagógico que pode inculcar sentimentos de identificação – como as narrativas históricas pautadas no patrimônio.
Elemento constituinte e evidência concreta do espaço, a paisagem altera-se pouco em curto prazo (Santos, 2014). Há resquícios concretos que permanecem ao longo do tempo. São referências de períodos passados e elementos constituintes da identidade dos lugares.
No atual período histórico, essa sobreposição de tempos vem impulsionada pela aceleração contemporânea (Santos, 1993).
Mais do que aceleração técnica, relacionada à velocidade dos deslocamentos, do crescimento exponencial do consumo e do conhecimento, a aceleração contemporânea conduz novos ritmos que banalizam o próprio avanço técnico.
A vertigem resultante da aceleração contemporânea, de que fala Milton Santos, implica a sensação de constante ressignificação do mundo. Os extensivos esforços de conservação decorrem dessa percepção de perda de referências: da memória, do savoir-faire, dos valores e tradições. Emergem em nome da transmissão dos atributos simbólicos que constituem as identidades e o senso de pertencimento (Jeudy, 2005).
Embora essas técnicas e práticas de preservação tenham ganho força nas últimas décadas, não é recente salvaguardar suportes materiais e imateriais da identidade coletiva pelo “dever da memória”.
Há séculos recorre-se a elementos concretos dotados de atributos e valores simbólicos inerentes que podem exercer esse papel de transmissão: monumentos, construídos intencionalmente com fins de rememoração; patrimônios históricos remanescentes de outros períodos cujo valor simbólico é atribuído posteriormente; ou ícones que, independentemente dos valores memoriais ou históricos, tornaram-se referências ou marcos.
Lembra Choay (2006), o conceito de monumento, historicamente, consolidou-se durante o Renascimento. Deriva do latim monumentum, que por sua vez deriva do verbo monere, “o que adverte” ou “o que lembra”.
As práticas relacionadas aos monumentos comemorativos, com finalidade de transmissão de valores, e monumentos históricos, cujo valor está na persistência do objeto no tempo independentemente da intenção memorial inicial, eram práticas restritas aos antiquários. Contudo, os ideais iluministas, pregando a razão e a disseminação do conhecimento, implicaram a sistematização dos procedimentos de catálogo, fortalecendo a importância da representação e de metodologias inspiradas nas ciências naturais, como a botânica (Choay, 2006).
Os desdobramentos advindos com a Revolução Francesa exemplificam a transformação na atribuição de valor aos monumentos.
No processo de transição do Antigo Regime para a República, atos de vandalismo promoveram a destruição de artefatos representativos da ordem social anterior. Essa postura iconoclasta, a princípio, foi incentivada pelo Estado recém-criado (Choay, 2006). Entretanto, logo se percebeu o potencial valor econômico dos bens que estavam sendo destruídos, e verificou-se uma mudança de postura: os bens confiscados de instituições como a monarquia e a igreja, principais alvos da Revolução, foram declarados patrimônios da nação, de sua propriedade.
Justificava-se, portanto, a administração e a proteção exercida pelo Estado.
Nesse processo de institucionalização do patrimônio nacional envolvia-se o “tombamento”, ou inscrição do bem nos autos públicos, o inventário desses bens e a posterior destinação para proteção ou venda. Além de viabilizar arrecadação de fundos para o Estado, esse reconhecimento formal do valor simbólico do patrimônio teria sido fundamental na construção da nova identidade nacional pós-revolução.
Desde então, o entendimento de que a identidade e a memória coletiva necessitavam de um suporte material para se constituirem já estava consolidado. O caráter de herança cultural já estava valorizado.
É a esse período de instrumentalização de suportes de memória para estruturação da identidade nacional que Pierre Nora (1993) se refere para estabelecer relações entre memória, história e nação.
Com a Revolução Industrial, no século XIX, a mudança de paradigmas e de modos de produção tranformou radicalmente a dinâmica de formação das aglomerações urbanas europeias, trazendo outras contextualizações para a cidade, para o edifício e para a memória.
Em decorrência, o entendimento de que o patrimônio histórico é parte constituinte da paisagem faz surgir duas correntes de preservação predominantes: o restauro, segundo as concepções de Viollet Le Duc – onde a reconstrução não se restringe às características originais do edifício –, e a corrente teórica segundo as concepções de Ruskin e Morris – que valorizam a originalidade do edifício e preveem intervenções pontuais e imperceptíveis visando garantir a estabilidade do patrimônio.
