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Geograficidade e vulnerabilidades na Amazônia ribeirinha:comunidade Xixuaú, Roraima, Brasil
Éder Rodrigues dos Santos; Rubens Savaris Leal; Antonio Tolrino de Rezende Veras
Éder Rodrigues dos Santos; Rubens Savaris Leal; Antonio Tolrino de Rezende Veras
Geograficidade e vulnerabilidades na Amazônia ribeirinha:comunidade Xixuaú, Roraima, Brasil
Geografía y vulnerabilidades en la ribera amazónica: comunidad Xixuaú, Roraima, Brasil
Geography and vulnerabilities in the riverside Amazon: Xixuaú community, Roraima, Brazil
PatryTer, vol. 3, núm. 6, pp. 109-120, 2020
Universidade de Brasília
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Resumo: O texto analisa a geograficidade e as vulnerabilidades percebidas na comunidade de Xixuaú, localizada às margens do rio Jauaperi, região do Baixo Rio Branco, em Roraima, extremo norte amazônico. Para isso, busca na pesquisa de campo e na bibliografia de filiação fenomenológica, compreender a ideia de lugar, lançando mão das narrativas dos moradores sobre seu modo de vida e a relação histórica deste ser ribeirinho com o espaço vivido. Nota-se que o ribeirinho amazônico tem uma cosmologia particular multidimensional do ambiente, demonstrando que é possível adequar-se às verticalidades de interesse econômico, mas ao mesmo tempo, resistir a tais intervenções externas, se preciso, na defesa do lugar.

Palavras-chave:AmazôniaAmazônia,geografia humanistageografia humanista,vulnerabilidadevulnerabilidade,ribeirinhosribeirinhos.

Resumen: El texto analiza la geografía y las vulnerabilidades percibidas en la comunidad de Xixuaú, ubicada a orillas del río Jauaperi, en la región del Bajo Río Branco, en Roraima, en el extremo norte del Amazonas. Para esto, busca en la investigación de campo y en la bibliografía de afiliación fenomenológica, comprender la idea del lugar, utilizando las narrativas de los residentes sobre su forma de vida y la relación histórica de este ser ribereño con el espacio vivido. Se observa que la orilla del río Amazonas tiene una cosmología multidimensional particular del medio ambiente, lo que demuestra que es posible adaptarse a las verticalidades de interés económico, pero al mismo tiempo, resistir tales intervenciones externas, si es necesario, en la defensa del lugar.

Palabras clave: Amazonía, geografía humanista, vulnerabilidad, ribera.

Abstract: The text analyzes the geography and the perceived vulnerabilities in the community of Xixuaú, located on the banks of the Jauaperi River, in the Lower Rio Branco region, in Roraima, in the extreme north of the Amazon. For this, it seeks in field research and in the bibliography of phenomenological affiliation, to understand the idea of ​​place, using the residents' narratives about their way of life and the historical relationship of this riverside being with the lived space. It is noted that the Amazon riverside has a particular multidimensional cosmology of the environment, demonstrating that it is possible to adapt to verticalities of economic interest, but at the same time, resist such external interventions, if necessary, in the defense of the place.

Keywords: Amazon, humanist geography, vulnerability, riverside.

Carátula del artículo

Artigos

Geograficidade e vulnerabilidades na Amazônia ribeirinha:comunidade Xixuaú, Roraima, Brasil

Geografía y vulnerabilidades en la ribera amazónica: comunidad Xixuaú, Roraima, Brasil

Geography and vulnerabilities in the riverside Amazon: Xixuaú community, Roraima, Brazil

Éder Rodrigues dos Santos
Universidade Federal de Roraima, Brasil
Rubens Savaris Leal
UFRR, Brasil
Antonio Tolrino de Rezende Veras
Departamento de Geografia da Universidade Federal de Roraima, Brasil
PatryTer, vol. 3, núm. 6, pp. 109-120, 2020
Universidade de Brasília

Recepção: 26 Dezembro 2019

Aprovação: 18 Fevereiro 2020

Publicado: 01 Setembro 2020

Geograficidade e vulnerabilidades na Amazônia ribeirinha: comunidade Xixuaú, Roraima, Brasil

Resumo: O texto analisa a geograficidade e as vulnerabilidades percebidas na comunidade de Xixuaú, localizada às margens do rio Jauaperi, região do Baixo Rio Branco, em Roraima, extremo norte amazônico. Para isso, busca na pesquisa de campo e na bibliografia de filiação fenomenológica, compreender a ideia de lugar, lançando mão das narrativas dos moradores sobre seu modo de vida e a relação histórica deste ser ribeirinho com o espaço vivido. Nota-se que o ribeirinho amazônico tem uma cosmologia particular multidimensional do ambiente, demonstrando que é possível adequar-se às verticalidades de interesse econômico, mas ao mesmo tempo, resistir a tais intervenções externas, se preciso, na defesa do lugar.

Palavras chave: Amazônia; geografia humanista; vulnerabilidade; ribeirinhos.

Geografía y vulnerabilidades en la ribera amazónica:

comunidad Xixuaú, Roraima, Brasil

Resumen: El texto analiza la geografía y las vulnerabilidades percibidas en la comunidad de Xixuaú, ubicada a orillas del río Jauaperi, en la región del Bajo Río Branco, en Roraima, en el extremo norte del Amazonas. Para esto, busca en la investigación de campo y en la bibliografía de afiliación fenomenológica, comprender la idea del lugar, utilizando las narrativas de los residentes sobre su forma de vida y la relación histórica de este ser ribereño con el espacio vivido. Se observa que la orilla del río Amazonas tiene una cosmología multidimensional particular del medio ambiente, lo que demuestra que es posible adaptarse a las verticalidades de interés económico, pero al mismo tiempo, resistir tales intervenciones externas, si es necesario, en la defensa del lugar.

Palabras clave: Amazonía; geografía humanista; vulnerabilidad; ribera.

