Resumen: La contribución de este trabajo es concebir los círculos de samba del Distrito Federal de Brasil como un patrimonio-territorial, como un hecho transformador del territorio y que contribuye a una interpretación de la formación socioespacial brasileña. Ambos conceptos, patrimonio-territorial y formación socioespacial, no son estáticos. Representan el espacio en movimiento, de una manera que contribuye a una interpretación objetiva y concreta de la realidad. Por lo tanto, para llevar a cabo dicha construcción, buscamos tratar, teórica y empíricamente, la formación socioespacial brasileña como un concepto interpretativo de las transformaciones en el territorio y el patrimonio-territorial como una nueva significación de la cultura popular y símbolo de resistencia, basado en los bailarines de samba. Tal posicionamiento metodológico-geográfico contribuye al reconocimiento de algunos círculos de samba en el Distrito Federal de Brasil como resistencia espacial negra y, en consecuencia, como patrimonio-territorial latinoamericano.
Palabras clave:formación socioespacialformación socioespacial,patrimonio-territorialpatrimonio-territorial,ruedas de sambaruedas de samba,Distrito Federal de BrasilDistrito Federal de Brasil.
Resumo: A contribuição deste trabalho é conceber as rodas de samba do Distrito Federal brasileiro como patrimônio-territorial, enquanto fato transformador do território e que contribui para uma interpretação da formação socioespacial brasileira. Ambos os conceitos, patrimônio-territorial e formação socioespacial, não são estáticos. Eles representam o espaço em movimento, de forma que contribuem para uma interpretação objetiva e concreta da realidade. Portanto, para efetivar tal construção, busca-se tratar, teórica e empiricamente, a formação socioespacial brasileira como conceito interpretativo das transformações no território e o patrimônio-territorial como ressignificação da cultura popular e símbolo de resistência, a partir dos sujeitos sambistas. Tal posicionamento metodológico-geográfico contribui para um reconhecimento de algumas rodas de samba do Distrito Federal brasileiro como resistência espacial negra e, consequentemente, como patrimônio-territorial latinoamericano.
Palavras-chave: formação socioespacial, patrimônio-territorial, rodas de samba, Distrito Federal do Brasil.
Abstract: The contribution of this work is to conceive the samba circles of the Brazilian Federal District as a territorial-heritage, as a transforming fact of the territory and that contributes to an interpretation of the Brazilian socio-spatial formation. Both concepts, territorial-heritage and socio-spatial formation, are not static. They represent space in movement, in a way that contribute to an objective and concrete interpretation of reality. Therefore, in order to effect such construction, we seek to treat, theoretically and empirically, the Brazilian socio-spatial formation as an interpretive concept of transformations in the territory and the territorial-heritage as a resignification of popular culture and symbol of resistance, based on the samba dancers. This methodological-geographic positioning contributes to the recognition of some samba circles in the Brazilian Federal District as black spatial resistance and, consequently, as Latin American territorial-heritage.
Keywords: socio-spatial formation, territorial-heritage, samba circles, Federal District of Brazil.
Dossiê Patryter
Formação socioespacial e patrimônio-territorial latinoamericano, resistência negra pelas rodas de samba do Distrito Federal, Brasil
Formación socioespacial y patrimonio-territorial latinoamericano, resistencia negra por las ruedas de samba del Distrito Federal, Brasil
Socio-spatial formation and Latin American territorial-heritage, black resistance by the samba circles of the Federal District, Brazil

Recepción: 25 Mayo 2020
Aprobación: 01 Julio 2020
Publicación: 01 Septiembre 2020
Se as formações sociais da periferia não estivessem constrangidas pelo poder do sistema internacional, o social poderia estar em primeiro plano em relação ao econômico (Santos, 2012a, p. 66).
O samba se territorializa no Brasil de forma bastante plural. Perpetrado, em sua maior parte, no cotidiano da população periferizada brasileira, tem uma significativa representação popular. De origem cultural africana e resultante de violentas ondas migratórias que constituíram as principais regiões metropolitanas da América Latina e Caribe, o samba é conhecido no Brasil como um saber cultural de alto valor, que resiste historicamente contra a violenta colonialidade do poder, do saber e do ser (Quijano, 2007; Mignolo, 2007; Maldonado-Torres, 2007), que imperam no sistema mundo.
No Distrito Federal brasileiro, em particular, sofre transformações acompanhando as próprias do território, em seu processo de formação. Presente em associações ou grêmios recreativos de escolas de samba, em instituições educacionais relacionadas à música popular, em bares, restaurantes e em coletivos de rodas de samba democráticas criados por sambistas das Regiões Administrativas, o samba se faz como uma cultura viva e em hibridização.
Logo, toma-se como proposta para a efetivação desse trabalho: conceber as rodas de samba do Distrito Federal como patrimônio-territorial, a partir da interpretação da formação socioespacial brasileira, entendida como conceito interpretativo das transformações no território. Para tal, toma-se como base teórica a construção investigativa de doutorado do autor (Alves, 2019a), que se faz a partir de uma recuperação histórico-geográfica da formação do território latinoamericano; dos principais eventos que totalizam a formação socioespacial brasileira, com base na teorização de Santos (2014a, 2014c, 2012b); da constituição da Nova Capital Federal do Brasil (Brasília); e, por fim, de como se efetivou o movimento e as territorialidades do samba no território pesquisado (Alves, 2019a, 2019b).
O conceito “formação socioespacial brasileira” é tomado como estruturante na tese (Alves, 2019a, 2019b) e neste artigo. Formulado na década de 1970 por Santos (2014a, 2014c, 2012b), durante a renovação crítica da Geografia brasileira, é considerado como uma “teoria das mediações”, pela abordagem social do espaço e o estudo teórico-empírico do país. Da mesma forma, contribui para a interpretação “da unidade e da totalidade das diversas esferas – econômica, social, política, cultural – da vida de uma sociedade” (Santos, 2014a, p. 24).