Dentre os esforços de conceituação e teorização desenvolvidos nesse período, destaca-se a obra de Alois Riegl, publicada no início do século XX.
Segundo Choay (2006), Riegl é o primeiro autor a distinguir monumentos e monumentos históricos: de rememoração (Erinnerungswerte), são ligados ao passado e a memória; e de contemporaneidade (Gegenwartswerte), ligados ao presente.
Os valores de rememoração podem estar relacionados à memória (costumes), à história e à história da arte ou ao valor de ancianidade (testemunho cronológico), enquanto os valores de contemporaneidade podem se relacionar à qualidade artística (relativa à uma corrente artística ou de novidade) ou de uso. É a partir dessa corrente teórica que se torna possível relacionar as concepções de monumento e patrimônio à difusão da arquitetura icônica no século XX.
À propósito, a origem do termo ícone está na categoria semiótica de índice e pode ser relacionada à categoria de marco, proposta por Kevin Lynch (1997) no livro “A imagem da Cidade”, publicado no final da década de 1950. Trata-se de elementos que exercem, na área de arquitetura e urbanismo, funções vinculadas à identificação de lugares ou regiões.
Almeida (2012) descreve o fenômeno de reprodução de edifícios espetaculares como formas esculturais que atuam como marcas, em busca de reconhecimento público, visibilidade na mídia e retorno econômico: mais do que um referencial no entorno, um produto.
Para Almeida (2012), os edifícios icônicos tornaram-se uma estratégia recorrente. Visavam estimular o crescimento econômico dos lugares em que se implantaram.
As experiências pioneiras dessa estratégia foram: o Museu Guggenheim, em Bilbao, projetado por Frank Gehry, que remetia a experiência anterior do Museu Guggenheim em Nova York, projetado por Frank Lloyd Wright; o Terminal TWA em Nova York, projetado por Eero Saarinen; a Opera House em Sydney, projetado por Jørn Utzon; e o Centro Georges Pompidou em Paris, projetado por Renzo Piano e Richard Rogers (Almeida, 2012).
Essas experiências estimularam a apropriação coletiva de edifícios icônicos como bens patrimoniais devido a valores artísticos, de uso ou de rememoração, independentemente do fato de se reportarem a obras contemporâneas ou históricas. Por sua singularidade, não é necessário possuir conhecimento técnico para serem apropriados como referências simbólicas para a população.
Henri-Pierre Jeudy (2005, p. 16) também reforça a criação deliberada de memórias e patrimônios ao afirmar que bens patrimoniais criados no presente são reflexo do “espírito patrimonial”, instituído no período histórico atual, e se justificam pelo “registro da conservação presumida para os tempos futuros”.
Ou seja, são patrimonializados os elementos selecionados do cotidiano que deverão ser transmitidos para gerações futuras. Nesse processo de formulação discursiva, é possível notar uma postura quanto a seletividade do que se deve “preservar” e do que se deve “esquecer”.
O que predispõe à seleção na conservação patrimonial? O princípio de reflexividade permite acreditar que, contra o risco do esquecimento, as escolhas da conservação patrimonial não podem mais ser arbitrárias. Tudo concorre virtualmente para produzir um efeito de espelho salutar para a preservação da ordem simbólica de uma sociedade. A produção atual de ‘lugares memoráveis’, locais e monumentos, tende a provar que seu aspecto simbólico é ‘gerável’. Os organizadores do patrimônio podem assim acreditar que detêm os meios de tratar as representações comuns desses ‘lugares memoráveis’ como um capital simbólico. As memórias são ‘colocadas em exposição’ para que o reconhecimento de sua singularidade seja igualmente assegurado (Jeudy, 2005, p. 22).
Associada a essa formulação intencional de significados, a objetificação dos bens patrimoniais os prepara para serem consumidos como mercadorias destituindo-lhes seus conteúdos inerentes. No processo de produção cultural e econômica do espaço reestruturado, o “valor da novidade” se associa ao “valor histórico” dos lugares (Fernandes, 2006).
