Resumo: Este artigo busca identificar, no discurso do viajante francês Auguste de Saint-Hilaire, a representação de “territórios de exceção” durante a sua estadia no Brasil. Apesar do botânico ter viajado pelas terras brasileiras entre 1816 e 1822, este artigo se debruçará sobre o primeiro tomo da sua obra Voyages dans l'intérieur du Brésil, que relata as suas experiências entre os anos de 1816 e 1817, na então Cidade do Rio de Janeiro e na Província de Minas Gerais. Um método geohistórico foi utilizado para identificar, no texto, as características que o território brasileiro apresentava para o viajante e, também, a maneira pela qual ele percebia as populações indígenas com as quais entrou em contato. Técnicas em bancos de dados e em cartografia digital foram empregadas, assim como uma análise de mapas de época, resultando em uma investigação multidisciplinar e crítica que visa desdobrar a fonte primária.
Palavras-chave:territórios de exceçãoterritórios de exceção,geografia históricageografia histórica,viajantesviajantes,século XIXséculo XIX,Saint-HilaireSaint-Hilaire.
Resumen: Este artículo busca identificar, en el discurso del viajante francés Auguste de Saint-Hilaire, la representación de “territorios de excepción” durante su estancia en Brasil. A pesar de que el botánico viajó por tierras brasileñas entre 1816 y 1822, este artículo se ocupará del primer tomo de su obra Voyages dans l'intérieur du Brésil, que relata sus experiencias entre los años de 1816 y 1817, en la entonces Ciudad de Rio de Janeiro y en la Provincia de Minas Gerais. Un método geohistórico fue utilizado para identificar, en el texto, las características que el territorio brasileño presentaba para el viajante y, también, la manera mediante la cual él entendía las poblaciones indígenas con las cuales se puso en contacto. Técnicas en bases de datos y en cartografía digital fueron empleadas, así como un análisis de mapas de época, resultando en una investigación multidisciplinar y crítica que pretende desplegar la fuente primaria.
Palabras clave: Saint-Hilaire, territorios de excepción, geografía histórica, viajantes, siglo XIX.
Abstract: This article identifies, in the French traveller Auguste de Saint-Hilaire's discourse, the representation of “territories of exception” during his stay in Brazil. Despite the botanist having travelled Brazilian lands between 1816 and 1822, this article analyzes the first tome of his work Voyages dans l'intérieur du Brésil that reports his experiences between the years of 1816 and 1817, in Rio de Janeiro City and Minas Gerais Province. A geohistorical method was used to identify, in the text, the characteristics that the Brazilian territory had for the traveler and, also, the way that he perceived the native groups with which he came into contact. Database and digital cartography techniques were used, in addition to an ancient cartography analysis, resulting in a multidisciplinary and critical research that intends to unfold the primary source.
Keywords: Saint-Hilaire, territories of exception, historical geography, travelers, 19th century.
Dossiê Patryter
Auguste de Saint-Hilaire e os territórios de exceção (Minas Gerais, 1816-1817)
Auguste de Saint-Hilaire y los territorios de excepción (Minas Gerais, 1816-1817)
Auguste de Saint-Hilaire and the territories of exception (Minas Gerais, 1816-1817)

Recepção: 28 Outubro 2019
Aprovação: 14 Janeiro 2020
Publicado: 01 Setembro 2020
DOI: https://doi.org/10.26512/patryter.v3i6.27958
Como citar este artigo: Maluly, V. S. (2020). Auguste de Saint-Hilaire e os territórios de exceção (Minas Gerais, 1816-1817). PatryTer – Revista Latinoamericana e Caribenha de Geografia e Humanidades, 3 (6), 266-280. DOI: https://doi.org/10.26512/patryter.v3i6.27958
Este texto busca correlacionar discurso e materialidade (Moraes, 2009, p. 16). Buscar, em uma fonte específica, como que um ou mais termos podem aparecer (direta e indiretamente) é o desafio aqui proposto. De maneira preambular, as indagações apresentadas fazem referência a um passado recente de investigação no campo da geografia histórica[i] – disciplina esta que toma para si uma série de adversidades resulantes do cruzamento entre a ciência geográfica e a ciência histórica. Questões próprias a uma teoria do espaço, à cartografia de época e digital, à história brasileira, à literatura de viagens, ao discurso e ao processo de patrimonialização serão, de alguma maneira, agregadas, gerando uma proposição incitante. Esperamos abrir a discussão para estabelecer um diálogo estreito entre a geografia e a história de maneira renovada.
A análise do discurso do botânico francês Auguste de Saint-Hilaire, em sua viagem pelo Brasil entre 1816 e 1822, já foi alvo de pesquisas anteriores. É possível buscar nele, por exemplo, proposições histórico-geográficas (Fonseca, 2016); perspectivas sobre uma “civilização dos indígenas” (Gomes & Miranda, 2016); concepções científicas de mundo (Martins, 2017); observações sobre a flora brasileira (Drouin, 2016); e, como coloca o próprio viajante, “o quadro de uma natureza estrangeira à Europa” (Saint-Hilaire, 1830, p. 9). Nesse bojo, o discurso de Saint-Hilaire é evidentemente rico e complexo, abrindo uma gama de interpretações e de pesquisas aos interessados em uma história brasileira do início do século XIX. O texto do viajante traz comentários sobre a política imperial da época, sobre a geomorfologia variável e dinâmica entre as diferentes províncias pelas quais ele passou, sobre os povos indígenas com os quais ele se encontrou e uma série de outras temáticas de interesses múltiplos. Como colocado por Manuel Bandeira, em “O ‘Nosso’ Saint-Hilaire”: “Embora a sua especialidade fôsse a botânica, as suas pesquisas estenderam-se colateralmente a todos os domínios da cultura” (Bandeira, 1958). Já Carlos Drummond de Andrade, em “Meu amigo Saint-Hilaire”, diz: “(...) desejava para nós uma agricultura florescente, uma infância protegida, uma sociedade decorosa” (Andrade, 1979).
