Resumo: Este texto é produto de um amplo e sistemático projeto de pesquisa, orientado pela ótica da Geografia, tanto enquanto ciência, como prática de existência. Tem por objetivo evidenciar o arcabouço espistêmico da Geografia no sentido de contribuir com reflexões e ações no campo do patrimônio cultural. Baseia-se metodologicamente em leituras, reflexões, pesquisas em campo, análise de contextos e dados desde o doutoramento aos dias atuais. Fruto do trabalho social e substanciado pela Geografia Urbana como unidade disciplinar, o texto oferece um esforço de original contribuição para abordagem teórico-metodológica ao campo do patrimônio cultural em diálogo com Milton Santos.
Palavras-chave:rugosidade patrimonialrugosidade patrimonial,territórioterritório,totalidadetotalidade.
Resumen: Este texto es producto de un proyecto de investigación amplio y sistemático, guiado por la perspectiva de la Geografía, como ciencia y práctica existencial. Su objetivo es resaltar el marco espistémico de la Geografía para contribuir con reflexiones y acciones en el campo del patrimonio cultural. Se basa metodológicamente en lecturas, reflexiones, investigación de campo, análisis de contextos y datos desde el doctorado hasta nuestros dias. Originado del trabajo social y respaldado por Geografía Urbana como una unidad disciplinaria, este artículo buca ofrecer una contribución original al enfoque teórico y metodológico sobre el tema del patrimonio cultural en diálogo con Milton Santos.
Palabras clave: rugosidad patrimonial, territorio, totalidad.
Abstract: This paper is a product of a broad and systematic research project, guided by the perspective of Geography, both as a science and as a practice of existence. This intends to offer the spistemic framework of Geography in order to contribute with reflections and actions in the field of cultural heritage. It is methodologically based on readings and reflections resulting from dialogic dynamics, field research, analysis of contexts and data from the PhD to the present day. The result of social work and substantiated by Urban Geography as a disciplinary unit that aims to offer an original contribution to the theoretical and methodological approach to the theme of cultural heritage in dialogue with Milton Santos.
Keywords: heritage roughness, territory, totality.
Dossiê Patryter
Patrimônio cultural: contribuição da teoria da Geografia a partir de Milton Santos
Patrimonio cultural: contribución de la teoría de la Geografía de Milton Santos
Cultural heritage: contribution of the theory of Geography from Milton Santos

Recepção: 29 Maio 2020
Aprovação: 15 Julho 2020
Publicado: 01 Setembro 2020
DOI: https://doi.org/10.26512/patryter.v3i6.32273
Como citar este artigo: Oliveira, R. F. (2020). Patrimônio cultural: contribuição da teoria da Geografia em diálogo com Milton Santos. PatryTer – Revista Latinoamericana e Caribenha de Geografia e Humanidades, 3 (6), 281-296. DOI: https://doi.org/10.26512/patryter.v3i6.32273
O escopo desta proposta reside na noção de rugosidade[i] (Santos, 1977, 2012a [1978], 2012c [1978], 2012d [1996]), terminologia consagrada na Geografia brasileira e que sintetiza a capacidade de compreensão do espaço geográfico em relação à dinâmica de, simultaneamente, suprimir, superpor e acumular formas-conteúdos. Noção que aprofundada pela capacidade do pensamento passa de mera representação ao conceito, por meio da lógica dialética, partindo-se da totalidade para sua decomposição, que avança do plano prático-sensível para o plano do real concreto, da aparência para a essência das coisas, da existência positiva ao núcleo interno oculto, da práxis utilitária para a práxis revolucionária (Kosik, 1976 [1963], p. 20).
Uma noção que para Souza (2020) oportuniza à Geografia dialogar com profissionais ligados “a conservação, preservação e restauração de memórias, percursos, formas/conteúdos [...]” (p. 11). Que ao postular a Geografia enquanto ciência do presente (Santos, 2006 [1996]; Souza, 2020), enfatiza a condição destas rugosidades na análise das permanências, da preservação, na condição de seletividade espacial, co-presença entre resíduos do passado que podem resistir, como “obstáculo à difusão do novo ou juntos encontram a maneira de permitir ações simultâneas” (Souza, 2020, p. 11-12). Noção que pode ser compreendida pela predicação patrimonial, ou seja rugosidade patrimonial (Oliveira, 2016), que vai além da seletividade e da capacidade geográfica das formas-conteúdos de absorção dos fluxos e dos novos fixos do capital, mas que permite conceituar na contemporaneidade as reminiscências do passado e uma possível reconversão dos territórios usados (Santos, 1994; Santos; Silveira, 2001), segundo estratégias de enfretamento e de realização social.
Leitura amplamente tratada na Geografia brasileira por Costa (2010; 2011; 2015) no campo da análise do patrimônio cultural pelo viés da Geografia urbana e associada à dimensão de totalidade-mundo operada por Santos (Santos, 2012a [2005]; 2006 [1996]). Soma-se a este esforço a produção do conjunto de pesquisadores ligados ao Grupo de Pesquisa em Cidades e Patrimonialização na América Latina e Caribe (Gecipa-CNPq), com contribuições desde as de natureza ontológica, acerca da espacialidade mineratória (Scharage, 2019), passando pelas dimensões de memória e esquecimento a partir do lugar (Lima, 2017), da dinâmica entre metropolização e patrimônio (Fellipe, 2016; Oliveira, 2016), até os limites dos estudos de territorialidades étnico-raciais (Alves, 2019) e a produção de referenciais educativos visando a ativação do patrimônio-territorial (Mesquita, 2019).
Nessa abordagem, as categorias econômica e política somam-se as de cultura, natureza e existência, trazendo a complexidade, além da importância, não só merecida, como essencial, ao entendimento das técnicas empiricizadas no tempo pelos monumentos, relíquias, antigas unidades e conjuntos urbanos, manifestações religiosas, expressões regionais, modos de fazer e viver, além da própria dimensão valorativa pela cultura dos domínios de natureza, a biodiversidade e a discussão mais recente de patrimônio genético. Essa abordagem, mais ampla, multiescalar, rompe com as oposições binárias, ou dicotômicas, cuja capacidade revela uma realidade que é dinâmica, histórica e carregada de contradições. Estas últimas evidenciadas, por exemplo, pelas políticas de tombamento, engendradas mais amplamente após duas grandes guerras mundiais e a preocupação pela preservação e conservação dos bens históricos (Costa, 2010), que no processo de patrimonialização (Jeudy, 2005) rebatem na consagração hierárquica de espaços delimitados, de lugares e objetos selecionados para suplantarem ideologias (Gonçalves, 2002; 2007) que, por vezes, colocam em xeque a autonomia de populações e grupos sociais, em certa medida, dos próprios bens culturais que buscam cristalizar.
O combate e superação a essa seletividade espacial, produzida, muitas vezes, por alegóricas narrativas, em razão prática do setorialismo econômico da abordagem do patrimônio, em destacar paisagens, heróis, vilões e jecas, perpassa justamente a ampliação e aceitação de outras vozes e olhares destoantes. Estas ações podem ser ratificadas por seus habitantes como um produto próprio, ou seja, a partir dos sujeitos e de suas vivências, crenças e saberes, dos que ali trabalharam e produziram condições mínimas para sua existência. Além disso, implica nas inter-relações existentes em escalas mais amplas, permitindo um pensamento crítico capaz de capturar momentâneamente estes lugares enquanto um todo patrimonial, um palimpsesto com diferentes atribuições de valores, valorações e memórias coletivas. Trata-se, neste ponto, da defesa de método, do encontro entre teoria e prática, entre tempo e espaço, entre abordagens multiescalares, do plano universal e singular, geral e particular, em uma das muitas possibilidades de abordagem do patrimônio pela Geografia e de contribuição, desde o racionício geográfico (Blache, 2019; Demangeon, 1956), até o olhar e o discurso disciplinar (Gomes, 2009).
