Dossiê Patryter
Patrimonialidade em cidades não patrimonializadas: caso de Crixás, Goiás, Brasil
Patrimonialidad en ciudades no patrimoniales: caso de Crixás, Goiás, Brasil
Patrimoniality in non-heritage cities: case of Crixás, Goiás, Brasil
Patrimonialidade em cidades não patrimonializadas: caso de Crixás, Goiás, Brasil
PatryTer, vol. 3, núm. 6, pp. 202-218, 2020
Universidade de Brasília

Recepção: 23 Maio 2020
Aprovação: 25 Junho 2020
Publicado: 01 Setembro 2020
Resumo: Crixás (Goiás, Brasil) é analisada neste artigo desde sua gênese colonial até o atual contexto que indica a negligência na defesa de seu patrimônio cultural. Diversos eventos econômicos, políticos e sociais conduziram à quase completa destruição de um conjunto de bens culturais móveis e imóveis no espaço urbano. O objetivo da pesquisa foi identificar em que medida ausências e permanências na paisagem urbana e/ou na memória coletiva constroem um sentido de patrimonialidade particular. Foi possível reconhecer que tal sentido, oriundo da relação patrimônio-memória-lugar, tensiona a dialética material-simbólica do patrimônio local, sobrepondo-se ao reconhecimento institucional ou ao discurso oficial de conservação de bens edificados. Para a análise, foram realizadas pesquisas bibliográficas e documentais, observação participante em manifestações cuturais locais, técnicas da história oral e entrevistas (semiestruturadas, narrativas e fotoentrevistas).
Palavras-chave: s: Crixás, patrimônio, patrimonialidade, memória, lugar.
Resumen: Crixás (Goiás, Brasil) es analizada en este artículo desde su génesis colonial hasta el contexto actual de ausencia institucional en defensa de su patrimonio cultural. Diversos eventos económicos, políticos y sociales han llevado a la destrucción casi completa de un conjunto de bienes culturales muebles e inmuebles en el espacio urbano. El objetivo de la investigación fue identificar hasta qué punto las ausencias y permanencias en el paisaje urbano y / o en la memoria colectiva construyen un sentido del patrimonio particular. Fue posible reconocer que tal sentido, procedente de la relación patrimonio-memoria-lugar, articula la tensión de la dialéctica material-simbólica del patrimonio local, superponiendo al reconocimiento institucional o el discurso oficial de conservación de los bienes construidos. Para el análisis, se realizaron investigaciones bibliográficas y documentales, observación participante en manifestaciones culturales locales, técnicas de historia oral y entrevistas (semiestructuradas, narrativas y entrevistas fotográficas).
Palabras clave: Crixás, patrimonio, patrimonialidad, memoria, lugar, sitio.
Abstract: Crixás (Goiás, Brasil) se analiza en este artículo desde su génesis colonial hasta el contexto actual que indica el abandono en la defensa de su patrimonio cultural. Several economic, political and social events have led to the almost complete destruction of a set of movable and immovable cultural goods in the urban space. The objective of the research was to identify the extent to which absences and permanences in the urban landscape and / or in the collective memory build a sense of particular patrimoniality. It was possible to recognize that such a sense, originating from the heritage-memory-place relationship, tensions the material-symbolic dialectic of the local heritage, overlapping the institutional recognition or the official discourse of conservation of built goods. For the analysis, bibliographic and documentary researches, participant observation in local cultural manifestations, techniques of oral history and interviews (semi-structured, narratives and photo-interviews) were carried out.
Keywords: Crixás, heritage, resistance, patrimoniality, memory, place.
Patrimonialidade em cidades não patrimonializadas: caso de Crixás, Goiás, Brasil
DOI: https://doi.org/10.26512/patryter.v3i6.31725
Como citar este artigo: Lima, L. N. M. (2020). Patrimonialidade em cidades não patrimonializadas: caso de Crixás, Goiás, Brasil. PatryTer – Revista Latinoamericana e Caribenha de Geografia e Humanidades, 3 (6), 202-218. DOI: https://doi.org/10.26512/patryter.v3i6.31725
1. Introdução
As contradições recorrentes em todo o processo de patrimonialização no Brasil, desde a “invenção do patrimônio nacional”, retardaram o reconhecimento do patrimônio cultural de muitas cidades e, de forma geral, impossibilitaram a conservação em tempo hábil, gerando um “esquecimento” de conjuntos de bens móveis e imóveis. Nesse contexto se insere o patrimônio de muitas cidades em Goiás, cuja trajetória está contextualmente imersa na relação dicotômica e dialética entre "conservação do passado" e "modernização do presente", mas fora marcada substancialmente pela segunda (Lima, 2017). Autores como Chaul (2010), Teixeira Neto (2009) e Bertrand (1978) contribuíram para a compreensão de como a região foi inserida no projeto de nação, cujo objetivo era garantir a unidade e identidade nacionais por meio de um projeto de modernidade, o que nos permite estabelecer uma correlação entre o patrimônio e a urbanização do território goiano-tocantinense. No debate acerca da preservação do patrimônio brasileiro, Chuva (2003; 2009) e Pelegrini (2006) se destacam ao denunciar a prática seletiva de projetos políticos historicamente constituídos, nos quais se determinou os bens dignos de perenidade e aqueles condenados a destruição.
A pesquisa aqui apresentada desenvolveu-se no percurso da tese de doutoramento defendida em 2017 no Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade de Brasília, intitulada “Lugar e memória: o patrimônio goiano entre o esquecimento e a resistência”, tornando-se agora base para uma nova contribuição neste artigo[i], com tratamento específico do caso de Crixás, município do interior do estado de Goiás. Para tal, distintos aportes metodológicos serviram à pesquisa, tais como a Observação Participante, a História Oral, as entrevistas (Semiestruturada, Narrativas e Fotoentrevistas) e as pesquisas bibliográfica e documental.
Crixás está situado no Vale do Araguaia, região compreendida entre o rio Crixás-Açu, e Crixás-Mirim, na microrregião São Miguel do Araguaia. Ligado à Belém - Brasília (BR-153), através da GO-336, distante 354 km de Brasília e 320 km de Goiânia, conta com uma população de 15.760 habitantes em uma área de 4.661,162 Km2, de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [IBGE], (2010).
Na primeira parte do artigo, a trajetória histórica do município corrobora para a compreensão do contexto marginal em que o patrimônio cultural de muitas cidades em Goiás se insere, sendo resultado da condição de “decadência” econômica no período pós-mineração e dos processos de modernização que incidiram na destruição de parte significativa do acervo no espaço urbano. A segunda parte apresenta parte dos bens referenciados pela população em pesquisa de campo e denuncia a ausência de uma estrutura institucional de preservação que possibilite uma política democrática do patrimônio histórico, além do relativo abandono do patrimônio material ainda existente. Na terceira parte, para além de uma análise restrita do que restou do patrimônio histórico material na paisagem de Crixás, busco evidenciar as relações sociais e afetivas de uso dos patrimônios culturais para compreender a forma como sua apropriação por parte das populações locais constituem-se resistências às supostas ameaças ao patrimônio, a saber: a modernização do território e a negligência institucional e política.
Ao mesmo tempo, refletir sobre o caso de Crixás é atestar a necessidade de uma utopia do “patrimônio-territorial”, pois, segundo Costa (2016), isso revelaria estratégias diante de um universalismo que se impõe aos lugares, sobretudo, em relação às ações capitaneadoras da Unesco, que na consagração dos patrimônios, “paradoxalmente: acirram competições ou confrontos entre agentes e atores no território; favorecem a concorrência da oferta de lazeres entre cidades e países; estimulam uma corrida global pelo selo supremo da patrimonialização; setorizam a destinação de verbas públicas para intervenções urbanísticas classistas; privilegiam políticas, restritamente, aos bens patrimoniais chancelados etc.” (Costa, 2016, p. 11).