Entre ser “nosso” e “amigo”, segundo a classificação dos poetas, Saint-Hilaire claramente marcou o Brasil dos séculos XIX e XX. Com um amplo repertório de densa descrição paisagística, o francês deixou um legado na literatura por ele produzida. Porém, para além desse aspecto, buscaremos nos inserir em uma análise do seu discurso, procurando outras possibilidades de interpretação dos territórios por ele retratados. Nos embasaremos, fundamentalmente, na perspectiva de “territórios de exceção”[ii] conceitualizada por Costa para tentar ir além do que até aqui já foi proposto acerca do botânico. Talvez possamos encontrar no seu prolífico texto perspectivas outras concernentes à complexidade territorial brasileira ao fim de seu período colonial, com um aporte teórico e metodológico respaldado numa geografia histórica que também pode ser digital.
O botânico francês Auguste de Saint-Hilaire esteve no Brasil entre os anos 1816 e 1822, ou seja, a partir da metade do “período imperial” da história brasileira (que começa no ano de 1808, com a chegada da família real portuguesa no Rio de Janeiro, até o ano da independência do Brasil, 1822). Assim, podemos notar a especificidade da época na qual está inserida a viagem descrita. O próprio texto do botânico é bastante marcado pelo momento politicamente intrincado, com a instalação do poder real português na América a partir de uma evasão forçada pelas guerras napoleônicas. Nas palavras de Saint-Hilaire: “(...) a pintura que apresento aqui da situação do Brasil no momento onde esse império declara a sua independência mostrará a seus habitantes o ponto do qual eles partiram para entrar em uma carreira de melhorias”. Essas melhorias teriam uma clara origem: “(...) eles verão quantas graças devem render aos seus pais por ter começado a tirar o país[iii] de uma abjeção muito deplorável. Eles verão o quanto eles devem render sobretudo ao príncipe generoso que identificou os seus interesses com aqueles de seu povo (...)” (Saint-Hilaire, 1830, p. 12). Dessa forma, por meio de uma leitura paternalista, é ilustrado o momento de clara transição percebida por Saint-Hilaire em seus 6 anos de viagem pelo Brasil.
A sua jornada, que começou no Rio de Janeiro, passou por Minas Gerais, Goiás e alcançou o atual Rio Grande do Sul (figura 1), foi relatada no Voyages dans l'intérieur du Brésil, obra colossal, em oito tomos, produzida por Saint-Hilaire até os seus últimos dias de vida (entre 1830 e 1851[iv]). Com mais de 3.000 páginas, a obra é uma verdadeira investigação científica com embasamento primário nas viagens por ele conduzidas, mas não se trata, efetivamente, de um relatório de campo transcrito. O autor tenta manter-se fiel aos seus jornais de campo e à sua memória, mas é clara a larga pesquisa posterior confeccionada para a publicação. Tabelas de distâncias, outros relatos de viagem e notas de rodapé são abundantes para melhor situar o leitor quanto à localidade por ele descrita. Dessa maneira, a obra deixada por Saint-Hilaire está longe de ser esgotada dado o seu conteúdo prolífico.

Fonseca (2016, p. 210) destaca, no entanto, que o relato de viagem de Saint-Hilaire é utilizado mais como uma fonte de informações do que como um objeto de estudo em-si. Assim, haveria um caráter consultivo dessa fonte quando utilizada para embasar outras pesquisas. Para esta investigação, trataremos de aprofundar a questão dos territórios de exceção (Costa, 2017) com a análise do Brasil promovida por Saint-Hilaire, dando um enfoque central a este autor e não apenas ao caráter de contextualização do problema.
Antes de entrarmos no cerne da investigação, devemos nos ater ao fato de que o estudo de Saint-Hilaire está imerso na perspectiva de mundo da história natural característica dos séculos XVIII e XIX. Pratt (2003, p. 15) indica que, a partir de 1735, uma “consciência planetária” europeia vai surgir com 1) a publicação do Systema Naturae de Carlos Lineu, no qual um padrão mundial de classificação dos seres vivos é criado a fim de integrar, em um só “sistema científico”, todas as formas vivas – conhecidas ou não; 2) a expedição franco-espanhola que vai buscar resolver, em Lapland (atual Finlândia) e também próximo a Quito (atual Equador), a questão sobre o verdadeiro formato do globo terrestre. Esses dois momentos constituem uma noção de mundo que estará no seio da modernidade europeia, produtora de uma hierarquização dos lugares.
Nesse contexto, ao menos duas formas de literatura são produzidas na segunda metade do século XVIII: uma literatura de sobrevivência (como a viagem de Charles La Condamine, que estava na citada expedição de 1735) e uma literatura “científica” de classificação taxonômica do mundo. Na primeira, é criada a figura do herói que sobrevive à brutalidade da natureza desconhecida e inóspita; na segunda, surge um herói passivo, inocente, que busca “apenas” transformar aquilo que vê disposto na natureza (de maneira aleatória e caótica) em algo ordenado, disposto em um sistema classificatório, “afirmando uma visão hegemônica inofensiva que não instala nenhum aparato de dominação” (Pratt, 2003, p. 34).