Estabelecer uma proposta teórica e conceitual assentada na atual dinâmica da patrimonialização, partindo da contribuição geográfica e do diálogo com Milton Santos, torna-se uma tarefa coerente no sentido de que as memórias coletivas e nacionais (Ortiz, 1994) estão diretamente associadas a uma dimensão material do espaço geográfico e em relações imateriais que o produz ou que são por ele condicionadas. Essa essência revela a amplitude dos embates entre os usos do território e as disputas por discursos, conteúdos e ideologias geográficas (Moraes, 1988), usos e funções de paisagens, apropriação cultural e mudanças radicais nas relações dos sujeitos com seus bens patrimoniais.
Entendendo assim, cabe destacar alguns fatos e polêmicas que cercam este tema na contemporaneidade. No ano de 2015, ataques e destruição a bens culturais no Iraque, engendrados pelo Estado Islâmico em áreas ocupadas, revelam precisamente estas disputas, tendo a religião um papel central e onde a obediência ortodoxa da lei islâmica, conhecida por shária, levou ações do movimento contra estátuas, escritos e monumentos, considerados protótipos para adoração de falsos deuses e, portanto, a necessidade de seu combate (BBC, 2016). O caso do Monumento às Bandeiras, em São Paulo, Brasil, é sempre centro de polêmica e controvérsia, considerando os simbolismos que margeiam os limites do brado heroico que estes representam na mesma proporção do genocídio causado por eles na escravização indígena (Diniz Filho, 1992; Valverde, 2019). Estes são debates emergentes que permeiam a construção das identidades nacionais (Hall, 2006), os limites ontológicos da dicussão de patrimônio (Lowenthal, 1998b), a tradução dos interesses hegemônicos por meio da cultura (Castro, 2012), além das razões práticas (Sahlins, 2003) que levam a uma setorização etnocentrada na construção ou conservação dos lugares de memória (Nora, 1993 [1984]).
Ainda mais recentemente, após retirada da estátua do General Robert E. Lee, em Charlottesville (pequena cidade da Virgínia, Estados Unidos) no ano de 2017, manifestações étnico-raciais eclodem no país entre grupos supremacistas brancos e movimentos negros organizados. Em 2020, no ápice da pandemia da COVID-19, em Minnesota, na cidade de Minneapolis, Estados Unidos, o assassinato de um homem negro chamado George Floyd por um policial branco, desencadeou uma série de atentados contra monumentos em escala internacional, rebatimento que levou na Inglaterra à remoção da estátua de Robert Milligan, antigo traficante de escravos, localizada em frente ao Museu das Docas de Londres, e que foi lançada ao rio por um grupo de manifestantes (BBC, 2020). Fatos que revelam a dinâmica contemporânea das rugosidades patrimoniais em diferentes Estado-nações a partir das tensões existentes das lutas de classe, dos conflitos étnico e religiosos, bem como das representações e ideologias geográficas.
A noção de rugosidade, entre outros conceitos e categorias desenvolvidos por Milton Santos, apoia a construção e contribuição crítica para as ciências humanas e sociais, tornando-se basilar no entendimento provisório das formas e conteúdos associados ao patrimônio cultural. O que subsidia um esforço teórico capaz de proporcionar uma releitura dos lugares pela ótica das resistências locais frente a reprodução do capital, mas também de suas adaptações e contradições para o desenvolvimento da vida no campo e em áreas urbano-metropolitanas. O desenvolvimento desta noção, naquilo que se convencionou denominar de rugosidade patrimonial, pode melhor apoiar este conhecimento, situando eventos e períodos de ocorrência dos fenômenos, a abrangência de suas múltiplas escalas e determinações (Santos, 2012b [1996], p. 163), tangenciando a discussão sobre os processos de supressão, acumulação e superposição das formas e conteúdos espaciais. E, por fim, dos sentidos e significados culturais das manifestações que hoje se estabelecem ou que permanecem nestes mesmos lugares a longo tempo, mais especificamente, o papel dos lugares de memória resistindo, adaptando, ou rendendo-se às demandas da tríade capital, Estado e mercado simultaneamente, enveredando ao fortalecimento da oposição e da adaptabilidade do próprio sistema às formas e conteúdos dos lugares.
Conceitos são generalizações que possuem propriedades suficientes de contribuírem com a apreensão parcial e momentânea do real, sendo usados na resolução de problemas práticos e questões diversas do cotidiano. São também relacionais e dinâmicos, ou seja, podem sofrer incrementos ao longo do tempo que alteram o núcleo da teoria, ou de se diluírem com o desuso ao longo do desenvolvimento científico. A discussão conceitual está diretamente unida ao experimento, à experiência, à empiria, sendo continuamente retroalimentado (para usarmos uma expressão caracteristicamente sistêmica) e estruturado conforme o desenvolvimento da pesquisa. Tão logo, pois, finalizado o trabalho em torno de sua composição final, a dinâmica dos fenômenos se altera, resultando a necessidade de novas elaborações a partir da realidade então produzida. Em parte, como Becker (2008 [1998], p.146), entende-se que “[...] desenvolver conceitos, porém, é um diálogo contínuo com os dados empíricos. Como conceitos são maneiras de sumarizar dados, é importante que eles sejam adaptados aos dados que vamos sumarizar.”
A respeito dos conceitos, pensando mais disciplinarmente no âmbito da Geografia, Santos (2013a) advoga que para além da sua universalidade, quase sempre pensados e importados dos países desenvolvidos centrais, estes tomem contornos particulares diante das remotas realidades geográficas. Mas, sobretudo, que sejam repensados sobre a ótica dos fatos, peculiares em cada unidade do sistema mundo. Reformulando-se, pois, não somente os conceitos, mas as próprias teorias e metodologias da Geografia. Somente neste sentido, o compasso entre as dinâmicas transformações sociais, sua análise e explicação poderão alcançar a fugidia concreticidade do real. E, no limite, penetrar a esfera de uma práxis revolucionária e, portanto, conciliar metabolicamente teoria e prática.
Antes de propriamente tratar da noção de rugosidade, é necessário que se esclareça algumas categorias do método geográfico propostas por Milton Santos, no sentido de apreender os fenômenos da realidade social numa dimensão espacial. Esta nota é necessária pelo uso contínuo de termos como espaço geográfico, formas, conteúdos, funções, estrutura e processo. Assim, quando há referência ao termo espaço geográfico, significa que ele traduz a ideia de um conjunto indissociável de sistemas de objetos e sistemas de ações (Santos, 2006 [1996]). Portanto, uma instância complexa do social: um meio, uma condição, mas também um substrato de todas as relações sociais. Em relação às categorias: forma, função, processo e estrutura, cada uma possui características próprias, sendo, no entanto, utilizadas sempre de forma conjunta, ou seja, de maneira simultânea e inseparada, já que “para se compreender o espaço social em qualquer tempo, é fundamental tomar em conjunto a forma, a função e a estrutura, como se tratasse de um conceito único” (Santos, 1985, p. 56), isso ainda com base no processo histórico de cada período ou recorte analisado (Oliveira; Silva, 2009, p. 03).
A categoria forma, no contexto anteriormente citado, seria também uma categoria desse todo, o visível, o objeto em si, o arranjo, por fim um padrão. Enquanto a função seria o papel esperado de uma forma, sugerindo, portanto, uma tarefa a determinada coisa. E, enfim, o tempo estaria representado pela categoria processo, num movimento dinâmico e comum entre todas as outras categorias, para então conquistarmos a apreensão da realidade, por meio da “totalidade concreta e dialética” do mundo (Santos, 1985, p. 58). No que diz respeito à categoria de estrutura, Perroux (1969, p. 371 apud Santos, 1985, p. 16) vai defini-la como uma “rede de relações, uma série de proporções entre fluxos e estoques de unidades elementares e de combinações objetivamente significativas dessas unidades”. Gurvitch (1971, p. 112) versando sobre a questão da estrutura nas ciências sociais, esclarece o dinamismo de processos atuantes que sempre a modificam conforme o período histórico, onde as estruturas não são simplesmente “preestabelecidas”, pois “estão sujeitas a uma contínua recomposição, porque o seu equilíbrio é precário”, jamais estão estáveis, em perfeita ordem; pelo contrário, pressupõem um perpétuo movimento de estruturação, desestruturação e reestruturação, no qual participam todos os elementos do fenômeno social total.