A abordagem está concentrada na análise sobre bens não institucionalizados ou parcialmente institucionalizados, concepção que coincide com a proposta de Costa (2017) no viés de um patrimônio-territorial, como alternativa real de valoração do patrimônio latino-americano subalternizado na história oficial. Ciente da necessidade de conceber a espacialidade do patrimônio e da memória, e de que as relações sociais que as envolvem se materializam no espaço e ganham significações em sua dimensionalidade vivida, faço o uso conceitual do “lugar”. Importa, sobretudo, encontrar na oralidade e na observação, elementos que possam conferir um sentido patrimonial (patrimonialidade), um conjunto de formas de reconhecimento que individualizam Crixás e definem seu patrimônio próprio.
O que amadureceu o entendimento do que é o patrimônio e do que efetivamente resiste em Crixás foi a perspectiva fenomenológica, a qual considera os lugares e objetos efetivos e afetivos da memória. Isso significa que a memória coletiva abarca a cidade em todas as suas dimensões e não restringe o patrimônio ao que é material e institucionalizado, fortalecendo um sentido de patrimonialidade (Poulot, 2009) ao lugar.
restringe o patrimônio ao que é material e institucionalizado, fortalecendo um sentido de patrimonialidade (Poulot, 2009) ao lugar.

2. Crixás: a gênese colonial, a “decadência” e a retomada das minas
A ocupação de Crixás teve início com o ingresso dos bandeirantes pelos sertões e com as descobertas dos garimpos de ouro em Goiás no século XVIII. O município recebeu esse nome por ser antigo território da nação indígena Kirirás ou Curuxás (Asmar, 1988). Há duas versões históricas sobre a fundação do antigo povoado. A primeira a atribui a fundação ao bandeirante Manoel Rodrigues Tomás, companheiro de Bartolomeu Bueno, no período de 1726 a 1734, com a denominação de Nossa Senhora da Conceição. A segunda versão defende que foi o sertanista Domingos Pires o fundador do povoado, em 1734, sendo elevado a arraial em 1740.
O histórico da cidade está claramente demarcado por três períodos principais: 1) Ocupação pelo bandeirantismo e operação das primeiras lavras; 2) Estagnação da produção com recorrente abandono do povoado, disseminação de doenças
recorrente abandono do povoado, disseminação de doenças e inúmeras mortes; 3) Chegada de estrangeiros, retomada da economia mineradora e do comércio local – período de emancipação do município e prerrogativa de “modernização”.
Em janeiro de 1755, o arraial de Crixás foi elevado a paróquia, condição em que permaneceu por quase dois séculos, tornando-se sede da vila transferida de Pilar de Goiás, a cujo distrito pertencia (IBGE, 2010).
Segundo Asmar (1988), o declínio do ciclo da mineração, na década de 1770, condenou ainda mais Crixás a uma posição geográfica sem privilégios, provocando o êxodo mineiro e sequelas de instabilidade: escassa mão-de-obra destinada à lavoura de cana-de-açúcar, tabaco e mandioca. A estatística de 1804 levantada pelo autor acusa a queda demográfica e, por conseguinte, do interesse econômico pela região. Nesse ano, o Julgado de Crixás contava com um total de 1693 homens e 909 mulheres, entre brancos, negros, pardos e escravos. Por estar subordinado a Pilar de Goiás durante várias décadas, o abandono também acompanhou o distrito. O historiador Johann Pohl, em 1817, entre outras descrições bastante depreciativas, faz a seguinte:
O Arraial de Crixás [...] está bastante tomado pelo mato. Fica entre arbustos tão altos que, a não ser a semi-arruinada Igreja de Nossa Senhora da Abadia, nenhuma casa se avista antes de penetrar no próprio lugar. [...] Consiste em quatro ruas largas, acidentadas e sem calçamento, que seguem a mesma direção. Tem cerca de 200 casas de madeira e barro, mal construídas, baixas, algumas caiadas, outras apenas rebocadas por fora. Há quatro igrejas, todas feitas do mesmo material e em péssimo estado de conservação. Algumas tinham torres, que já desabaram. O melhor edifício é o que serve de residência do Juiz. Foi construído pelo governo. Como a maioria dos escravos já morreu e o solo da região não é bom, mas impróprio para o cultivo, em breve teremos a irremediável e completa decadência deste lugar, e os futuros viajantes aqui só avistarão ruínas abandonadas e ermas (Pohl, 1975, p. 60).
Este estágio de abandono atingiu dimensões ainda maiores no século seguinte, culminando em problemas de ordem sanitária. De abril a outubro de 1912, Arthur Neiva e Belisário Penna percorreram Piauí, Pernambuco, Bahia e Goiás, para o reconhecimento topográfico e o levantamento das regiões secas, por requisição da Inspetoria de Obras Contra as Secas, órgão do Ministério dos Negócios da Indústria, Viação e Obras Públicas. Para Asmar (1988), essa expedição certificou o grau de insalubridade agressiva no interior do país, prova do abandono oficial. O que se constatou em Crixás foi o descaso geral sentido duramente pela população, até a atualidade. Diversos relatos colhidos em entrevistas, e de registros deixados por historiadores confirmam que a febre amarela quase devastou toda a cidade. O poema abaixo, de Sebastiana Ester Dietz de Oliveira, retrata este momento da história da cidade.
[...] Temos que deixar a Paróquia,
esta Freguesia da Sra. da Conceição,
diziam os que dirigiam essa pequena fração,
porém, para aquele tempo
já era um grande rincão,
era uma terra nova
cheia de esperanças!
[...] Não sei se lenda ou verdade,
mas... só ficaram na cidade
apenas três personagens:
Ana Freire, Ana Fraga e João Franguinho.
Agora, veio a falência
E uma tristeza imensa
Tomou conta da Paróquia!
Que ficou em pouco tempo
sem dono, sozinha
ao léu do tempo!
(Oliveira, 2001, pp. 91, 94).
E ainda o relato de uma descendente do geólogo alemão que retomou a garimpagem no município neste mesmo período confirma que a cidade esteve devastada, não apenas pelo fim da mineração, mas poucos habitantes sobreviviam às penúrias no espaço urbano no início do século XX.
[...] Esse período era um período em que a cidade ainda, pra aquela época, [...] tinha uma certa pujança, digamos assim, né? Mas o meu avô, o meu bisavô, [...] jogava trinta pessoas nas costas, ia lá, erguia assim as tábuas, e só jogava. E os resquícios, o restante da população refugiou-se nas fazendas. [...] No começo de mil novecentos e pouco, quando meu avô chegou aqui... (ele veio pelo Araguaia, né?) e desceu, e chegou aqui, encontrou as ruínas, entrou dentro de uma casa velha lá, limpou e tinha três vidas aqui [referindo-se às pessoas citadas no poema]. [...]essas três vidas que meu avô contava que tinha encontrado aqui, morando dentro da cidade. (Entrevista concedida por Elisabeth Dietz Neves Ferreira, em Crixás, Goiás, em 01/07/2015).