Saint-Hilaire, visto até os dias de hoje enquanto “nosso” e “amigo”, claramente se encaixa na segunda categoria. A sua relação de viagem não visa dar valor aos momentos de sofrimento e de dificuldade do viajante, mas sim à descrição paisagística que, de certa maneira, afaga e compensa os percalços da expedição científica. Claro que as dificuldades do percurso têm o seu lugar na narrativa, mas Saint-Hilaire, em nenhum momento, disfarça o seu prazer e a sua alegria de estar pesquisando no Brasil. Comenta, quando estava hospedado em Ubá (na atual fronteira entre os estados do Rio de Janeiro e Minas Gerais): “durante toda a minha estadia no Brasil, eu não havia passado em nenhuma outra parte momentos mais felizes; todo dia eu fazia caminhadas longas nas florestas ou nas beiradas do rio; (...) eu me dedicava tranquilamente aos meus trabalhos, sem experienciar nenhuma das privações, nenhum dos embaraços e dos cuidados que tornaram tantas vezes as minhas viagens tão penosas” (Saint-Hilaire, 1830, p. 29). É interessante reter igualmente que o texto de Saint-Hilaire nem sempre correspondeu à demanda europeia que aguardava consumir relatos heróicos e trágicos ambientados nos lugares mais exóticos da terra. Para Fonseca (2016, p. 217), sua descrição cronológica, rigorosa e extensiva pode ajudar a explicar a troca de casas de edição parisienses na publicação de seus diversos tomos, não se atendo ao que era mais esperado pela crítica da época.
Dessa maneira, a história natural nascente no século XVIII e predominante na literatura do século XIX vai ajudar a reforçar uma construção de mundo segundo a perspectiva moderna europeia. Espaços serão criados segundo essa linguagem científica e outros muitos serão imaginados nessa ótica colonizatória do saber. Como, então, desdobrar o texto do viajante segundo um método de desconstrução do relato de viagem?
Como afirmamos anteriormente, o relato de Saint-Hilaire não é o de uma transcrição pura e simples de viagem; está no limiar entre um
relato de viagem e uma pesquisa científica. Assim, de acordo com a figura 2, o texto é caracterizado por ser denso, descritivo e literário.[v] Dessa forma, não é fácil a separação, por exemplo, dos dias de viagem e dos locais pelos quais passa o viajante como o é ao trabalharmos com transcrições de roteiros ou de diários de expedições. Estamos lidando com uma tentativa rebuscada de transmissão de sentimentos disposta em uma folha de papel, posto que Saint-Hilaire, ao descrever detalhadamente o que vê, também insere os seus pensamentos e as suas sensações daquele momento.

É de aceitação geral que a obra de Saint-Hilaire adquire vários contornos dada a sua riqueza descritiva. Temos um quadro bastante ornado do que era o Brasil, segundo a sua perspectiva, no início do século XIX. Corinne Sarthou, Marc Pingal, Sergio Romaniuc-Neto e Denis Lamy identificam até mesmo um interesse antropológico em sua obra, “longe de limitar o interesse desse país ao domínio da história natural” (Sarthou et al., 2016, p. 111).
Segundo a perspectiva geohistórica que caracteriza esta investigação, há alguns elementos no texto de Saint-Hilaire que delineiam o que a ciência geográfica costuma definir enquanto uma formação territorial do Brasil. Nas palavras de Moraes (2009, p. 29):
(...) a formação territorial deve ser equacionada solidariamente como um processo político de afirmação de uma forma de domínio social (a estatal) e de obtenção jurídica de sua legitimidade como identificação cultural (a nação). Um processo (...) que instala a unidade espacial básica da geopolítica moderna: a área de soberania do Estado nacional, hoje universal enquanto forma.
Essa perspectiva demonstra que há um processo que assegura, conflituosamente, a posse de um Estado e de sua cultura sobre um território; ou, ainda, a existência desse Estado e de sua cultura
por meio de um território. Assim, a formação territorial é um veio de análise da história brasileira a partir de inquietações geográficas. Nesse sentido, o texto de Saint-Hilaire não apenas permite avançarmos na compreensão do Brasil ainda em formação no início do século XIX, mas também com incidências sobre a sua cultura que igualmente estava em formação. Claro que devemos nos conter de uma análise simplista da história, no sentido de que ela definitivamente não é gradual, contínua e sucessiva. Não estamos tratando de um contínuo teleológico de eventos que se sucedem até atingirmos um Brasil do presente, mas estamos querendo desvendar, até certo ponto, as pistas deixadas por Saint-Hilaire em relação a um gradual processo de construção da ideia-Brasil para o início do século XIX.
Segundo essa referida direção científica, como podemos extrair positivamente do texto do viajante indícios de uma formação territorial?[vi] Para esse fim, propomos uma desconstrução do relato por meio da elaboração de um banco de dados.
Não cabe aqui alongar sobre a composição dessa base, mas é importante entender o caráter narrativo dessa técnica quantitativa, como alertado por Gil (2015, p. 11). A distribuição das variáveis e dos componentes delas demonstra a composição do texto que construímos, assim como também é um indício de quais pistas se espera encontrar na fonte primária. Para efeito dos limites da pesquisa até aqui efetuada, é também essencial destacar que, até o presente momento, apenas o primeiro tomo do Voyages dans l'intérieur du Brésil de Auguste de Saint-Hilaire foi inserido no banco de dados, visto a imensidão da obra total do botânico francês. Porém, apenas o primeiro tomo comporta quase 500 páginas de relato, o que nos dá um bom recorte da sua perspectiva geral, ainda que as nossas conclusões, neste texto, se limitarão aos anos de 1816 e 1817, que sintetizam precisamente o tomo I.