Geography and vulnerabilities in the riverside Amazon:

Xixuaú community, Roraima, Brazil

Abstract: The text analyzes the geography and the perceived vulnerabilities in the community of Xixuaú, located on the banks of the Jauaperi River, in the Lower Rio Branco region, in Roraima, in the extreme north of the Amazon. For this, it seeks in field research and in the bibliography of phenomenological affiliation, to understand the idea of ​​place, using the residents' narratives about their way of life and the historical relationship of this riverside being with the lived space. It is noted that the Amazon riverside has a particular multidimensional cosmology of the environment, demonstrating that it is possible to adapt to verticalities of economic interest, but at the same time, resist such external interventions, if necessary, in the defense of the place.

Keywords: Amazon; humanist geography; vulnerability; riverside.

DOI: https://doi.org/10.26512/patryter.v3i6.28919

Como citar este artigo: Santos, E. R.; Leal, R. S.; Veras, A. T. R. (2020). Geograficidade e vulnerabilidades na Amazônia ribeirinha: comunidade Xixuaú, Roraima, Brasil. PatryTer – Revista Latinoamericana e Caribenha de Geografia e Humanidades, 3 (6), 109-120. DOI: https://doi.org/10.26512/patryter.v3i6.28919

1. Introdução

O trabalho considera a pesquisa de campo, consulta bibliográfica e a oralidade de ribeirinhos que habitam a comunidade de Xixuaú, localizada às margens do rio Jauaperi, região do Baixo Rio Branco, no estado de Roraima[i], analisando as vulnerabilidades notadas com a exploração de atividades econômicas exógenas (Marandola Jr. & Hogan, 2009; Beck, 2010; Costa, 2018); a ausência do poder público; as experiências do espaço vivido, na perspectiva da geografia humanista (Brule, 2017) e; os impactos na estrutura da vida coletiva.

Metodologicamente, a pesquisa trabalha com uma abordagem qualitativa na perspectiva da geografia humanista e cultural de filiação fenomenológica, considerando o fenômeno da experiência espacial (Tuan, 2012) como a principal mediação entre indivíduo e ambiente (Marandola Jr., Holzer & Oliveira, 2012; Marandola Jr. & Hogan, 2009).

Para isso, tem como procedimentos a (1) observação participante; (2) entrevistas semiestruturadas com moradores, gravadas nas comunidades, permitindo identificar regularidades dos fatos, personagens e lugares, na perspectiva da oralidade, enquanto ferramenta (Pollak, 1989, 1992; Halbwachs, 2011); e (3) análise qualitativa dos dados sociais, ambientais, econômicos, políticos e culturais percebidos, considerando a fenomenologia ribeirinha amazônica na compreensão do lugar.

As entrevistas foram realizadas durante a expedição realizada de 15 a 30 de maio de 2019, nas comunidades ribeirinhas pertencentes aos municípios de Caracaraí e Rorainópolis, por meio do Programa Nacional de Cooperação Acadêmica na Amazônia (PROCAD), vinculado à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), sob coordenação da Universidade Federal de Roraima (UFRR). O projeto conta ainda com pesquisadores da Universidade Federal de Rondônia (UNIR), Universidade Federal do Ceará (UFC) e apoio da Universidade de São Paulo (USP). O título do PROCAD aprovado é: Estratégias de Ordenamento Territorial em Comunidades de Interesse Socioambiental na Amazônia[ii].

Durante esta expedição, foram visitadas as 15 comunidades existentes no Baixo Rio Branco: Santa Maria do Boaiçu, Santa Maria Velha, Sacaí, Canauiní, Terra Preta, Lago Grande, Cachoeirinha, Caicubí, Remanso, Floresta, Itaquera, Samaúma, Dona Cota, Panacarica e Xixuaú (figura 01). Em todas estas comunidades, foram realizadas reuniões com os moradores e lideranças locais; anotações de campo e gravações de entrevistas por meio de registro audiovisual. No entanto, o foco deste trabalho foi Xixuaú, comunidade na qual moram 18 famílias, com uma população estimada de 56 habitantes[iii]. As entrevistas nesta localidade ocorreram no dia 25 de maio de 2019.


Figura 01
Localização da Comunidade Ribeirinha de Xixuaú, município de Rorainópolis - RR

adaptado do Governo do Estado de Roraima (2010).

Rafael Oliveira Maia (novembro/2019)

Optou-se por realizar as entrevistas nas residências ou nos quintais das casas dos moradores indicados pela própria comunidade, na condição de lideranças ou de anciãos, uma vez que a equipe abordou os moradores logo no desembarque, demostrando interesse em conhecer o lugar e suas histórias. Foram escolhidos três personagens: professor da escola local, Dark Rodrigues Freire; o senhor Manuel Ribeiro Marinho, que é parteiro da região; e o senhor Geraldo Ferreira da Silva, que é presidente da Associação do Moradores de Xixuaú.

No momento da entrevista, os moradores foram informados sobre o objetivo da pesquisa. Foi solicitado aos participantes a autorização para gravação, transcrição das informações e inserção dos nomes dos entrevistados nos textos do artigo. Por se tratar de uma pesquisa com base na oralidade, os participantes foram informados que poderiam deixar de participar a qualquer momento, considerando os riscos emocionais de vivenciar momentos de sua vida que poderiam deixá-los constrangidos. Pela figura 01 percebe-se que o início da viagem ocorreu a partir de Vista Alegre (RR), localidade mais ao norte que favorece a navegação na região do Baixo Rio Branco. Descendo ao sul pelo rio Banco, é preciso acessar o rio Jauaperi para chegar à comunidade de Xixuaú. A vila fica distante 542 km de Vista Alegre.

Os autores dedicam este texto à memória de Antonio Tolrino de Rezende Veras (12.01.1965 - 29.06.2020), professor do departamento de Geografia, do Mestrado Profissional em Gestão e Regulação em Recursos Hídricos e do Programa de Pós-graduação em Geografia da UFRR, que contribuiu com este artigo e com diversas pesquisas científicas na Amazônia e no Nordeste brasileiro, falecendo vítima da pandemia provocada pela SARS-COV-2 em Boa Vista (RR)[iv].

2. Geograficidade e vulnerabilidades: contribuições teóricas

Dardel (2011), autor francês da obra Homem e a Terra, afirma que o lugar é o espaço das experiências dos sujeitos, com suas histórias, signos e símbolos, vivido de forma individual e coletiva. A geograficidade, tema tratado pelo referido autor, embasa a compreensão das relações da vida cotidiana e de aspectos subjetivos como os elos afetivos e da imagem mental dos lugares. Para ele, são maneiras com as quais sentimos e conhecemos as formas dos ambientes, onde paisagens e espaços, sejam estes construídos ou naturais, permitem recursos para o desenvolvimento das habilidades do ser humano e, portanto, geram uma fixação existencial.