Ainda nos primeiros anos do século XX, a exploração aurífera foi redescoberta pelo geólogo Albrecht Dietz, descobridor das famosas minas de ouro Chapéu de Sol e Venâncio. As minas ainda eram exploradas de forma autônoma, inclusive por mulheres, em bateias no leito do Rio Vermelho. As terras foram adquiridas por uma Companhia Inglesa, John Taylor & Sons, cuja exploração durou até 1923, quando os ingleses evadiram-se com todo o ouro fundido, em virtude de uma revolta no garimpo. Albrecht Dietz, que sustentava seu comércio atendendo os garimpeiros estrangeiros com suprimentos variados, veio à falência, adoeceu e faleceu em Crixás em 1927, deixando uma descendência que viria a tornar-se família tradicional em Crixás, iniciada por seus filhos com Maria Pedrosa, João Dietz e Joaquim Dietz (Lima, 2015; Asmar, 1988).
Em 1938, o Distrito de Crixás perdeu para o de Pilar de Goiás as prerrogativas de sede municipal (Decreto-Lei Estadual nº 557), e somente em 1954, o município de Crixás foi desanexado da Comarca de Pilar e oficialmente instalado (Lei Estadual nº 850/1953) (IBGE, 2010). Permanecia a antiga cidade, mas com anseios de modernização e desenvolvimento.
Anos mais tarde, em meados da década de 1970, apesar dos ideais de modernidade que Goiás absorvera pelos projetos de expansão da fronteira agrícola, a realidade do abandono que envolveu as idas e vindas da mineração permanecia enrustida no espaço urbano de Crixás. Ocorreu um grave desencontro político a partir de 1975, na gestão de Jair Feitosa de Carvalho, o qual lutava por uma rápida
Figuras 2 e 3 – Festa de comemoração aos 25 anos de emancipação política de Crixás, em 1978, quando o governador Irapuan Costa Júnior esteve presente Importar imagen Fonte: acervo pessoal de Rômulo Xavier de Lima. Importar tabla
Jair Feitosa de Carvalho, o qual lutava por uma rápida mudança e transferência da antiga sede para o Povoado de Governador Leonino Caiado, sob argumento de uma sede moderna, onde se pudesse construir uma nova cidade que deixasse para traz os vestígios da miséria e da insalubridade. Os contrários à mudança reagiram em defesa da antiga sede, a exemplo de Ursulino Leão, então Procurador de Justiça e membro da Academia Goiana de Letras.
As figuras 2 e 3 destacam a proclamação da ideia de “desenvolvimento”, nas faixas fixadas no centro da cidade; e a “pecuária”, como atividade que tiraria Crixás da “decadência”.

Nessa questão de ser ou não ser município, Crixás fez sua trajetória. Em relação ao número de habitantes, de construções, de rendimentos para manutenção de serviços peculiares, em facilidades de acesso aos mercados consumidores, entre outros, estava à frente de outras localidades no interior goiano. Mas houve ainda outros percalços pela criação, recriação, integração e fragmentação territorial advinda de várias emancipações em seu território, que ocorreram em função de interesses de grupos sociais movidos por questões ideológicas, processos que foram explorados por Dias (2010). Municípios que hoje são emancipados: Mundo Novo, Bandeirantes e Nova Crixás pertenceram ao município de Crixás, o qual já foi um dos maiores de Goiás em extensão territorial, um total de 15.250 Km2. O autor considera a insuficiente viabilidade econômica de criação de unidades administrativas, observando as necessidades de orçamento advindo da união, como fator que desencadeou uma condição de estrutura urbana precária nesses municípios. Estes continuaram dependendo de uma diversidade de mercado e serviços que exigem o deslocamento para Crixás. Já Asmar (1988) considera a “amputação
estrutura urbana precária nesses municípios. Estes continuaram dependendo de uma diversidade de mercado e serviços que exigem o deslocamento para Crixás. Já Asmar (1988) considera a “amputação geográfica” do território de Crixás um paradoxo, pois impõe a Crixás a perda de considerável base econômica, diminuindo-lhe as fontes de receita do Fundo de Participação dos Municípios (FPM).
Embora a estrutura econômica de Crixás tenha resguardado as atividades da pecuária e da mineração como principais potencialidades produtivas, há de se convir com Dias (2010) que não foi uma simples reacomodação dessas atividades que garantiram a modernização da cidade, mas novas relações e mecanismos de organização impostos pela industrialização progressiva.
A dinâmica econômica da cidade envolve a mineração desde as primeiras lavras até a industrialização do processo de extração presidida pela multinacional Serra Grande, cuja lógica de produção insere-se no mercado global. Somam-se a isso fatos anteriores mencionados por Asmar (1988), como: o Proterra – Programa de Redistribuição de Terras e Estímulo à Agroindústria do Norte e Nordeste que incluiu Crixás como alvo de um Projeto do Cobre desenvolvido pela Metago; o Prodoeste, que possibilitou a criação de estradas, recolocando-a como ramal de alimentação da GO-4 e confirmando seu contato viário, entre o sul e o norte do país, com boas alternativas de rotas.
A expansão urbana se deu de forma acentuada na década de 1980. Dias (2010) explica que no início dessa década Crixás tinha uma população de 30.219 (trinta mil, duzentos e dezenove) habitantes, dos quais 75,66% se localizavam na zona urbana. Isso porque em 1980 a cidade ainda não tinha em suas imediações a mineradora Serra Grande, mas havia a prática exploratória do ouro feita com técnicas que necessitavam
localizavam na zona urbana. Isso porque em 1980 a cidade ainda não tinha em suas imediações a mineradora Serra Grande, mas havia a prática exploratória do ouro feita com técnicas que necessitavam de adentrar nos aluviões dos leitos dos rios, além de escavações com jatos d’água de bombeamento mecânico, o que implicava maior esforço físico e também uma maior concentração de garimpeiros migrantes. Essa realidade tenderia a se modificar com a instalação de uma multinacional, anos depois, em 1989, já que a mesma aboliria qualquer tipo de práticas ilegais vinculadas à extração do ouro. Muitos garimpeiros e suas famílias, que viviam dessa atividade, se viram forçados a procurar outras áreas para explorar o mineral, reduzindo drasticamente a população.

Em síntese, são marcos na história de Crixás: ocupações às pressas e despretenciosas para fins de garimpagem; febre que ocasionou a fuga da população para outras localidades; reapropriação da atividade mineradora pelos ingleses; subordinação a outras Comarcas (Pilar e Itapaci); fragmentação do território; e por fim, sua atual recolocação no destaque na indústria extrativa de ouro. Este último marco no desenvolvimento do município, entretanto, não apresentou indicadores sociais e econômicos que caracterizam uma elevação de qualidade de vida da população localizada na sua área de influência, conforme demonstraram Fernandes, Lima e Teixeira (2007). A condição do patrimônio e o fim que levou muitas edificações na cidade são, em grande parte, reflexos dessas situações às avessas que marcaram a história do município, como se verá no tópico a seguir.
3. “Vão-se os anéis, ficam os dedos”: ausências e permanências na paisagem urbana e na memória coletiva
Vários anos, muitos anos...
Casarios emendados, agora todas caladas...
Abatidas, sem vida!
Saudosas dos seus que foram...
E foram para nunca mais...!
(Oliveira, 2001, p. 97)
Diante de sua conjuntura histórica, Crixás, atualmente, possui poucos bens materiais históricos em seu núcleo original. Lima (2015) denuncia que, no curso do desenvolvimento urbano local, os moradores com maior poder aquisitivo demoliram seus bens históricos, casas coloniais, construindo em seus lugares casas modernas sem expressão original. Três elementos que designam alto valor memorial são centrais nos relatos: a antiga Igreja Nossa Senhora da Conceição (figura 7), a Casa Grande (figura 8) e a Cadeia (figura 9), as três representadas na pintura em tela de Claudiuir Fernandes (figura 6), situadas em área central, hoje, Largo da Matriz e Praça Manoel Rodrigues Tomás.