Dessa maneira, classificamos cada comentário realizado pelo viajante, tendo 1) o capítulo no qual tal comentário se localiza; 2) a data em que ele foi realizado; 3) o local; 4) uma observação sobre aquela localidade; 5) uma noção de distância (quando há) com relação a outros locais que servem de referência para o francês; 6) a(s) página(s) na(s) qual(is) determinado comentário se localiza; 7) um resumo do próprio comentário; 8) o tema no qual o comentário se insere; 9) a escala de análise.
Com relação aos temas nos quais classificamos cada comentário do viajante, os separamos em 13 diferentes: administração pública, caminhos, demografia, escravidão africana, eventos, aspectos fundiários, objetos geográficos, organização do território, paisagem, populações indígenas, produção, toponímia e tributação.[vii] Todos foram definidos a partir da leitura da fonte e não de maneira inversa, tentando estabelecer, de alguma maneira, uma ordem do pensamento de Saint-Hilaire. O tema “evento” localiza os acontecimentos mais pontuais que marcam a narrativa do viajante, como, por exemplo, quando há rumores de que Saint-Hilaire seria um médico, já em 1817, quando ele estava na Fazenda S. Roberto, no leste de Minas Gerais. Relata o viajante que muitos enfermos foram ao seu encontro acreditando na notícia da chegada de um médico e, mesmo ele afirmando que não era o caso, acabou o francês tendo que acudir, de certa maneira, ao pessoal, destacando que “estou bem seguro de que as minhas receitas benignas não terão feito nenhuma pessoa falecer” (1830, p. 441). Já o tema “objetos geográficos” faz referência a um conceito abrangente, formulado por Santos, que pode ser compreendido como não sendo “apenas objetos móveis, mas também imóveis, tal uma cidade, uma barragem, uma estrada de rodagem, um porto, uma floresta, uma plantação, um lago, uma montanha. Tudo isso são objetos geográficos” (2006, p. 46). Assim, na narrativa de Saint-Hilaire, estão localizados nesse tema os seus comentários descrevendo, por exemplo, o estado das prisões e dos prisioneiros (1830, p. 367–368), uma fazenda de açúcar (1830, p. 394), um vilarejo (1830, p. 444–446), entre outros. Caminhos, tributação e outros temas poderiam também ser incluídos no rol de “objetos geográficos”, mas decidimos separá-los para demonstrar uma melhor interdependência entre as variáveis, ao invés de aglomerá-las em um só entendimento amplo.
A figura 3 destaca os pontos de interesse por nós catalogados no banco de dados. Dessa forma, identificamos que 161 pontos foram categorizados e georreferenciados, formando o percurso do viajante pelo território. Não identificamos separadamente os caminhos por ele tomados, mas, ao localizarmos cada comentário efetuado pelo viajante, notamos a linearidade do discurso que vai se formando. Uma morfologia do discurso se faz presente, identificando o ponto de partida da viagem (o Rio de Janeiro) até o leste de Minas Gerais, onde termina o primeiro tomo e se inicia o segundo. A localização de cada ponto foi realizada respeitando, evidentemente, a toponímia local, cruzando-a com os mapas de época. Para o intuito deste texto não cabe nos aprofundarmos ainda mais no método de apreensão dessas localidades, mas uma cartografia própria do século XVIII e início do século XIX foi necessária para conseguirmos, com maior ou menor erro, identificar por onde passava Saint-Hilaire.

Já a figura 4 identifica os mesmos 161 pontos da figura 3, mas demonstrando a concentração deles. Ou seja, na escala 1:80km que estão os mapas, os pontos parecem estar homogeneamente distribuídos, sem maiores ou menores concentrações, mas essa é uma ilusão criada pelo software de georreferenciamento que “suaviza” a leitura de cada dado a depender da escala de análise. Para demonstrar que esse não é o caso, tivemos que optar por dividir o mapa em quadrados com cada lado medindo 70km. Dessa maneira, os quadrados de cor rosa mais clara agrupam entre 5 e 10 pontos; já os quadrados em cor vermelha intensa identificam até 28 pontos agrupados (ver legenda da figura 4). Seguramente, quanto mais Saint-Hilaire adentra o território, pelas rotas cada vez menos conhecidas, que vão se afastando do litoral mais intensamente ocupado e controlado pela Coroa Portuguesa, mais ele faz referência a elementos que podem constituir uma leitura da formação territorial do Brasil. Devemos lembrar que as figuras 3 e 4 não promovem uma distinção entre os temas de análise do francês, mas apenas destacam a totalidade dos comentários por ele realizados. Assim, podemos afirmar com certeza que, quanto mais ele percorre um Brasil menos conhecido, mais ele se faz atento às características que delineiam esse território – tanto em termos de composição da paisagem, quanto também das particularidades da sociedade brasileira como um todo.

Até este momento, tratamos de identificar, no primeiro tomo do relato de viagem de Saint-Hilaire, quais os comentários por ele realizados que podem compor, ou alimentar, uma noção de formação territorial. Porém, a subdivisão em temas pode ser mais explorada, localizando em quais partes do trajeto que o viajante se refere mais ou menos a um determinado conjunto de comentários. Ou seja, avançamos ainda mais numa desconstrução do relato, isolando determinadas variáveis que nos interessam. Para o caso deste texto (que comporta a metodologia da cartografia digital), iremos nos debruçar sobre uma variável específica que pode chamar a atenção do leitor do Voyages dans l'intérieur du Brésil: as populações indígenas.