Buscando evidenciar a inseparabilidade entre espaço e sociedade, Santos (1985, p. 50) esclarece que a estrutura “implica a inter-relação de todas as partes de um todo; o modo de organização ou produção”. Portanto, a noção de totalidade (Santos, 2012a [2005]; 2006 [1996]) empregada deriva paralelamente do sentido de estrutura e mais genericamente das perspectivas analíticas do processo de globalização. Abarca, pois, na Geografia a busca filosófica matriz de apreender a dinâmica realidade em seu estado de fracionamento e totalização, como na prática acerca das operações e adaptabilidades do modo de produção, das divisões territoriais do trabalho, das formações econômicas e sociais, bem como do papel destas diferentes partes numa contínua relação de transformações do todo. Pelo dinamismo do real, da totalidade, as periodizações históricas tornam-se elementos centrais para a compreensão de um dado momento ou a fração da totalidade. Mesmo fracionada, esta não deve ser simplesmente tomada em separado da totalidade geográfica, o que implica a busca de um método localizado, situado, em que se operam as forças do tempo, mas também a instância social do espaço geográfico.
Neste sentido é que Santos (1985) defende a inseparabilidade analítica pelas categorias supracitadas, pois conforme se aprofunda em cada uma delas a inevitabilidade de sobreposições as tornam em uma só unidade complexa, porém objetivas e esclarecedoras. Outra categoria importante para o desenvolvimento do conceito de rugosidade e, posteriormente, de sua adjetivação patrimonial, reside nos conteúdos geográficos, ou nas formas-conteúdos (Santos, 2012d [1996]). Conforme o autor citado, não se pode entender uma dialética hierarquizada em “[...] estrutura (essência, totalidade nua), processo, função e forma segundo um movimento linear, ou de maneira unívoca pois, de um lado, a estrutura necessita da forma para tornar-se existência e, de outro, a forma-conteúdo tem um papel ativo do todo social” (Santos, 2012d, p. 126). Portanto, essa forma-conteúdo, carregada de símbolos e ideologias, exige não apenas superar a oposição entre essência e aparência, mas estimular o pensamento a confrontar essência e existência. Segundo o autor, “[...] a ideologia é também essência, aparece como realidade e assim é vivida” e, “[...] a essência se transforma em existência [...]. Deste modo, há objetos que já nascem como ideologia e como realidade ao mesmo tempo. Nestas condições, a totalidade social é formada por mistos de realidade e ideologia.” (Santos, 2012d, p. 127).
Tratar da realidade contemporânea é considerar os pressupostos anteriormente sintetizados, mas também de conceitos auxiliares pensados por base destas mesmas categorias. A esse preceito, em teoria, a noção de rugosidade nada mais é que uma forma-conteúdo. Carregada de símbolos e ideologias, a rugosidade possui relevância quando são experimentadas intensamente por uma frenética busca pelas excepcionalidades, monumentalidades e tantas razões que incluem a reprodução do modo de produção em atividades diversas a elas associadas. Como teoria, contudo, não se trata ainda essencialmente de um conceito, já que Milton Santos a utilizou mais como uma noção, um balizamento que, de certa maneira, foi deixada de lado, quando no entendimento dos fluxos, será o conceito de fixo que passará a tomar maiores esforços intelectivos dos geógrafos, destacadamente os brasileiros.
No esforço inicial de Santos (2013a [1978]), a diferença entre fixos e rugosidades é praticamente inexistente, no entanto sobressaindo em “Por uma Geografia Nova...” (2012c [1978]) uma dimensão mais substancial, mostrando desde o século dezenove como suas premissas já se desenvolviam pelo materialismo histórico e dialético com Engels até mais recentemente pelo espanhol M. Castells. No exterior, a terminologia rugosidade não converge com a reflexão de Santos (2012a; 2012c; 2012d [1996]; 2013b), ao se apresentar numa perspectiva mais pragmática, ou seja, aplicada aos desígnios do planejamento e do ordenamento territorial. Toma assim um outro sentido, uma matriz epistemológica que não está compassada com a Geografia Crítica, mesmo que suas bases se assentem na influência francesa. No Brasil é utilizada de forma secundária nas análises geográficas, ligada fundamentalmente ao legado de Milton Santos e que se conjuga enquanto formas espaciais oriundas de múltiplos períodos de tempo. Este preceito vincula-se àquilo que o autor teorizou do espaço como acumulação desigual de tempos históricos. Avança, contudo, em obras mais recentes, para uma definição elaborada de rugosidades em relação aos fixos, atrelando a primeira noção às dimensões categoriais do espaço geográfico e ligadas aos diferentes contextos históricos, fundamentalmente às permanências espaciais individuais ou em conjuntos (Santos, 2012d).
Godoy (2004, p. 37) aponta que a busca de conceitos como os de rugosidade, ou mais precisamente de “(des)construção”, é decorrente do “[...] processo de urbanização da sociedade. As cidades, sobretudo as metrópoles, tornaram-se os lugares de experimentação de um novo urbanismo e de uma nova estética arquitetônica”. A dimensão strictu sensu de rugosidade enquanto forma, amplia-se nas dimensões históricas de outras necessidades e relações, constituindo-se particularidades materiais dos sonhos e desejos humanos, tanto como da opressão e do medo. Torna-se, de fato, um elemento fundamental do cotidiano de grupos sociais, de seus modos de vida, da produção cultural e dos múltiplos simbolismos. Buscados pela ciência, pelas artes e a filosofia, estas rugosidades despertam amplos interesses, desde o entendimento e novas interpretações do passado, até o desenvolvimento de sofisticadas atividades produtivas, como eventos culturais e celebrações religiosas. Esses objetos, formas e conteúdos espaciais, transformados pelo trabalho social em diferentes fases e regimes de tempo, comportam resíduos concretos dos modos de produção e da aventura humana em sua existência, permitindo mostrar o dinamismo do tempo e espaço, sugerindo pensar as rugosidades como barreiras ou catalisadoras concretas dos projetos de mundo. Assim também, revelar as diferenças, as desigualdades e aspectos contraditórios do território usado, materialmente sintetizados no campo, na cidade e escancarados nas metrópoles.
A noção de rugosidade residiria por estas leituras, em grande medida, neste legado analítico-reflexivo de Milton Santos, fundamentada enquanto teoria e conceito na realidade contemporânea, em que as formas espaciais pretéritas engendram a cada dia novos usos do território e que altera profundamente a dinâmica da vida nas cidades em todo planeta. Conceitos como os de território, paisagem, região e lugar, embasados pelas categorias do método geográfico (Santos, 1985) são capitais para a apreensão das rugosidades, desde sua condição particular-universal, até os resultados atuais que se dilatam em torno de sua institucionalização e as operações ideológicas e econômicas mediadas pelas mesmas. Sua estruturação conceitual auxilia a compreender como as pretéritas formas espaciais, desde cidades coloniais, ou primitivos núcleos de aglomeração, se desenvolveram, transformando-se em grandes regiões metropolitanas na atualidade. Metodologicamente, apoiam e explicam como as permanências concretas e intangíveis resistiram às modernizações e a própria Modernidade, resultando hoje num atrativo monumental e excepcional do patrimônio cultural, assim também em unidades de coesão e relações de pertencimento dos grupos sociais relacionados aos seus territórios. Mais que as dimensões valorativas e significantes dos objetos técnicos, a rugosidade patrimonial permeia a própria noção de exuberância e permanência da natureza, enquanto novo desígnio categorial da cultura, porém traduzida pelo patrimônio natural (Paes, 2001; Scifoni, 2006; Costa et al., 2015).