Tem-se nesta dimensão da geografia intitulada humanista, a possibilidade de ampliação da compreensão dos objetos a serem pesquisados para, possivelmente, dar conta das realidades impostas na contemporaneidade. Um destes desafios é a superação do rompimento do elo entre o ser humano e a natureza. O espaço vivido entre em cena no debate da ciência geográfica, possibilitando novas reflexões sobre a relação do homem com a natureza. Como aponta Brule (2017):

O espaço é tratado como vivido, local das experiências e das representações, repleto de significado, esta corrente valoriza a vivência e busca compreender como as pessoas criam o significado de espaço, ganhando importância à intencionalidade, o indivíduo e a percepção do espaço. [...] A geografia humanista alicerçada na filosofia dos significados, com influência da fenomenologia, busca compreender como os homens atribuem valores e manifestam uma certa afetividade espacial (Brule, 2017, p. 09).

Buttimer (2015), em seu texto sobre lar, horizonte de alcance e sentido de lugar, conceitua que lugar é uma construção ou um significado proposto pelas pessoas que ali vivem. Este lugar criado tem várias dimensões de significado para Buttimer (2015, p. 06), sendo estas: “simbólicas, emocionais, culturais, políticas e biológicas”. Ao analisar a ideia de lugar, propõe a autora que:

Para qualquer indivíduo o lar e o horizonte de alcance do pensamento e imaginação podem ser bastante distintos do lar e dos horizontes de alcance de suas filiações sociais, que podem novamente ser distintos da real localização física ou do lar e dos horizontes físicos [...] Estas distinções não são apenas abstrações: se eles forem de fato mapeados dentro do horizonte temporal do espaço-vivido de qualquer indivíduo ou grupo eles poderiam fornecer algumas pistas dentro das quais se constitui a identidade de lugar (Buttimer, 2015, p. 08).

O interesse pelo conceito de lugar, que permeará a compreensão da noção de geograficidade, se dá a partir dos anos 50. Segundo Relph (2012, p. 20) a erosão da paisagem, fato ocasionado neste período com o advento de projetos de arquitetura moderna sem conexão com o passado ou com as histórias locais, com perdas de diversidade e identidade geográficas criam paisagens sem lugar. São construções desconexas do seu contexto, paisagens que servem a função pública exógena, sem compromisso com a memória do lugar.

O poder público, como agente social concreto (Corrêa, 2016), tem a condição de produzir espaços ou de criar e recriar lugares. No entanto, Relph (2012) aponta que quando há descontinuidades do sentido do lugar no processo de criação ou recriação, não levando em conta a historicidade da comunidade, este mesmo agente rompe o vínculo orgânico da gênese do lugar, fazendo com que a produção deste espaço se torne inautêntica.

Relph (2012) aponta que a partir dos anos de 1990, as interpretações sobre a categoria lugar voltaram ao debate geográfico, com mais refinamento teórico:

(...) As interpretações são frequentemente contraditórias e muitas vezes contestadas, mas na base parece haver uma visão geral de que lugar tem um papel importante a desempenhar para compreender e, talvez, corrigir a insistência neoliberal na eficiência global de ganhos que diminui a qualidade de nossas vidas, erodindo tudo o que é local. Em suma, estudar e promover lugar, seja de uma perspectiva humanista, radical, seja de uma perspectiva arquitetônica ou psicológica, é uma prática de resistência (Relph, 2012, p. 21).

Na perspectiva fenomenológica, os estudos de Tuan (2005; 2012; 2013) e a noção de topofilia, que é o elo afetivo entre a pessoa e o lugar, contribuem neste trabalho, sobretudo, para a reflexão sobre a ecologia humana, lugar e a percepção geográfica. Tuan (2013) aponta na direção fenomenológica, quando afirma que a percepção é uma atividade, um estender-se para o mundo.

Ele analisa que o lugar é um dos conceitos que define a natureza da geografia, compreendido a partir da experiência que os sujeitos têm dele, portanto, o lugar possui espírito e personalidade. Existe um sentido de lugar que surge a partir da experiência do corpo, por meio dos sentidos que percebem cada lugar de forma diferente. São estas experiências que tornam o lugar visível.

Ao tratar da cultura, experiência e atitudes ambientais, Tuan (2012) analisa que a compreensão da preferência ambiental de um indivíduo passa por sua herança biológica, sua criação familiar, educação, trabalho e os aspectos físicos da vizinhança. Em relação a um grupo, é importante saber a história cultural e a experiência no conjunto de elementos físicos e naturais do ambiente.

Tuan (2012) trata da diferenciação entre o visitante e o nativo, considerando que vivemos em uma sociedade de alta mobilidade, com impressões fugazes das pessoas que estão de passagem, neste caso, os visitantes. O olhar do visitante ou turista pode ser percebido como o único a ter um ponto de vista, reduzido, limitado a construir quadros. A análise do turista é basicamente estética. Tuan (2012, p. 97) diz que “é a visão de um estranho. O estranho julga pela aparência, por algum critério formal de beleza. É preciso um esforço especial para provocar empatia em relação às vidas e valores dos habitantes”.

É possível que os humanos habitantes na Amazônia brasileira nos permitam compreender que o uso e apropriação do espaço vivido manifesta-se na própria cultura do grupo, se levarmos em conta seus processos históricos, subjetivos e suas relações nos espaços que eles transformam e recriam constantemente em espaços poéticos, dialógicos e polifônicos. Como na reflexão de Brule (2017, p. 20), este espaço é “um lugar carregado de significados”.

A vulnerabilidade do lugar pode emergir, sobretudo, pela fragilidade imposta simbolicamente e materialmente sobre as pessoas em relação a este lugar quando há, sobretudo, interesses exógenos provenientes de um pensamento capitalista globalizante, dito moderno (Latour, 1994). A ausência de políticas públicas ou da fraca atuação do poder público, por outro lado, é um componente a mais neste processo de fragilização e vulnerabilidade. Dardel (2011) destaca que ao ser tirado do seu lugar, o homem se sente perdido, exilado, deslocado, desorientado. A compreensão particular ou coletiva de lugar que cada indivíduo tem em sua vivência diária nos permite entender e interpretar o ordenamento espacial que as sociedades intimamente dão ao mundo.