Saint-Hilaire dá um certo espaço a esse tema, mas ele reserva uma quantidade muito maior de páginas dentro do seu relato para outros tópicos, como administração pública, caminhos e produção. Sobre as populações indígenas, temos apenas 13 comentários do viajante, o que é um número inferior às 17 vezes que ele elabora sobre a administração pública e mais inferior ainda às 26 referências que ele faz à produção. Porém, os seus variados interesses de análise (que compunham uma obra também centrada nos aspectos botânicos do Brasil) abriam a possibilidade de comentários a respeito dos indígenas por ele encontrados. A figura 5 demonstra como o seu discurso a esse respeito se configura de maneira morfologicamente específica no território.

O quadrado de cor rosa, mais abaixo, identifica os comentários de Saint-Hilaire referentes aos indígenas na já citada Ubá, fronteira entre o Rio de Janeiro e Minas Gerais; já nos quadrados vermelho e rosa superiores se localizam as referências do viajante no leste da Província de Minas Gerais, próximo a Passanha e à Aldeia de S. Antonio. Os primeiros comentários dizem respeito aos coroado e os últimos, em sua maioria, aos botocudo.
Antes de entrarmos a fundo nesses dois momentos singulares do primeiro tomo da obra do francês, temos de destacar o fato de que, apesar de Saint-Hilaire afirmar que ele andava pelos caminhos mais desconhecidos da época (1830, p. 8), o viajante apenas encontrou indígenas em estado de aldeamento. Ou seja, Saint-Hilaire em nenhum momento entra em contato com indígenas não-inseridos no sistema português de controle, tanto em termos culturais/religiosos quanto territoriais (ou ao menos os não-aldeados não reteram tanto a sua atenção nesse primeiro tomo quanto os aldeados). Azevedo (1959, p. 26) define que o termo “aldeamento” se refere às aglomerações “criadas” principalmente por missionários, leigos ou de ordem religiosa, que concentravam os indígenas em núcleos proto-urbanos, distinguindo-os das “aldeias”, tidas como aglomerações próprias dos nativos; Alencastro (2002, p. 1327) acompanha essa definição.
Assim, seriam indígenas concentrados sob um certo controle urbano-territorial da Coroa Portuguesa. Karasch (2005, p. 465–466), ao analisar as relações entre os portugueses e os indígenas em Goiás, demonstra que o discurso oficial português da época era o de refutar e até mesmo proibir “guerras ofensivas de conquista”. Apenas se poderia permitir a existência de “guerras justas defensivas” contra os indígenas que assaltavam os estabelecimentos portugueses.[viii] Ainda, a autora também destaca a importância do elemento religioso na “conquista” do gentio, não sendo possível se desassociar Estado de Igreja à época. Anastasia (2005, p. 16) também dá exemplos dessa conexão Estado-Igreja com relação aos indígenas, na Capitania de Minas Gerais, indicando que, em 1760, “o rei de Portugal sugeria que fossem instaladas, nas áreas adjacentes às vilas e caminhos, aldeias de índios mansos para ‘rebater os insultos dos negros salteadores’.” Temos, assim, alguns exemplos de maneiras pelas quais os aldeamentos eram utilizados no território colonial. O estudo da formação territorial deve, certamente, englobar esses elementos em sua análise e a narrativa de Saint-Hilaire, como veremos, permite considerações a esse respeito.
No primeiro momento em que o viajante francês faz referências concentradas às populações indígenas, ele se encontrava em Ubá e descreve os coroado como “o povo mais desgraçado pela natureza que eu encontrei durante a minha estadia no Brasil”, o que desperta nele “um sentimento de piedade e de humilhação” (Saint-Hilaire, 1830, p. 38). Ressalta ainda o francês que, em determinado momento, um jovem coroado disse em mal português: “Esta terra é nossa e são os brancos que a habitam. (...) Diga ao rei que os brancos nos tratam como cachorros e rogue a ele que nos dê uma terra para que possamos construir um vilarejo” (1830, p. 40). Vemos, no discurso do próprio coroado, a evocação da possibilidade de se construir um aldeamento indígena a partir dos recursos fundiários da Coroa.[ix] Este não será o caso do segundo momento no qual Saint-Hilaire se detém a analisar os indígenas.
Na aldeia de Passanha, são descritos, majoritariamente, os botocudo e os malalí. Os botocudo seriam indígenas que fizeram “os primeiros habitantes” (portugueses ou não-indígenas, em geral), “que nada mais buscavam do que ouro”, fugirem e que, no início do século XIX, teriam sido combatidos pelos portugueses, se refugiando nas florestas (1830, p. 412). Já os malalí, também habitantes daquelas terras, seriam “muito mais doces do que os Botocudos”, o que os colocaria em situação de conciliação com os portugueses. Eles rapidamente se incorporariam aos costumes europeus,
europeus, integrando os arraiais e tudo isto possibilitado pela igual oposição deles aos botocudo, seus inimigos. Aos malalí se juntaram ainda quatro outros povos: os panhame, os copoxó, alguns macuni e os monoxó (Saint-Hilaire, 1830, p. 413–414). Essa leitura do viajante sobre o passado dos botocudo e das suas relações com “os primeiros habitantes” da região leste de Minas Gerais torna-se ainda mais interessante quando a buscamos compreender por meio das nuances epistemológicas tratadas por Pratt.
Saint-Hilaire, ainda que em sua posição de estrangeiro naturalista, não se furtará de inocentar a ida desses primeiros habitantes brancos que, passivamente, “nada mais buscavam do que ouro”. Já os botocudo são dispostos enquanto verdadeiros opositores a esse movimento de “conquista”[x] e de posse das terras, inclusive em comparação com outros povos indígenas, como os malalí, tidos por serem muito mais “dóceis”. Ou seja, e sobre isso se debruça o francês, os malalí integravam-se muito mais facilmente aos portugueses. Ainda, também se encaixavam nesta descrição os panhame, os pendi (ou pindi), os monoxó, os coroado, entre outros, tendo em vista que, segundo o relato do viajante, todos esses, em algum momento do passado remoto, compunham “uma mesma nação” que fora se subdividindo com o passar dos anos (1830, p. 429)[xi]. Os botocudo são recorrentemente retratados enquanto impossibilitadores desse projeto de efetiva formação territorial. À descrição detalhada de Saint-Hilaire,
Saint-Hilaire, podemos adicionar uma breve análise cartográfica da região para melhor compreender essas estruturas socio-territoriais.