Nesse cenário, a produção de edifícios icônicos torna-se profícua. A singularidade representa novidade que, viabilizando a atração de turistas e de investimentos, atribui valor econômico agregado ao “valor” icônico.
Trata-se do que Lilian Fessler Vaz (2004) apontou como transformação da abordagem culturalista dos anos 1960 ao “culturalismo de mercado”.
No caso da reestruturação de áreas degradadas e estigmatizadas, Díaz e Salinas (2016) complementam a análise desse processo de valorização simbólica. Nesse quadro, a ressignificação não é apenas resultado da recuperação material desses lugares, mas de uma estratégia deliberada de produção de significados. E, por consequência, do consumo desses significados.
Em Henri Lefebvre (2013), a concepção de “consumo do espaço urbano” contribui no entendimento do processo. Os símbolos de distinção e os estilos de vida também agregam valores.
Assim é que os territórios estigmatizados por estilos de vida e símbolos historicamente consolidados podem se transformar e atender estratégias de inversão simbólica planejada por meio da publicidade, do marketing urbano, dos megaeventos etc.
É o caso da zona portuária do Rio de Janeiro. Sua ocupação remete às primeiras décadas após a fundação da cidade, ganhando importância econômica após a transferência da capital da colônia de Salvador, na década de 1760. Já na virada do século XIX verificou-se a necessidade de modernização das atividades portuárias, pelo aumento da exportação do café. A expansão de empregos na estiva, a proximidade da região do centro – onde se concentravam outras oportunidades de trabalho – e o aumento da crise habitacional provocaram a proliferação de habitações coletivas, especialmente na segunda metade do século XIX.
Outro fator relevante na configuração espacial da zona portuária do Rio de Janeiro foi a construção da Estrada de Ferro D. Pedro II, em 1854, e das docas de Dom Pedro II, além de redes de saneamento pela Cia. City Improvements a partir da década de 1870.
A disponibilidade de infraestrutura valorizou usos comerciais, industriais e portuários e desvalorizou o uso residencial, reduzindo o custo da habitação e atraindo residentes de baixa renda (Silva, Andrade & Canedo, 2012). Decorrente dessa característica comercial, além da presença da população negra que já habitava a região desde o período colonial, a presença expressiva de imigrantes portugueses concentrou-se no Morro da Conceição, “lugar de paisagem urbana com aparência portuguesa” (Carlos, 2010).
Ou seja, esses fatores implicaram a constituição de uma formação social bastante peculiar, marcada pela presença de imigrantes, escravos e ex-escravos, e pessoas vindas de outras cidades brasileiras em busca de oportunidades. Sua diversidade cultural engendrou o estigma da região como lugar proibitivo para pessoas de maior poder aquisitivo (Carlos 2010).
Em compensação, a articulação social que se constituiu nesse território inspirou diversos movimentos de resistência, como por exemplo, as Revoltas da Vacina (1904) e da Chibata (1910).
Outro resultado desse caldo cultural foi o samba carioca, cuja origem é atribuída aos grupos de população afrodescendente que habitavam o entorno da Pedra do Sal (Gomes, 2003).
Já na segunda metade do século XX, nova necessidade de expansão de atividades portuárias impactaram fortemente na região, com a transferência dessas atividades para outras regiões da cidade.
É decorrente dessas últimas décadas de declínio econômico e esvaziamento populacional que, em 2009, surge o projeto Porto Maravilha. Foi impulsionado pelos grandes eventos internacionais e pela oportunidade de “renovar” a imagem da zona portuária carioca para o mundo.
Embora as políticas de preservação da área remetam à década de 1980 com a aprovação da “Área de Proteção Ambiental de logradouros localizados nos bairros de Santo Cristo, Saúde, Gamboa e Centro, na I e II Regiões Administrativas” em 1987, conhecida como APA SAGAS[i] (que regulamenta o tombamento e parâmetros construtivos no polígono definido pelo IPHAN na região em 1986), apenas no contexto de grandes eventos internacionais que se viabiliza a reestruturação de uma área histórica central e portuária, de caráter popular e com grande diversidade cultural, fundamental na história do Rio de Janeiro.
E isso se deu na esteira da patrimonialização, da culturalização e da reprodução de modelos internacionais tais como as Docklands, Bilbao e Puerto Madero.
