Resumo:
O objetivo desse trabalho é investigar a relação entre a perspectiva edênica e a concepção paisagística de Brasília como cidade-parque moderna. Primeiramente, destaca o motivo edênico na implantação da capital a partir de três visões: paradisíaca, infernal e patrimonial. Na sequência, ressalta a relevância da paisagem natural na escolha do sítio de locação da capital brasileira. Posteriormente, examina a concepção paisagística do Plano Piloto sob três perspectivas: aquática, terrestre e aérea. Por fim, ressalva o papel das escalas urbanísticas de Brasília como diretrizes que resguardam as características essenciais da paisagem da capital. O trabalho debate sobre paisagens e patrimonialização na América Latina ao apontar aspectos do mito edênico e da natureza do sítio que são incorporados no Plano Piloto desde o cerne do projeto e contribui para ressaltar a relevância da análise da paisagem para o planejamento territorial, o desenvolvimento urbano e a preservação patrimonial. Palavras-chave: patrimônio; paisagem; Brasília; urbanismo; modernismo.
Palavras-chave:patrimôniopatrimônio,paisagempaisagem,BrasíliaBrasília,urbanismourbanismo,modernismomodernismo.
Resumen: El objetivo de este artículo es investigar la relación entre la perspectiva edénica y la concepción del paisaje de Brasília como ciudad-parque moderna. Primero, destaca el motivo edénico en la implantación de la capital desde tres visiones: paradisíaca, infernal y patrimonial. Luego, destaca la relevancia del paisaje natural en la elección de la ubicación de la capital brasileña. Luego examina el diseño del paisaje del Plan Piloto desde tres perspectivas: agua, tierra y aire. Finalmente, enfatiza el papel de las escalas urbanas de Brasília como pautas que salvaguardan las características esenciales del paisaje de la capital. El documento analiza los paisajes y el patrimonio en América Latina señalando aspectos del mito edénico y la naturaleza del sitio que se incorporan al Plan piloto desde el corazón del proyecto y contribuye a resaltar la relevancia del análisis del paisaje para la planificación territorial, el desarrollo urbano y la preservación del patrimonio.
Palabras clave: patrimonio, paisaje, Brasilia, urbanismo, modernismo.
Abstract: The aim of this paper is to investigate the relationship between the Edenic perspective and the landscape conception of Brasilia as a modern city-park. First, it highlights the Edenic motive in the implantation of the capital from three visions: paradisiacal, infernal and patrimonial. Then, it highlights the relevance of the natural landscape in choosing the location of the Brazilian capital. It then examines the landscape design of the Pilot Plan from three perspectives: water, land and air. Finally, it emphasizes the role of Brasilia's urban scales as guidelines that safeguard the essential characteristics of the capital's landscape. The paper discusses landscapes and heritage in Latin America by pointing out aspects of the Edenic myth and the nature of the site incorporated into the Pilot Plan from the heart of the project and contributes to highlight the relevance of landscape analysis for territorial planning, urban development and heritage preservation.
Keywords: heritage, landscape, Brasilia, urbanism, modernism.
Artigos
Da perspectiva edênica à concepção paisagística de Brasília,cidade-parque
Desde la perspectiva edénica hasta el diseño del paisaje de Brasília, ciudad-parque
From the Edenic perspective to the landscape design of the modern Brasília, park-city

Recepção: 30 Agosto 2019
Aprovação: 03 Setembro 2019
Publicado: 01 Setembro 2020
Alba Nélida de Mendonça Bispo[1]
Resumo: O objetivo desse trabalho é investigar a relação entre a perspectiva edênica e a concepção paisagística de Brasília como cidade-parque moderna. Primeiramente, destaca o motivo edênico na implantação da capital a partir de três visões: paradisíaca, infernal e patrimonial. Na sequência, ressalta a relevância da paisagem natural na escolha do sítio de locação da capital brasileira. Posteriormente, examina a concepção paisagística do Plano Piloto sob três perspectivas: aquática, terrestre e aérea. Por fim, ressalva o papel das escalas urbanísticas de Brasília como diretrizes que resguardam as características essenciais da paisagem da capital. O trabalho debate sobre paisagens e patrimonialização na América Latina ao apontar aspectos do mito edênico e da natureza do sítio que são incorporados no Plano Piloto desde o cerne do projeto e contribui para ressaltar a relevância da análise da paisagem para o planejamento territorial, o desenvolvimento urbano e a preservação patrimonial.
Palavras-chave: patrimônio; paisagem; Brasília; urbanismo; modernismo.
Desde la perspectiva edénica hasta el diseño del paisaje de Brasília, ciudad-parque
Resumen: El objetivo de este artículo es investigar la relación entre la perspectiva edénica y la concepción del paisaje de Brasília como ciudad-parque moderna. Primero, destaca el motivo edénico en la implantación de la capital desde tres visiones: paradisíaca, infernal y patrimonial. Luego, destaca la relevancia del paisaje natural en la elección de la ubicación de la capital brasileña. Luego examina el diseño del paisaje del Plan Piloto desde tres perspectivas: agua, tierra y aire. Finalmente, enfatiza el papel de las escalas urbanas de Brasília como pautas que salvaguardan las características esenciales del paisaje de la capital. El documento analiza los paisajes y el patrimonio en América Latina señalando aspectos del mito edénico y la naturaleza del sitio que se incorporan al Plan piloto desde el corazón del proyecto y contribuye a resaltar la relevancia del análisis del paisaje para la planificación territorial, el desarrollo urbano y la preservación del patrimonio.
Palabras-clave: patrimonio; paisaje; Brasilia; urbanismo; modernismo.
From the Edenic perspective to the landscape design of the modern Brasília, park-city
Abstract: The aim of this paper is to investigate the relationship between the Edenic perspective and the landscape conception of Brasilia as a modern city-park. First, it highlights the Edenic motive in the implantation of the capital from three visions: paradisiacal, infernal and patrimonial. Then, it highlights the relevance of the natural landscape in choosing the location of the Brazilian capital. It then examines the landscape design of the Pilot Plan from three perspectives: water, land and air. Finally, it emphasizes the role of Brasilia's urban scales as guidelines that safeguard the essential characteristics of the capital's landscape. The paper discusses landscapes and heritage in Latin America by pointing out aspects of the Edenic myth and the nature of the site incorporated into the Pilot Plan from the heart of the project and contributes to highlight the relevance of landscape analysis for territorial planning, urban development and heritage preservation.
Keywords: heritage; landscape; Brasilia; urbanism; modernism.
DOI: 10.26512/patryter.v3i6.26965
Como citar este artigo: Bispo, A. N. M. (2020). Da perspectiva edênica à concepçao paisagística de Brasília, cidade-parque. PatryTer – Revista Latinoamericana e Caribenha de Geografia e Humanidades, 3 (6), 35-50. DOI: 10.26512/patryter.v3i6.26965.
1. Introdução[i]
O objetivo desse artigo é investigar a relação entre a perspectiva edênica e a concepção paisagística de Brasília como cidade-parque moderna. Primeiramente, destaca a persistência do motivo edênico na concepção de Brasília a partir de três visões – paradisíaca, infernal e patrimonial – considerando as análises ventiladas por Holanda (1996), Moraes (2005; 2006), Carvalho (1998), Sevcenko (1996) e Panzini (2013). Na sequência, ressalta a relevância da paisagem natural na escolha do sítio de locação da capital brasileira, dialogando com autores do campo da arquitetura e urbanismo e da geografia, como Araújo (2013), Pereira (2018), Ribeiro (2007) e Mongelli (2011). Posteriormente, examina a concepção paisagística do Plano Piloto sob três perspectivas – aquática, terrestre e aérea – a partir dos trabalhos de Kim & Wesely (2010), Oliveira (2016) e Leitão & Fischer (2009), investigando os vínculos entre tradição e modernidade, bem como entre paisagem e patrimônio, sobretudo a partir das análises de Jucá (2009), Tavares (2014), Vasconcellos (1959; 1977) e Costa (1995). Por fim, ressalta o papel das escalas urbanísticas de Brasília como diretrizes que resguardam as características essenciais da paisagem da capital.