A figura 6 representa um recorte do mapa “Carta geografica de Minas Geraes”, que data de época bastante anterior à viagem de Saint-Hilaire (1746-1759, aproximadamente), e demonstra uma característica que passaremos a pontuar a seguir de maneira mais detida: os territórios de exceção. Temos, em detalhes, o que seria a parte leste da Capitania de Minas Gerais da segunda metade do século XVIII. Feições hidrográficas despontam em azul, alguns traços geomorfológicos também estão presentes (notadamente algumas cadeias de colinas) e, à esquerda, aparecem certos núcleos urbanos, como a Vila do Príncipe (atual Serro-MG). Porém, o que mais chama a atenção é o que está à direita: uma série de territórios vazios preenchidos por anotações. É a este ponto que passaremos a dar mais enfoque.

A “Carta geografica de Minas Geraes” destaca em determinada parte: “Certão inculto povoado de diferentes /naçoens do Gentio (...)”; em outra: “Certão em que vaga a brava / Gentio Botocudo”; em outra: “Certão povodo do bravo Gentio Puri”; por último: “Certão denominado do Gentio Cueiralho / unico competidor com o Botocudo”. Todas essas anotações associam o termo “sertão” com o de “gentio”, indicando uma ligação imediata entre ambos, mas são pouco precisos quanto às descrições. Porém, a preocupação com os botocudo é notória, indicando-se
inclusive um outro povo indígena que fazia frente a eles, discriminando-se territorialmente a existência de forças diversas e antagônicas. A figura 7, por sua vez, destaca outro recorte do mapa, mas dessa vez de maneira mais detalhada sobre uma localidade.
Podemos ler na figura 7: “As quatro Aldeas/ dos Malaleis domesticos/ por uma negra que / fugiu do seu Senhor”. Esta breve indicação, acompanhada de quatro pontos vermelhos à direita (indicando as ditas aldeias), dá um destaque a um elemento também referido por Saint-Hilaire em sua passagem pelo leste de Minas Gerais. Ao descrever dois jovens malalí, o francês explica que ambos não “me pareciam ter nada na sua fisionomia que pertencesse à raça americana; mas eu encontrei neles muito mais algo dos traços e da pele dos mulatos”. Continua o viajante: “Essa semelhança, na verdade, explica-se bem pelas ligações que os Malalís teriam outrora com negros fugidos; devo adicionar também que a avó do capitão dos Malalís era uma negra e, provavelmente, a que, doravante, diz-se, governara o povo” (1830, p. 425). É sabida a relação que indígenas não-aldeados poderiam ter com negros aquilombados – ambos em situação de fuga e de resistência territorial[xii] – mas, neste caso, é interessante notar que os malalí, no século XVIII, foram liderados por uma escrava negra que havia fugido de certo senhor de escravos à época e, ainda, tal registro fora mantido não apenas cartograficamente mas também na história oral daquele povo no século XIX. A figura 8, por sua vez, é um recorte do “Mappa Topografico e Idrografico da Capitania de Minas Geraes”, de autoria desconhecida e que também data do século XVIII,
e podemos encontrar nela igualmente o destaque a essas ditas quatro aldeias malalí: “Estas quatro Aldeyas de / Indios Malalis são gover- / nados por uma Preta”.


Podemos perceber a singularidade desse local indicado não apenas na cartografia setecentista quanto na história oral do século XIX. Até hoje, pesquisas acadêmicas indicam a existência dessas aldeias lideradas por uma negra, também podendo ser denotadas enquanto “quilombos” (Barbosa, 2003, p. 169), o que demonstra o interesse que esse caso pode ter para estudos futuros aprofundados. Vemos, nitidamente, a maneira pela qual negros e indígenas poderiam se unir na resistência aos portugueses. Porém, o que pode chamar a atenção também é a produção desses territórios enquanto verdadeiros “territórios de exceção” (Costa, 2017), em termos materiais, ideários e também ideológicos. Para o autor, o território de exceção é um devir que eclode no processo colonizador e perdura pela força de grupos sociais subalternizados (negros, índios e mestiços), o que justifica utilizar seu conceito neste trabalho, sem cair em um anacronismo.
Sujeitos, aglomerados, objetos e saberes (não só a pobreza) constituem territórios de exceção na América Latina. Cultura que recupera e denuncia o destino dos povos negros, indígenas e suas gerações usurpadas, mas ainda espacializadas, no continente. Falar num negligenciado patrimônio latino equivale a fazer representar, também, os desígnios da opressão no e do território. (Costa, 2017, p. 60)
Tal constituição dos territórios de exceção quer indicar – ou, ainda, situar – as manifestações culturais duradouras, associadas a uma história e uma geografia particulares, derivadas das relações de poder colonizatórias que produzem singularidades espaciais. Daí surge uma noção de
patrimônio atrelada não às compreensões ocidentais verticalizantes, mas à realidade de fato vivida no território, que tem origem pregressa. Um patrimônio-territorial que “se opera em singularidade (o fazer do e no lugar)” (Costa, 2017, p. 59) e que é “indissociável” ao território de exceção (Costa, 2021, aceptado). Porém, como o próprio autor coloca que a espacialidade específica a cada país deve ser considerada (Costa, 2017, p. 54–55), também devemos nos ater ao fato de que as múltiplas temporalidades exigem análises igualmente específicas e cuidadosas. Dessa maneira, apesar de várias ligações serem aparentes destarte entre a definição de “territórios de exceção”, proposta por Costa, e os pontos de análise sobre o discurso de Saint-Hilaire anteriormente apresentados, devemos nos resguardar de certa maneira na aplicação desses conceitos para não incorrer em inferências perigosamente tentadoras. Uma bastante evidente, e que já foi levantada anteriormente, é a de que devemos nos cuidar da compreensão de história enquanto uma sucessão cronológica e natural de eventos.