A igreja da figura 7 não é a primeira igreja de Nossa Senhora da Conceição construída no povoado. Foi construída em 1931 no lugar da antiga igreja colonial que fora derrubada pela chuva. Já na década de 1980, foi demolida e uma nova igreja com arquitetura moderna foi construída em seu lugar. A atual igreja ainda mantém o sino original fundido na própria cidade, em 1783, e três imagens recentemente restauradas, esculpidas pelo artista goiano Veiga Valle em 1852, Senhora da Conceição, São Benedito e São Sebastião.






Na Freguesia de Crixás foram construídas quatro igrejas, entre 1740 e 1755. Por volta de 1817, Cunha Mattos as descreveu brevemente: 1ª) Nossa Senhora da Conceição, matriz com sete altares, muito pobre e arruinada, 2ª) Nossa Senhora da Abadia, com um altar, conservada em bom reparo e detentora de objetos de prata, 3ª) Nossa senhora do Rosário dos Pretos, com três altares, mediana e muito pobre, 4ª) Santa Efigência, um altar apenas, pequena e pobre. Em entrevistas ouvimos também a respeito da Igreja de São Gonçalo, situada em um morro que leva o nome de São Gonçalo. Os moradores mais antigos não chegaram a conhecer tais igrejas, apenas suas ruínas. Alguns conviveram bem de perto com esses resquícios da antiga cidade ou ouviram seus pais e avós contarem as histórias que envolvem o contexto da dita “decadência”. Entretanto, lembram-se muito bem da Casa Grande, apesar de certa amargura e pesar darem a tônica às narrativas sobre tal edificação. A Casa Grande foi construída para tornar-se sede das ocasiões festivas que já eram uma constante desde o antigo Arraial.
Tudo parece indicar que a Casa Grande tinha (ou ainda tem), para os moradores de Crixás, um valor ainda mais significativo do que a própria igreja, pois as lembranças estão correlacionadas a um acontecer festivo que ainda se manifesta no presente, ainda que com menos vigor do que outrora.
Sinto [saudade] pela Casa Grande. A mãe de um dos responsáveis pela demolição dela veio aqui, me chamou, foi na casa da minha tia que morava aí no casarão velho, chamando pra nós fazer um movimento pra não deixar desmanchar. Mas aí nós três só que teve essa ideia, né? Falou com um, falou com outro: -“Ah, não deixa. Deixa, isso aí vai acabar mesmo, ficar só por conta de morcego”. – [risos] [...] Então, hoje eu tenho arrependimento, nós tinha que ter feito um movimento de não ter deixado eles destruir a Casa Grande. [...] Essa Casa Grande é uma casa que os historiador que já passou por aqui diz que no Brasil não tinha outra, era só ela desse padrão que era ela. Ela tinha as paredes tudo dessa largura assim ó [...]. Ela foi demolida por cabeça ruim de prefeito, que invés de querer restaurar ela, né? E nós, naquela época ninguém sabia, tinha noção do que era o valor econômico disso, né? Deixou, né? Porque podia o povo ter feito uma revolta e não ter deixado. Deixou. (Entrevista concedida por Honória Ferreira Neves, em Crixás, Goiás, em 30/06/2015).
A Cadeia Pública não era uma edificação do período colonial, fora construída em 1926. Era um sobrado muito simples de dois andares: uma sala livre no andar de cima para os “menos castigados” e duas celas mais seguras no andar de baixo para os réus (Oliveira, 2001). Era um elemento simbólico da cidade e até hoje é incluída entre os bens que são elencados como “perdidos”. Em seu terreno, situado bem próximo à atual Igreja de Nossa Senhora da Conceição, foi construída a Igreja Presbiteriana do Brasil, fato que teve a influência de famílias tradicionais que se tornaram protestantes, quando o presbiterianismo se assentou na cidade pela vinda de missionários norte-americanos na década de 1940.
Em 1987, a prefeitura sancionou a lei nº 618, que declara como patrimônio artístico e cultural de Crixás oito imóveis situados à tradicional rua Ricardo Neves (figura 12), para efeito de tombamento, preservação e proteção da memória local. Destes bens remanescentes, boa parte foi demolida, a fim de que se cedesse espaço para o Supermercado Agrovet, da rede Smart. As contínuas demolições que se seguiram indicavam a prevalência de uma mentalidade que vislumbrava o progresso e o “novo” e invalidava qualquer lei de preservação. Três casarios agregados, com características de famílias abastadas do período colonial, conhecidos como “Casarão” (figura 13), foram cedidos à prefeitura municipal por quatro irmãos que eram proprietários por direitos hereditários. O imóvel localizado entre a casa 1 e a casa 3 mede 6,5 m de frente por 10,64 m de fundo, com todas as paredes construídas de adobe assentadas com argamassa de barro.

Em 2008, a professora da Universidade Estadual de Goiás (UEG), do campus de Crixás, Anália Dias Souto submeteu um projeto de extensão intitulado “Resgatando as raízes culturais da cidade de Crixás” à Pró-Reitoria de Extensão, Cultura e Assuntos Estudantis da Universidade, bem como o encaminhou à 14ª Superintendência Regional do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), a fim de pleitear recursos e apoio na execução do projeto de restauração do Casarão. O relatório de vistoria foi realizado pela Divisão Técnica da superintendência em março de 2009, contudo, não houve atuação efetiva do Iphan, uma vez que o financiamento da obra de restauro foi obtido pela participação direta da iniciativa privada, por intermédio da Lei Rouanet. A obra de restauração foi concluída em 2012, em uma parceria firmada entre a mineradora Serra Grande, a Prefeitura Municipal, a Universidade Estadual de Goiás (Campus de Crixás) e a Loja Maçônica Estrela Crixaense.
Minha participação se deu como historiadora, professora da UEG e acima de tudo, como cidadã
crixaense preocupada com a possível perda das raízes históricas, que a partir da elaboração de um projeto que tem como premissa, atendimento a algumas das necessidades da produção cultural crixaense e aos interesses da coletividade, sendo que foi possível chegar aonde está em parceria com o Poder Público Municipal, UEG – Crixás, união das iniciativas público-privada cumprido cada qual sua parte nesse processo de resgate cultural. [...] Pela necessidade de termos aqui em Crixás um espaço cultural de interlocução e diálogo com a comunidade local, com nossos artistas anônimos (que não são poucos), com os grupos já formados (folia do Divino Espírito Santo, Cavalhadas, mais recentemente, festival do pequi entre outros). Nosso intuito é único: fomentar e favorecer a construção do conhecimento cultural e a participação social (Entrevista concedida por Anália Dias Souto, Crixás, Goiás, em 19/03/2016).
Os casarios restaurados foram unificados e o local foi denominado “Espaço Cultural Ursulino Leão” (figura 13), em homenagem ao escritor e político crixaense. A proposta original era que além de abrigar um pequeno museu, o espaço servisse a toda comunidade crixaense, para eventos culturais, pousos de folias, exposições, oficinas, entre outros.

Na antiga Rua da Fundição, onde supostamente era fundido o ouro da região, agora denominada Rua Rosa Pereira Neves, dois casos são emblemáticos. O primeiro é uma pequena casa colonial bastante degradada (figura 14), que resiste em uma vizinhança considerada privilegiada. O dono não reside nela e se recusa a vendê-la ou derrubá-la para construir outra de alto padrão, embora não devam faltar ofertas, dada sua localização. O segundo caso é a “Casa do Tio Joca” (figura 15), construída no início da década de 1940. Embora seja um imóvel “sem valor” do ponto de vista da longevidade histórica, segundo os critérios institucionais, a casa tem um valor fundamentado na história e experiências locais.