2. Da perspectiva edênica à escolha do sítio: entre paraíso, inferno e patrimônio
A partir de três visões – paradisíaca, infernal e patrimonial – esse artigo busca destacar a persistência do motivo edênico na concepção de Brasília e ressaltar a relevância da paisagem natural na escolha do sítio para implantação da nova capital brasileira.
2.1. Visão paradisíaca
O mito edênico origina-se nas terras da antiga Babilônia, em paralelo ao mito dos jardins suspensos existentes numa terra inóspita para a agricultura, sendo disseminado na tradição cristã em que “a promessa de um lugar de vida melhor é representada pela imagem de um jardim arborizado, rico em frutos e em águas: é o Éden, ou Paraíso”, explica Panzini (2013, p. 59-60).
Já no século XV e XVI, na chamada “era dos descobrimentos ou das grandes navegações”, as representações do mundo tropical, naturalizadas ou idealizadas por pintores, gravuristas e cartógrafos, associadas à narrativas ficcionais que se confundiam com descrições realistas, contribuíram para compor uma visão paradisíaca no imaginário do colonizador europeu sobre o continente americano, sobretudo em relação às regiões tropicais ao sul da linha do Equador, objeto de colonização portuguesa e espanhola.
O mundo tropical – com suas exuberâncias que não conhecem os rigores do inverno, com sua fauna e flora exóticas e homens e mulheres desnudos como Adão e Eva – realimentou de novas imagens as tradições medievais do paraíso terrestre que, convencionalmente situado nas terras do oriente, ressurgiu no imaginário do mundo ocidental dos primeiros tempos das descobertas, fazendo proliferarem, nos mapas, elementos de paisagens paradisíacas. (Moraes, 2005, p. 167-168)
Desde o início do processo de colonização da América, a persistência do motivo edênico no imaginário brasileiro, conforme ventilado por Holanda (1996) e Carvalho (1998), contribui para reafirmar a visão do país como natureza considerando: as belezas naturais e intocadas, o clima, a fertilidade do solo, as riquezas minerais, a grandeza do território e a ausência de grandes calamidades ou flagelos naturais como secas, terremotos, tufões e epidemias. O livro “História da América Portuguesa” de Rocha Pita, publicado em 1730 e considerado a primeira história do Brasil escrita por um brasileiro, registra o tom edênico ao apontar o país como paraíso:
Em nenhuma outra região se mostra o céu mais sereno, nem madruga mais bela a aurora; o sol em nenhum outro hemisfério tem raios tão dourados, nem os reflexos noturnos tão brilhantes; as estrelas são mais benignas e se mostram sempre alegres; os horizontes, ou nasça o sol, ou se sepulte, estão sempre claros; as águas, ou se tomem nas fontes pelos campos, ou dentro das povoações nos aquedutos, são as mais puras; é enfim o Brasil Terreal Paraíso descoberto, onde tem nascimento e curso os maiores rios; domina salutífero clima; influem benignos astros e respiram auras suavíssimas, que o fazem fértil e povoado de inumeráveis habitadores. (Rocha Pita, 1730, p. 3-4 como citado em Carvalho, 1998, p. 2)
Paralela à visão paradisíaca, a exploração de recursos naturais, minerais e vegetais impulsionou a expansão europeia ao sul da zona tropical da América Latina, marcada por uma intervenção agressiva, conforme ressalta Sevcenko (1996, p. 110): “a prática da ocupação e colonização do solo brasileiro foi fundamentalmente predatória, destrutiva e que não só modificou mas, no limite, extinguiu a natureza original e a transformou em ruína”. Assim, numa perspectiva menos romantizada destaca-se a visão infernal.
2.2. Visão infernal
Sevcenko (1996) considera duas formas de percepção dos europeus no processo de colonização: 1) a percepção sensual ou sensorial da paisagem a partir da projeção ou impulso desejante; 2) a prática agressiva da intervenção predatória do desbravador. Por um lado, “o desejo pelo desconhecido, a vontade de conquistar, de penetrar naquilo que é virgem e indevassável, intocado” realizado por uma gente que constrói a paisagem, pois “vê nessa paisagem a fonte de um ato de adoração e a projeção de um ato de desejo. A paisagem é a coisa amada, e é por isso que pintam ou produzem imagens, ilustrações, ou então escrevem, fazem poesia a respeito da natureza assim transfigurada em objeto do desejo” (Sevcenko, 1996, p. 110). Por outro lado, a intervenção violenta no ato de desbravar e colonizar, ou seja:
(...) a prática propriamente agressiva do ato ou da intervenção colonizadora, e que implica no contato direto, físico, com esse meio – em função da extração daquilo que se veio buscar pelo ato da colonização: o vegetal tropical ou o minério. E, nesse sentido, o que o colonizador tem diante de si não é mais paisagem, o que ele tem diante de si é a mata ou o sertão bravio. (...) Desbravar, romper aquela virgindade nativa, e agressivamente impor o seu controle e o seu domínio sobre a natureza. Natureza que, por sua vez, aparece aqui como o inimigo a ser vencido e a ser espoliado. (Sevcenko, 1996, p. 110-111)
A grandiosidade do território brasileiro, as disputas e negociações com as diferentes etnias indígenas nativas e os obstáculos impostos pela natureza tropical interpôs aos colonizadores uma série de desafios infernais ao longo do processo de interiorização e ocupação dos sertões. Sevcenko (1996) analisa o processo de colonização sob o comando de duas cores fundamentais - o vermelho do fogo e o verde da mata - ressaltando a transição da natureza brasileira de paraíso à carcaça.
(...) a melhor paisagem do ponto de vista de quem está na posição do colonizador – que já não tem mais nenhum contato com a Europa e não tem outra alternativa senão marchar para diante – é a paisagem ausente, é a eliminação completa daquele verde. Porque melhor paisagem do ponto de vista de quem está na posição do colonizador – que já não tem mais nenhum contato com a Europa e não tem outra alternativa senão marchar para diante – é a paisagem ausente, é a eliminação completa daquele verde. Porque o verde é o perigo, a possibilidade iminente de sua extinção física. (Sevcenko, 1996, p. 111)
A guerra à natureza é contra o selvagem, a barbárie e o não-civilizado, em que a colonização e a urbanização estava associada ao progresso e à civilidade. Nesse sentido, Carvalho (1998, p. 17) destaca a avaliação do filósofo alemão Hegel que achava que a América, principalmente a do Sul, estava condenada a ser prisioneira da natureza e a nunca se elevar à condição de história. Já o poeta irlandês Thomas Moore, que visitou a América no início do século XIX, rejeita a visão negativa da natureza americana, mas persiste no pessimismo quanto à população: à grandiosidade da natureza correspondia uma população selvagem, fraca, repugnante, idiota (Gerbi[ii], 1996, p. 254-257 como citado em Carvalho, 1998, p. 11).