Há necessidade, pois, de avançar sobre a noção de rugosidade, visando estabelecer uma sistematização a priori do fenômeno e mais conjectural do fato analisado, assim como avaliar e explicar uma realidade diferenciada dos contextos em que essa noção foi pensada, mas que continua dinamicamente a se desenvolver. A noção de rugosidade que permanece ou que relativamente resiste, ao ser adjetivada pelo termo patrimonial – uma teoria, uma narrativa e uma prática social – converte-se em possível conceito estruturante. Logo, a rugosidade, uma noção particularizada da produção geográfica, ainda esparsa, carregada de sobreposições, seria capaz de incluir continuações calcadas nas bases materiais dos objetos técnicos processados, como também dos elementos simbólicos e culturais manifestados pelas tradições e modos de vida locais. Contudo, a leitura da noção de rugosidade tende a ser ampliada, sob a dimensão histórica de natureza e sociedade (Lefèbvre, 1975; 1979; Smith, 1984a; 1984b), em que os desígnios da patrimonialização inserem-se como parte da lógica dos usos dos territórios na contemporaneidade.
Portanto, além de compreender os contextos e regimes de tempo, a rugosidade patrimonial enquanto conceito permearia o plano material das formas, como de suas funções práticas e, fundamentalmente, seus conteúdos pretéritos e contemporâneos. Como as paisagens, as rugosidades patrimoniais, ainda mais acentuadas pela normatização ou reconhecimento coletivo de seu valor histórico e cultural, expressam-se materialmente como mecanismos de persuasão e reprodução das relações sociais. Ora pelo papel alegórico difundido pela agregação de uma identidade, ora pelas narrativas associadas aos desígnios dos mitos fundadores, como pelos interesses estratégicos dos poderes ligados aos setores especulativos urbanos. Neste caso, as rugosidades patrimoniais acentuam os significados das paisagens, revelando além dos simbolismos e a intertextualidade da produção escrita (narrada) e a da concretude dos bens, confirmam da mesma maneira as disputas, conflitos e contradições do espaço geográfico estabelecidos em relação às instâncias políticas, econômicas e culturais em torno do poder (Duncan, 2004).
O sentido de rugosidade pode ser traduzido por uma noção referencial de obstáculo, fenda, ou mesmo uma qualidade de determinada coisa que implica em um atrito. Essa noção ainda é ajustável ao contexto dos limites entre o natural, quanto ao cultural, nos meandros dicotômicos e especializados que as disciplinas e suas subáreas tomaram no decorrer dos anos. Observa-se o termo no levantamento, desde os estudos franceses de modelos urbanos, como os de Cécile Helle (1993), ligados às teorias de centralidade inspiradas em Thünen e Christaller (e sob influência de geógrafos como Berry e Haggett), quanto estudos de climatologia aplicada e de sistemas de informações geográficas (Peneau,1996). Com Milton Santos (2013a [1978]), a noção de rugosidade é originalmente empregada à Geografia como possibilidade analítica de fenômenos contemporâneos dos fatos sociais. Estes, imbricados em temas que vão das desigualdades econômico-sociais, dos processos históricos de formação territorial e, atualmente, ligadas ao temário do patrimônio cultural.
No Geografia brasileira a noção de rugosidade é comum e utilizada justamente nas periodizações e análise das temporalidades materializadas nas paisagens em razão de uma tradição inspirada nas obras de Santos (1977, 2012d [1996], 2012 [1978], 2012c [1978]). Em “O Trabalho do Geógrafo no Terceiro Mundo” (2013a [1978]), Milton Santos se refere ao geógrafo francês Jean Tricart e ao uso da noção para expressar na geomorfologia o passado geográfico de diferentes paisagens. Na continuação da obra (Santos, 2013a), no capítulo dedicado aos “fluxos e rugosidades”, expõe o papel da rugosidade enquanto forma espacial e dos fluxos como movimento. Ao tratar da materialidade e do movimento, Tavares e Silva (2011) explicam que é nesta obra que “[...] a concepção de espaço que será amplamente desenvolvida [...], tanto é assim que o autor intitula uma seção do 9º capítulo de ‘fluxos e rugosidades’, no qual traz à tona a importância do movimento e da materialidade para a análise do espaço geográfico.” (Tavares; Silva, 2011, p. 145). No entanto, nas obras futuras a atenção dada a noção de rugosidade se dilata na de fixos, sendo melhor retomada em “Por uma Geografia Nova...” (2012c [1978]) e com maior profundidade em “A Natureza do Espaço” (2012d [1996]). Nesse transcorrer, o espaço geográfico, tem nas rugosidades uma síntese do tempo cuja paisagem revela (Santos, 2012d, p. 12-13). Evidencia-se, pois, que a noção de rugosidade está situada pelo autor com a mesma importância de categorias como a paisagem, ou a divisão territorial do trabalho. Todavia, a particularidade da noção reside na carga histórica dos objetos nela organizados, enquanto formas do passado que se fazem atuais no presente, mas que revelam as distintas divisões do trabalho pretérito, bem como as técnicas utilizadas e seus resultados.
Santos (1996, p. 140) ainda lembra que “em cada lugar, pois, o tempo atual se defronta com o tempo passado, cristalizado em formas. Para o tempo atual, os restos do passado constituem aquela espécie de ‘escravidão das circunstâncias anteriores’ de que falava John Stuart Mill”. De tal maneira que o trabalho passado condiciona o trabalho presente, cujas heranças compõem uma complexa teia de propósitos funcionais de nossos antepassados, afora as técnicas conjugadas na produção do espaço e os usos estabelecidos nos mais diversos regimes de tempo. “É nesse sentido que falamos da inércia dinâmica do espaço [...].” (Santos, 1985; 2012d, p. 140) – ou seja, uma força territorial que congrega neste caso da acumulação formas do passado e presente numa totalidade.
O fato de as rugosidades estarem atreladas às formas pretéritas e acumuladas no presente, as tornam em um conceito central para os estudos da Geografia histórica, cultural e urbana. Para Godoy (2004), o sentido de rugosidade remete a definição de “[...] formas espaciais do passado, produzidas em momentos distintos do modo de produção e, portanto, com características sócio-culturais específicas. [...]”. O autor ainda explica que estas formas “[...] constituem-se em paisagens técnicas que podem ser periodizadas segundo o desenvolvimento do modo de produção ao longo do tempo histórico” (Godoy, 2014).
No limite, reconhecendo a necessidade de avanços, fundamentalmente para a dimensão imaterial das ações de construção/desconstrução do espaço geográfico, e a dimensão de existência (Sartre, 2013), defende-se que as “rugosidades” sejam qualificadas pela adjetivação “patrimoniais”, considerando uma abordagem capaz de dar especificidade aos novos usos dos territórios, ou seja, extravasam a necessidade de permanência concreta de antigas formas geográficas (fixas, de outros contextos), desde que os conteúdos possam ser compreendidos e reconhecidos, periodizados na totalidade-mundo contemporânea, perfazendo paisagens e formas que somente existam hoje em arquivos, nas fotografias, ou narrativas da memória coletiva e nacional, enfim, no universo intangível e que marcam as experiências, vivências, realizações, as festividades e comemorações, os saberes, as ancestralidades, cada vez mais comuns na órbita da pesquisa e contribuição da Geografia.