4. Aplicação da metodologia dos Circuitos Espaciais Produtivos no caso do Museu do Amanhã
Quando se pensa as circunstâncias da produção de qualquer objeto, é natural que se identifique que essa produção seja realizada em etapas. No limite, pode-se pensar na produção individual de cada componente desse objeto, estabelecendo uma cadeia produtiva que é composta por relações técnicas e sociais, e que se realiza em diversos lugares.
Na instância da produção propriamente dita, na circulação, na distribuição ou no consumo, cada etapa do processo produtivo é realizada em um dado lugar graças as convergências entre as condições de realização das etapas e os lugares onde podem ser produzidas e reproduzidas.
Cada etapa do circuito produtivo é realizada por pessoas, empresas ou mesmo instituições, configurando fluxos materiais e imateriais, incrementando a circulação e induzindo transformações que se realizam no e pelo espaço (Arroyo, 2008).
Nesse direcionamento, o Centro de Estúdios del Desarrollo (CENDES) da Universidade Central da Venezuela, desenvolveu, no final da década de 1970, o projeto “MORVEN: Metodologia para o Diagnóstico Regional” (Barrios, 1980).
Segundo Milton Santos (1986), o objetivo era identificar a segmentação dos espaços regionais envolvidos nos circuitos estabelecidos pela produção de determinado produto, verificando as relações técnicas e sociais estabelecidas e observando as particularidades dos países do Terceiro Mundo (Castillo & Frederico, 2010).
Como procedimento metodológico para a análise da produção do espaço, outra virtude do emprego do conceito é explicar inter-relações entre regiões envolvidas nos circuitos produtivos. Isso é possível na medida em que se pode identificar a situação relativa dos lugares em relação à divisão territorial do trabalho.
E mais, para efeito analítico, as relações que se travam entre os lugares obedecem a ordens de três naturezas: econômica, social e técnica (Santos, 1986).
Exemplificando: pensar o circuito espacial de um produto industrial produzido em série envolve identificar os produtores das matérias primas, de cada componente desse produto, as etapas de montagem e a circulação do produto finalizado para centros de distribuição até os locais de venda para o consumo final. Isto é: produção, circulação e consumo.
Mas no caso da construção e operação do Museu do Amanhã não é bem assim.
O conceito pode contribuir na compreensão dos circuitos espaciais produtivos ali envolvidos, mas sua aplicação não pode ser diretamente transferida.
Como pensar o circuito espacial produtivo de, por exemplo, um edifício ícone? Quais são os agentes envolvidos na produção desses “patrimônios contemporâneos”, repletos de dimensões simbólicas que atuam no imaginário coletivo?
No caso, o que importa são os princípios e as etapas a serem percorridas para se alcançar a explicação dos circuitos espaciais produtivos do Museu do Amanhã, como equipamento cultural, como patrimônio contemporâneo e no contexto do fenômeno de globalização. Mesmo não sendo institucionalmente tombado, o Museu do Amanhã é um ícone da nova modernização do território, e exerce o papel de marco em uma intervenção permeada por estratégias de patrimonialização e culturalização.
Apesar de não se tratar de uma cadeia produtiva convencional, ainda assim a utilização do método comprovou-se válida na medida em que foi possível considerar: (i) a construção desse equipamento cultural, como instância de produção, (ii) sua divulgação, como circulação, e (iii) o conteúdo produzido e difundido naquele lugar, como instância de consumo.
Para efeito analítico, a pesquisa produziu uma base documental. A atividade objetivou o levantamento de colaboradores, responsáveis técnicos e fornecedores envolvidos na obra e, também, fornecedores e parceiros responsáveis pela atualização do conteúdo apresentado no acervo digital da exposição principal do Museu do Amanhã.
Primeiramente, a pesquisa em artigos de sites especializados em arquitetura e da própria instituição[ii] viabilizou identificar o agente responsável, pessoa física, empresa ou instituição, e a localização da sede.
Observação: no caso das empresas multinacionais, considerou-se a localização da matriz.
Já o trabalho de consolidação desses resultados envolveu a colaboração ativa do Instituto de Desenvolvimento e Gestão (IDG)[iii], órgão responsável pela gestão da instituição. Obteve-se, assim, o detalhamento das informações necessárias à identificação dos circuitos envolvidos na produção da obra[iv] e do acervo.