O discurso de Saint-Hilaire está situado na lógica de pensamento do século XIX. Também é importante dizer que a percepção de mundo de um francês, à época, tenderia a ser majoritariamente diferente da percepção de mundo de um “brasileiro” do que se compararmos a realidades cognitivas atuais. Dada a mundialização econômica que marca fortemente os séculos XX e XXI, as diferenças culturais tendem a ser menores atualmente do que as diferenças no século XIX. Temos um claro exemplo da técnica e da materialidade incidindo diretamente na cognicação humana e na própria percepção do mundo à nossa volta. Outro ponto importante é o fato, já levantado, de que não eram claros os limites entre Estado e Igreja, principalmente em tempos coloniais. Não cabe aqui aprofundar nesse tópico, mas de fato a nossa compreensão atual de Estado e de Igreja não são nem próximas das da época.[xiii] Posto isso, em que sentido podemos atribuir à leitura sobre os malalí que habitavam o leste de Minas Gerais, no século XIX, um caráter de território de exceção?
Costa (2017, p. 64) propõe uma caracterização física dos territórios de exceção que pode nos fornecer algumas pistas a esse respeito: “A estrutura física e social dos territórios de exceção (consequência da colonialidade do poder) tem seus princípios em outros territórios (...) Imposições externas forçam a criação de novas regiões, novos territórios, novos lugares ou a mutação dos preexistentes”. Nessa concepção de territórios de exceção enquanto produto de uma imposição externa – nesse caso a colonial –, o que os mapas de época nos revelam a esse respeito?
A figura 6 é bastante didática nesse sentido. O aparato colonial está disposto indicando os núcleos urbanos, os caminhos e, igualmente importante, a toponímia dos lugares (posto que o ato de dar nome a um lugar é impor a ele uma existência que antes não havia) (Gil, T.; Maluly, V., 2019). Ainda, a figura 6 é reveladora nesse sentido, pois essa estrutura está disposta, majoritariamente, à esquerda da imagem. Porém, à direita dela, vemos outra atribuição territorial aos lugares. Temos os lugares da dúvida, da incerteza e, certamente, do apagamento. Nesse momento, convém pensarmos cartograficamente: apesar da “Carta geografica de Minas Geraes” ser de autoria anônima, supomos que a sua elaboração foi proveniente de um (ou mais) cartógrafo(s) europeu(s), provavelmente de origem portuguesa. Ao indicar os lugares de existência dentro da lógica europeia de colonização, não há hesitação na escrita dos lugares e na definição dos contornos. O conhecimento sobre o que era de origem portuguesa (as vilas, os arraiais, os caminhos, e os rios nomeados pelos portugueses) é disposto de maneira final e precisa. De outro lado, o que faz referência ao que não era de origem europeia (fundamentalmente, os povos indígenas) não tem nenhuma precisão e nenhum contorno. Esses largos territórios são, de certa forma, sintetizados em frases vagas, indicando a presença provável de certos indígenas ali e alguma outra indicação possível de ser realizada. Claro que a falta de conhecimento por parte do cartógrafo europeu tem seu peso, mas, nitidamente, há um esforço em se apagar os ditos lugares; em diminuir a sua importância diante do aparato colonizador. Talvez uma ligeira exceção a isso seja a própria figura 7 onde podemos encontrar as formas das tais quatro aldeias malalí, mas, quando a comparamos com a figura 8, vemos que as aldeias mudam de lugar e, nesta última, há a presença de cinco formas que poderiam representar as aldeias. Assim, os quatro pontos vermelhos indicados na figura 7 são, de alguma maneira, formas de ilustração do que o texto já indica e nada para além disso. Não existe a menor preocupação em se precisar as ditas localidades e podemos compreender isso, inclusive, como apagamento do que já pouco se sabe.
Na mesma lógica da toponímia portuguesa enquanto produtora de existências que antes não haviam (no ato de mudar, por exemplo, o nome de uma colina que anteriormente era indígena e que passa a ser portuguesa), não dar forma e não dar precisão a esses territórios indígenas compunha, justamente, a lógica colonizadora de produção desses territórios de exceção. Territórios ativamente marginalizados; espaços derivados, nas palavras de Santos, às quais Costa faz referência, “cujos princípios de organização devem muito mais a uma vontade longínqua do que aos impulsos ou organizações simplesmente locais” (Santos, 1986, p. 104–105). Nesse bojo, o que se quer afirmar não é que o território dos malalí não tinha impulso ou organização local, mas que a sua definição enquanto território de exceção, sintetizada em uma simples frase no mapa do século XVIII, sem nenhum outro detalhamento, é resultado direto da imposição colonizatória do saber e do poder, bem como da força de duração indígena no continente. Assim, a sua constituição enquanto território de exceção é uma feição da totalidade do mundo colonial; é um espaço derivado que só existe enquanto algo às margens, quase que inserido no mapa como um rascunho quando comparado com a definição à tinta dos estabelecimentos portugueses.