Embora seja um imóvel “sem valor” do ponto de vista da longevidade histórica, segundo os critérios institucionais, a casa tem um valor fundamentado na história e experiências locais.
A casa do “Tio Joca” representou, para o crixaense, um lugar de hospitalidade, onde a cidade se abria para os de “fora”, pois abrigava padres que vinham para ocasiões festivas, juízes, promotores e pessoas das mais variadas classes. Nela funcionou a prefeitura da cidade nos seus primeiros dois anos. João Ferreira de Faria, ou “Tio Joca”, como era chamado, foi o primeiro prefeito da cidade, nomeado em 1954. Casou-se com Eulampia e tiveram dez filhos: Eula, Honória, Prudêncio, Maria, Inácio, Rosália, João, José, Eva e Libania. Foram entrevistados Eula, Honória e Prudêncio.
Até duas hora da tarde por aí... na realidade até a hora que fosse que chegasse, tinha comida na panela [...]. Porque a pessoa morava na fazenda, saiu de lá cedo, tava na roça [...] e vinha, chegava aqui, procurava a casa do [...] Tio Joca e Tia Eulampia. [...] Então, aí “cumê” direto, não precisava cozinhar pra três, quatro pessoas que chegava, tinha comida pronta. E tinha muita fartura na casa. Essa casa aqui, essa mesa aqui é mesa de não sei quantos anos que existe ela. [...] Então essa mesa aqui já serviu comida pra muita gente, graças a Deus. [...] O primeiro juiz que veio pra aqui já foi indicado pra casa do Seu Joca. [...]. Aí esse juiz que saiu, ele já indicava pro outro que vinha. Promotor, juiz. Eram pessoas que chegavam aqui, vinham pra Crixás, chegava lá: “– Como é que eu faço? Eu vou pra Crixás”. “– Lá cê procura Seu Joca, ele te encaminha lá”.
[...] Agora, essa casa aqui, ela tá entrando já um pouco na história... Meu pai foi o primeiro prefeito depois que passou a ser município a cidade de Crixás, né? E a prefeitura funcionou dois anos aqui.
Crixás, né? E a prefeitura funcionou dois anos aqui. [...] E tem as amizades da gente, muito grande, né? [...] Tem muita gente que habita aqui, que sabe quem é nós, e nós não sabemos quem ele é, né? [...] Aí conhece a casa aqui é como a Casa do Tio Joca, porque todo mundo falava Tio Joca, né? [...] E ele era de muita amizade, toda vida. (Entrevista concedida por Prudêncio Ferreira Neto, em Crixás, Goiás, em 30/06/2015).
Na casa do Tio Joca há uma resistência de natureza espiritual que se manifesta nas coisas que foram modeladas durante anos e resistiram aos seus proprietários com sua alteridade, tomando algo do que foram, confirmando o que Bosi (1994, p. 436) define como “casa materna”. A disposição dos móveis, a guarda de certos objetos e fotografias, o fogão a lenha mantido, tudo remete a essa dimensão. O Tio Joca e a Tia Eulâmpia tornaram-se “personagens da memória” (Pollak, 1992). Os relatos demonstram como os domínios da memória se estendem para além da memória institucionalizada e fazem da casa patrimônio histórico e material. A impressão que se tem da vida dessa família é que, mantendo o lar da infância, mantém-se a recordação de toda uma vida que continua orientando os valores da família, mantém-se uma história que lhes dá prestígio e lugar de “ser” na cidade, dando a pacífica ideia de continuidade, de consagração de um patrimônio próprio, de “patrimonialidade” (Poulot, 2009).
As respostas de diferentes sujeitos aos questionamentos: “por que e por quem foram destruídos tal e tal bem material” manifestaram algumas contradições. A culpa ora recai sobre a própria Igreja (no sentido amplo), detentora de parte dos bens e corresponsável pelo “abandono” e pela venda indevida dos bens móveis para contrabando, ora sobre determinadas gestões, uma vez
contrabando, ora sobre determinadas gestões, uma vez que a memória religiosa sempre foi preponderante na cidade, mas sobretudo, recai sobre os próprios crixaenses.
Eu lembro de meu pai, [...] falar um absurdo, que o responsável pela igreja, vendendo os sinos, vendeu toda a parte histórica que tinha dentro da igreja. [...] E as igrejas antigas, aqui tinha cinco igrejas [...], muitas caíram em ruína por causa de falta de preservação e muita coisa foi vendida [...] a preço de banana, pra ir pra outros museus [...]. Era tudo que “papai” mandou, que o papa e os padres, né? Então, se eles chegassem aqui e pedissem pro prefeito: “-É pra derrubar aquela Casa Grande ali, pra construir!”. – Eles iam lá, derrubavam e construíam [...]. E o dinheiro também não ficava aqui, ia tudo pra Roma. Tudo, tudo, tudo. (Entrevista concedida por Elisabeth Dietz Neves Ferreira, em Crixás, Goiás, em 01/07/2015).
Agora, quem construiu o supermercado tava procurando um ponto comercial, né? Ele num tinha obrigação de amar aquele patrimônio ali, ele num é daqui. Eles procuraram um ponto estratégico para fixar seus comércios. Eles não são culpados. [...] Não contesto a atitude dos compradores, mas dos vendedores sim. Aqueles que eram autoridade, né, porque eram crixaenses. Agora às vezes cê vai conversar com um deles, eles falam assim: “ –Ah, os padres levou isso daqui. Ah, não sei o quê...” – e conta tanta história e fica desinventada por eles, né? (Entrevista concedida por Maria Madalena de Lima, em Crixás, Goiás, em 30/06/2015).
Diante do arrasamento das edificações de valor histórico, outra perspectiva de resistência no presente se revela nas ações de denúncias contra o descaso. Uma das ameaças de destruição do patrimônio está no descomprometimento e no esquecimento das relações e das experiências com o mesmo, o que gradativamente cede espaço para novas formas, funções e fazeres na/da cidade diante da resignação da população. Em um perfil da Comunidade Crixás, em rede social, obtivemos o seguinte depoimento de uma ex-moradora[1] natural da cidade, a respeito do tratamento do patrimônio material:
Lembro-me com certa clareza, um dia muito chuvoso, na minha infância quando alguém chegou em casa noticiando que a Igreja Católica da Praça Manoel Rodrigues Tomás havia sido derrubada pela chuva. Não me lembro da Igreja. Mas dessa notícia me lembro. Também recordo o dia que parte da “cadeia velha” caiu. Como não fora restaurada, as chuvas terminaram o serviço fazendo-a desaparecer do mapa. Na minha adolescência vi, horrorizada, o cenário de destruição de casas históricas da Rua Ricardo Neves. [...] Deram lugar ao “moderno” demolindo o “antigo” para construir o “novo”, onde hoje seria o nosso Centro Histórico.
[...] Sinceramente eu tenho medo do dia que eu voltar a Crixás e não reconhecê-la mais como "minha". É natural a transformação da paisagem urbana, mas 'um povo sem história, é um povo sem memória'. Como Drumond disse e o repito: "Como dói!" (Anadete Maciel Santos[ii]).