Na contribuição para a compreensão da noção de vulnerabilidade, Costa (2018) no artigo Riesgos y Potenciales de Preservación Patrimonial em América Latina y el Caribe, mostra que a racionalidade instrumental do desenvolvimento, nestas regiões, onde se localizam países estudados por ele, tem gerado danos ao patrimônio-territorial e a vida, fazendo-se necessário atender às demandas para implementação de políticas de gestão de riscos e descobrir práticas alternativas de preservação dos sítios.

O estudo se deu em países como Peru, México, Cuba, Panamá e Brasil, pelos quais foram verificados os riscos do patrimônio, metodologicamente divididos em três dimensões: urbanização, turismo e eventos trágicos no continente. Neste sentido, o autor destaca que a relação patrimonialização e urbanização tem diferentes consequências socioterritoriais nos referidos países, explicitando que, de um lado, há uma projeção universal dos destinos turísticos latino-americanos e caribenhos. Por outro lado, tem crescido os problemas atuais de infraestrutura, serviços e gestão territorial, como é o caso da comunidade de Xixuaú, no interior da Amazônia, objeto deste trabalho a ser analisado. Como aponta o autor:

La dependencia total de la actividad turística es un factor de riesgo por la inestabilidad que representa desde el punto de vista económico, social y ambiental [...] sin embargo, identificar los principales riesgos y potenciales de la preservación patrimonial puede inducir estrategias políticas y de resistencia popular situadas, incluso desde el turismo (Costa, 2018, p. 14).

A proposta de uma possível mitigação ambiental, ou seja, a possibilidade de diminuir os riscos e danos causados pelas atividades de turismo no território afetado passam, segundo o autor (Costa, 2018), por reconhecer primeiramente que já há, notadamente, uma política geradora de vulnerabilidades, propondo um processo de resistência pedagógico, que permitirá uma política de planejamento para mitigar danos e que tenha a participação decisiva das pessoas afetadas.

Para Beck (2010), a produção social de riscos é resultado da produção social de riqueza, proveniente do processo de modernização. O autor aponta que, com a ideia da existência de uma sociedade de escassez ou uma ditadura da escassez, considerando o terceiro mundo, surge também a ideia de que o processo de modernização tem nas mãos as chaves do desenvolvimento científico-tecnológico que vão abrir as portas para as fontes de riqueza social. No entanto, segundo o autor, há de considerar os efeitos colaterais latentes deste processo.

3. Desafios econômicos, territoriais e a percepção ribeirinha

O rio Branco tem 400 quilômetros de distância, saindo do porto de Vista Alegre, próximo a cidade de Caracaraí (RR) até sua foz no rio Negro, no Amazonas (AM). Para chegar em Xixuaú (figura 02) é preciso navegar mais 142 quilômetros pelo rio Jauaperi.

Durante a visita da expedição ao Baixo Rio Branco, percebeu-se que a comunidade de Xixuaú é acolhedora e, mesmo disponibilizando de alguns aparelhos institucionais, é carente de serviços públicos, uma vez os que existem estão sucateados. Possui uma escola municipal, com 12 alunos matriculados (Caer, 2018), telefone público, internet, motor de luz, antena parabólica, igreja, painéis solares de energia (figura 03) e malocão da cooperativa – CoopXixuaú – (figura 04), para eventos vinculados ao turismo (figura 05). Além do malocão, ainda há quatro quartos, com capacidade para quatro turistas cada.

Na localidade há um agente de saúde, mas o posto de saúde está desativado, uma vez que não dispõe de medicamentos e outros profissionais, fato que se repete na maioria das comunidades visitadas ao longo do Baixo Rio Branco. Uma das exceções é a vila de Santa Maria do Boiaçú, espécie de polo centralizador de outras vilas vizinhas, mas que não é interessante para os moradores de Xixuaú, uma vez que esta comunidade fica muita mais próxima dos serviços de municípios como Novo Airão (AM) e a vila de Moura (AM). Não existe esgotamento sanitário em Xixuaú.

Estudos indicam que a água que abastece a escola e as outras casas é proveniente do rio Jauaperi (Caer, 2018), assim como nas comunidades vizinhas de Itaquera e Samaúma. A cooperativa é uma iniciativa de organização interna, resultado das intervenções de agentes externos, que têm interesse na atividade turística, sobretudo, em virtude da pesca esportiva e o ecoturismo.


Figura 02
Vista área da comunidade de Xixuaú
Trabalho de campo de Roberto Caleffi (maio/2019).

Mesmo com desafios semelhantes, as comunidades do Baixo Rio Branco estabelecem parcerias com empresas externas para aproveitar o potencial turístico, sobretudo com o crescente in teresse na pesca esportiva e turismo ecológico, que atrai empresas nacionais e internacionais na comercialização de pacotes para os turistas.


Figura 03
Painéis de energia solar em Xixuaú parcialmente desativados
Trabalho de campo realizado por Éder Santos (maio/2019).

No entanto, a ausência de regulação e maior fiscalização do poder público nas comunidades, possivelmente, causam outros fenômenos que reduzem as possibilidades do exercício pleno da cidadania e da sustentabilidade

econômica como, por exemplo, a submissão dos ribeirinhos ao turismo empresarial monopolizado, uma vez que os moradores conhecem a dinâmica do rio, assim como as áreas favoráveis à pesca e à caça e, por isso, são contratados para estas diligências remuneradas sazonalmente.

A economia gira em torno do turismo nesta comunidade. Não se fala em extrativismo ou outro tipo de produção econômica. Os pesquisadores conversaram com o professor da escola local, Dark Rodrigues Freire[v], que falou sobre alguns serviços existentes. Ele informou que a bomba utilizada para a captação da água do rio é movida a energia solar. O equipamento foi implementando pelos estrangeiros que visitaram a região. A cooperativa da vila foi reativada para melhorar a estrutura das cabanas construídas para receber os turistas nacionais e estrangeiros. O relato traz a importância das intervenções para melhoria dos equipamentos da vila. No entanto, estes equipamentos exigem manutenção constante, como os painéis de energia solar que estão parcialmente desativados.