Já o conceito “patrimônio-territorial”, apresentado por Costa (2016, 2017, 2018, no prelo) e definido com base no diálogo entre os métodos dialético e existencialista, na dimensão da Geografia Humanista, é tratado pelo autor como representativo de resistências populares no contexto da história do território na América Latina e Caribe; enaltece os elementos de valor simbólico derivado da memória de sujeitos em situação espacial duradoura ou de habitantes urbano-rurais em sua vida cotidiana periferizada.
A escolha de se trabalhar o patrimônio-territorial, relacionando-o às rodas de samba do Distrito Federal brasileiro, se deu por tratar de um conceito proposto e revisado no âmbito do Grupo de Pesquisa CNPq Cidades e Patrimonialização na América Latina e Caribe (Gecipa), além de representar uma alternativa de empoderamento e valoração dos grupos sociais subalternizados, enaltecendo o que resiste na história do continente, do ponto de vista cultural e de poderes, carregando a utopia de beneficiar, em termos simbólicos, afetivos e materiais, a população detentora desses poderes – que em sua maioria é composta por negros, indígenas e mestiços.
Assim, o conceito “patrimônio-territorial” é revisto no trabalho pela ótica da “formação socioespacial brasileira”, no contexto do movimento histórico pela dominação ibérica da América Latina, pela formação territorial do Brasil e pela territorialização do samba no Distrito Federal. Este é o diferencial desta pesquisa em relação ao conceito, discuti-lo na dimensão da “formação socioespacial brasileira”, proposta por Santos (2014a, 2014c, 2012b).
Portanto, a proposta do trabalho parte de uma interpretação da formação socioespacial brasileira, que se totaliza com a constituição do Distrito Federal brasileiro, a fim de reconhecer as rodas de samba, que se materializam neste território, como patrimônio-territorial, por representarem expressões de uma resistência espacial negra.
A escolha de se trabalhar com o conceito “formação socioespacial brasileira”, justifica-se por seu caráter geográfico e pela necessidade de uma análise totalizante sobre o território e suas mutilações. Em nome da “ordem” e do “progresso”, o uso do território vem se tornando mais seletivo aos interesses dos capitalistas e reduzindo os direitos e benefícios das populações mais pobres. O desmonte que vem ocorrendo no país, surge como estratégia para entregá-lo a grupos internacionais, que avançam sobre todos os setores vitais da economia, principalmente na saúde, educação, comércio e indústria.
O conceito, assim, pressupõe uma interpretação dialética (material e histórica) da realidade concreta da nação e do lugar, na busca de alcançar uma totalidade sobre os fatos geográficos ocorridos no Brasil. Ele foi pensado inicialmente como Formação Econômica e Social (FES), por Karl Marx (1818-1883) e Friedrich Engels (1820-1895), e teve sua importância para os estudos da sociedade, em sua totalidade e suas frações, por meio do método marxista. A partir de Santos (2014a, p. 22), ele é retratado como “o mais adequado para auxiliar na formação de uma teoria válida do espaço”. Tendo como unidade geográfica o Estado-Nação, o conceito toma como proposta metodológica a associação entre o “modo de produção”, a “formação social” e o “espaço”, conceitos interdependentes.
Entende-se aqui o “modo de produção” como uma forma particular de organização do processo de produção, destinada a agir sobre a natureza e obter os elementos necessários à satisfação das necessidades da sociedade (Santos, 2014a, p. 29). Tem por base o conceito marxista de “formação social”, ou formação econômica e social, e integra a dimensão “espacial” ao discurso da “formação”. Conforme Santos (2014c, p. 24), o interesse existente sobre o conceito está em “permitir o conhecimento de uma sociedade na sua totalidade e nas suas frações, mas sempre como um conhecimento específico, percebido num dado momento de sua evolução”.
Vale destacar que: a formação social é compreendida por Santos (2014a) como uma estrutura organizacional e técnica, contendo em si as complexidades das diferentes formas do processo produtivo, que, ao mesmo tempo, correspondem às diversas relações de produção existentes, não podendo, assim, ser concebidas sem referência à noção de espaço. Dessa forma, tal perspectiva propicia uma interpretação totalizadora, sob a ótica da dialética marxista e do materialismo histórico, e promove uma aproximação da história e a geografia. Ao mesmo tempo que favorece para uma dimensão histórica na geografia, possibilita uma dimensão geográfica ao longo da história, numa complementaridade; além de ultrapassar a simples aparência fragmentária do espaço (Santos, 2014a).
Silveira (2011), em diálogo com Santos (2014a), apresenta que qualquer estudo fundamentado no conceito de formação socioespacial deve iniciar-se tratando de sua gênese e definindo o processo histórico responsável por sua forma atual. A partir da forma como o território brasileiro é produzido e organizado, as relações sociais construídas, as memórias preservadas, as resistências impressas pela ação humana, ou seja, pelo cruzamento de condicionantes geográficos, gerais e específicos, torna-se possível interpretar a formação socioespacial brasileira.
A formação socioespacial é a totalidade que explica os processos, daí que a escala que ela representa mais do que uma delimitação é um imprescindível partido de método. Como é uma mediação entre as possibilidades do período histórico e as existências nos lugares, permitir-nos-ia transformar um discurso geral sobre o presente numa análise concreta de um país e suas regiões sem, por isso, cair numa mera descrição dos lugares a modo de inventário (Silveira, 2011, p. 157).
Se a Geografia deseja interpretar o espaço humano como o fato histórico que ele é, somente a história da sociedade mundial, aliada à da sociedade local, pode servir como fundamento à compreensão da realidade espacial e permitir a sua transformação a serviço do homem (Santos, 2014a, p. 22).
Apreender a constituição do território brasileiro, portanto, considerando seus usos, movimentos conjuntos e suas partes, desde o período colonial até os dias de hoje, se faz emergencial. Contribui para o movimento de resistência contra o que está sendo imposto pela atual máquina do Estado e propõe reflexões de alternativas de mudanças. Assim, adotou-se o conceito aqui tratado por entender que as dinâmicas de produção do espaço brasileiro precisam ser abrangidas à luz dos processos sociais que o engendram, sem, contudo, esquecer das transformações provocadas pelo uso do território. Enfatiza-se essa escolha, por meio do posicionamento de Silveira (2011), o qual revela que é pela formação socioespacial que se formulam os critérios das seleções de fatos e teorias, ainda que as evidências desse uso não saltem facilmente aos olhos.