Ainda na etapa de consolidação, o trabalho consistiu em produzir um banco de dados onde cada ocorrência da base documental equivaleu a registro único. Cada atividade identificada por um produto ou processo e um agente por eles responsável, quer instituição, empresa ou pessoa física, equivaleu a um registro.
Ao final do processo, a triagem das 457 atividades inicialmente levantadas[v] resultou numa base documental primária perfazendo 316 atividades, ou registros.
Na etapa seguinte, de processamento dos dados, o objetivo foi classificar as atividades descritas em cada registro segundo sua natureza. Ou seja, se relacionada à ordem econômica, à ordem técnica, referente à construção do edifício, ou à ordem social, que se reporta à produção do acervo e às parcerias científicas envolvidas na programação das atividades do Museu do Amanhã.
Observadas as relações econômicas, técnicas e sociais, o estudo dos circuitos que se estabeleceram entre os lugares de concretização do produto, no caso, o Museu do Amanhã, na cidade do Rio de Janeiro, e 14 cidades brasileiras e 15 no exterior, revelou os lugares de fornecimento dos insumos de produção, circulação e consumo desse equipamento cultural.
Finalmente, o processamento dos dados propiciou a elaboração de quadros e mapas que testam a pertinência de se considerar os circuitos espaciais produtivos como metodologia válida para o estudo da produção do patrimônio cultural contemporâneo.
É o que pode ser observado na seção seguinte.
5. Os circuitos espaciais produtivos do Museu do Amanhã
A base documental (Quadro 1), indicando 316 registros categorizados por atividade, compreendeu a subdivisão segundo ordem e origem do insumo ou produto, observando-se o predomínio de registros relacionados a agentes europeus e norte-americanos, no caso dos fluxos originados no exterior, e no eixo Rio-São Paulo, no caso dos fluxos produzidos no Brasil (Figura 3).


Na ordem econômica, a concepção e realização das obras são de responsabilidade de empresas e instituições brasileiras, especialmente a Fundação Roberto Marinho e a Concessionária Porto Novo (formada pelas construtoras OAS S.A., Norberto Odebrecht S.A. e Carioca Christiani-Nielsen Engenharia), com apoio das instâncias federal, estadual e municipal de governo.
A gestão da instituição também é responsabilidade da IDG, que é uma empresa nacional. Contudo, há empresas internacionais diretamente relacionadas ao funcionamento do Museu, notadamente a Shell, como mantenedora, o Banco Santander, como patrocinador “máster” e as empresas Engie e IBM, como patrocinadoras.
Ou seja, os grandes financiadores da construção do Museu do Amanhã são instituições nacionais, mas são as empresas estrangeiras que financiam sua operação.
Quanto a ordem técnica, também se verifica predominância de agentes brasileiros na fabricação de materiais e execução das obras. Porém, as concepções iniciais e definições projetuais de maior relevância, como projeto arquitetônico (Santiago Calatrava LLC), estruturas metálicas (Projeto Alpha Engenharia de Estruturas e Santiago Calatrava LLC), consultoria de projetos (Arup) e concepção museográfica (ORB LLC) foram realizadas por grandes empresas estrangeiras.
Os agentes nacionais se restringem ao detalhamento e projetos menores, definidos pelos projetos realizados no exterior.
O padrão se mantém na ordem social.
Os principais colaboradores de conteúdos são empresas estrangeiras, como a JCDecaux (fornecedora oficial de mídia), THNK School of Creative Leadership e DutchCulture Centre of International Cooperation (parceiros internacionais), Cisco e Intel (parceiros tecnológicos), Spotify (player oficial) e Foundation Engie, Newton Fund e British Council (parceiros em projetos especiais).
Dos agentes envolvidos na consultoria de atualização do acervo digital, também há numerosas parcerias internacionais (Figura 4).
Quanto aos registros referentes aos agentes nacionais, a análise identifica que a localização de empresas, instituições e pessoas envolvidas na produção do Museu do Amanhã se concentra no eixo Rio-São Paulo.