No Brasil, essa visão pessimista do povo brasileiro encontra eco no discurso de Paulo Prado, empresário, produtor de café e organizador da Semana de Arte Moderna de 1922, notadamente na primeira sentença do seu livro “Retrato do Brasil: Ensaio sobre a tristeza brasileira”, lançado em 1928: “Numa terra radiosa, vive um povo triste”, marcado pela luxúria e cobiça (Prado, 1928, p. 10). Sevcenko (1996, p. 119) examina o livro de Paulo Prado, “no qual todo um capítulo é dedicado à paisagem, onde identifica que não há outro destino para a paisagem no Brasil que não seja o de desaparecer, e que essa é a condição da construção da modernidade no país e não outra”.
Uma das questões visíveis nas obras modernistas era o dilema temporal de saudosismo do passado, do nativismo, do bucolismo e dos aspectos regionalistas em contraposição ao contexto da época de futurismo, da valorização da vida citadina, da ideia do progresso como meta política, econômica e cultural; do “novomundismo” e da continuidade secular do destino mítico da sociedade brasileira como promessa de continuidade à civilização ocidental. (Araújo, 2013, p. 167).
Na contramão dessa violência destrutiva à natureza e buscando vincular tradição e modernidade, um grupo de intelectuais do movimento moderno, sobretudo a partir das décadas de 1920 e 1930, engaja-se em defesa da preservação e resguardo de obras monumentais da natureza. Entre inferno e paraíso, a paisagem se torna objeto de patrimonialização.
2.3. Visão patrimonial
No Brasil, a preservação patrimonial está intrinsicamente relacionada ao movimento moderno, sobretudo a partir da atuação de um grupo de artistas e intelectuais interessados em investigar as raízes culturais brasileiras, em busca de uma produção artística genuinamente nacional[iii]. As vozes deste ideário moderno encontram amparo no discurso nacionalista do Estado Novo durante a chamada Era Vargas (1937-1945), quando o governo federal institui ações de preservação para bens culturais de características estéticas singulares e representativas da noção idealizada da nação brasileira, destacando monumentos da natureza, do barroco e do modernismo como patrimônio nacional.
O processo de alegoria de obras culturais de valores artísticos, históricos, etnográficos ou paisagísticos confirma-se como estratégia política a partir de 1937 com a criação do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - Iphan. A partir de 1938 promove-se a patrimonialização de um conjunto de bens como heranças nacionais, incluindo o tombamento de áreas naturais como, por exemplo, as Praias de Paquetá e os Morros da Cidade do Rio de Janeiro como bens do patrimônio natural, bem como o Jardim Botânico e o Passeio Público como jardins históricos, ambos tombados ainda em 1938, no primeiro ano de implementação das ações de tombamento federal.
Cabe ressaltar que “a paisagem nasceu relacionada aos monumentos naturais de interesse para o tombamento”, no entanto, “com a Convenção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural, em 1972, a noção de patrimônio natural se consolidou mundialmente em substituição à noção de monumento natural, inclusive no Brasil” (Pereira, 2018, p. 62). Já na década de 1980 o Iphan amplia o olhar sobre as questões relacionadas ao patrimônio natural e ambiental, notadamente a partir da instituição da Coordenação do Patrimônio Natural: “A Coordenação teve como objetivos expandir os conceitos sobre o patrimônio natural, ampliar o olhar institucional sobre o assunto, tratar de temáticas como a arqueologia e a paleontologia, estender a atuação técnica, além de consolidar os procedimentos de intervenção nos jardins históricos”, esclarece Mongelli (2011, p. 107).
A ampliação do debate conceitual, entretanto, não corresponde a um volume expressivo de bens protegidos. Pereira (2018, p. 64) destaca que “o Iphan tem hoje sob sua tutela por meio do tombamento 1183 bens, dos quais apenas 40 são classificados como Bem Paisagístico (3,17%), sendo 12 jardins históricos e 28 patrimônios naturais”. Em análise ao conjunto de bens tombados por motivação paisagística, Pereira (2018, p. 65) avalia que “a paisagem até aqui tratada pode ser distinguida em três tipos: 1) a vinculada ao paisagismo (obra de arte criada pelo gênio humano); 2) a vinculada à natureza espetacular, grandiosa e monumental; e 3) a vinculada à natureza que faz parte da memória coletiva e das histórias de vida”. Nesse ínterim, vale ressaltar as possibilidades de leitura da paisagem como patrimônio:
A paisagem pode ser lida como um documento que expressa a relação do homem com o seu meio natural, mostrando as transformações que ocorrem ao longo do tempo. A paisagem pode ser lida como um testemunho da história dos grupos humanos que ocuparam determinado espaço. Pode ser lida, também, como um produto da sociedade que a produziu ou ainda como a base material para a produção de diferentes simbologias, locus de interação entre a materialidade e as representações simbólicas. (Ribeiro, 2007, p. 9)
A diversidade de olhares e narrativas sobre a paisagem como categoria de salvaguarda patrimonial se interpôs como um novo desafio ao Iphan diante dos instrumentos legais existentes para a preservação de paisagens. Em 2004, o engenheiro e arquiteto paisagista Carlos Fernando de Moura Delphim apontou a necessidade de elaborar um dispositivo legal para a preservação das paisagens culturais no documento “O patrimônio natural no Brasil”, considerando a responsabilidade do Brasil em preservar os bens inscritos na lista do Patrimônio Mundial da Humanidade enquanto signatário da Convenção Relativa à Proteção do Patrimônio Mundial Cultural e Natural de 1972. Já em 2006, indica a “Paisagem Cultural dos céus de Brasília” como primeira declaração de paisagem cultural brasileira[iv], considerando:
(...) uma paisagem em incessante mutação, efêmera e fugaz, deve-se assegurar as condições de contemplação daquilo que constitui a mais impressionante qualidade da Capital Federal. A geração de infinitas formas de imagens pareidólicas, as indescritíveis combinações de luz e sombra, as incontáveis manifestações divinas por meio de raios e fachos luminosos que jorram das nuvens fazem de Brasília um ponto de contato entre o céu e a terra, entre o humano e o divino. (...) Funde dimensões materiais e imateriais e exprime a identidade cultural da capital tão ou mais expressiva que o traçado urbano ou a arquitetura da cidade, que serão igualmente valorizados sob grande cúpula que cobre, deslumbra e torna deslumbrante a Capital do Brasil. (Delphim, 2006, p. 14)
De fato, o céu da capital brasileira é consagrado como elemento natural de grande beleza cênica por poetas, fotógrafos, cartógrafos, arquitetos, geógrafos, antropólogos e artistas em geral, incluindo os versos “céu de Brasília, traço do arquiteto” da música de Djavan, que confirmam uma leitura de integração entre paisagem natural e projetada, onde a natureza do sítio é reverenciada pelo projeto. Em Brasília, essa visão da natureza como herança emerge com clareza na concepção do projeto, especialmente ao considerar a trajetória de Lucio Costa, cujas intervenções procuram dialogar com os elementos naturais ou pré-existentes e conciliar preservação e modernidade.