Por sua visibilidade, como as marcas do uso nos objetos, ou da idade no rosto das pessoas, as rugas além de fundamento da experiência vivida, ou do desgaste às distintas resistências, podem ser mecanismos metodológicos que nos permitem apreender o fenômeno da patrimonialização, como ao da atual urbanização, a valorização e desenvolvimento produtivo das áreas citadinas de relevante carga patrimonial, assim como os movimentos e ações que imprimem outras lógicas sobre aquelas hegemônicas. Cabe, neste momento, analisar em cada categoria algumas questões teóricas centrais em relação à rugosidade proposta por Santos (2013a [1978]) e mais amplamente sistematizada e desenvolvida em relação ao temário do patrimônio cultural (Oliveira, 2016). Esta abordagem estrutural do conceito é importante por aprofundar cada categoria, evidenciar contextos, os desdobramentos nos usos dos territórios em distintos regimes de tempo, portanto, disciplinando o pensamento, mas não limitando a análise integrada no conjunto das relações sociais a qual compõe a configuração do que ora classifica-se por rugosidade patrimonial.
A categoria supressão, na tríade, é a primeira analisada. Ela revela dois planos principais para balizar o pensamento: (i) o primeiro pela destruição das formas, cuja extinção material não significará determinantemente o esquecimento de suas funções e usos pretéritos. Tão pouco determinações de formas e conteúdos futuros. A supressão da estátua do traficante de escravos inglês não fará com que a escravidão e o tráfico negreiro sejam extintos das memórias, do valor monumental dado a esses sujeitos em outros contextos. Menos ainda será esquecido o local de destaque que essa imagem ocupava, em frente a um museu frequentado por tantos cidadãos, um marco daquela paisagem. De outro modo, menos inesquecível será um edifício ou conjunto histórico destruído, como o Palácio Monroe, no Rio de Janeiro, ou em casos de conflitos, como em Hatra no Iraque, ou ataques terroristas em Nova Yorque, no caso do World Trade Center. Por outro prisma, revela Lima (2017), acerca de cidades interioranas da mineração de Goiás, que mesmo o patrimônio inexistindo ou não enquadrado nos projetos de patrimonilialização, suas dimensões materiais e intangíveis são avivadas pelas práticas de existência dos moradores, nas diversas manifestações cotidianas observadas pela autora. Ou ainda, razões e exemplos distintos, mas que, no entanto, a supressão ou destruição das formas não implica necessariamente no esquecimento, ou em conteúdos diferentes dos antigos; (ii) o segundo foco de análise reside na preservação ou conservação das formas, mediadas, basicamente, por duas distintas condições: a supressão dos conteúdos e novos usos, ou a permanência da forma cuja relação de memória não implique em lembranças ou relações significativas com os resíduos ou testemunhos de paisagens no tempo. Muitos poderiam ser os exemplos, como áreas de desindustrialização ou de reestruturação produtiva, como os antigos prédios industriais em áreas centrais das metrópoles, convertidos em estúdios, escritórios, consultorias de pesquisa e desenvolvimento, academias, entre outras atividades. Cabe lembrar o caso das antigas olarias e barracões industriais da Barra Funda, em São Paulo, onde a rugosidade emerge como resultado da supressão parcial das formas espaciais. Ali, a localização estratégica e relativamente central em uma das maiores aglomerações do planeta passa a ter revalorização e funções habitacionais, sobretudo em sistemas condominiais, que altera radicalmente a paisagem ao mesmo tempo que se apropria esteticamente dos fragmentos mais significativos. No caso, destacam-se antigas chaminés preservadas, fração da estrutura produtiva suprimida. Se agrega valor estético-arquitetônico à construção pós-moderna em relação aos incorporadores, agentes imobiliários e consumidores, para seus antigos trabalhadores é um marco de vidas dedicadas à construção da metrópole, agora à (des)construção num movimento contínuo e dinâmico de reestruturação do campo, das cidades e metrópoles. No âmbito da recente aproximação entre os interesses imobiliários, do planejamento e a gestão urbana, junto aos órgãos e políticas do patrimônio, algumas estratégias de preservação de edifícios e conjuntos levaram a destruição do entorno e mudança radical na forma de uso e ocupação dos bens considerados de relevante interesse histórico-cultural. No caso de Carapicuíba, município da Região Metropolitana de São Paulo, centenas de moradores do entorno da Aldeia foram removidos para a consolidação de um parque, voltado ao lazer e entretenimento, visando ainda uma ambientação mais harmônica ao conjunto urbano tombado pelo patrimônio nacional e estadual que deriva dos primeiros núcleos de assentamento no Brasil (Oliveira, 2016).
Destes planos, podem desdobrar-se outros, mas todos eles estarão ligados às implicações dinâmicas de experiências com espaços e conteúdos que permanecem ou não. Ainda que dinâmicas, as rugosidades devem oferecer certa barreira às modernizações, ou mesmo ao próprio movimento histórico do esquecimento e da efemeridade temporal. De fato, a supressão das formas nem sempre é concretizada sem haver tensões, conflitos e até lutas pela sua destruição, conservação ou preservação. E mesmo que suprimida, ou parcialmente destruída, a forma só será mesmo uma rugosidade quando esta permanecer presente num dado local, ou atual na memória. Pela velocidade das transformações em curso na escala metropolitana, a supressão é categoria estruturante do conceito de rugosidade patrimonial. Pode, no entanto, ser transmitida às gerações vindouras que nunca as presenciaram, ou simplesmente as viram ilustradas por meios imagéticos, textuais, ou pela transmissão de narrativas orais.
Sem dúvida, tais condições mantêm mais vivas as recordações e referências simbólicas da cidade. O que não impede, necessariamente, que as antigas práticas sejam abandonadas, banalizadas ou incompatibilizadas pelas determinações modernas. Neste caso, a veemência das formas, pujantes de restauros e proteções contínuas, podem perder paulatinamente seus conteúdos pretéritos, dados desde a dessacralização dos lugares, até sua conversão de relações de trabalho para o de habitar. No caso da presença de certos fragmentos, essas condições são ainda mais efetivas no mimetismo da rugosidade à qualidade de patrimônio, pois potencializam e aguçam os meios interpretativos da realidade. E, como tal, as relações com os elementos são diferenciadas e tão complexas quanto as subjetividades emersas nas emoções de cada ser humano. Em verdade, compreendendo que todas as organizações do território usado cujas rugosidades estejam contidas, mesmo as rugosidades suprimidas revelam algum nível de resistência, onde suas condições devem ser particularizadas, exploradas qualitativamente e compreendidas a luz de questionamentos menos ortodoxos e determinísticos da realidade social – lembrando sempre que os bens culturais não possuem valor semelhante a todos os sujeitos, grupos ou classes sociais. Do mesmo modo, a apropriação das formas geográficas não é realizada apenas pelo privilégio exclusivo e privado do solo urbano, principalmente no que se refere às rugosidades patrimoniais tombadas. Os conflitos neste caso são ainda mais complexos, pois envolvem interesses diretos do Estado a partir de um bem privado tornado público.
O segundo esquema de organização das rugosidades tratado por Santos (2012d [1996]) é dado pelo processo de acumulação das formas-conteúdos espaciais. Compreende-se que a acumulação implica em um heterogêneo mosaico de paisagens, com distintas funções desempenhadas e relações simbólicas unidas às memórias e tradições. Esta característica das rugosidades patrimoniais revela a diversidade de contextos, de técnicas e de intervenções, realizadas histórica e geograficamente pelo trabalho social. Todavia, essa acumulação, ao longo da política do patrimônio, ao menos desde 1933, com a Carta de Atenas (IPHAN, 2015), e após sua integração com a gestão empresarial dos territórios, as práticas do planejamento estratégico e o turismo, tornou-se uma das categorias questionadas sob a ótica do empreendedorismo urbano. Primeiro pelo fator “contaminante” a ambiência de espaços particulares ou conjuntos cujo valor patrimonial carrega o aspecto singular, excepcional, estético, que no Brasil está relacionado a busca de uma identidade nacional e, mais recentemente, para as dimensões de permanência e de diversidade social, as quais remetem a integração com as políticas urbanas (Sant’Ana, 2004). Depois, pelo fator “incompatível” do uso diversificado dos espaços patrimonializados, fazendo com que muitas cidades do patrimônio, e turísticas por consequência, tivessem suas áreas de interesse cultural totalmente reestruturadas, expulsando antigos moradores e mudando radicalmente as dinâmicas de uso, em muitos casos transformando “lugares de estar” – praças, largos, passeios públicos, cinemas, teatros e clubes – em “lugares de passar” (Oliveira, 2019).