Na ordem econômica, relacionada ao financiamento e gestão da instituição, verifica-se a predominância de agentes situados no Rio de Janeiro, como a Fundação Roberto Marinho e a IDG, responsáveis pela concepção e gestão, e o Grupo Globo, parceiro estratégico, assim como empresas com sede em São Paulo, como o Instituto CCR, a rede hoteleira Windsor Hotels e a Estapar, que dão apoio ao Museu.

Atrelados à realização da obra, os agentes estão em Brasília. Trata-se do governo federal e do então Ministério da Cultura.
Na ordem técnica, a grande concentração de agentes está na cidade do Rio de Janeiro e região e em empresas de outras capitais, tais como as responsáveis por instalações elétricas e sonorização.
Destaca-se a empresa responsável pelo Plano Museológico (Expomus Exposições, Museus e Projetos Culturais), de São Paulo, que seguiu as orientações da produção museográfica projetada por empresas estrangeiras.
Quanto à produção da ordem social, que está fortemente associada à produção de conteúdo, a atividade mais relevante do circuito espacial produtivo reflete a produção continuada relacionada à dimensão do consumo do Museu, onde se observa maior diversidade de cidades de origem, porém se mantendo o padrão de concentração no eixo Rio-São Paulo.
Na execução das instalações do Museu, há recorrência dos agentes-empresas situados nas regiões metropolitanas do Rio de Janeiro e de São Paulo, confirmando a primazia desse eixo na conformação da rede urbana brasileira.
Ainda que mais dispersos, os agentes colaboradores na produção e atualização do conteúdo do acervo também estão nesse eixo.
São instituições de pesquisa do Rio de Janeiro (Fundação Oswaldo Cruz, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Fundação Planetário, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca), de São Paulo (Universidade de São Paulo, Museu da Pessoa), Campinas (Universidade Estadual de Campinas) e São José dos Campos (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais e Instituto de Aeronáutica e Espaço).
Localidades externas ao eixo compreendem Natal (Instituto Internacional de Neurociência de Natal) e Brasília (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico e Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, à época, órgão responsável pela construção do edifício).
Observação importante é que, embora 75,9% dos fluxos de atividades tenham origem no Brasil, a participação desses agentes está relacionada à execução e operacionalização. Os demais, fluxos originados no exterior, é que desempenham as funções mais centrais e importantes.
Em princípio, esse quadro retrata a globalização envolvida na produção dos circuitos espaciais desse equipamento cultural[vi] e a dependência do Brasil em face aos agentes dominantes.
O Museu do Amanhã, por sua política de internacionalização e pela gestão vinculada às parcerias público-privadas, arregimenta colaboradores internacionais na ordem econômica preponderantemente localizados nos Estados Unidos e em países europeus. Quanto à ordem técnica envolvida na construção do equipamento, o padrão espacial identificado permanece, concentrando maior número de colaboradores no Brasil e apresentando agentes nos Estados Unidos, em países europeus e Índia.
Por sua vez, a ordem social é a que contém maior número de agentes envolvidos. Mantém-se o padrão de concentração dos agentes no Brasil, porém há predomínio do feixe de fluxos originados na Europa e Estados Unidos.
Outro detalhe significativo é que nas ordens econômica e técnica há franco predomínio da participação de empresas, em detrimento às instituições e pessoas físicas. Das 58 atividades identificadas na ordem econômica, 50 são desempenhadas por empresas. Na ordem técnica, das 93 atividades, 81 estão a cargo de empresas.
Na ordem social o comportamento é mais equilibrado entre empresas e instituições públicas. Das 165 atividades identificadas, registrou-se, respectivamente, 73 e 64 ocorrências.
A lógica dessa distribuição é igualmente verificada no caso das atividades desempenhadas no Brasil. Empresas predominando na ordem técnica e construtiva. Empresas e instituições públicas na ordem social.
Reduzindo a escala de análise ao nível nacional, outro padrão pode ser visualizado. Nas três ordens analisadas, há grande concentração dos agentes no eixo Rio-São Paulo.
A ordem econômica do Museu do Amanhã indica a localização de agentes envolvidos no financiamento da instituição nas cidades do Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília, sede do governo federal. Já a ordem técnica indica maior incidência de cidades fora do eixo Rio-São Paulo, apesar da maioria manter-se localizada nessas duas cidades.
Ainda assim, compreende capitais estaduais (Salvador e Belo Horizonte) ou cidades situadas nas áreas metropolitanas do Rio de Janeiro e de São Paulo, além de Brasília, no Distrito Federal.