Além do turismo empresarial estar em primeiro plano na vila de Xixuaú, o local está situado na Reserva Extrativista Baixo Rio Branco Jauaperi (RESEX), que possui 581.173 hectares,


Figura 04
Malocão da CoopXixuaú onde se desenvolvem ações de turismo
Trabalho de campo de Roberto Caleffi (maio/2019).

unidade criada pelo decreto nº 9.401, de 5 de junho de 2018, com base no Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC – Lei 9.985/2000), fato que, portanto, demanda maior atenção das autoridades, uma vez que, segundo o SNUC, é uma unidade de conservação em território destinado às populações extrativistas tradicionais. Tem objetivo duplo: preservação ambiental e atendimento às demandas sociais locais com vistas à exploração de recursos naturais “de forma sustentável, sem desmatamento”, como aponta Magalhães (2018, p. 331).

Em 2001, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) fez levantamento para a criação desta RESEX interestadual, considerando os estados de Roraima e Amazonas, no entanto órgãos estaduais resistiram ao modelo em virtude de intervenções de uma organização estrangeira na articulação para a criação desta unidade de conservação, a Associação Amazônia. Outra situação foi a criação na mesma época, por parte do governo do estado, de uma Área de Proteção Ambiental (APA), que geraria mais problemas que soluções. Tais polêmicas envolvendo a criação da RESEX e da APA foram foco de investigações, fato que impulsionou a abertura de Comissões Parlamentares de Inquérito, em nível estadual e federal.

Em 2006, a proposta de criação da RESEX foi submetida ao Governo Federal por meio de estudo socioeconômico, resultado da parceria do IBAMA, do Centro Nacional do Desenvolvimento Sustentável das Populações Tradicionais e Ministério do Meio Ambiente (MMA), sendo aprovada por decreto em 2018. As polêmicas e a demora na decisão geraram um clima de tensão na região, com relatos de mortes e incêndios à casa de lideranças que eram a favor da criação da reserva, considerando ainda que, barcos pesqueiros de grande porte, provenientes do Amazonas, aproveitaram o imbróglio para entrar ilegalmente a região, fato que ocasionou a redução do estoque de peixes, sem reposição.

O governo do estado de Roraima também ajuizou ação no Supremo Tribunal Federal, questionando a proposta do IBAMA, afirmando que a RESEX violava o pacto federativo de autonomia dos estados e denunciando a sobreposição à APA Baixo Rio Branco, criada pelo estado, sendo que a RESEX incide em 66% da APA estadual. Esta posição do Governo foi revista por ele no ano de 2014, em virtude do processo de transferência das terras da União ao estado de Roraima, que começou a apoiar a criação da RESEX.

Na comunidade de Xixuaú, o que restou foi a prática do turismo articulado internacionalmente por empresas que utilizam mão de obra local. No entanto, o que foi observado é que não há interesse na implementação de um turismo de base local e comunitário. Também não se vê sinais de uma política de educação ambiental, com maior rigor na fiscalização das áreas protegidas na região, como a RESEX, que inclui a zona de preservação, compreendendo a faixa de fronteira de dois quilômetros de largura no limite da RESEX com a terra indígena Waimiri-Atroari e a zona de uso restrito, com 40.565 hectares também na referida reserva indígena

Há ainda outra zona de conservação que fica no igarapé Xiparinã, com 56.747 hectares, a qual são proibidas as práticas do uso direto de recursos naturais, com exceção das atividades de recreação e turismo que precisam ser definidas a partir de planos de manejo. No entorno da comunidade de Xixuaú, há relatos dos moradores da praticada a pesca ornamental, esportiva e comercial. A empresa que explora o turismo na região denomina a atividade de turismo ecológico, com ênfase publicitária na experiência de descoberta da verdadeira Amazônia (figura 05).

Em Xixuaú, os arranjos espaciais, resultado das intervenções exógenas, tornaram-se perceptíveis. Tais intervenção externas, somadas à ausência do poder público, pode ser compreendida a partir de Santos (1999) na definição dos conceitos de verticalidade e horizontalidade no campo da geografia humana, em sua obra A Natureza do Espaço.As ações visam atender os turistas de luxo em primeiro plano, deixando às margens a complexidade horizontal que, segundo Santos (1999, p. 224) “é dada pela vida atual do grupo humano em suas relações com o lugar, por intermédio das técnicas e da estrutura social”. Santos (1999, p. 228) explica ainda que “[...] os lugares também podem se fortalecer horizontalmente, reconstruindo, a partir das ações localmente construídas, uma base de vida que amplie a coesão da sociedade civil. A serviço do interesse coletivo”.

A falta de horizontalidade é percebida, por exemplo, na ausência de um porto ou orla que atenda a comunidade de Xixuaú; a estrutura de madeira da escola e a desativação do posto de saúde, elementos importantes para a vila. Estes são componentes de uma paisagem ligada a um possível descuido, tanto do poder público, quanto de outros investimentos que poderiam ser feitos no campo privado.

O turismo em Xixuaú atrai pessoas de outros países que querem ter uma experiência profunda na Amazônia, como turistas de várias partes do mundo, como EUA, Itália, Rússia, Palestina e Ucrânia. A comunidade recebe de 50 a 60 clientes por visitação, de acordo com os moradores entrevistados. A prática do turismo é feita entre os meses de julho a dezembro. De janeiro a junho, ocorre o período de defeso, no qual a pesca de peixes nativos é proibida na região.

Sobre e limpeza do local, há um cuidado com a manutenção, incluindo a disponibilização de


Figura 05
Página de publicidade na internet do turismo em Xixuaú

Publicidade turística

https://www.amazontrip.info/web/pt/. (2019)

lixeiras para coleta seletiva (figura 06). Contraditoriamente, os moradores praticam a queima ou ainda enterram os resíduos. A queima libera dióxido de carbono, nocivo à saúde e ao ambiente. Uma parte do lixo é transportada para o município de Rorainópolis, destinado a reciclagem do material, articulação de responsabilidade da associação de moradores que tem um custo de R$300,00 por mês pago ao barqueiro que cuida da logística. Também houve a instalação de sala com computadores com internet, em 2001, fatalmente afetada pela umidade da região.