O partido conceitual do Plano Piloto incorpora aspectos geomorfológicos do sítio natural no projeto urbanístico e integra elementos da natureza aos princípios urbanos do ideário moderno, para assim expressar o caráter monumental desejável, enquanto capital nacional. “Monumental não no sentido de ostentação, mas no sentido da expressão palpável, por assim dizer, consciente, daquilo que vale e significa”, conforme explica Costa (1995, p. 283) pois, a palavra monumental origina-se do latim monumentum, de monere, que significa advertir, lembrar ou trazer à lembrança. Nesse ínterim, vale ressaltar o simbolismo e as referências sublinhadas no traço conceptual de Brasília:
A cruz, matriz de Brasília, não derivava de razões funcionais, mas era antes uma forma simbólica sobreposta a um lugar até então completamente desabitado e agreste. Um ícone da civilização: não por acaso, o braço sobre o qual se erguem os edifícios representativos, correndo de leste para oeste, construía uma espécie de metáfora do destino da nação, ligando idealmente a costa do Atlântico, área da colonização histórica, aos novos territórios do Oeste amazônico, futuro do país. (Panzini, 2013, p. 563)
Paulatinamente, as políticas de interiorização, industrialização, modernização e patrimonialização empreendidas nos governos de Getúlio Vargas, ainda na década de 1930, e de Juscelino Kubistchek, já na década de 1950, consagrariam a efígie de um Brasil moderno, sobretudo com o reconhecimento internacional da arquitetura e urbanismo de Brasília como obras-primas do movimento moderno.
O discurso do presidente Getúlio Vargas era diretivo, “o verdadeiro sentido de brasilidade é a Marcha para o Oeste”, sentido geográfico que ganha conteúdo pelo potencial mineralógico do território, o qual atenderia a intenção desenvolvimentista em germe. (...) O velho ideal da interiorização da Capital - retomado - coincidiu com o movimento expansionista geopolítico getulista, que articulava segurança nacional e modernização das estruturas econômicas, sociais e administrativas. (Costa & Steinke, 2014, p. 6)
A Marcha para o Oeste rumo ao interior do Brasil que promoveria a mudança da capital para o Planalto Central reforça a centralidade e a sacralização do sítio natural como paraíso, diante dos desafios de dominar e transpor os sertões goianos, sobretudo considerando o Cerrado e a topografia como barreiras.
A topografia do país tem realmente constituído uma barreira, entre o interior e o mar, difícil de transpor. No centro e no sul do país, o planalto brasileiro, com seu clima temperado pela altitude, constitui a zona mais favorável ao povoamento e é nela que, de fato, se concentra a atividade econômica do país. Mas em tôda essa região central e meridional do Brasil a vertente oriental do planalto descamba muito violentamente para a costa atlântica, formando uma verdadeira muralha, de 800 a 1.000 metros de altura, em que só existem raras aberturas. (Lambert, 1967, p. 153 – grafia da publicação original)
De fato, considerando o motivo edênico, examinamos que o processo histórico de colonização e ocupação urbana do território brasileiro reflete-se no repertório de mitos fundadores de Brasília, a começar pelo processo de escolha do sítio natural para implantação da nova capital.
2.4. Relevância da paisagem natural na escolha do sítio da capital
A visão de um paraíso na área central da América do Sul permaneceu latente, inclusive na escolha do sítio para implantação de Brasília, que considerou um conjunto de missões expedicionárias aos sertões em torno da região das Águas Emendadas: “onde se reúnem as nascentes dos rios que compõem as três principais bacias hidrográficas do país: o São Francisco, o Paraná e o Tocantins” (Leitão & Fischer, 2009, p.22). Na historiografia brasiliense, a capital é associada ao ideal cristão da terra prometida, sobretudo em torno de um sonho de Dom Bosco em 1883 que teria previsto o nascimento de uma nova e majestosa civilização ao longo do paralelo 15, onde atualmente Brasília encontra-se implantada, e fazia referência ao futuro Lago Paranoá: “Entre o grau 15 e 20, havia uma enseada bastante extensa, que partia de ponto onde se formava um lago”, conforme descreve o sonho profético[v].
Para além do misticismo e das narrativas paradisíacas, na prática, o processo de escolha do sítio natural da futura capital remonta a fatos históricos ligados à independência e aos processos de ocupação do interior brasileiro. A referência mais remota[vi] data de 1761, quando o Marquês de Pombal, primeiro-ministro de Portugal, propôs transferir a capital do império português para o interior da colônia, sobretudo em função da segurança da corte portuguesa no Rio de Janeiro. Em 1789, paralelamente à Revolução Francesa, durante a Inconfidência Mineira foi cogitada a mudança da capital para a cidade de São João del-Rei no interior mineiro, segundo relata Ernesto Silva[vii]. Por fim, em 1823, o patriarca José Bonifácio defende a mudança para o centro-oeste e indica o nome “Brasília”:
Em diversos mapas antigos (séculos XVII e XVIII), para incitar a ocupação das terras no interior do país, o sertão, a localização de pedras preciosas, minérios e depois um lago – nascente de diferentes rios – curiosamente coincidiam com a linha de Tordesilhas. Alguns desses mapas designavam as terras portuguesas no continente americano pelo nome Brasíliae. Assim, a história da ocupação do Brasil parece, quase dois séculos depois, propor este lugar como centralidade ideal, e o nome, como reafirmação do país por meio de sua nova capital. (Jucá, 2009, p. 242)
A transferência da capital federal do Rio de Janeiro para Brasília, entretanto, só foi oficializada a partir da reserva de uma zona de 14.400 km² no Planalto Central estabelecida através da Constituição Republicana de 1891. No mesmo ano, foi nomeada a Comissão Exploradora do Planalto Central do Brasil, composta por 22 membros, incluindo militares, médicos, geólogos e botânicos, coordenados pelo astrônomo Luiz Cruls, cuja missão era eleger e demarcar o local para implantação da nova capital. A chamada “Missão Cruls” realizou uma série de levantamentos geomorfológicos, incluindo dados sobre topografia, geologia, pedologia, hidrologia, clima, flora, fauna, recursos minerais e materiais de construção. A área indicada no Relatório de 1893 pelo paisagista e botânico francês Auguste Glaziou, integrante da Missão Cruls, localiza-se no Planalto Central, um platô de rochas cristalinas que integra a ecorregião[viii] conhecida como Cerrado, conforme descreve:
Enfim, de jornada em jornada, estudando tudo: qualidade do solo, vantagem de águas, clima, caráter do conjunto da paisagem, etc., cheguei a um vastíssimo vale banhado pelos rios Torto, Gama, Vicente Pires, Riacho Fundo, Bananal e outros; impressionou-se profundamente a calma severa e majestosa desse vale. (Auguste Glaziou, 1893, como citado em Kim & Wesely, 2010, p. 10).
Ainda em 1894, o Relatório Cruls apontou a área mais adequada para se erguer a nova capital, delimitada fisicamente por um quadrilátero de 160x90 km situado em Goiás, que ficou conhecido como “Quadrilátero Cruls” e cuja localização incluía a área conhecida como “Águas Emendadas”. Na prática, o Relatório Cruls é o primeiro documento técnico que aponta a criação do Lago Paranoá (Figura 1) e descreve os elementos paisagísticos indissociáveis do Plano Piloto de Brasília: “A vista panorâmica das colinas circunvizinhas, […] de incomparável esplendor […], prendendo no mesmo lugar o espectador, maravilhado, mais majestosa ainda se tornaria com tão grande lençol d’água banhando-lhes a base, vivificando todos os contornos e deleitando a vista” (Auguste Glaziou, 1894, como citado em Leitão & Fischer, 2009, p. 243).

Em comemoração ao centenário da Independência, em 1922, o presidente Epitácio Pessoa instalou a “Pedra Fundamental da Futura Capital” nas proximidades da atual cidade de Planaltina. Entretanto, durante o período do Estado Novo (1937-1945), a transferência da capital seria adiada, sendo retomada a partir da Constituição de 1946, quando foi instituída a Comissão de Estudos para a Localização da Nova Capital, conhecida como “Missão Polli Coelho”, que ampliou a área de estudo para 77.000 m².