Apesar do que indicam estes relatos, a recente consciência e o despertar de um sentimento de perda por parte de muitos moradores, agentes e representantes políticos em Crixás, devem-se também ao fato de que outras cidades coloniais do estado, como Goiás e Pirenópolis, reconhecidas por tombamento do Iphan e da Unesco, tornaram-se referências históricas, culturais e turísticas, e receberam notoriedade midiática. Uma realidade que poderia ter sido a de Crixás, se houvesse a preservação. Assim, as demandas contemporâneas contribuem para suscitar reivindicações memoriais, e a visibilidade institucional, por vezes, é a força de impulso para que se valore internamente.
Lima (2015, p. 63) acrescenta que os sujeitos que mais demonstram indignação ante o descaso em relação ao patrimônio é aprópria juventude é a própria juventude, que “após tomar consciência desses valores, ficam recolhendo fotos antigas e lamentando a irreparável perda”. Os entrevistados, na mesma direção, reconhecem: “Nós demoramos a desenvolver nessa área, como a Cidade de Goiás, que é mais ou menos da mesma época também, um pouco mais velha, tem um acervo histórico muito grande. E o nosso foi acabando”. (Entrevista concedida por Inácio Ferreira de Faria, em Crixás, Goiás, em 20/03/2016).
Eles não tinham consciência que aqui era a história de um povo, [...] porque se tivesse não tinha deixado derrubar. Então, se eles não tinha consciência, não sentia falta. [...] Tem o nome de Crixás que é histórico, mas na realidade a história de Crixás é muito pequena em material. Fisicamente é muito pequena, porque destruiu as casas que tinha. [...] Então, nessa altura, faz falta, né? (Entrevista concendida por Prudêncio Ferreira Neto, em Crixás, Goiás, em 01/07/2015).
A cidade de Crixás não tem seu patrimônio limitado pelo que restou de bens materiais de valor histórico, afinal, quase nada restou. Entretanto, é preciso lançar luz a um patrimônio que não é dado como patrimônio, mas que resiste na trama de vivências e memórias do lugar. “Sendo o patrimônio-territorial elemento de arte, cultura e vivências situadas na periferia, bem material-imaterial ainda em realização espacial no continente (sem qualquer ato de institucionalização por parte do Estado-mercado), ele se opera em singularidade (o fazer do e no lugar) diante de múltiplas particularidades […]”(Costa, 2017, p. 59). É preciso esclarecer que esta periferia destacada pelo autor ultrapassa o sentido restrito de aglomerado urbano, indicando locais que estão às margens das centralidades geográficas, políticas e econômicas; de forma que podemos considerar muitas cidades do interior goiano como periferias dentro do estado.
Por fim, há uma trilha histórica dos sentidos patrimoniais desses sujeitos situados a ser percorrida e mapeada, a fim de averiguar em que medida a memória revive o lugar em permanente reconstrução, tornando-o capaz de resistir ao tempo e às demolições. Assim, o patrimônio não é somente materialmente quantificável. Ao contrário, ele pode ter sido demolido, pode não ser mais tangível, pode somente estar preso a lembranças de velhos lugares, e mesmo assim continuar existindo (ou resistindo).
4. “Ainda há brilho no caminho”: o patrimônio resiste “reabrigado”
Neste tópico e no tópico anterior, faço nos títulos referência à obra de Asmar (1988), que se referia, na verdade, à corrida pelo ouro em Crixás. Neste, utilizo a mesma metáfora para reforçar a ideia de que mesmo sem políticas de preservação do patrimônio, a população, no interior de suas práticas de resistência, preserva a essência e o saber daquilo que considera seu patrimônio, uma vez que não recorre a ele como mero testemunho do passado, mas como repositório de valor afetivo, o que é entendido como “patrimonialidade” (Poulot, 2009).
Felippe (2016, p. 316) identificou três tipos de bens que se constituem patrimônio cultural valorados afetivamente pela população de sua localidade de estudo. Entre esta tipologia, a autora define o “patrimônio *cultural invisível” como “bens já demolidos que ainda permanecem vivos na memória de muitos moradores, principalmente os mais antigos”. Para a análise do patrimônio cultural invisível, aqueles que possuem valor afetivo e memorial, mas que foram suprimidos da paisagem, a autora se vale do conceito de paisagem na memória, por considerar que “a paisagem conserva não apenas o visível, mas também o memorial, os extratos de lembrança que compõem a vida do ser, as experiências vividas” (Felippe, 2016, p. 313).
É fato que a paisagem transformada pode dificultar o acesso à memória que os acúmulos temporais permitiriam com mais facilidade, por nos oferecerem uma imagem de permanência e estabilidade (Halbawchs, 2003). O relato de dona Sebastiana nos confirma isso. Com muito esforço, por meio da foto-entrevista, ela conseguiu se lembrar de vários elementos dispostos na cidade do passado que já não estão mais presentes em Crixás.
Olha, nessa rua principal ali, né, a rua hoje Ricardo Neves... o Rio Vermelho que era uma coisa que eu gostava demais, esse poluiu, nem meus netos mais desfrutaram dele, era um lazer que a gente tinha. E as colegas, mães, já se foram, [...] alguns mudaram. A gente já não tá tão perto, próximo, como era a meninada daquele tempo. [...] ando nessas ruas aí, são todas as outras casas que já tomaram lugar das outras, né? Tinha uma água que corria aqui, outra que corria aqui nessa rua do alto da igreja aí, tinha uma mina, também já não existe. Os quintais que a gente tinha, mangueiras, que tinha laranjeiras, [...] tudo já demoliu, já é outra coisa. [...] Aí eu lembro que bem aqui era a casa da minha avó, subindo aqui é aonde que hoje é o Espaço Cultural, onde é que o Ursulino Leão nasceu. Aqui tinha um vizinho da minha avó, logo depois dessa casa, tinha uma casinha espremida aqui, era uma outra casa. Então, hoje, só tá aqui o Espaço Cultural, da minha avó aqui já tá completamente diferente, essa árvore já não existe mais, do lado de cá as casas também já tomaram outro rumo. [...] A gente ficava muito aqui, casa de vovó, nossa casa. A casa da minha vó era sempre cheia, fazia bolo... (Entrevista concedida por Sebastiana Ester Dietz de Oliveira, em Crixás, Goiás, em 19/03/2016).
Por outro lado, a memória individual também tende a selecionar eventos traumáticos, como por exemplo, em Crixás: a decadência, a febre amarela, as dificuldades da roça, as famílias desfalcadas pela Guerra do Paraguai, entre outros. As lembranças que demonstraram uma maior carga emotiva foram justamente as que tocaram nas ocasiões festivas do passado, o que aponta diretamente para a existência de uma nostalgia da sociabilidade retrospectiva, concernente a estas ocasiões. Esse fato, além de explicar a grande motivação coletiva de fazer perdurar algumas tradições nestas cidades, confirma e esclarece a dimensão afetiva dos lugares.
As festas também se realizavam em locais próprios, que certamente se modificaram com o passar do tempo, mas ainda assim elas são narradas como se a paisagem festiva pudesse ser facilmente vislumbrada na memória. Se há um patrimônio destruído pelo tempo, aquele de pedra e cal testemunho do passado, esse mesmo patrimônio é, em certa medida, renovado pelos elementos materiais e imateriais que resistem como parte do patrimônio urbano: as festas, os ritos, os objetos guardados, as receitas, os sujeitos detentores de saberes, entre outros.
Nos limites do que observamos, há uma forte tentativa de aglutinar o local do patrimônio edificado ao patrimônio efetivamente revivido no cotidiano. Em Crixás, o local de referência das festas sempre foi a Casa Grande. Todos se lembram, e os que não eram nascidos ou não se lembram, já “ouviram falar”. Esse patrimônio, demolido já no século XX, ainda se faz presente no imaginário e no simbolismo local, como memória de uma prática tão antiga quanto o próprio povoado, como posto no seguinte relato que se refere ao período de total esvaziamento populacional de Crixás.