A equipe conversou com o amazonense Manuel Ribeiro Marinho, 70 anos, que é aposentado, parteiro e tem sete filhos, sendo que parte deles mora na comunidade, também em novo Airão e em Manaus[vi]. A entrevista ocorreu no quintal do personagem que é cercado de plantas de uso medicinal e mata. Ele diz que seu pai trabalhava na extinta Associação Amazônia e por isso veio morar na comunidade também para trabalhar, ficando oito anos empregado. Senhor Manuel demonstrou insatisfação com a condução das ações políticas externas, assim como a falta de organização interna e unidade dos moradores. Lembra que, quando houve problemas com a As-

sociação, criou-se a cooperativa, porém, falta mais transparência sobre o regulamento e não há segurança para quem trabalha. Se o empregado

falha, segundo ele, demite-se sem contabilizar o tempo de serviço.


Figura 06
Mesmo com recipientes para coleta seletiva, ainda há queima de resíduos na vila
Trabalho de campo realizado por Éder Santos (maio/2019).

Segundo Manuel, muitos moradores na comunidade foram embora após a extinção da associação, incluindo o seu pai, seguindo para Manaus, no Amazonas. Perguntado se ele considera Xixuaú uma comunidade, senhor Manuel dispara sua crítica, afirmando que ainda não se constituiu, enfatizando a falta de união dos moradores:

Não formou ainda porque é desunida. Não tem como. [...] falta muito para uma comunidade. Eu nunca produzi nada desde quando cheguei... só é negócio de turismo. O gringo chega aí e [os moradores] vão trabalhar. Alguma produção que eles arrumam aqui coitados, é negócio de madeira. Vão ali serram uma madeirinha para a cooperativa e a cooperativa ainda paga barato. Ela não paga o valor do serviço do amazonense (Entrevista concedida pelo Senhor Manuel Ribeiro Marinho, em Xixuaú, estado de Roraima, no dia 25 de maio de 2019).

A vida ribeirinha está presente na narrativa do senhor Manuel. Sua vivência na floresta é demonstrada pelo conhecimento empírico e analítico, refletido no apego pelo espaço vivido (Buttimer, 2015; Tuan, 2012). Durante a entrevista, ele respondeu questões sobre esta relação afetiva com o lugar, o rio e a mata em contraste com as imposições econômicas provenientes do turismo empresarial. Ele afirmou que é benzedor desde os seis anos de idade e que aprendeu a medicina da mata com seus avôs. Em suas andanças e por suas experiências, Manuel disse que já rezou por umas três ou quatro mil crianças. E que não sabe quantos partos já realizou. Ele revelou sua relação com a floresta assim:

Hepatite, reumatismo, febre amarela, para estas coisas todas a medicina está aí na mata. [...] qualquer tipo de doença. Cada uma tem um remédio, uma árvore de pau. Tem andiroba, a sucuba, tem o jatobá, apuí, o uxi, saracura mirá, catuaba, tudo existe tem na mata. Eu não sou filho do Baixo Rio Branco, sou filho do Acre. [...] Eu rezo para susto. Às vezes a pessoa quer vir brigar comigo eu me desvio do mal, rezo para certas doenças... vento caído para criança. Então eu benzo para estas coisas. [...] Junta, desmentidura, às vezes eu boto o dedo em cima e vou mexendo, demora e está no lugar. [...]. Parto eu faço também, eu tiro, a mulher às vezes está sofrendo, não tem ajuda de nada só ajuda de Deus eu vou lá e resolvo a situação [...] Faz massagem, esquenta com água morna, às vezes, fria. [...] Tenho passado alguma coisa para meus meninos, mas eles não se interessam de aprender e daí eu digo assim: ‘- um dia o velho vai embora e vai levar tudo’. Eles não se dedicam, não chamam para ensinar o remédio. [...] aqui eu rezo pouco, só quando tem alguma criança aperreada eu vou lá e rezo. [...] Na hora do parto, estou pensando assim na minha mente: - Jesus, sou eu que estou fazendo aqui este parto, mas tu quem tem que tomar a minha frente, porque eu, só, não vou resolver. A criança é uma luz! Ele chorou já é uma luz que Deus botou lá no ventre dela e aquela criança se gerou ali, já foi Deus quem fez. [...] Aprendi isso tudo em sonho. Vem sonho sobre a pessoa. Tudo o que Deus faz na nossa vida é bom, não tem nada ruim (Entrevista concedida pelo Senhor Manuel Ribeiro Marinho, em Xixuaú, estado de Roraima, no dia 25 de maio de 2019).

Manuel tem influência na vila por seus conhecimentos tradicionais, mas não tem apoio para desenvolver suas habilidades, recebendo a indiferença de parte dos moradores já acostumados com a mudança na estrutura social, a partir das intervenções externas e do ritmo moderno do turismo empresarial. Ele diz que a natureza é uma totalidade, sendo o homem parte desta natureza e isto precisa ser considerado. Ele tem na ideia de lugar, o seu espaço vivido. Nas palavras de Brule (2017, p. 21): “O lugar assume a base para a existência humana, experiência dos acontecimentos do cotidiano, como o viver, o consumo, o trabalho, a religião, o lazer, etc.”. A narrativa de Manuel revela sua experiência topofílica com seu entorno.

A natureza que eu entendo ela é a floresta. A natureza é uma sombra muito grande. Se eu derrubo um pau desse aí, estou destruindo a floresta. Se entro e faço um varador muito grande, eu tô destruindo a natureza que é a mesma floresta. Aí tem o oxigênio, aquele frio na mata serve de remédio, porque é o sereno da natureza. Eu que sou a natureza! Pela outra natureza, todos nós somos a natureza, porque se eu não tiver a natureza eu não vivo, não posso existir. (Entrevista concedida pelo Senhor Manuel Ribeiro Marinho, em Xixuaú, estado de Roraima, no dia 25 de maio de 2019).

A equipe também conversou com Geraldo

Ferreira da Silva, 63 anos, que é presidente da Associação do Moradores de Xixuaú, desde 2011 e mora há 18 anos na comunidade. Na fala do presidente, ficou evidente a relação de poder entre cooperativa e a Associação de Moradores, assim como a divisão social das responsabilidades e as de-

mandas do local.