Finalmente, em 1953, em parceria com a Firma Donald J. Belcherand Associates Incorporated, foram efetivados levantamentos aerofotogramétricos da área incluída num retângulo de 52.000 km² que ficou conhecido por “Retângulo Belcher”. A partir destes dados, os cinco melhores sítios de 1.000 km² foram selecionados para implantação da capital, identificados por cores: amarelo, azul, verde, vermelho e castanho - sendo este último escolhido em 1955 pela “Missão Belcher” para sediar Brasília (Figura 1). De fato, “a escolha do sítio Castanho confirma aquele apontado pela Missão Cruls em 1896, assinalando sua excepcionalidade e, desde o princípio, a importância da paisagem natural na construção de uma cidade-capital”, defende Jucá (2009, p. 244).
A procura pela paisagem perfeita para a nova capital reforça a sacralização da natureza, tal como aponta Eliade (1992, p. 76): “Local perfeito, pois ao mesmo tempo mundo em miniatura e Paraíso, fonte de beatitude e lugar de Imortalidade”. Na prática, o sonho de Dom Bosco torna-se realidade a partir da transferência da capital para Brasília, realizada pelo presidente JK como meta-síntese de seu governo. Em 1956, com a definição clara da localização do sítio e a constituição do Lago Paranoá, é lançado o Edital do Concurso Nacional do Plano Piloto da Nova Capital do Brasil, cuja proposta vencedora é a de Lucio Costa.
3. Do sítio à concepção paisagística: perspectivas aquática, terrestre e aérea
Cabe ponderar sobre o senso de sítio e o conceito de escala como diretriz de concepção e preservação de Brasília, sobretudo considerando o contato de Lucio Costa com as heranças genuinamente brasileiras referenciadas nas cidades históricas tombadas, conectando referências do tradicional ao moderno na paisagem. Nesse sentido, da perspectiva edênica à concepção paisagística da capital brasileira, metodologicamente, buscamos examinar o Plano Piloto concebido pelo urbanista e arquiteto do patrimônio sob três perspectivas: aquática, terrestre e aérea.
3.1. Perspectiva aquática
Em “Visão do Paraíso”, Holanda (1996) destaca as consequências da conquista do Império dos Incas pelos espanhóis e o descobrimento das riquezas do Peru, cujo deslumbramento era retratado pelos cartógrafos da época. Holanda (1996) e Moraes (2005; 2006) ressaltam que as visões de paraíso e a busca por riquezas geraram incursões de desbravamento dos sertões do Brasil, em torno de narrativas míticas e do intercâmbio de conhecimentos com nativos indígenas e ao longo de vias fluviais que foram sendo cultivadas pelos bandeirantes, seguindo os caminhos traçados pelos tupis-guaranis. Neste exame da perspectiva aquática cabe lembrar que o processo de ocupação urbana do Brasil deriva, historicamente, da experiência e domínio das técnicas de navegação dos colonizadores portugueses que seguiram os cursos d’água e os caminhos indígenas para apossar e adentrar no extenso território, do litoral ao interior.
A região do Mato Grosso, centro geográfico do continente americano, foi a última das fronteiras da América Portuguesa a ser desbravada efetivamente. Freqüentemente, era identificada na cartografia dos séculos XVI e XVII, como o “grande Chaco”, uma clara referência à paisagem do pantanal mato-grossense, que se estende pelos atuais territórios do Brasil, Bolívia, Argentina e Paraguai. Foi também objeto de construções míticas, como a de uma grande lagoa interior – a “Laguna del dorado”, alimentada pelas águas dos principais rios do continente. (Moraes, 2006, p. 150).
Os mapeamentos cartográficos resultantes do processo de interiorização traziam referências a regiões de uma paisagem aquática excepcional, com destaque para o “grande Chaco” e a “Laguna del dorado” que estaria localizada na atual região central do Brasil (Figura 2), conforme Moraes (2005, p. 168) que ressalta: “em vários mapas do século XVI, essa lagoa recebeu nomes diversos – Eupana, Xarayes ou Parapitingaa –, figurando, muitas vezes, como nascente dos rios São Francisco, Prata e/ou Amazonas”. No mapa “America” destaca-se um grande lago ou lagoa na atual região central do Brasil, associada ao paraíso.

notar desenho[ix] de uma grande lagoa na atual
região central do Brasil
Mapa pertencente à edição francesa de 1619 do “Atlas” de Mercator-Hondius (Coleção de Arte ABN AMRO REAL, São Paulo). In: Teixeira, 2008, p. 243.Em “Raízes do Brasil”, Holanda (1995) explica que a escolha dos sítios para implantação das primeiras freguesias, vilas e cidades revela um certo pragmatismo econômico na decisão de conter a povoação no litoral ao longo dos séculos XVI e XVII, considerando as comunicações com a metrópole e a experiência dos navegadores portugueses. Holanda (1995) avalia que o espírito português é cordial às normas de conveniência de modo que não se opõe à natureza e habita as cidades se adaptando ao meio.
A colonização na América Portuguesa procura não intervir no ambiente natural de modo a adequar a geometria urbana ao perfil topográfico, adaptando-se às diferentes configurações morfológicas, como por exemplo: urbes que seguiam o modelo das cidades portuárias portuguesas, como Santos; núcleos de acrópole, como Olinda; cidades protegidas por baías naturais, como Rio de Janeiro; núcleos urbanos entre rios, como São Paulo. Em todos os casos, os núcleos urbanos são circunscritos ao meio natural de modo que “a cidade que os portugueses construíram na América não é produto mental, não chega a contradizer o quadro da natureza, e sua silhueta se enlaça na linha da paisagem”, ressalta Holanda (1995, p. 110).
Circunscrever a silhueta edificada da cidade nos contornos da paisagem natural é uma das características paisagísticas das primeiras cidades mineiras tombadas pelo IPHAN em 1938: Ouro Preto, Mariana, São João del-Rei, Tiradentes, Serro e Diamantina. Mesmo nos casos dos núcleos urbanos implantados no interior, em razão do descobrimento de ouro nos séculos XVII e XVIII que gerou grande afluxo de emigrantes para a região de Minas Gerais e posteriormente em direção ao Goiás, a ocupação urbana orientava-se pela topografia e pelo percurso da água de modo a gerar um “caminho tronco” de implantação urbana linear como, por exemplo, em Ouro Preto, conforme explica Sylvio de Vasconcellos, colaborador de Lucio Costa no IPHAN em Minas Gerais:
A Vila tem, assim, uma configuração linear apegada à estrada tronco que, aos poucos, se corrige em trechos de melhor traçado, em geral mais ao alto que os primitivos, atralhando-os e ao mesmo tempo acompanhando a marcha das minerações que, a princípio apegados aos vales profundos, foram depois galgando a serra. Todas as igrejas e edifícios principais da Vila balizam esta rua tronco com poucas exceções. (Vasconcellos, 1977, p. 76)
Segundo Vasconcellos (1959), o Arraial do Tejuco em Diamantina “é um aglomerado urbano singular nas Minas Gerais” pois adotou “solução quadrangular, concentrada e reticular” diferentemente da maioria das povoações mineiras que se distribuiu linearmente.