Outro fator de extrema importância para a análise é o da recorrência do termo sertão nesses trechos que assinalam a existência de indígenas no mapa “Carta geografica de Minas Geraes”. Sertão inculto... Sertão em que vaga... Sertão povoado... Sertão denominado... Todas essas indicações seguem, estritamente, a noção de sertão que Moraes define enquanto uma “ideologia geográfica”. Nas palavras do autor: “(...) o sertão não é um lugar, mas uma condição atribuída a variados e diferenciados lugares. Trata-se de um símbolo imposto (...) o sertão não é uma materialidade da superfície terrestre, mas uma realidade simbólica: uma ideologia geográfica” (2003, p. 2). Assim, devemos correlacionar as implicações espaciais que o aparato colonizatório tinha na produção desses territórios de exceção definidos enquanto sertões, tanto na forma pela qual eles eram incluídos nos mapas de época quanto no discurso que era a eles estreitamente associado.
Quando Auguste de Saint-Hilaire esteve em Ubá, ele fez o seguinte comentário: “(...) é apenas por um sistema controlado que a gente poderá fazer dos indígenas brasileiros um bem durável; seria preciso que todos os brancos que se dedicassem a viver entre eles fossem animados do mesmo espírito e tendessem ao mesmo objetivo: isso não será jamais a obra de um homem só, por mais absoluta que seja a sua dedicação” (1830, p. 30, grifo nosso).
Por mais mutável que a linguagem e os seus vários significados possam ser, temos uma percepção clara a respeito dos indígenas no início do século XIX e a expressão “um bem durável” salta aos olhos. Para maiores esclarecimentos, podemos recorrer a um dicionário português que data do ano de 1789 para ter o seguinte significado para a palavra “bem”: BEM, s. m. Aquilo que é útil para a existencia, e conservação, ou auge de alguma coisa fisica, ou moralmente. (...) Bens, fazenda, haveres (Silva, 1789, p. 275).[xiv] Porém, na forma original escrita por Saint-Hilaire em francês, segundo dicionário de 1798, temos a seguinte definição: BIEN, s. mas. Ce qui est bon, utile, avantageux, convenable. (...) Bien, signifie aussi, Ce qu'on possède en argent, en fonds de terre ou autrement. (Académie Française, 1798, p. 139).[xv]
Tanto a definição portuguesa quanto a francesa se assemelham e indicam, ao menos, duas leituras sobre a palavra “bem”: relacionada a algo que convém à existência física e moral e, igualmente, referente a valores materiais. Porém, a expressão “bem durável” provavelmente faria referência mais à primeira percepção da palavra, de maneira menos próxima à compreensão material e economicista que temos atualmente de “bem durável”. Assim, Saint-Hilaire não estaria claramente objetificando os indígenas, mas os inserindo em um sistema no qual eles pudessem, de alguma maneira, ter “certa durabilidade”. A versão de 1832-1835 do dicionário francês confirma a hipótese: BIEN, s. m. Il se dit, au sens physique et au sens moral, de Ce qui est utile, avantageux, agréable. Bien solide. Bien imaginaire. Bien durable (Académie Française, 1832, p. 1:184).[xvi] Assim, o “nosso” e “amigo” Saint-Hilaire poderia muito bem estar às voltas com essa percepção sobre os indígenas, claramente distinguindo-os dentre os brancos, mas de maneira a, quem sabe, coexistir. Porém, se voltarmos ao comentário do viajante, podemos observar a maneira pela qual ele, de fato, sugere um necessário projeto coletivo branco europeizante. Isto é, apenas por meio de um esforço organizado pelos brancos que se poderá atingir a própria “incorporação conveniente e moral” desses indígenas à sociedade civilizatória.
Aliada à leitura que fizemos anteriormente sobre os malalí e os botocudo, é bastante claro quais seriam esses indígenas passíveis de serem assimilados enquanto “um bem durável”, posto que a própria produção de um território de exceção parte da ideia de um território central, imperioso. A totalidade da coisa está na inexistência de um território de exceção em-si-mesmado. Ele existe enquanto espaço derivado e a esta concepção que buscamos fazer referência, apesar de a existência “excepcional” do território promover a ele, igualmente, a capacidade de resistir e de se reinventar sempre. Justamente “enquanto conceito, o território de exceção possibilita a totalização e a singularização da história social, no contexto da hibridez inerente da formação espacial latinoamericana” (Costa, no prelo). Outrossim, a cartografia digital dá ainda mais uma forma de demonstração dessa relação. A figura 5 o distingue claramente: Saint-Hilaire propõe falar dos indígenas apenas em um local e em um momento específicos do seu relato. É apenas quando ele atinge as margens da Província de Minas Gerais que esse assunto vem à tona. As exceções estariam sempre nas margens territoriais e ideológicas?[xvii] A geografia e a cartografia do discurso apenas enaltecem essa realidade.
Este texto buscou, como assinalado na introdução, correlacionar discurso e materialidade. As características territoriais são abundantes no discurso de Saint-Hilaire – personagem bastante particular da história brasileira –, mas igualmente o são as características temporais. Dessa maneira, ao nosso ver, a operacionalização desta investigação apenas poderia ser realizada, de maneira efetiva, por meio de uma geografia histórica que integrasse tempo e espaço. Para além desse ponto, uma concepção de patrimônio e de território distinta da de Costa, que não estivesse de acordo com a totalidade da experiência do viajante, não permitiria o aprofundamento desses questionamentos próprios ao território.
A geografia histórica das viagens se mostra deveras imprescindível se quisermos refletir sobre a realidade do território ontem e hoje, ou melhor, tratar o território como um devir, o que é o centro da concepção do território de exceção empregada.