Ao propor um esforço de análise interpretativa da formação socioespacial brasileira, exige-se do pesquisador um posicionamento teórico e histórico criterioso, que permita a construção de uma periodização, conforme apresentam Santos e Silveira (2008, p. 23). Para os autores, a história do território brasileiro é una e diversa, pois representa a soma e a síntese das histórias de suas regiões. Para entendê-la, no seu processo e na sua realidade atual, “uma periodização é necessária, pois os usos (do território) são diferentes nos diversos momentos históricos” (Santos & Silveira, 2008, p. 23).
Foi proposta em Alves (2019a, 2019b) uma periodização, com base nas abordagens promovidas por Moraes (2001, 2005) sobre a formação territorial do Brasil, que o autor a caracteriza como sendo de três específicas dimensões. A primeira, ao considerar o território como uma “construção bélica/militar”, por meio da conquista e da ocupação espacial pela colonização portuguesa. A segunda, tendo-o como uma “construção jurídica”, por meio da estruturação do país enquanto Estado-Nação. A terceira aparece como uma “construção ideológica”, pela reestruturação identitária durante o seu processo constitutivo.
Antecipadamente, cabe dizer que os eventos que fomentaram o processo histórico da formação territorial na América Latina e Caribe, impactaram diretamente na formação do território brasileiro, em especial o modo de produção vigente, sua formação social e, consequentemente, o espaço em si – como instância fundamental da realidade (Santos, 2014a) – imprimindo-lhe elementos característicos que facilitam tal interpretação. O processo de conquista dos territórios “descobertos” na América Latina, o “Novo Mundo”, teve seu avanço impulsionado pelas revoluções tecnológicas procedentes do período Renascentista. Com a descoberta das técnicas pertinentes ao poder bélico originários do Oriente (a pólvora, a bússola, o papel e a imprensa), ponto de partida da revolução mercantil e industrial na Idade Moderna, a Europa expandiu seus domínios, ocupando territórios antes desconhecidos pelo Ocidente (Galeano, 1996).
Os pilares estruturantes desse processo de expansão, então, tinham como premissa: o devastador mecanismo de dominação/comercialização colonizador, que incluía em sua base o tráfico de importação transatlântica, os mercados públicos e as vendas privadas de homens, mulheres e crianças originários do continente africano, especificamente da África Ocidental.
Ao buscar entender a formação desse sistema colonizador, pode-se encontrar nas abordagens de Moraes (1994) que esse sistema se expressava, já em sua gênese, por uma qualidade de dominação e subordinação presentes nas relações econômicas, culturais e de poder. Para o autor, colonização “é a capacidade plástica de se apropriar de lugares, os mais diversos, e moldá-los segundo seus interesses”. Esses lugares, passam a se chamar colônias, “resultado de uma conquista territorial”. Essas, só são assim designadas por aqueles que chegam (os colonizadores), não sendo reconhecidas pelas populações autóctones (os colonizados), que aparecem aos olhos do colonizador como “verdadeiros atributos do lugar, que devem ser submetidos como parte da natureza a ser ganha” (Moraes, 1994, pp. 81-82).
Assim, por meio de eventos iniciais (chegada das tropas portuguesas na costa atlântica e controle da área identificada como o estado da Bahia, explorando o litoral e promovendo incursões de reconhecimento pelo interior), foi efetivada a primeira ação da formação socioespacial brasileira. Dimensão essa caracterizada pela mecanização seletiva das bases militares portuguesas no território, dando origem ao “período técnico” ou período dos “tempos lentos da natureza comandando as ações humanas” (Santos & Silveira, 2008, p. 27). A unidade era dada pela natureza, e a presença humana (indígenas e europeus) buscava adaptar-se aos sistemas naturais.
O segundo período histórico) é identificado por Moraes (2001, 2005) como o da instalação de distintos sistemas de organização político-administrativa do território, tais como: (i) o de Capitanias Hereditárias, que transformavam as terras em sesmarias[ii], controladas pela “Casa da Torre” e “Casa da Ponte”, e que lideravam o movimento expansionista no território; (ii) o de Governo-geral, que vigorou de 1548 até a chegada da família real portuguesa (1808), também pontuado pela intensificação da vinda de jesuítas, franciscanos e carmelitas à Colônia; (iii) o Governo Norte e Governo Sul, que almejava uma maior eficiência administrativa e econômica com essa divisão; (iv) a divisão do território em Estado do Maranhão e Estado do Brasil, quando ocorreu a intensificação dos movimentos de expedição dos bandeirantes, por meio da expansão mineradora e pelas transformações na forma e distribuição do trabalho; (v) a Independência do território e a instauração do sistema Monárquico, que contribuiu para a abertura de uma fase de impulso ao desenvolvimento do Brasil, afetando diretamente na sua formação territorial; e, por fim, (vi) o surgimento da República Federativa Presidencialista, que surge como forma de organização político-administrativa do Brasil, proclamada em 1889 e que teve como base legal a Constituição de 1891.
Todo esse movimento molda a formação socioespacial brasileira, a partir de uma construção “jurídica” do território, que afeta a formação social, a economia e o próprio território do Brasil em si. A efetivação do Regime Republicano se tornou, assim, resultado da eclosão dos múltiplos efeitos produzidos historicamente por essa dimensão jurídica. Esses sistemas constituiu o processo de formação do Estado-Nação brasileiro, além de contribuir para a manutenção de uma estrutura econômica, social, cultural e espacial ainda profundamente violenta pela colonialidade do poder, vigente até os dias de hoje. Ou seja, uma estrutura que promoveu (e ainda promove) o Brasil como um dos principais supridores de matéria-prima para o mercado internacional, por meio da produção: desde produtos do agronegócio até a mineração ainda operante.