O Arraial do Tejuco ocupou uma elevação que integra o maciço divisor de três bacias hidrográficas: do S. Francisco, do Rio Doce e do Jequitinhonha (...) Aliás, é interessante observar que as estradas de penetração da região aurífera preferiram sempre divisores de bacias. (...) Este traçado, que não é usual nas penetrações, em geral mais apegadas aos vales por serem mais facilmente transitáveis, (...) pode decorrer de três razões fundamentais: a dificuldade de transposição de grandes cursos d’água desprovidos de pontes; a procura de nascentes ou de ribeirões de menor porte, onde mais facilmente se encontrava ouro, e o descortino dos panoramas, necessário à sua orientação. (Vasconcellos,
1959, p. 125-126)
Considerando essa perspectiva aquática, o traçado urbano encontra-se condicionado aos aspectos geomorfológicos do sítio em que o desenho urbano está atrelado aos cursos d’água e aos condicionantes físicos da bacia hidrográfica, contribuindo para circunscrever a silhueta edificada à linha da paisagem natural. Essa característica paisagística observada nas cidades coloniais brasileiras, derivada da prática urbanística da colonização portuguesa que procura adaptar o traçado dos núcleos urbanos aos condicionantes do ambiente natural, é também ressaltada em Brasília, compreendida como expressão urbana da tradição e do moderno:
O projeto vencedor do concurso ilustra o ideário nacional ao incorporar a essência dialética na sua concepção. Articula referências nacionais e estrangeiras; tradicionais e modernas para compor um plano de cidade capital, inserindo-se no sítio a partir da predominância técnica do caminho das águas, respeitando a topografia e baseando-se numa estrutura rodoviária. Compõe as paisagens bucólica e metropolitana ao criar uma cidade aberta, inserida num grande parque linear, cujo cruzamento ressalta a valorização da circulação através da rodoviária central. (Tavares, 2014, p. 362 – grifos nossos)
Em contraponto à reta que constitui o Eixo Monumental (Leste-Oeste), a conformação do arco do Eixo Residencial (Norte-Sul) visa acomodar o traçado da cidade ao desenho arqueado do Lago Paranoá, circunscrevendo o plano urbano da capital-rodoviária num triângulo equilátero, locado no centro da bacia hidrográfica do Paranoá (Figura 3). A conformação da cidade aos cursos d’água garante “a leitura da forma linear do projeto, além de evocar referências à história urbana, sua disposição ao longo do eixo norte-sul, que segue a curva da massa d’água, assinala o ponto de vista e a característica de nossas cidades coloniais”, confirma Jucá (2009, p. 244).

Em suma, a integração do desenho da capital ao sítio natural é garantida por Lucio Costa na concepção de uma cidade-parque em que tira partido das configurações geomorfológicas da bacia hidrográfica do Paranoá e promove a inserção do plano urbano na paisagem, respeitando a linha de cumeada da silhueta natural. Para além da perspectiva aquática, a adequação do Plano Piloto ao sítio natural considera também as nuances topográficas da linha do chão, cuja superfície terrena não era, aparentemente, tão plana como uma tábula rasa.
3.2. Perspectiva terrestre
Segundo descreve o Relatório do Plano Piloto, Brasília nasce a partir do traçado de dois eixos perpendiculares entre si, desenhando uma cruz. Jucá (2009, p. 242) destaca que “o valor mítico desse símbolo, relacionado com o rito de fundação das cidades, sugere centralidade e tomada de posse do território”. Os princípios de racionalidade geométrica com regras de proporção, equilíbrio, hierarquia, simplicidade e simetria do Plano Piloto evocam a ideia nacionalista de “ordem e progresso”, perseguida como lema federativo e trazem as referências cardeais para a fundação da cidade, pelo cruzamento do cardo e decumeno romano, no ponto onde se situa a Plataforma Rodoviária que conforma-se em três níveis de recortes topográficos, demonstrando domínio do senso de sítio e “tirando assim partido do escalonamento do chão em níveis diferentes, em patamares sucessivos” (Costa, 1995, p. 304).
O seu desenho amarra-se, muito intencionalmente, à morfologia do terreno: para além do Eixo Residencial que, em arco, acompanha as curvas de nível, o Eixo Monumental implanta-se exatamente sobre a cumeeira do esporão que conforma a orografia local. É possível também verificar, numa primeira aproximação, que utiliza a cota mais elevada de que dispõe para aí colocar a Praça Municipal atribuindo-lhe, assim, grande alcance simbólico na urbanidade da futura Brasília. (Oliveira, 2016, p. 27)
O Plano Piloto não restringe-se à planta baixa da cidade e tira partido da monumentalidade do sítio físico, caracterizado pela convexidade expressa na colina da área central e pela concavidade da bacia hidrográfica do Paranoá (Figura 4). A técnica oriental milenar dos terraplenos “garante a coesão do conjunto e lhe confere uma ênfase monumental” (Costa, 1995, p. 289), em que a cidade é hasteada a partir de escalonamentos no terreno: da cota mais alta de implantação, onde se loca o Eixo Monumental, até a cota mais baixa, no Lago Paranoá.

A partir do ponto central, desenha-se um conjunto de marcos notáveis, entre patamares e declives ao longo do caminho tronco do eixo monumental: à oeste da Rodoviária, a Praça Municipal ou do Cruzeiro no ponto topográfico mais alto e a Estação Rodoferroviária; à leste, a Esplanada dos Ministérios, o Palácio do Congresso e a Praça dos Três Poderes.
(...) a escala monumental é estruturada na linha de declividade natural do terreno de maior alcance visual por um parque linear em terraplenos – Eixo Monumental –, no qual se dispõem diferentes monumentos e palácios. É um ordenamento que garante visuais livres entre si e de grande profundidade sobre o lago e as chapadas, criando, segundo Lucio Costa, “espaços adequados à escala do homem” e permitindo “o diálogo monumental”. (Jucá, 2009, p. 245)
Atentando-se à conformação topográfica da Bacia Hidrográfica do Paranoá, Brasília é desenhada a partir da elevação existente no centro da bacia, observando os perfis de altimetria. A implantação do Eixo Monumental sob o esporão num caminho tronco linear e o respeito à monumentalidade da paisagem natural garantiram identidade e unidade à composição, ressaltada no posicionamento do Júri do Concurso Nacional para o Plano Piloto da Nova Capital do Brasil: “Em Brasília, examinei o ponto geográfico culminante, que é igualmente o ponto culminante da composição do Sr. Costa. A grandiosidade da paisagem é extraordinária. Que sorte ter o Sr. Costa logrado acrescentar-lhe ainda uma ênfase complementar!” (André Sive, 1957, como citado em Tavares, 2014, p. 501).