[...] E eles vinham na época da festa do Divino e limpavam tudo ali a praça do Cruzeiro, limpavam as igrejas pra fazer a festa. E o imperador ficava na Casa Grande um mês festando, depois voltava para as fazendas. E aqui já era um Arraial. Eu lembro disso. (Entrevista concedida por Elisabeth Dietz Neves Ferreira, em Crixás, Goiás, em 01/07/2015).
A Casa Grande e a tradicional Festa do Divino Espírito Santo de Crixás eram percebidas como se fossem fundidas numa só dimensão espaço-temporal de existência. Festas religiosas, bodas, entrega da folia, danças tradicionais como a Catira e outras danças desconhecidas do grande público: Ponto, Batuquinho e Veadeira eram realizadas na Casa Grande. No passado, durante os festejos do Divino, os doces e bolos eram produzidos
festejos do Divino, os doces e bolos eram produzidos pelos próprios moradores na Casa Grande no mês que precedia a festa. Quando o imperador, que geralmente residia na zona rural, se alojava lá durante essa preparação. Atualmente, os doces comprados para a festa são produzidos industrialmente. Não há mais o saudoso ajuntamento do período pré-festivo (o que já configurava uma grande festa) para numerosa produção de doces de todas as qualidades.
Terminou a missa do Imperador, ia pra Casa Grande pra comer doce. Então, punha a mesa, aquela mesona comprida aí, punha várias qualidades de doce [...] Naquele tempo era bom demais, nossa! [...] O povo festava a noite inteira. Uma festa sadia, gostava de dançar, tinha a festa de Tambor que [...] veio dos negros. [...] E naquela época, quando dava lá pra uma hora da manhã servia a mesa de bolo a vontade pro povo, comia bolo a vontade. (Entrevista concedida por Prudêncio Ferreira Neto, em Crixás, Goiás, em 01/07/2015).
A partir de 1962 ocorreu uma interrupção nas festas tradicionais de Crixás, como resultado da demolição da Casa Grande. As folias do Divino Espírito Santo também não giraram durante 12 anos, o que provocou algumas perdas para a manifestação no que se refere a letras dos cantos e coreografias tradicionais, que foram esquecidas. Isso ocorreu porque a demolição da Casa Grande deixou os moradores sem um lugar para a realização da festa, e para os foliões, que já estavam em idade avançada, percorrer longas distâncias nas fazendas tornava-se uma tarefa árdua. A festa do Divino era a comemoração da entrega da folia, realizar uma sem a outra não fazia muito sentido. Anos mais tarde folia e festa foram retomadas somente depois de inúmeros esforços de algumas famílias. Entretanto, para os foliões mais apegados aos lugares tradicionais, a mudança foi drasticamente sentida: “[...] a festa do Divino era na Casa Grande, era o Catira, era o Tambor. Era a festa, muitos dias. Oito dias de festa. Não tem. Por isso que eu tô dizendo que essa festa do Divino, no meu modo, igual eu conheci, ela acabou. Acabou. (Entrevista concedida por Senhorinho Correia Meireles, folião em Crixás, ao documentário “Viva todos que prestaram atenção”, em 2000).
Na figura 16, Tia Eulâmpia, esposa do Tio Joca, também conhecida como Vó Lampa, segura uma das telhas que pertencia à Casa Grande. “Quando demoliu a Casa, acabou com ela, meu véi panhou”. “Eu tenho saudade demais desse tempo. Que amanhã é a missa do Divino. Era o dia da mesada de doce. Aí ia pra Casa Grande, é a hora que eu sinto a falta” (Entrevista concedida por Eulâmpia ao documentário “Viva todos que prestaram atenção”, 2000). O mesmo sentimento parece perdurar entre seus filhos, que ainda guardam na “Casa do Tio Joca” duas telhas que foram da Casa Grande e ainda relembram, saudosos, da Festa do Divino quando se realizava lá. Acontecimentos, lugares e pessoas que, pela experiência trivial do dia a dia, fizeram do espaço, lugar.




Com o dinheiro arrecadado pelas folias, a igreja construiu um grande salão, para dar lugar às festas, principalmente a do Divino, que ficou “desabrigada” por muitos anos. Desde 2016 a festa do Divino é realizada neste salão. Isso mostra que o patrimônio se reconstrói, se recria e se reelabora no presente da cidade, a fim de que se mantenha aquilo que é essencial.
A Casa Grande, na realidade, fora construída pelos escravos para ser a Casa de São Benedito. No passado, na festa de São Benedito, que acabou mesclando-se à festa do Divino, havia a tradicional Dança do Tambor, que deixou de ser apresentada há alguns anos. Diante disso, a Comissão de Folclore, com o apoio de agentes envolvidos com a cultura local, como Maria Madalena de Lima (Dona Lena), estiveram trabalhando para criar novos grupos de tambores na cidade, apresentando a dança às escolas e permitindo que esta tradição seja, primeiramente, objeto de conhecimento e apreço pela comunidade.
É evidente que existe uma preocupação com a gestão patrimonial, vinda, por vezes de fora do próprio lugar, a qual se serve das memórias locais que ainda estão latentes, tais como a fé dos devotos, as comidas típicas, as Cavalhadas, o canto de improviso dos foliões diante dos arcos, cruzeiros e altares, as "brincadeiras" de folia que resistiram ao tempo (Catira, Ponto, Batuquinho e Veadeira), entre outros elementos. Os moradores se mostram prestigiados quando há um reconhecimento institucional daquilo que foi resguardado oralmente, via construção coletiva da memória.
O patrimônio edificado, mesmo ausente na paisagem, continua ressoando, às vezes em meio às histórias de acontecimentos vividos pelas pessoas, às vezes como lamento e contestação. É a mesma vida que deu movimento ao patrimônio no passado, que ainda perdura no presente. São os “dedos” que ficaram após a retirada dos “anéis”, o que confirmam que “ainda há brilho no caminho”.
Principalmente os mais jovens, eles são muito saudosistas. Eles veem as histórias e vivem assim, postando no facebook fotos de casas antigas, sabe? E fotos assim, de pessoas antigas, de trajes antigos. A gente sente assim, na juventude de Crixás, até os que saíram, foram estudar e já são formados, poucos não carregam esse saudosismo. Está vivo! A memória está viva neles. (Entrevista concedida por Maria Madalena Lima, Crixás, Goiás, em 30/06/2015).
Isso se confirma em um perfil da Comunidade Crixás, em rede social, em que consta o seguinte depoimento a respeito do tratamento do patrimônio cultural da cidade:
Foi-se a Casa Grande, foi-se a Igrejinha, a Cadeia, os casarões da Rua Ricardo Neves... nos resta pouco, apenas nossa memória imaterial... as cavalhadas, a Catira, a Veadeira, nossa folia... preservemos, preservemos, preservemos... [...] É engraçado que quando anunciaram a entrada da folia no festival [Encontro de Culturas em São Jorge] tive a sensação que chamavam pelo meu nome... e não era o contrário, a folia é a minha história, minha identidade, mesmo que hoje eu não tenha religião específica e que nunca tenha sido católico na vida... a folia é a história, a vida enraizada dos nossos antigos em nós... Não traiamos a nós mesmos, lutemos por essa memória, a memória de Crixás... (Publicado por Djallys Dietz, em Comunidade Crixás”[iii]).