O terceiro período que contribui para uma interpretação da formação socioespacial do Brasil, então, se constitui, a partir de uma análise ideológica dos fatos, identificada pelo autor como “ideologias geográficas” (Moraes, 2005). Essas ideologias, presentes em alguns governos republicanos são intensificadas, em particular, nos governos do Presidente Getúlio Vargas (1882-1954) e do Presidente Juscelino Kubitschek (1902-1976) que, segundo o autor, apresentam elementos territoriais característicos e que contribuem para uma totalidade da formação socioespacial do país.
As abordagens teóricas de Moraes (2001, 2005), Sodré (1979) e Fonseca (2001) inferem que Getúlio Vargas ascendeu ao governo em fins de 1930, com a vitória da revolução que pôs fim à chamada República Velha[iii] (1988-1930), ou seja, desfez as articulações políticas das oligarquias regionais do Brasil. Entre 1930 e 1937 se instaurou no país um governo que promovia o envolvimento direto da cúpula do Exército brasileiro, tendo como discurso ideológico o “desenvolvimento econômico nacional” (Sodré, 1979; Fonseca, 2001). Após o estabelecimento da ditadura é que a época de Vargas se apresenta, devidamente caracterizada pela crença do liberalismo[iv].
Assim, a Era Vargas se caracteriza a partir de um desenvolvimento industrial focado no poder público, economicamente centralizado e omisso. Nessa época, o trabalho era escasso no país e a maioria dos trabalhadores se encontravam em situações desumanas. Para impedir que a população se rebelasse, o governo promoveu uma reforma na rede urbana, controlando ainda mais o território, e um desenvolvimento investido, unicamente, pelo capital nacional. Mudanças também ocorreram no Congresso e suas casas legislativas (Fonseca, 2001). A partir de Moraes (2005), também se entende, como fato importante na interpretação da formação socioespacial do Brasil, que a criação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) cumpriu papel decisivo de informação e domínio espacial, com bases nacionais. A denominada “Era Vargas”, portanto, caracterizou-se como um conjunto de políticas públicas associadas à ambiciosos objetivos centralizadores de controle e articulação territorial.
Já no governo de Juscelino Kubitschek (1956 e 1961), conhecido popularmente como o da “estabilidade econômica e do desenvolvimento industrial” (Moraes, 2005; Vesentini, 1986; Costa & Steinke, 2014), as ideologias geográficas sempre estiveram presentes em seus discursos, planos e metas governamentais. Para operacionalizar e legitimar seu governo, num contexto de instabilidade política, Kubitschek utilizava a “modernização” (continuação da Era Vargas), o “progresso” e o próprio “desenvolvimento industrial”[v] como elementos discursivos.
Ao se pensar o contexto da América Latina, conforme apresenta Martín-Barbero (2006), essas ideologias se fizeram muito associadas à “modernização”, de início nos anos 1920-50, e ao “desenvolvimento”, durante os anos 1960-70. O autor ainda reforça que as fortes transformações do período ocorreram a partir dos anos 1950 e 60, vinculadas ao desenvolvimento das indústrias culturais, o que influenciou diretamente o movimento do samba no território brasileiro.
A própria construção da Capital Federal, Brasília, considerada meta-síntese do Plano de Governo de Kubitschek, por exemplo, se revelou como um “produto conjuntural ideológico de desenvolvimento da nação e de internacionalização da economia brasileira”, identificada por uma exclusão social crescente e um enriquecimento de poucos, juntamente com a formação de um “Estado demiurgo” (Costa & Steinke, 2014), capaz de gerir entes e mecanismos imperativos para a perpetuação de suas condições de domínio e controle do território nacional.
A meta de construção da Nova Capital, portanto, carregava uma dimensão simbólica e outra ideológica, de síntese, como apresentam Costa e Steinke (2014, p. 12): “Símbolo, ela permite mobilizar os brasileiros de todas as classes sociais para um projeto de futuro e desviá-los dos problemas econômicos e sociais cotidianos. Síntese, permite reunir as elites do país e ultrapassar suas clivagens ideológicas”. Assim, a Capital Federal se fez, conforme Vesentini (1986), das imbricações entre o Estado, o capital corporativo e a sociedade. Sua localização, traçado urbanístico, linhas arquitetônicas e fluxos com as diversas unidades do território foram resultantes das condições econômicas, sociais e políticas da época.
Nesse contexto, surgem as Regiões Administrativas como proposta de assentamento da população de baixa renda, então periferizada, a fim de mantê-la à distância do núcleo do poder político hegemônico local e nacional: a RA I: Brasília/Plano Piloto. Até hoje, essas Regiões Administrativas ainda permanecem em constante situação vulnerável (por carência de infraestrutura e de equipamentos públicos), devido a violenta segregação social promovida pelo próprio Estado.
Importante destacar que inúmeras populações foram transferidas em massa para essas áreas. Um pouco mais da metade dessa população, conforme Censo Demográfico do IBGE de 2010, é de população negra. Dados da Companhia de Planejamento do Distrito Federal (Codeplan), no ano de 2010, apontam que o Distrito Federal brasileiro contava com mais de 2,5 milhões de habitantes, dos quais 56,2% eram negros, ou seja, aqueles que se declaravam pretos, pardos ou mestiços (Codeplan, 2014, p. 8).

Importante destacar que inúmeras populações foram transferidas em massa para essas áreas. Um pouco mais da metade dessa população, conforme Censo Demográfico do IBGE de 2010, é de população negra. Dados da Companhia de Planejamento do Distrito Federal (Codeplan), no ano de 2010, apontam que o Distrito Federal brasileiro contava com mais de 2,5 milhões de habitantes, dos quais 56,2% eram negros, ou seja, aqueles que se declaravam pretos, pardos ou mestiços (Codeplan, 2014, p. 8).