Isto porque, nesta lógica, o resultado é a busca de consistência homogênea do conjunto, sobretudo pela depreciação do convívio das rugosidades com novos elementos, constituintes de paisagens atuais ou de arquitetura diversa. Essa acumulação, bem como as tentativas de fragmentação entre tecidos modernos daqueles do interesse patrimonial, por vezes, resulta em disputas territoriais. Fenômeno observado, a título de exemplo, na terceira fase de implementação da “Cinta Costeira”, na Cidade do Panamá. Atualmente uma das mais pujantes metrópoles da América Central, seu povo enfrenta profunda reestruturação urbana, emergindo manifestações favoráveis às mudanças, ora resistências contrárias, em favor do “Casco Viejo” e da salvaguarda de seu patrimônio intangível. Newbill (2019) leva a compreender, dialeticamente, que a condição de reprodutibilidade técnica (Benjamin, 1985) destas rugosidades patrimoniais, ou a preservação e requalificação dos bens, para a contemplação atual, enxerta novos materiais e simula atividades que, de fato, não existem mais. Expulsa moradores pela gentrificação (Smith, 1984a), engendrada pela revalorização econômica e mudanças profundas na autonomia territorial destes grupos, sobretudo os de maior vulnerabilidade e historicamente presentes no retângulo intitulado pela Unesco de Distrito Histórico do Panamá, ou mais amplamente no bairro de San Felipe (Newbill, 2019).
Estas dinâmicas podem ser observadas, em suas particularidades, precisamente no território brasileiro. Destacando-se, entre outras referências empíricas, o caso do Recife Antigo, bairro da capital de Pernambuco, cujo estudo de Leite (2001) revela a centralidade do patrimônio na “reinvenção” do antigo bairro central e os problemas derivados do que ele trata como a “política dos lugares” acerca das verticais intervenções nos espaços públicos analisados. Entre outros recortes, por fim, cabe destacar o emblemático caso do centro histórico de Ouro Preto, em Minas Gerais, onde substanciais investimentos em infraestrutura e intervenções estratégicas no patrimônio revelam a desigualdade na aplicação de recursos e serviços entre centro e periferia do município, desta que é a primeira cidade-patrimônio brasileira, criando tensões e nítidas fronteiras entre turistas e população local, inclusive com esvaziamentos sazonais das áreas centrais e setorização das relações sociais (Cifelli, 2005; Costa 2011).
Neste tema, um dos maiores desafios contemporâneos parece residir, como no Brasil, nas políticas do patrimônio cultural em contemplar uma complexa diversidade étnica e cultural de populações e o uso de seus territórios. Em Honduras, onde a população indígena representa um total menor de 10% da população, o Parque Nacional de Copán, abarca a maior parte dos esforços e recursos públicos destinados à cultura e o turismo no país. À margem ficam outros grupos sociais, como a representativa população negra, ou mesmo as dificuldades de acesso e de usufruto das populações indígenas, segregadas de seus bens, apropriados pelas empresas turísticas. Agravante, as instabilidades políticas dificultam estas ações e minam a já baixa institucionalidade gerada em relação aos institutos nacionais de preservação e pesquisa do patrimônio cultural e os grupos étnicos organizados (Euraque, 2010, p. 310).
A criticidade das novas funções e conteúdos das rugosidades patrimoniais na América Latina é fruto do desenvolvimento histórico e imperial que alavancou a colonização e a expropriação das riquezas naturais e do trabalho das populações originárias e transplantadas. Afinal, como advoga Canclini (2006, p. 291), a monumentalidade de grande parte dos espaços históricos no subcontinente latino-americano deriva de sistemas sociais autoritários que derivam do imperialismo espanhol e português. Quando mantidas algumas das formas e objetos geográficos na contemporaneidade, seus conteúdos culturais, funções econômicas e sociais, passam atender a demanda crescente de visitantes aptos a pagar por simbólicos e singulares espetáculos. Com isso, a incipiente reminiscência no conjunto da acumulação, sobretudo se comparada a dimensão de supressão e de superposição, que estruturam o conceito de rugosidade patrimonial, passa a ser instrumentalizada em favor corporativo do Estado e empresas. Soma-se ainda, a centralidade dos bens consagrados pela ótica autoritária das classes sociais dirigentes destes países, as quais alicerçam a memória e o patrimônio nacional (Canclini, 2006, p. 291).
Por fim, a acumulação das rugosidades patrimoniais não deve ser pensada separadamente da supressão e da superposição. Para que haja acumulação deverão ocorrer supressões e superposições de alguma ordem, senão das formas, dos próprios conteúdos. Ao agregarem antigas estruturas que resistiram ao tempo, ou unidades pretéritas de paisagens, bem como suas funções diversificadas, há acumulação de formas-conteúdos que se arranjam no ambiente atual das cidades ou do campo. Assim também, a crítica radical realizada na leitura e compreensão dos usos, das formas de apropriação e seletividade das políticas no campo do patrimônio cultural (baseadas no atual movimento histórico, inserido no contexto de globalização operacionalizada pelo modo de produção capitalista), deve diametralmente compreender na acumulação uma categoria potencial e que oportuniza as condições de diversificação funcional, da convivência, do encontro, da diversidade cultural, do respeito as ancestralidades pelos frutos do trabalho realizado histórica e geograficamente. É nesta premissa teórica que melhor se revela a acumulação desigual de tempos (Santos, 2012d [1996]), permeada, por sua vez, por conflitos ou tensões, já que são inerentes ao processo de reestruturação do espaço. Trata-se da co-presença, acumulada, de contextos distintos, cristalizados numa mesma forma, ou em conteúdos que perduram mesmo diante da mudança dos bens culturais tangíveis.
A terceira categoria, apontada por Santos (2012d [1996]) e usada para alicerçar o conceito de rugosidade patrimonial, é a superposição das formas e conteúdos geográficos, ou seja, o somatório ou o resultado agregado de um dado conjunto material estratificado em um meio, compreendido respectivamente no âmbito intangível às vivências e novas relações produtivas em diferentes contextos. Ela, assim como as demais, carrega a capacidade de definição de resistências e mudanças, transformações, enfim, do dinamismo regional por novas territorialidades, forças produtivas e relações de produção.
Nos séculos de assentamento, os caminhos indígenas foram continuamente utilizados e apropriados pelos colonizadores em todo território da América Latina. Estes caminhos foram estratégicos, marcaram pontos nodais das aldeias, aldeamentos, missões, reduções, vilas e cidades (Petrone, 1955; 1995). Depois, foram superpostos pelos trilhos da ferrovia, que enveredavam as pioneiras fazendas no sertão (Monbeig, 1998 [1952]) e alcançado as atuais rodovias e trilhos metroviários que conectam cidades e metrópoles (Azevedo, 1958; Langenbuch, 1971; Santos, 2013b [1993]). Apesar das contínuas modernizações operadas (alterando as rústicas trilhas seculares, batidas pelos pés descalços), as funções essenciais de deslocamento e a própria localização do traçado permanecem cristalizados.