Na verdade, envolvida por montes que lhe conferem um horizonte cuja linha de festo é contínua e claramente legível a partir do seu interior, Brasília surge (com enorme clareza, desde a emergência da representação digital) como que implantada no coração de uma cratera - e talvez não de um vale, como é habitual ser designada. Essa cumeeira conforma a bacia do lago Paranoá - e delimita o celebrado “céu de Brasília” -, apresentando variações altimétricas na ordem dos 250m. (Oliveira, 2016, p. 19)
O arquiteto e urbanista inglês William Holford, também membro do Júri, considera o Plano Piloto proposto por Lucio Costa como melhor projeto e “uma das contribuições mais interessantes e mais importantes feitas em nosso século à teoria do urbanismo moderno”. Em seu parecer aponta alguns aspectos essenciais no sítio de Brasília que são considerados no projeto de Costa, sobretudo em relação à amplitude visual da bacia hidrográfica do Paranoá e as diferenças no nível do chão, conforme descreve:
É preciso que se examine a região de terra e do ar, para se ter uma ideia completa, como pude ter. Nenhuma fotografia ou mapa revela suficientemente a grandiosidade e vastidão do local, que é cercado de três lados por correntes d’água e futuros lagos, nem dá um apanhado da circunferência perfeita formada pelas colinas distantes. Do ponto de vista técnico, o aspecto mais favorável do local é que o mesmo possui suficiente movimentação e diferença de nível para evitar monotonia, sem contudo criar dificuldades de engenharia ou altos custos de circulação, como no caso do Rio de Janeiro. Tanto a atmosfera como a água parecem claras e frescas. Com a aplicação científica da água e de materiais orgânicos, devem ser simples o plantio de árvores e a criação de parques de tipo diferente dos que se erguem nas cidades, a fim de criar reservas naturais e florestas. (Holford, , 1957, como citado em Tavares, 2014, p. 503 – grifos nossos)
A compreensão da paisagem e dos aspectos geomorfológicos do sítio no projeto urbanístico de Lucio Costa garantiram a integração à natureza e a implantação de uma cidade-parque, corroborada pela leitura atenta das distorções do relevo, aparentemente plano, visualizado em fotos aéreas. Na prática, uma das maiores dificuldades foi acomodar o projeto no terreno através de uma série de ajustes por cortes e aterros, segundo evidencia Jayme Zettel[x]:
Havia sempre uma ilusão de que o terreno de Brasília era plano como uma mesa de bilhar e na verdade não era. Esse acerto do Plano no terreno inclusive foi uma proposta do William Holford: se você pegar o Plano Piloto, vai ver que tem uma distância diferente entre o projeto e a execução, ele desceu mais para o lago e inverteu um pouco a situação. E aí eram cortes em todo o terreno pra fazer um aproveitamento melhor da movimentação de terras – cortes e aterros. (...) A Asa Sul foi construída antes da Asa Norte e quando você anda hoje pelas asas, percebe que a Asa Sul é mais plana e a Asa Norte tem mais relevos, isso foi decorrente das dificuldades da época, de acomodar a cidade no terreno que não era tão plano quanto parecia. (Bispo; Giannecchini & Casco, 2013, p. 195-196)
De fato, a análise da perspectiva terrestre demonstra que o processo de implantação do Plano Piloto no terreno natural demandou uma série de movimentações de terra, desenhando novos taludes, terraplenos e perfis topográficos no nível da superfície, entretanto, sem promover interferências no contorno da silhueta que circunscreve e emoldura a cidade – respeitando a perspectiva aérea, marcada pela composição dos vazios.
3.3. Perspectiva aérea
A cidade-parque projetada por Lucio Costa incorpora aspectos geomorfológicos da bacia hidrográfica do Paranoá no desenho da capital de modo a submeter as massas edificadas a um gabarito máximo respeitando o skyline da silhueta natural e garantindo a leitura do céu. A integração da cidade projetada à paisagem preexistente, com baixa densidade construtiva permite a leitura da cumeada da bacia hidrográfica do Paranoá e destaca o vazio do céu como elemento fundamental da concepção paisagística, tendo a verticalização como desafio.
Observando o projeto original de Brasília e a cidade implantada por esse plano, percebemos uma dimensão singular: a natureza do sítio – a vegetação, o céu, sua amplidão e seu horizonte – atravessam o espaço aberto da cidade. Seu plano, adaptando o desenho a esse quadro natural, assimila a grande extensão do país e fixa seus limites, respondendo a um desafio antigo e constante do território brasileiro. Esses aspectos sugerem um projeto de paisagem subjacente ao plano original de Brasília, com os espaços abertos – os “vazios” – expressando uma de suas características mais genuínas. (Jucá, 2009, p. 239)
Respeitando a linha da cumeada natural como limite de altura, Lucio Costa equilibra as massas edificadas na cidade-parque, estabelecendo relações de hierarquia e proporção volumétricas para os diferentes setores. A partir destes princípios, o urbanista concentra as massas construtivas mais altas nos setores centrais e mantém uma uniformização volumétrica nas superquadras com adoção de um gabarito máximo de seis pavimentos sob pilotis. Assim, limitando a escala das massas edificadas, o partido urbanístico da cidade se apropria da paisagem natural preexistente, preservando a leitura da silhueta horizontalizada (Figura 5) como traço marcante da paisagem citadina.

O Plano Piloto define uma proporção volumétrica entre cheios e vazios nos vários setores de modo a permitir visadas da cumeada da bacia do Paranoá de diferentes pontos e proporcionar a vista de um horizonte de 360º. Sobre os vazios como elementos estruturante da composição urbana, Costa (1989, p. 72) esclarece que “da proposta do plano piloto resultou a incorporação à cidade do imenso céu do planalto, como parte integrante e onipresente da própria concepção urbana – os “vazios” são por ele preenchidos; a cidade é deliberadamente aberta aos 360 graus do horizonte que a circunda”. Os vazios aéreos são complementados pelos vazios terrestres, compostos pelo cerrado marcante do grande sertão goiano.
Nos espaços mais íntimos e arborizados da superquadra, apropriados para atividades contemplativas, essa configuração espacial proporciona vistas parciais que chamamos de “pequena paisagem”. Por vezes, com o corpo em movimento, por causa da abertura da vegetação e do escalonamento do terreno, surgem “paisagens variadas”. Estas resultam da mescla de pequenas paisagens a grandes visuais, os quais denominamos “grande paisagem”. Essa é uma percepção própria dos espaços monumentais. Além disso, a profundidade visual é garantida pelos espaços bucólicos, que proporcionam, ao olhar, grandes extensões e panoramas. (Jucá, 2009, p. 248)
Nesse ínterim, pondera-se que o conceito de escala urbana adotado em Brasília, em que aplica regras de hierarquia e proporção entre elementos construtivos (cheios) e vegetativos (vazios), deriva do contato de Lucio Costa com as cidades históricas tombadas, conectando referências do passado colonial brasileiro ao Brasil moderno, considerando sua trajetória de atuação como arquiteto do patrimônio[xi]. Maria Elisa, arquiteta e filha de Lucio Costa, defende a invenção de Brasília como um fato brasileiro:
(...) nada de soluções pseudo-espontâneas numa situação que de natural não tem nada, ou de seguir receitas à risca. Mas – e é por isso que deu certo – inventar com raiz. As pessoas tendem a achar que o plano-piloto é mera aplicação dos conceitos dos CIAM, em voga na época; mas, na verdade, se Brasília buscou nos CIAM o princípio da cidade-parque, dos espaços abertos, dos pilotis livres, buscou na tradição as suas escalas, e é a liberdade sem preconceitos dessa mistura que a define e singulariza. (Costa, 1995, p. 4 – grifos originais da autora)
Para além dos quatro princípios – morar, circular, trabalhar e recrear – do urbanismo moderno discutido no Congresso Internacional da Arquitetura Moderna (CIAM) de 1933, a unidade e diversidade da composição proposta por Lucio Costa revelam um cuidado com o tratamento da volumetria paisagística na interação das escalas urbanas da cidade: monumental, residencial, gregária e bucólica.