Desse total de 56,2% identificado, verifica-se que 57,4% eram do sexo masculino e 55,1% do sexo feminino; 27,9% na faixa etária entre 25 a 59 anos e 45,6% com 60 anos e mais (Codeplan, 2014, p. 13). Expulsas da área de alta renda (o Plano Piloto), privadas do consumo e obrigadas a integrar ao mercado de trabalho distante de suas residências, esses sujeitos são impelidos a viver em situações extremas. Sobreviventes da precariedade urbana, é a população que mais sofre inúmeras formas de violência, impostas, hegemonicamente, frente ao ideal de “progresso” e “modernização”.
Entretanto, é exatamente nesses lugares que se torna possível uma efetivação das mudanças; uma “revanche dos de baixo”, diz Milton Santos (2004, p. 144). Lugar onde os movimentos sociais se fazem presentes e atuantes; onde a dança e a música popular se transformam em discursos e protestos; pondo em relevo o cotidiano dos vulneráveis, das “minorias”, dos excluídos, por meio da exaltação da vida. Movimentos como o “hip hop”, o “funk” e o próprio “samba” se conectam com as questões sociais dos sujeitos. É nesse contexto de segregação, desigualdades e violências sociais e econômicas, produzidos pelo Estado associado a agentes hegemônicos, que o movimento do samba do Distrito Federal brasileiro se constitui e se perpetua, como um movimento próprio e particular (de rodas de samba democráticas) integrante de sua formação social.
Tal como um patrimônio-territorial, as rodas de samba de Brasília se revelam com os anseios e desejos de uma população em constante pretensão de melhorias e possibilidades futuras, mesmo que o presente se exponha em forma de carências de muitas delas. Desse modo, a interpretação da formação socioespacial brasileira nos revela, em sua totalidade, um violento movimento de tomada e uso do território, mas que se contrapõe, concomitantemente, com outros vários movimentos de resistência e luta, realizados por populações que buscam (re)existir, nesse cenário dialético de tristezas e alegrias, sombra e luz. Esse entendimento contribui, então, para um possível reconhecimento das rodas de samba do Distrito Federal brasileiro como patrimônio-territorial.
As questões apresentadas até aqui assinalam, a partir da compreensão da formação socioespacial brasileira, que a violência se fez e se faz como ferramenta das colonialidades, impondo a conquista, a escravidão, a industrialização, a modernização e o desenvolvimento (como processos espaciais) para um controle do território e domínio dos sujeitos, em tentativa de silenciá-los ao longo da história. Ao relacionar esse diálogo com o patrimônio-territorial, entende-se que é a partir dele, de sua singularidade, que se totaliza como síntese a formação socioespacial brasileira.
As intencionalidades de toda essa estrutura manipuladora da sociedade sempre estiveram favoráveis aos avanços da ideologia capitalista e sua materialização/perpetuação no território. Materializava-se por meio de competições entre firmas para a vitória de algumas; orientava-se o consumo para a obtenção de mais lucros; justificava-se o comportamento indutor seletivo do Estado e das organizações internacionais; contribuía-se para uma perpetuação do modelo de trabalho escravo; concebia-se a burocracia como instrumento e fonte de alienação, além de incentivar a produção de uma cultura de massa[vi], resultante da indústria cultural, para competir com a cultura popular[vii] existente e substituí-la na lógica do consumo alienado (Santos, 2014b).
Entre todas essas transformações produzidas no território, se faz a “resistência”[viii]. Revoluções, greves operárias, manifestações populares, levantes e movimentos sociais em defesa de negros, indígenas, mulheres, LGBTQIA+ e populações em situação de rua, sempre estiveram no plano do acontecer humano. Essa presença se justifica, conforme Santos (2014b, pp. 70-72), porque nenhum ser humano se contenta com a simples aparência produzida pelo mercado capitalista. “A busca pela essência é a sua contradição fundamental, um movimento sem fim que inclui o sujeito em um processo dialético e o restitui a si mesmo”. A alienação[ix] (natureza inferior que mutila a consciência do homem e cria a submissão aos mecanismos de manipulação impostos pela sociedade de massa) não é eterna, a não ser que “os homens, todos, se houvessem petrificado, transformados inapelavelmente em coisas” (Santos, 2014b, p. 72).
Zibechi (2015) cita alguns dos importantes territórios de resistência instituídos na América Latina durante todo seu processo de formação territorial, tais como os “piqueteiros” e as “fábricas recuperadas”, na Argentina; a longa resistência “Mapuche”, no Chile; os “zapatistas” no México e os “sem-terra” no Brasil; além das “periferias urbanas” da Colômbia e do Peru.
No Brasil, em particular, o autor cita as “Mães de Maio” também presente na cidade de São Paulo; os “quilombos urbanos dos sem-teto”, em Salvador; e as “mulheres da Vila Autódromo e do Morro da Previdência”, no Rio de Janeiro. Entretanto, o autor pontua que cada povo distinto, cada setor social, atravessou (e atravessa) por opressões inúmeras, mas suas lutas, por emancipação, se entrelaçam também de formas distintas.
Na América Latina existem formas de vida heterogêneas, não assimiláveis pelas hegemônicas, porque os povos do nosso continente resistiram à dominação, potencializando suas diferentes formas de viver e, portanto, de ser. Reciprocamente, a diferença social e cultural tem permitido aos setores populares e indígenas resistir por cinco séculos de dominação. Para tornar viável a resistência, tiveram que fortalecer e aprofundar suas diferenças para com a cultura e a sociedade hegemônicas (Zibechi, 2015, p. 99).
Nessas formas heterogênicas de resistência no território, portanto, surge a ressignificação da cultura popular, capaz de rivalizar com a cultura de massa, implantada pelo mercado para fomentar a homogeneização do consumo. Essa capacidade de rivalizar é denominada por Santos (2004, pp. 143-144) como a “revanche da cultura popular sobre a cultura de massa”, que se faz quando a própria cultura popular se difunde e se perpetua mediante o uso de instrumentos que, na origem, são próprios da cultura de massa, exaltando o discurso e o cotidiano dos pobres, das “minorias”, dos segregados e dos excluídos. A cultura popular, assim, por se basear no território, no trabalho e no cotidiano dos sujeitos, ganha a força necessária para deformar o impacto da cultura de massa, imposta pela indústria cultural.