Na ordem social, o padrão de concentração permanece, mas com a participação de outra capital (Natal), com reincidência de Brasília e cidades situadas nas regiões metropolitanas de São Paulo e Rio de Janeiro. Há, nesse caso, presença de agentes na região de Campinas, porém, essa também se trata de uma outra região metropolitana do estado de São Paulo, que mantém relações estreitas com São Paulo e possui instituições universitárias que contribuem com a atualização do conteúdo do Museu (por exemplo, a Universidade Estadual de Campinas).
Os resultados indicam que, o Museu do Amanhã apresenta maior grau de internacionalização na produção do edifício e de seu conteúdo. Esse caráter está relacionado às estratégias de gestão da instituição visando atrair investimentos privados e colaboração científica com renomados centros de pesquisa estrangeiros.
Também pode-se verificar esse traço nas escolhas de projeto, com alto teor de sofisticação técnica, que demandaram a importação de materiais e a colaboração com técnicos internacionais, especialmente pela experiência do arquiteto responsável pela obra.
Quanto aos agentes brasileiros, a concentração no eixo Rio-São Paulo se deve à proximidade e a presença significativa de alta especialização profissional dos agentes situados na região de São Paulo, refletindo o contexto de maior centro urbano do país.
6. Considerações finais: território usado como possibilidade para outra patrimonialização
Um dos principais projetos da Operação Urbana Consorciada Porto do Rio, conhecida como Porto Maravilha, o Museu do Amanhã foi idealizado e consolidado como novo marco da paisagem e do imaginário cariocas. Símbolo da internacionalização da zona portuária do Rio de Janeiro pela arquitetura singular e suas parcerias institucionais, é um elo entre as heranças da formação da cidade e o futuro mundializado.
Sua produção remete à consolidação da indústria cultural constituída a partir da década de 1960, na qual suportes materiais e imateriais da memória e identidade dos lugares são inseridos em um mercado movimentado pelo turismo, por atrações culturais e megaeventos e atração de investimentos internacionais.
Os circuitos espaciais produtivos do Museu do Amanhã permitem identificar a participação de agentes internacionais em atividades-chave em sua construção e, ainda mais, na operação, representativa da instância de consumo do Museu.
Embora o edifício não seja um patrimônio institucionalizado pelo tombamento, ele exerce papel de marco da modernização de uma área histórica da cidade, constituindo elemento importante da paisagem local, especialmente pela grande exposição midiática que irradia.
Apesar desse caráter perverso de valorização econômica e de homogeneização promovida pela indústria cultural instrumentalizada, a patrimonialização contribui como elemento de coesão social: pode fortalecer vínculos sociais, a solidariedade e respeito à diversidade cultural.
As urbanidades praticadas e vivenciadas ali, ultrapassam os limites do reconhecimento institucional do patrimônio. Fortalecem, também, expressões culturais de fato.
Nesse sentido, a categoria território usado (Santos, 1999) possibilita compreender os nexos de solidariedade e pertencimento que constituem os lugares, resultantes da dinâmica local e global.
Acreditamos que esses são os nexos que devem ser fortalecidos pela patrimonialização, e não aqueles representativos de projetos hegemônicos impostos pelas relações técnicas e sociais consolidadas no contexto da globalização.
Com esse horizonte possível, os circuitos espaciais produtivos do Museu do Amanhã deveriam refletir uma reversão dos fluxos.
Ao invés de serem nitidamente marcados de cima para baixo, do norte para o sul, poderiam representar projetos de baixo para cima, ou então, do sul para o sul. Ou melhor, de dentro do Brasil e para o Brasil.
Não se trata de fechar fronteiras ao mundo. Trata-se, sim, de estabelecer os princípios do que Walter Stöhr (1981) denominou de “cerrazón espacial selectiva”.
Mesmo antes da globalização escancarar-se nos anos 1990, esse economista regional propôs que o fechamento espacial seletivo poderia evitar a transferência para o exterior de bens e fatores de produção.
“Esta integración de los recursos del territorio y de las estructuras sociales podría servir de base para otros impulsos de desarrollo originados en la misma región” (Stöhr, 1981, p. 11).