Vim pra cá com 19 anos e casei aqui [...] constitui família e vivo aqui no rio. Morei no São Pedro e voltei há 18 anos [...] terminei de criar meus filhos aqui. Criei raiz de novo aqui no Xixuaú. Sou líder há oito anos. [...]. Era o vice, mas o presidente abandonou e agora sou eu. [...]. Nosso papel é manter a comunidade limpa para receber os visitantes [...]. O turismo aqui é no rodízio. Se chega um grupo hoje trabalha por ordem alfabética [...]. Quando termina aquele rodízio começa tudo de novo e para chegar a vez da gente, demora. E eu sou o último da pilotagem. [...] As mulheres são camareiras, cozinheiras, um monte de coisa, mas é tudo rodízio e tem a sua vez. Pagam a diária e o resto fica com eles, não vem para nós. A minha porcentagem da comunidade é para deixar ela limpa e ter o lixo fora do local [...] (Entrevista concedida pelo Senhor Geraldo Ferreira da Silva, em Xixuaú, estado de Roraima, 25 de maio de 2019).

A narrativa confirma que a comunidade está afetada diretamente pela economia do turismo. Senhor Geraldo questionou o papel dos órgãos reguladores que fiscalizam o processo extrativista, afirmando que alguns moradores estão passando necessidade, já que a ordem de “manter a floresta em pé”, não oferece outra alternativa de renda. Ele disse que a mata é próxima na comunidade e se ainda vivesse da agricultura, poderia ter mais conforto. “Diria às autoridades para olharem para gente. Que dessem alguma coisa para nós sobreviver, porque a cooperativa quando tem trabalho é para pouca gente, que trabalha numa semana e os outros ficam passando mal” (Entrevista concedida pelo Senhor Geraldo Ferreira da Silva, em Xixuaú, estado de Roraima, 25 de maio de 2019).

4. Conclusão

A memória das intervenções recentes dos agentes estrangeiros à comunidade, da falta de ações e controle do poder público são recorrentes nas falas dos ribeirinhos. Percebeu-se que os impactos são muito latentes no cotidiano da comunidade. É a partir dos pressupostos fenomenológicos que se percebeu a riqueza de viver neste espaço amazônico e ao mesmo tempo o descontentamento dos habitantes em relação aos

processos que ocorrem na comunidade.

Heidegger (2002, p. 149), ao tratar da presença do ser na espacialidade explica que “[...] Na medida, porém, em que o ente intramundano está igualmente no espaço, também a sua espacialidade acha-se numa ligação ontológica com o mundo”. Portanto, percebe-se que os povos tradicionais têm na teluricidade a formulação de grande parte de sua axiologia, é assim que a dimensão ontológica assegura a manutenção da vida na relação do homem-natureza. Tal constatação aponta para o questionamento de Claval (2001) no trato da vivência e trajetória do indivíduo. Ele afirma que há diferenças entre grupos e indivíduos quando à percepção do real, pois estes têm critérios diferentes quanto a vantagens e riscos. “Por que os indivíduos e os grupos não vivem os lugares do mesmo modo [...] não associam a ele os mesmos sonhos e as mesmas aspirações, não investem nele os mesmos sentimentos e a mesma afetividade? ” (Claval, 2001, p. 40).

Durante a visita à comunidade de Xixuaú, percebeu-se por meio dos relatos dos moradores, que alguns têm ainda expectativas no turismo empresarial para geração de empregos provisórios e melhoria na comunidade, resultado de um possível saudosismo da época em que a comunidade recebeu investimentos por parte dos estrangeiros que exploravam a região. No entanto, a vila permanece em estado de flagrante abandono, exigindo dos habitantes uma maior organização para ação política, refletida no discurso do presidente da Associação dos Moradores e percebida pelo senhor Manuel.

Há um interesse da comunidade em manter os modos de vida, as tradições e a cultura ribeirinha em seu tempo, sendo bem vindas as intervenções que fortaleçam estes componentes, como aponta Cruz (2008) quando afirma que nestas áreas há um predomínio do tempo lento, no qual o rio é fundamental para os moradores, “sendo o referencial central na “geograficidade” – organização espacial, modo de vida – , além de matriz da temporalidade – ritmo social – e do imaginário – lendas, mitos, crenças, cosmogonias – (Cruz, 2008, p. 51).

Quando o senhor Manuel aponta suas críticas dizendo que Xixuaú não é uma comunidade plena, percebeu-se a proposta de Relph (2012), quando fala da ideia de lugar especial, na condição de ser um espaço de reunião, uma vez que “reúne fisionomia de lugar, atividades econômicas e sociais, história local e seus significados. Em sentido mais psicológico, reunião integra nosso corpo, o estado do nosso bem-estar, a imaginação, o envolvimento com outros e nossas experiências ambientais. É o lugar com lugaridade” (Relph, 2012, p. 29). Este lugar difere dos lugares recriados por intervenções exógenas ao corpo horizontal solidário das pessoas que vivem e representam seus espaços a partir do elo histórico que os une ao ambiente.

Em nosso mundo pós-moderno e neoliberal, surgem casos em que a identidade de lugar e a diferença dão lucro. Assim, a identidade de lugar tem sido manipulada e até mesmo inventada por empresas de desenvolvimento que visam o lucro e por políticos da cidade, para atrair investimentos e turismo (Relph, 2012, p. 26).

Marandola Jr. e Hogan (2009, p. 161) apontam que perceber os perigos e as vulnerabilidades do lugar “é uma estratégia que permite, em microescala, captar os elementos que interferem na produção, aceitação e mitigação dos riscos. A dimensão ecológica é re-significada ao incorporar a dimensão existencial e fenomênica do lugar [...]”. Importante considerar que as aceleradas transformações socioeconômicas, culturais e ambientais, assim como a posterior vulnerabilidade do lugar e do habitar em Xixuaú são resultados das intervenções diretas impostas pelo capital privado, na busca por um modelo ainda não experimentado nesta região, de possível desenvolvimento econômico apenas para uma das partes: os investidores, desconsiderando as memórias, percepções, valores e modo de vida caboclo ribeirinho (Kozel, Silva., & Gill Filho, 2007). A atividade turística, sem planejamento participativo ou compensações que contemplem além da temporada do turismo, o restante do ciclo anual, afeta a noção de pertencimento e o envolvimento dos moradores com o espaço vivido.