A partir da definição de dois eixos estruturadores, Lucio Costa planejou uma paisagem urbana articulada por quatro escalas espaciais: a escala monumental, que configura a cidade em sua função de capital do país; a escala residencial, que orienta a constituição das superquadras; a escala gregária, que orienta a disposição das áreas comerciais e de lazer no centro da cidade; e a escala bucólica, que orienta a definição do complexo de parques e de áreas verdes de baixa densidade às margens do lago Paranoá e nas franjas do plano piloto. Essas escalas definem certas ênfases na configuração espacial e na distribuição das atividades urbanas que extrapolam os limites do zoneamento estrito, característico do modelo funcionalista e também presente em Brasília. (Kim & Wesely, 2010, p. 566 – grifos nossos)
Na proposta da capital como cidade-parque, o desenho urbano é orquestrado pelas áreas verdes (vazios) onde as massas construtivas (cheios) se distribuem, deste modo, as massas vegetativas e edificadas são organizadas sob uma lógica setorial e funcional, respeitando a escala de acordo com os distintos usos. A adequação das escalas à conjuntura moderna é destacada pelo júri:
E é alentador descobrir-se, após exame mais detido do projeto, que cada uma das funções básicas urbanas, longe de serem antagônicas umas às outras ou de apenas coexistirem, oferece elementos plásticos originais de alta distinção - como é o caso das quadras residenciais com uma nova escala que conserva certo recolhimento de épocas passadas, sendo mais adequadas às exigências e técnicas do presente; também merece destaque a esplanada sobrelevada do complexo governamental. (Papadaki, 1957, como citado em Tavares, 2014, p. 501 – grifos nossos)
O arranjo espacial entre elementos vazios, conformados em espaços abertos, verdes, livres e públicos, em predomínio aos elementos cheios ou edificados, são especialmente evidenciados nas superquadras de modo a garantir certo recolhimento e intimidade a partir da ideia de natureza no urbanismo de Lucio Costa, conforme explicitado na entrevista de Sophia Telles:
No plano urbanístico, é recorrente nos textos e nos projetos de Lucio Costa, a ideia da natureza e da paisagem como forma de controle do projeto. (...) as quadras de habitação serão cercadas por cintas de árvores, de forma que só se verá da cidade, a rigor, o Centro, a Esplanada dos Ministérios. O resto é uma cidade verde onde você não verá praticamente o construído. (...) tem as árvores e os jardins que preservam certa intimidade. É dessa maneira que ele faz uma certa simbiose entre as duas coisas, através da ideia de natureza no urbanismo. (Sophia Telles, 2003, como citado em Wisnik, 2003, p. 244-245)
Cada superquadra deveria ser cercada por uma espécie nativa, expressando a diversidade brasileira na cidade-parque, marcada pela integração entre massas vegetativas e massas construídas, onde os edifícios se dispõem em arranjos diversificados em um parque ou jardim, amortecidos na paisagem, “a fim de resguardar melhor, qualquer que seja a posição do observador, o conteúdo das quadras, visto sempre num segundo plano e como que amortecido na paisagem” (Costa, 1995, p. 292). De fato, a escala bucólica constitui-se como elemento estruturador do desenho urbano da cidade-parque:
A escala bucólica, limitando a cidade no conjunto com as demais escalas, é constituída, prioritariamente, de áreas livres de edificações e densamente arborizadas, cuja manutenção é fundamental para o estabelecimento da relação visual entre cidade e entorno. A partir da cidade, a vegetação leva o olhar ao amplo espaço e ao horizonte que a circunda. Essa estratégia, largamente empregada no planejamento de parques, é inclusive apresentada por Lucio Costa para a preservação da Praça dos Três Poderes.
Por sua vez, vista do entorno, essa área arborizada, livre de edificações em altura é essencial para ressaltar a silhueta da cidade, destacando sua condição de monumento. Dessa posição, é evidente como o verde da vegetação continua atravessando a cidade, partilhando seus vazios com o céu. Essas características fundamentais para a cidade-parque destacam a importância da vegetação como elemento estruturador de sua composição urbana. (Jucá, 2009, p. 245-246 – grifos nossos)
O desenho urbano da capital brasileira organiza-se a partir das condicionantes geográficas do sítio natural na qual a cidade seria hasteada, tendo a bacia hidrográfica do Paranoá e o lago homônimo como elementos referenciais e fundamentais para a definição do partido urbanístico. As áreas construídas se distribuem de maneira discreta e esmaecida nos vazios urbanos compostos por áreas verdes, livres e públicas. As áreas construídas são circunscritas pelas áreas vazias, onde a espacialização do vazio se apresenta como elemento estruturador do desenho urbano e da paisagem vivenciada pelos transeuntes das superquadras, marcada pela fluidez espacial dos pilotis livres aos jardins adjacentes às edificações.
4. Conclusão
O projeto de Brasília evoca a visão edênica do Brasil ao destacar elementos da natureza do sítio como a vegetação, o céu, sua amplitude e seu horizonte, de modo que “seu plano, adaptando o desenho a esse quadro natural, assimila a grande extensão do país e fixa seus limites, respondendo a um desafio antigo e constante do território brasileiro” (Jucá, 2009, p. 239). O Plano Piloto de Brasília concebido por Lucio Costa não restringe-se à planta baixa da cidade e tira partido da monumentalidade do sítio físico, caracterizado pela convexidade expressa na colina da área central e pela concavidade da bacia hidrográfica do Paranoá. Brasília incorpora os elementos da natureza, com destaque para o céu e a horizontalidade em referência à extensão territorial do Brasil, para acolher a todos.
Na perspectiva aquática, destaca-se o processo de escolha do sítio, as referências históricas e a noção de monumento, considerando a trajetória e a experiência de Lucio Costa com cidades tombadas. Na perspectiva terrestre, ressalta-se que a cidade-parque se molda à silhueta da paisagem natural e transforma o espaço do chão através de movimentações de relevo, de modo a formar uma série de taludes e silhuetas no ambiente natural para que fosse hasteada. Na perspectiva aérea destaca-se que a linha de força da paisagem de Brasília é marcada pela horizontalidade das edificações em meio ao relevo natural, cujos condicionantes geográficos e morfológicos do território foram determinantes na composição da cidade-parque moderna.
Atualmente, Brasília atravessa transformações territoriais que ameaçam a manutenção de características paisagísticas singulares. Dentre os desafios de conservação patrimonial, ressaltamos os processos de transformações, pressões e especulações imobiliárias que ameaçam os atributos paisagísticos da capital quanto às perspectivas analisadas, respectivamente: 1) aquática: acesso público à orla do Lago Paranoá prejudicado pela ausência de transporte público adequado e pela ação imobiliária promovida principalmente pela iniciativa privada com a ocupação de condomínios de hotéis-residência, contrapondo-se ao caráter bucólico idealizado por Lucio Costa; 2) terrestre: permeabilidade dos pilotis livres das superquadras e compreensão do papel relevante das massas vegetativas à leitura da paisagem urbana; 3) aérea: manutenção do gabarito nos setores centrais em meio às pressões de densidade construtiva e verticalização de cidades-satélites próximas à cumeada da bacia hidrográfica do Paranoá.
Do projeto à implantação, Brasília modificou não só o sítio natural, mas o modo de viver em sociedades urbanas e se constitui como produto do agenciamento do homem sobre a natureza, além de exemplar do urbanismo moderno. Nesse sentido, Brasília pode ser compreendida como paisagem projetada e evolutiva, composta pelo meio natural em que o homem imprimiu as marcas de suas ações e formas de expressão diversificadas, quanto aos usos, ocupações e dinâmica urbana, resultantes de sua composição morfológica e configuração histórica.


notar desenho[ix] de uma grande lagoa na atual
região central do Brasil
Mapa pertencente à edição francesa de 1619 do “Atlas” de Mercator-Hondius (Coleção de Arte ABN AMRO REAL, São Paulo). In: Teixeira, 2008, p. 243.