As categorias de função e conteúdo, neste momento, relevam importantes diferenças. No primeiro caso permanece a mobilidade e o deslocamento, no segundo as razões passam a ser outras do contexto pré-colombiano e colonial. Se, no entanto, os conteúdos foram radicalmente alterados entre este encontro de mundos, o mesmo fenômeno já não será tão profundo até, pelo menos, a efetiva urbanização dos territórios na segunda metade do século XX. E se os antigos caminhos indígenas, os chamados peabirus, são concreticidades analíticas para ratificar o cabedal analítico que a categoria superposição possui, o que dizer das principais metrópoles latino-americanas, assentadas sobre os territórios de antigas comunidades originárias, como os povos Tupis-Guaranis em São Paulo, ou Astecas na atual Cidade do México? A amplitude e riqueza do debate, vão desde os preceitos positivistas de ordem, progresso, disciplina e hierarquia das novas cidades, de suas leis, como da língua e da fala, como retratou Rama (2015). Entre tantos exemplos, apenas as duas maiores metrópoles latino-americanas, que juntas somam mais 50 milhões de habitantes, e que abrigaram Maniçoba entre outras aldeias nos campos de Pirapitingui, e as cidades de Tenochtitlan e Tlatelolco, mostram a pulsão contida na dimensão de rugosidade patrimonial para uma abordagem geográfica e a originalidade de desenvolvimento no âmago desta disciplina.
Uma certa relativização pode ser pensada para a categoria de superposição, ao menos quando compreendida em sua dimensão social e não restrita às ciências naturais, como acerca das camadas geológicas que compõe o relevo terrestre e de onde veio a inspiração para que Santos (2013a) adaptasse o termo e que se aplicasse analiticamente no campo do patrimônio cultural. Neste ponto, a capacidade de uma abordagem universal é latente, pois as rugosidades patrimoniais permeiam análises nomotéticas (utilizando conceitos como os circuitos espaciais de produção, os fixos, os fluxos, as redes técnicas, os eventos), e idiográficas (das particularidades, singularidades, unicidades), com abordagens gerais ou regionais, bem como estudos de casos e possíveis pesquisas de crivo teórico-metodológico. Tal capacidade qualifica ainda o extenso rol de olhares sobre as questões da natureza, as unidades de conservação, como os parques nacionais, monumentos naturais, estações ecológicas, reservas particulares do patrimônio natural, entre outras áreas protegidas, que podem ser pensadas sistematicamente pelas rugosidades patrimoniais e suas categorias estruturantes, destacadamente a superposição. Dadas, como no caso da Chapada dos Veadeiros, norte de Goiás, onde a criação do parque nacional inaugurou uma estratégica política de resistência aos garimpos e empreendimentos do agronegócio, com a reconversão do ambiente, em grande medida tomados pelo garimpo e a produção agropecuária, em reduto da biodiversidade do cerrado brasileiro. Fato que, paradoxalmente, não foi suficiente para impedir a corrida de um turismo questionável, dos impactos da urbanização acelerada, de uma efervescência econômica, além da reprodução das relações de poder na região (Costa et al., 2015).
No âmbito do Rio de Janeiro, exemplo ilustrativo reside no movimento de transformação da cidade em meados do século XX, onde a qualidade de resistência das rugosidades não foi suficiente para impedir a superposição dos novos empreendimentos habitacionais, obras de mobilidade e de saneamento básico, promovidos pelas reformas urbanas de Pereira Passos e Oswaldo Cruz, no governo de Rodrigues Alves. A expulsão dos moradores foi estratégica, forçando sua adequação aos dinâmicos fluxos operados pelas empresas imobiliárias. Casos como esses se multiplicam em todo planeta, considerando a velocidade com que as metrópoles se transformam diante da globalização, ora atuando mais intensamente a supressão, ou acumulação, em outros a superposição, sempre operadas conjuntamente, dialeticamente em menor ou maior grau. Assim, além de mero fixo, a noção de rugosidade expressa esses momentos distintos que agora se integram a uma narrativa e ações calcadas nas teorias patrimoniais que vão da preservação da natureza à valorização da cultura, mas principalmente no processo de patrimonialização que vincula os objetos ao Estado-nação, ao mercado e às múltiplas identidades coletivas que emergem neste espectro.
A rugosidade patrimonial, em seu arranjo espacial absoluto mais complexo (como conjuntos de construções, núcleos urbanos, metrópoles inteiras e grandes parques naturais), ou isoladamente (monumentos, obras de arte, construções diversas), ou nas suas relações intangíveis (as festas, ritos, costumes e o saber-fazer) é peça-chave para uma consciência crítica e relacional do presente em relação ao passado e futuro, ou como discorre Lowenthal (1998, p. 65), uma “consciência do passado como um âmbito que coexiste com o presente ao mesmo tempo que se distingue dele. [...] Mas união e separação estão em contínua tensão; o passado precisa ser sentido tanto como parte do presente quanto separado dele”. E, afinal, como sugere Santos (2012d), as rugosidades não se limitam tão somente aos recursos materiais, sendo substrato capaz de rebater e impelir o alargamento de contextos, já que “[...] as condições preexistentes em cada lugar, o seu estoque de recursos, materiais ou não, e de organização - essas rugosidades - constituem as coordenadas que orientam as novas ações.” (Santos, 2012d [1996], p. 203).
Essas ações podem se tornar mais evidentes com as diferenciações valorativas de territórios e objetos culturais por políticas e práticas patrimoniais, que devidamente esmiuçadas pela análise crítica trazem outros conteúdos além daqueles narrados oficialmente. As rugosidades, pela análise dos objetos e seus conjuntos técnicos, produtos do trabalho ou das significações dadas, permitem a apreensão dos diferentes sistemas técnicos e do trabalho social cristalizados espacialmente ao longo do tempo histórico. Nesse processo, o espaço geográfico é e sempre foi ativo e não simples receptáculo físico ou palco na constituição da cidade e do urbano. Esquivando-se de uma abordagem tautológica, esta centralidade do espaço, apesar do dinâmico movimento histórico, das transformações, permanece atual. Não se trata de mera casualidade os múltiplos exemplos citados, além de outras situações pouco exploradas atualmente, como o processo de gentrificação (Smith, 2006) do Brooklin, Nova Iorque. Neste caso, uma entrevista de Spike Lee (CNN, 2014) ganhou o mundo ao apontar os diversos conflitos existentes, em razão de hábitos e costumes conflitantes entre antigos moradores negros do bairro empobrecido com os novos jovens brancos de classe média alta que passaram a viver na região. Ou em Johanesburgo, África do Sul, onde Vivant (2007) analisa transformações na estrutura urbana a partir de um modelo de apartheid para outro de autossegregação, passagem que é possibilitada pela transformação de um contexto de segregação étnica, para o de segregação econômica e a permanência do racismo sistêmico e estrutural.
Ao tratar da “totalidade do diabo”, de como as formas geográficas difundem o capital, Milton Santos (1977) mostrou o quanto os objetos geográficos são instrumentais às transformações nas estruturas sociais. Apresentando nesta perspectiva o poder das modernizações nos países subdesenvolvidos, como tentáculos dos interesses internacionais, ora no meio rural pela revolução verde, ora no urbano – lembrando casos emblemáticos, como os de renovação do antigo centro de Maracaibo na Venezuela e do mercado de Kariakoo em Dar es Salaam, antiga capital da Tanzânia. As forças das formas espaciais, quando superadas dificuldades de compreensão pela empiria, para além dos sentidos humanos mais imediatos, e por uma leitura que considera as rugosidades patrimoniais, permitem mudanças materiais e ressignificação por novos usos. Portanto, possibilita novas relações e a redescoberta de antigos conteúdos associados à própria história da comunidade que a produziu. Afinal, como evidenciado por Gravari-Barbas (2014), destacando o papel das periferias urbanas, as possibilidades despertadas mais recentemente ampliaram os méritos do patrimônio, multiplicados e valorizando-os. “Este fenômeno exigiu uma mudança conceitual, conduzida não somente sobre a extensão espacial, mas também sobre a extensão temática do campo patrimonial.” (Gravari-Barbas, 2014, p. 30). Mais que isso, contradiz com um passado onde “houve uma época em que os monumentos eram, ao lado de escolas e museus, um cenário legitimador do culto tradicional. Seu tamanho gigantesco, ou sua localização destacada contribuíram para enaltece-los.” (Canclini, 2012, p. 291). A passos curtos, sem dúvida, a valorização de outras referências passa a estar presente não apenas na retórica patrimonial, revelando a nova condição prática, jurídica e institucional de construção, significação, apropriação e divulgação dos monumentos, dos bens materiais e a produção cultural intangível. Na perspectiva latino-americana, isto é ainda mais complexo, diante do longo tempo de colonização, dos regimes ditatoriais e repressivos, bem como das atuais dificuldades institucionais de realização democrática da cultura.