É nesse movimento de revanche, que Costa (2016, 2017, 2018) propõe o patrimônio-territorial, enquanto fato e conceito de “resistência popular” ou signo de resistência social no contexto da formação multiescalar de territórios na América Latina. Definido na dimensão da Geografia Humanista, com base no diálogo entre os métodos dialéticos e existencialista, o patrimônio-territorial seria, para o autor, “representativo dos elementos singulares da história registrada em símbolos territoriais resistentes à colonialidade do poder: arte, religião, saberes, fazeres, modos de vida, assentamentos de grupos subalternos urbanos e rurais” (Costa, 2016, p. 2). Esse, dialoga com outro conceito do autor, pois fazem-se interdependentes, que é o território de exceção. Conforme Costa (no prelo), “es la objetivación de la genialidad del pueblo”, ou seja, é o território locus da “ambivalente exceção”, que representa a força-resistência dos sujeitos e sua cultura (ativada ou a ser ativada por meio do território) e a segregação vulnerável (imposta ao sujeito pela colonialidade). O território de exceção[x], portanto, é “estímulo de incursão simbólica, epistêmica e material para recuperar a solidariedade” nas interações sociais com o lugar (Costa, no prelo).
O patrimônio-territorial, assim, é apresentado como um “utopismo”, ou seja, faz-se de um exercício intelectual ou fundamento para transformar as situações espaciais presentes, lançando-se ao futuro. Conforme o autor, “as utopias são ambíguas”, partem de um “diagnóstico da realidade” dos fatos, a fim de lançarem-se à “ação” (Costa, 2016, p. 2). Propõe um pensar de propostas e projetos para o futuro, que objetivem o minimizar dos danos (ambientais, econômicos e políticos) produzidos à humanidade.
A partir da definição de utopia (em diálogo com vários autores), Costa (2016, p. 2) categoriza três utopismos patrimoniais conexos, que favorecem novas proposições preservacionistas em face de particularidades da urbanização e da construção político-social de riscos na América Latina. São eles: o (i) utopismo patrimônio-territorial, constituído na formação histórico-social latinoamericana; o (ii) utopismo patrimonial singularista, ante a urbanização na América Latina; e o (iii) utopismo patrimonial existencialista, frente aos riscos sociopolíticos na América Latina.
O primeiro utopismo, apresentado por Costa (2016, p. 10), é base para os outros dois, pois “a localização e a situação dos subalternizados, no continente, decorre dos escombros da colonialidade mimetizada no discurso de universalidades ideologicamente impostas”, revelando, portanto, a gênese e a duração de um patrimônio-territorial latinoamericano, por considerar o contexto de colonização, exploração e subalternização dos países integrantes da América Latina.
Nesse sentido, Costa (2016, p. 9) pontua que o patrimônio-territorial “identifica e ilumina a cultura barbarizada pela, ainda presente, colonialidade, julgando os subalternizados latinoamericanos como necessários à escrita da nova história continental”. Ele afronta, por meio dos sujeitos, grupos e bens culturais situados e em situação espacial, a ideologia que legitima as colonialidades do poder, do saber e do ser impostas. Rebate tal ideologia, para denunciar e indicar um outro caminho a ser construído, valorizando a arte, a religião, os saberes, os modos de vida, os assentamentos de grupos subalternos urbanos e rurais. Assim, o conceito tem sua definição apresentada como representativo dos elementos que possuem valor simbólico derivado da memória, dos usos e dos significados dados a estes pela população residente, em sua vida cotidiana, nas periferias dos campos e das cidades, notadamente na América Latina e no Caribe.
Ampliando as abordagens e o alcance do conceito, Costa (2017) propõe um pensar metodológico de ativação popular dessas expressões patrimoniais, por se constituírem de verdadeiros símbolos territoriais a partir dos sujeitos, ou seja, elementos de arte, culturas e vivências situadas na periferia, bem como os bens materiais e imateriais ainda em realização espacial no continente, denunciantes da duração dos sujeitos e possíveis catalizadores de formas de lutas populares ou de resistências.
Um dos propósitos dessa ativação popular, apresentada pelo autor, é a possibilidade de anular estigmas e preconceitos socioespaciais, bem como estimular pensamentos e práticas situadas, endógenas ou inclusivas, sobre o conhecimento do lugar onde o patrimônio-territorial se faz presente. Acima de tudo, possibilitar a duração e o engrandecimento dos sujeitos subalternizados.
Sua ativação justifica-se no paradoxo socioespacial continental de: por um lado, desemprego, discriminação étnico-racial, indigência e pobreza e, por outro lado, emergência do setor de serviços (com importação e exportação crescentes de serviços culturais e de recreação) em países cujo histórico produtivo vincula-se ao setor primário e à crescente demanda turística, inclusive em países de economia mais frágil e elevada informalidade (Costa, 2017, p. 73).
Para tal, Costa (2017) apresenta, em seus preceitos teórico-metodológicos, que a ativação popular do patrimônio-territorial latinoamericano pode ocorrer em três níveis: a “comunidade”, a “universidade” e as “instituições públicas ou governamentais”, a fim de, em parcerias concretas, desenvolverem estratégias que visem a preservação e difusão das referências e bens culturais valorados, de dentro para dentro, ou seja, orquestradas do grupo para o grupo, com o objetivo de fortalecer as próprias práticas políticas. Ao reconhecer a existência de diferentes possíveis agentes envolvidos no processo de ativação popular desse patrimônio, Costa (2017, p. 69) reforça: “deve-se reconhecer o sujeito e o grupo localizados em permanente situação espacial, transformadores e transformados pelo mundo; são centro da ativação, da preservação e os detentores reais do patrimônio-territorial”.