Nesse sentido, Gonçalves (2005) prescreve atentarmos para “a dimensão patrimonial da cultura”. Ao invés de tratarmos unicamente sobre a cultura que é eleita como patrimônio, estendermos a discussão para o que a cultura elege como patrimônio pela memória. E só há cultura em um sentido corporeamente engajado, em contexto, onde se pode partilhar - pela linguagem, pelo símbolo, pelo signo - a compreensão e a reciprocidade dialógica dos que, “em situação”, como posto por Merleau-Ponty (1999), determinam como seu “patrimônio-em-memória”.
Assim, sentidos muito particulares do lugar (em sua dimensão geográfica), correlacionados à situação dos sujeitos (experiências que conectam passado ao presente) e seus afetos, são definidores do que deve ser mantido e o porquê deve ser mantido, como nos revela o seguinte relato:
Você viu a simplicidade dos foliões, a importância que a cidade dá pra festividade. Então, isso é tradicional, entendeu? Esse contexto todo, ele é tradicional, ele é pioneiro. Tanto é assim, que se a gente mudar uma corrida na Cavalhada, tem cavaleiro que fala: “-Não! Mas meu avô disse que não era assim! – Eles apelam [...]. (José Manoel Carvalho Maciel, Presidente da Comissão de Folclore e das Cavalhadas de Crixás. Entrevista concedida em 29/03/2017).
O exagero na fartura, o ajuntamento, a doação, as redes de reciprocidades no entorno da festa, a rusticidade (como tudo no mundo rural), o alongamento reiterado dos ritos e gestos, para que todos vejam e saibam. Mudar, resistir, repetir, mas sem perder a essência de “ser”.
[...] nós ficamos tentando adaptar a folia do tempo de hoje, sem modificar muita coisa. [...] Teve um padre aqui que inventou a não dar janta, nem café da manhã não era pra dar. Chegava na casa, deixava a bandeira, ia pra casa, jantava, aí lá já tirava a esmola, brincava e ia embora cada um pra sua casa pra jantar. De manhãzinha, fazia o ritual de manhã. Mas isso foi só um ano, o povo não concordou. Até porque quem faz a maior despesa é o povo mesmo, porque a despesa da folia [...] é com a doação que o povo dá. Quem é dono e dá um pouso e café da manhã, ele dá com a economia dele. [...] Tem muito pra pagar voto também (Entrevista concedida por Inácio Ferreira de Faria, em Crixás, Goiás, em 20/03/2016).
São estes sentidos que definem a patrimonialidade de Crixás. A relação desses sentidos de lugar com o patrimônio cultural da cidade está no fato de que a preservação do segundo não pode existir fora do que considero como “preservação social”. São valores e sentidos compartilhados, definidos por Buttimer (1982, p. 172) como um “horizonte abrangente de nossas vidas individual e coletiva”. Segundo a geógrafa, “na vida diária não se reflete, ou não se examina criticamente, sobre tais horizontes; a noção de mundo vivido sugere essencialmente as dimensões pré-reflexivas e tomadas como certas, da experiência, os significados não questionados e determinantes do comportamento”.
Essa essência, vista tão efusivamente no conjunto dos rituais solidários da festa do Divino e nos rituais performáticos das Cavalhadas, revela a aspiração do desejo de rememorar acontecimentos religiosos do passado e a homenagear uma ancestralidade que deixou como herança esses ritos. A festa do passado é lembrada porque o seu acontecer sempre estará associado a um acontecer íntimo: a promessa, a dádiva, a doação, a penitência, o casamento, o batismo, o compadrio. É uma linguagem, uma forma de canto, uma atitude de devoção, um encontro esperado, gostos e conversas tão comuns, tão próprios daquele lugar, que dão a singela dimensão do “ser”. As festas expressam essa identidade de Crixás e, ao mesmo tempo, a patrimonialidade de lugares e sujeitos não patrimonializados, pelos sentidos que elas carregam. Ainda há brilho no caminho.
5. Considerações Finais
Eventos aqui discutidos sobre a trajetória histórica de Crixás e a ausência da atuação institucional em defesa do seu patrimônio conduziram a um estado de abandono parte considerável dos bens culturais locais. Ruas inteiras e monumentos importantes erguidos no período colonial foram destruídos quase completamente. Entretanto, expressões e manifestações variadas observadas em campo negam a ideia de que o patrimônio em Crixás foi destruído ou “esquecido” e são norteadoras das seguintes conclusões (ainda não esgotadas) às quais a pesquisa chegou:
1) A utopia do “patrimônio-territorial” apregoada por Costa (2016, 2017) seria um subterfúgio por meio do qual se evidenciaria as singularidades locais até então negadas, o que corresponde, diretamente, com a proposta deste artigo, que lança luz sobre um patrimônio goiano a ser valorado, ou já valorado, pelos sujeitos localizados.
No caso de Crixás, isso se expressa nitidamente na reelaboração das práticas tradicionais do passado, que são combustível de continuidade da memória local, e por que não dizer, do patrimônio. Exemplos disso são as festas, produções simbólicas comunitária, não institucionais. No caso específico, as tradicionais Festa do Divino e Cavalhadas, heranças do período colonial minerador, adentraram a consolidação da agropecuária e persistiram no contexto da urbanização e modernização da cidade. Além disso, há um evidente apego do crixaense a objetos, práticas e lugares que circundam o universo rural e estão relacionadas, muitas vezes, à vida pregressa dos sujeitos nesse universo. E, por fim, os modos de fazer e de sentir, que alinhavam, no fundo de um tecido coletivo, a particularidade do “ser” e a profundidade de seus saberes - saberes de roça e de sertão – elementos constituintes do lugar geográfico.
Há ainda, um surto de “vontade de memória”, ante a identidade local ameaçada, que em Crixás fora materializada na literatura, certamente pela influência cultural da Cidade de Goiás, mas também pela influência da figura de Ursulino Tavares Leão (in memorian), que se destacou na produção literária goiana e fundou a Academia Crixaense de Letras. Uma vez que a quase totalidade do patrimônio material não fora mantida, restava aos crixaenses, outras formas de participação da construção da memória local totalmente “lugarizadas” – identificadas em obras literárias, poemas, artes e outros elementos que reafirmam a identidade de “cidade-patrimônio. Estes são temas que merecem especial atenção em outros trabalhos.
2) Considerando a tipologia de “patrimônio cultural invisível” formulada por Felippe (2016) para compreender o patrimônio cultural de Crixás, observamos, na verdade, uma dialética entre o visível e o invisível (Merleau-Ponty, 2012), entre o material e o simbólico. A patrimonialidade é este sentimento oriundo da relação patrimônio-memória-lugar que escapa à construção institucional de um patrimônio ou manutenção daqueles já “edificados”. A patrimonialidade nasce no seio da comunidade e reacomoda o patrimônio vivo que fora “desabrigado” de seus locais de referência – locais que guardavam o pretendido “testemunho histórico” tão caro às práticas preservacionistas institucionalizadas.
Se a perspectiva da patrimonialização legitima o discurso da preservação como requisito para manutenção da memória (e até da identidade); a patrimonialidade, por sua vez, tensiona a dialética material-simbólica do patrimônio. Isso porque, mesmo calcada na memória sobre bens materiais no espaço da cidade, não cogita, necessariamente, reparos, restauros, reformas estruturais e originalidade para resistir. A própria “perda”, por vezes, se torna uma construção, na qual se postula uma ameaça aos bens culturais, resultando em um empenho coletivo pela preservação. Assim, o patrimônio cultural resiste e, ainda que seja desapropriado de sua base material (edificações, monumentos etc), ele se reconstrói, se recria, se reelabora no presente das cidades.
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Notas