Na Geografia brasileira, no âmbito da agenda de pesquisas acerca do patrimônio, apesar da recente produção que tange a temática, deve-se destacar resultados importantes (Yazigi 1999; Paes-Luchiari, 2001; Nigro 2005; Scifoni, 2006; Ribeiro, 2007; Costa 2011; Castro 2012), orientando projetos e ativamente produzindo conteúdos estratégicos, dos quais incluem contribuições da Geografia política, a Geografia cultural e, sobretudo, a Geografia urbana. Tal aporte tende a ser ampliado, pois sob uma lógica dialética, e ainda considerando um dos argumentos de Santos (1977, p. 32) em que “[...] as coisas adquiriram um tipo de poder que nunca haviam possuído anteriormente”, estas rugosidades patrimoniais podem ser compreendidas, produzidas e divulgadas a partir de novas experiências, valorativamente em respeito aos distintos grupos e suas memórias coletivas, criando resistências às forças globalizantes e desestruturadoras dos projetos populares. Estas condições podem dificultar em demasia a dispersão do capital inerente ao processo, e mesmo que este se propague com eficiência, certas tradições, hábitos e memórias continuam a se perpetuar na reprodução prática da vida, convivendo resíduos de espaço e tempos heterogêneos e desiguais, dos quais as rugosidades patrimoniais permeiam seu lócus tangível e imaterial, particular e coletivo, sagrado e profano, moderno e retrógrado, erudito e popular, belo e feio, enfim, os múltiplos pares contraditórios que permeiam a realidade e a existência. São, portanto, bens culturais, relevantes mesmo quando a estrutura é totalmente outra, ou quando simplesmente há necessidade de novas escolhas de futuro para além das verticalidades impostas pelos setorialismos do modo de produção. Trata-se assim de um processo conflituoso e permeado pelas tensões inerentes às classes sociais. Esse último caráter é o que alimenta algumas possibilidades da consagração das formas na construção de outras cidades e, portanto, de novos conteúdos associados à realização do conjunto da sociedade e não apenas de poucos privilegiados. Eis aí duas faces da mesma moeda. E considerando a velocidade e intencionalidade das transformações empreendidas na atualidade, esta coloca em risco as formas do passado, o que leva a dimensão de tempo transparecer cada vez mais fluído e aparentemente desintegrado com o tempo da vida, marcado pela geração (Harvey, 2013). Mesmo que as paisagens, com suas formas e concretudes, sejam normativamente protegidas pelo Estado, tal condição em si muda o conteúdo de cotidianidade da mesma em relação à população local. A paisagem passa a ser promovida como patrimônio cultural, dando-lhe imediatamente um status capaz de exploração, de desenvolvimento produtivo e de amplo interesse aos bens locais, antes limitados a uma região e seus munícipes, que passam a estranhar seus espaços significativos de memória, conflitando as narrativas oficiais em relação àquelas que realmente vivenciaram.
Utilizando-se da rugosidade, patrimonializada pelo Estado e manejada pelas forças hegemônicas, o modo de produção potencializaria a sua reprodução, destacando retóricas desta multiplicidade cultural. Isto mesmo sem necessariamente suprimir as formas espaciais, mas conservando e valorizando-as, tanto nos processos de acumulação, quanto de superposição. A materialização do capital nestes lugares é variável e relativa aos interesses dos grupos e a capacidade de resistência dos sujeitos, englobando, portanto, a cultura local como um todo. Tornou-se, em prática, base das estratégias horizontais de planejamento e gestão dos territórios nacionais, cujo patrimônio cultural padece ora numa condição provisória de desvalorização e esquecimento, ora sob a égide dos interesses verticais da acumulação e do lucro capitalistas. Nesse sentido importa destacar o papel do conceito de rugosidade patrimonial, tanto para expor e desmascarar estas contradições (esquecimento e valorização, espetacularização e abandono, mercantilização e precarização), quanto de pensar uma perspectiva de esperança a partir dos utopismos patrimoniais (Costa, 2016) para, respectivamente, vislumbrar novos caminhos para a história e a geografia dos lugares, num devir mediado pelo reconhecimento e valorização da cultura em sua diversidade. Afinal, como destaca Santos (2012d [1996], p. 140) “as divisões anteriores do trabalho permitem rever as formas herdadas segundo uma lógica que as restabelece no momento mesmo de sua produção”. Por conseguinte, reestabelecem os sentidos da experiência vivida, ou das representações estabelecidas pela transmissão oral e intertextual. Neste sentido, “as rugosidades, vistas individualmente ou nos seus padrões, revelam combinações que eram as únicas possíveis em um tempo e lugar dados.” (Santos, 2012d [1996], p. 140) – mas também, no entender revigorado das rugosidades patrimoniais, em novas possibilidades utópicas político-culturais alavancadas por seus conteúdos.
Na Geografia, a noção de rugosidade é estratégica na compreensão dos usos do território normado por meio da patrimonialização. A rugosidade patrimonial, derivativa dessa seara teórico-metodológica, emerge como cabedal para qualificar uma leitura a partir das disputas entre hegemonias e movimentos populares em torno dos bens culturais, incluindo populações originárias e tradicionais. Reconhecidamente friccionada mais às formas que aos conteúdos geográficos, no limite de abordagens histórico-estruturais ou de uma possível tendência neokantiana, a acepção de rugosidade não está limitada apenas aos objetos, ao empírico imediato, ou a uma racionalidade fragmentária do todo. Ao contrário, sua preocupação é pautada em preencher uma lacuna analítica dos processos que dão conteúdo às formas geográficas, recorrendo às periodizações e estabelecendo relações articuladas e explicativas do atual desenvolvimento histórico. Tal confusão advém da necessidade metodológica requerida pela dialética na cisão do fenômeno total, porém de maneira provisória e retomando gradativamente o dinamismo do real pela práxis (Kosik, 1976 [1963]). Utilizando-se da “negação dialética” (Lefèbvre, 1976), que permite captar as qualidades do fenômeno em sua forma e conteúdo resultante de uma síntese que é, sempre, provisória. No limite, como também aponta Lefebvre (1975 [1969]), trata-se de uma ação sistemática que se apropria da lógica formal como base para a passagem ao pensamento complexo, ou seja, a lógica dialética. Esforço que Milton Santos realizou e a partir do qual possibilitou avanços teórico-metodológicos, incluindo abordagens complexas e atuais, como as que buscamos principiar nas laudas anteriores.
De tal maneira, o conceito de rugosidade patrimonial, além do balizamento categorial das supressões, acumulações e superposições (que podem sintetizar o quadro dinâmico de resistências e transformações sociais), insere-se em um método histórico-dialético, estruturado a partir de teorias e metodologias científicas, sobressaindo a criticidade e centralidade da ampla produção disciplinar em diálogo com outras campos do saber, profissionais e, fundamentalmente, o conhecimento popular, por meio de projetos comuns, compreendendo em profundidade as experiências, olhares, significações, imaginários, existências e representações sociais dos sujeitos.
Por fim, entende-se que o esforço aqui empreendido, de conceituar e aprofundar a noção de rugosidade em diálogo com Milton Santos, é uma singela amostra do potencial que a Geografia oferece para os estudos do patrimônio cultural. Assumindo esta postura, cabe retomar o conceito com maior profundidade da relação passado-presente-futuro e de estudos que contemplem lugares e experiências, subsidiando, portanto, novas teorias e práticas na construção e apoio de outras realidades possíveis.