Dessa forma, o autor reforça que a valorização do lugar, a escala “local”, é o momento que norteia todo o processo de ativação popular do patrimônio-territorial latinoamericano, cabendo à própria comunidade, aceitar ou rejeitar a concepção, o mapeamento, o tratamento e o cuidado dado ao seu patrimônio (este patrimônio não é coisa dada, mas construída pelo grupo, em sua história, para sua perpetuação ante a opressão dominante).
O compromisso social da universidade, nessa ativação popular, deve partir do reconhecimento do potencial transformador local do patrimônio-territorial e contribuir com a identificação daquilo que o grupo deseja ativar; normatização dos procedimentos de utilização e preservação dos bens valorados; além de promover a formação qualificada dos guardiões do patrimônio a ser ativado. Já as iniciativas das/nas instituições governamentais, devem contribuir para a operacionalização da utopia patrimonial, potencializando condições físicas, materiais e tecnológicas para sua efetivação, colocando o utopismo patrimônio-territorial como “devir” da realização e concretização do novo nas comunidades latinoamericanas, um novo que já está em embrião junto ao próprio grupo; essa ativação corresponde a um modo de fazer lembrar, fazer agir, politizar.
A ativação popular do patrimônio-territorial, ainda, pode estabelecer elos conectores constituintes de uma “rede patrimonial utópica” (Costa, 2017, p. 66), a qual agregue bens instituídos e não instituídos na elaboração de territórios simbólicos totais, a fim de promover a valorização do que é tratado de maneira não dialética como periferia e dos sujeitos na América Latina.
Alguns patrimônios-territoriais foram pesquisados e mapeados pelo Gecipa/CNPq/PPGG-UnB, tanto no território brasileiro quanto pela América Latina. Hostensky (2018), por exemplo, analisa como se dá a ativação popular do patrimônio-territorial e como se caracterizam as práticas de resistência da comunidade quilombola do Portão do Gelo – Nação Xambá, em Olinda, Brasil. Para Hostensky (2018, p. 235): “a comunidade quilombola [...] é exemplo nacional de ativação do patrimônio-territorial, por meio de efetiva mobilização social (com ações educativas, práticas culturais e celebrações), buscando a valorização da cultura afro-latino-americana e a minimização de estigmas sociais”. A pesquisadora ainda pontua que os patrimônios-territoriais da comunidade são os próprios atores sociais (os chamados sujeito-patrimônio). Ao ocuparem o espaço, com suas práticas e ações, esses, produzem sentidos e significados; estabelecem uma identidade territorial própria (a Nação Xambá); e desenvolvem suas singulares territorialidades. A atuação organizada do grupo, por meio das ações de resistência e visibilização, contribui para uma perpetuação dessas referências culturais.
Mesquita (2019), outra pesquisadora do Gecipa, debate os conflitos existentes no fenômeno de patrimonialização de Loma San Jerónimo (bairro de Assunção, Paraguai), e propõe uma (re)ativação do patrimônio-territorial a partir da própria comunidade e sua relação com a cultura indígena local, realçando os elementos de luta e identidade popular.
Para Mesquita (2019, p. 233), os elementos identificados como resistência patrimonial espacializada foram: o (i) idioma guarani e a (ii) medicina tradicional (como reminiscências indígenas no âmbito do bairro); o (iii) Kure Cuá, zona baixa do bairro e o (iv) Mercado 4 (como permanências de sua formação histórico-geográfica); o (v) oratório, o (vi) clube e (vii) todas as manifestações socioculturais que o permeiam; os (viii) estacioneros, a (ix) procissão em honra ao santo patrono e as (x) relações espaciais solidárias (enquanto resistência ao processo de patrimonialização global e a lógica dominante que o engendra). Segundo a autora, as tentativas de silenciar ou ocultar a identidade e a memória da população não se concretizam, pois, sua vida cotidiana é marcada pela forte presença e resistência da cultura indígena; e os mesmos insistem em buscar alternativas de relação com a cidade.
Com o mesmo interesse pelo conceito e a metodologia relativa aos utopismos patrimoniais, Sousa (2020), em sua dissertação intitulada “Monumento e ativação popular do espaço público latinoamericano: Cuba e Brasil”, propõe analisar a relação entre a ativação popular do espaço público e o monumento, este como catalisador de práticas sociais localizadas e da memória coletiva, nas cidades de Camagüey (em Cuba) e Goiânia (no Brasil). Sousa (2020, p. 176) conclui que o fato de os monumentos analisados estarem colocados em seus respectivos espaços públicos, na Praça Ignacio Agramonte (Camagüey/Cuba) e na Praça do Bandeirante (Goiânia/Brasil), carregam a função pedagógica e didática de servirem como marco referencial do encontro, no cotidiano político dos sujeitos, ou como lugar de intervenções artísticas, religiosas, políticas, comerciais, turísticas e outras.
[...] colocar o monumento em ambas as praças é como dar alma ao lugar e convidá-lo à permanência e à resistência, ativando-o e transcendendo aglutinando na memória individual e coletiva. Os dois lugares surgem como possibilidades de uma ativação popular do espaço público sob os riscos e a preservação patrimonial, narrados à luz do sujeito. A relação existencial com o urbano impulsiona a uma compreensão da realidade dentro da lógica da preservação e dos utopismos, ao passo que estimulam o cuidado com o ser social, pois, a partir dele as contradições e afirmações se estabelecem no e com o espaço público (Sousa, 2020, p. 177).
Entende-se que é por meio dessas concepções de relação indissociável entre o sujeito e a história do território, apresentadas por Costa (2016, 2017, 2018, no prelo), que se efetivaram essas pesquisas. Assim, ao analisar a natureza das rodas de samba no Distrito Federal brasileiro, a partir da totalidade da formação socioespacial do país, compreende-se que o foco não se atenta apenas no que é visto no movimento do samba, mas no que vai além de sua materialidade, a fim de reconhecer as rodas de samba do Distrito Federal enquanto patrimônio-territorial, ou seja, resposta dos sujeitos das periferias da Nova Capital que o ativam popularmente pelo “fato” rodas de samba, conforme também se expressam nos objetos de pesquisa de Hostensky (2018), Mesquita (2019) e Sousa (2020).