Os moradores de Xixuaú entrevistados neste trabalho apontaram pela memória seus sentimentos, e expectativas, demostrando a relação existente entras as sensações do espaço percebido e do mundo vivido, numa intensa relação topofílica e de identidade individual e coletiva com o lugar. Considerar as singularidades locais e o modo de vida de seus habitantes é requisito fundamental para implementação, tanto de projetos de desenvolvimento privados, quanto de políticas públicas a partir da alteridade, com a mitigação de danos ou impactos causados pelas intervenções exógenas ou endógenas, tendo na complexa relação do ser-no-mundo com o lugar experenciado, uma das possibilidades de melhoria no planejamento do uso e apropriação do espaço amazônico ribeirinho.

Material suplementar
5. Referências bibliográficas
Beck, U. (2010). Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. Rio de Janeiro: Editora 34.
Brule, D. M. (2017). Espaço geográfico vivido socialmente: uma aproximação da geografia crítica com o horizonte humanista. Revista de Geografia, 34(01), 06-26. Recuperado de https://periodicos.ufpe.br/revistas/revistageografia/article/view/229279.
Buttimer, A. (2015). Lar, horizontes de alcance e o sentido de lugar. Revista Geograficidade, 5(1), 04-19. Recuperado de http://periodicos.uff.br/geograficidade/article/view/12915.
Claval, P. (2001). O papel da nova geografia cultural na compreensão da ação humana. In Rosendahl, Z. & Corrêa, R. L. Matrizes da geografia cultural, 35-86. Rio de Janeiro: EDUERJ.
Companhia de Águas e Esgotos de Roraima – Caer. (2018). Relatório de viagem ao Baixo Rio Branco- Roraima. Núcleo de Meio Ambiente – NMA.
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Dardel, E. (2011). O homem e a terra: natureza da realidade geográfica. São Paulo: Perspectiva.
Governo do Estado de Roraima (2010). Comunidades Ribeirinhas do BRB. Secretaria do Estado do Planejamento e Desenvolvimento. Centro de Geotecnologia, Cartografia e Planejamento Territorial. http://siget.rr.gov.br/index.php/roraima-geodigital
Halbwachs, M. (2011). A Memória Coletiva. São Paulo: Centauro.
Heidegger, M. (2002). Ser e tempo. Rio de Janeiro: Editora Vozes.
Kozel, S., Silva, J. C., & Gill Filho, S. F. (2007). Da percepção e Cognição à representação. São Paulo:
Notas
Notas
[1] Mestre em Geografia pela Universidade Federal de Roraima. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4002-4408. E-mail: eder.rodrigues@ufrr.br [2]Mestre em Extensão Rural pela UFRR. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1715-4247. E-mail: savaris@outlook.com [3]Professor Associado do Departamento de Geografia da Universidade Federal de Roraima. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9213-9306. E-mail: antonio.veras@ufrr.br
[i] O estado de Roraima integra a Amazônia Legal, com área física de 224.298 Km² (IBGE, 2002), localizada no extremo norte da Amazônia brasileira. A ocupação na região se deu a partir de 1943, ano de criação do Território Federal de Roraima.
[ii] Edital PROCAD | CAPES nº 21/2018. Processo nº 23038.005350/2018-78. PROCAD – Comunidades do Baixo Rio Branco Serão pesquisas por três universidades. Recuperado em 15 de maio de 2019, http://ufrr.br/ultimas-noticias/5405-procard-comunid ades-do-baixo-rio-branco-serao-pesquisadas-por-tres-universidades.
[iii] Dados fornecido pelas lideranças locais aos pesquisadores no dia das entrevistas (25 de maio de 2019).
[iv] Dentre os trabalhos produzidos, destacamos: Veras, A.T.R. (2009). A produção do espaço urbano de Boa Vista (RR). Tese de doutorado em Geografia Humana. São Paulo, USP; Veras, A.T.R. (2011). A criação do Estado de Roraima e sua importância na dinâmica da cidade de Boa Vista. In: Costa, E. B.; Oliveira, R. S. (Orgs.) (2011). As cidades entre o “real” e o imaginário: estudos no Brasil. São Paulo: Expressão Popular e; Veras, A.T.R. (2012). Rugosidades e tendências atuais na dinâmica de produção do espaço urbano de Boa Vista. In: Magalhães, M. G. S. D.; Souza, C. M. (Orgs). (2012) Roraima/Boa Vista: temas sobre o regional e o local. Boa Vista: EdUFRR.
[v] Entrevista concedida ao professor Antônio Veras, no dia 25 de maio de 2019, em Xixuaú, município de Rorainópolis (RR).
[vi] Entrevista concedida no terreno da residência do senhor Manuel aos professores Maria das Graças Silva (UNIR); Josué da Costa Silva (UNIR), Rafael Oliveira Maia (PPGEO/UFRR) e Éder Rodrigues dos Santos (PPGEO/UFRR), no dia 25 de maio de 2019, em Xixuaú, município de Rorainópolis (RR).

Figura 01
Localização da Comunidade Ribeirinha de Xixuaú, município de Rorainópolis - RR

adaptado do Governo do Estado de Roraima (2010).

Rafael Oliveira Maia (novembro/2019)

Figura 02
Vista área da comunidade de Xixuaú
Trabalho de campo de Roberto Caleffi (maio/2019).

Figura 03
Painéis de energia solar em Xixuaú parcialmente desativados
Trabalho de campo realizado por Éder Santos (maio/2019).

Figura 04
Malocão da CoopXixuaú onde se desenvolvem ações de turismo
Trabalho de campo de Roberto Caleffi (maio/2019).

Figura 05
Página de publicidade na internet do turismo em Xixuaú

Publicidade turística

https://www.amazontrip.info/web/pt/. (2019)

Figura 06
Mesmo com recipientes para coleta seletiva, ainda há queima de resíduos na vila
Trabalho de campo realizado por Éder Santos (maio/2019).
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