As primeiras manifestações do samba no Distrito Federal brasileiro se materializaram, segundo Francisco (2012), a partir de apresentações improvisadas em caminhões, no meio da poeira vermelha dos acampamentos e em áreas abertas próximas às edificações da Nova Capital. Esses movimentos eram realizados pelos trabalhadores que chegavam para a construção da cidade e já habitavam a vila operária, denominada na época de “Cidade Livre”. Essas manifestações também podem ser caracterizadas como formas de diálogos entre esses sujeitos, tendo o lazer e a solidariedade como fundamento (Dozena, 2011). Recuperavam as memórias culturais de cada operário, vindo eles do Sul, Norte ou Nordeste do Brasil, expressas em formas simples de movimentos em rodas e gingados espontâneos.
Com o avançar das obras, Francisco (2012) apresenta que começaram a chegar os servidores públicos da antiga capital, Rio de Janeiro, que iriam ocupar os cargos máximos da máquina estatal. Com esses, vieram a experiência das festividades carnavalescas representadas pelos grandes bailes em salões e clubes, blocos de rua e desfiles de escolas de samba, que já ocorriam na cidade carioca. A partir de 1961, houve também a criação das famosas Escolas de Samba no Distrito Federal, tal como já existiam em São Paulo e Rio de Janeiro. Os desfiles eram realizados com a presença das agremiações: Alvorada em Ritmos; Brasil Moreno; Candangolândia; Unidos da Cidade Livre; e Unidos do Cruzeiro – que se tornaria a famosa ARUC tempos depois. Os desfiles carnavalescos, durante muitos anos, foram o ponto alto do movimento do samba de Brasília, e serviram como base para a disseminação do ritmo nos blocos de rua, que também carregavam um posicionamento bastante crítico sobre a economia e a política nacional. Entretanto, pode-se observar que essas escolas de samba surgiram pela iniciativa da classe de funcionários públicos já instalados e estabilizados economicamente na Capital Federal, reflexo de uma “lógica da concentração territorial da produção cultural” que muitas vezes se faz atrelada a fatores econômicos (Dozena, 2011, p. 202).
A partir da década de 1980, conforme Francisco (2012), esses funcionários públicos fundadores da ARUC se aposentavam e retornavam para seus locais de origem (Rio de Janeiro principalmente) ou migravam para o entorno do Distrito Federal, expulsos pela especulação imobiliária que crescia na época. Nesse período, ocorria um aumento da demanda habitacional que exigiu uma ampliação dos equipamentos e infraestruturas urbanas nas Regiões Administrativas. Pode-se observar que a segregação social e a situação territorial vulnerável[xi] de algumas regiões, juntamente com o violento estado de degradação dos setores urbanos, que constituíam o Distrito Federal brasileiro, influenciaram e permanecem influenciando, diretamente, no movimento do samba no território. Situação essa que também se fez presente em todo o território brasileiro e que contribui para a interpretação da formação socioespacial.
Esse fato de migração dos sambistas, então, mudou o perfil dos adeptos das escolas de samba e contribuiu para o fortalecimento de um novo movimento do samba na capital: as “rodas de samba”. Esses encontros ocorriam, principalmente, nas Regiões Administrativas distantes das associações ou grêmios recreativos de escolas de samba. O cancelamento dos desfiles das escolas de samba, a partir de 2015, devido falta de verba do governo, também contribuiu muito para o fomento das rodas de samba no território. Bares e casas noturnas no Plano Piloto passaram a ofertar e cobrar altos valores para que o público pudesse “consumir” o samba na cidade. Hoje, são poucas casas e lugares que não cobram ingressos para se sambar ou ouvir um bom samba.
Assim, a partir de 2014, os “Coletivos de Rodas de Samba”, também conhecidos como “Rodas de Samba Democráticas”, surgem no Distrito Federal. Caracterizados como encontros de sambistas, estudantes e simpatizantes do samba, especificamente do “samba de raiz” e do “samba autoral de Brasília”, essas rodas ocorrem em áreas públicas localizadas nas áreas periféricas, principalmente em praças, feiras e quadras comerciais das Regiões Administrativas, para tocar, cantar, dançar e divulgar o samba tradicional.


Esses coletivos de rodas de samba são movimentos com posicionamento crítico ante as questões atuais da sociedade e carregam em si as referências históricas de toda a constituição do novo Distrito Federal e da formação territorial brasileira, a partir da interpretação da formação socioespacial do país (Alves, 2019a). São constituídos por moradores das próprias Regiões Administrativas, que vivem diariamente a segregação social promovida pelo Estado demiurgo já citado (Costa & Steinke, 2014). Reconhecem a história do trabalho escravo, vinculado à complexidade territorial na América Latina, mantidos pela opressão de negros africanos e indígenas, e de todos os efeitos do processo modernizador e desenvolvimentista que totalizam a formação socioespacial.
Das 22 (vinte e duas) rodas de samba identificadas e analisadas no Distrito Federal, a partir das redes territoriais de sociabilidade construída por meio de entrevistas participativas e observação participante, foram selecionadas 7 (sete) que carregam as especificidades de “rodas de samba abertas ou democráticas” (Figura 4), ou seja, que se efetivam em espaços públicos de fácil acesso, sem vínculos aparentes com instituições ou empreendimentos comerciais e que resgatam e valorizam o samba autoral de Brasília e o samba de raiz.
Por serem consideradas popularmente como “elemento de arte e cultura”, carregam em sua natureza, elementos da música, dança e formas de expressão popular, sendo elas denominadas: (1) Roda de Samba Café com Samba; (2) Roda de Samba Club do Compositor; (3) Roda de Samba da Guariba; (4) Roda de Samba do Banquinho; (5) Roda de Samba na Comunidade; (6) Roda de Samba Pode Chegar; e (7) Roda de Samba da Liberdade, conforme figuras a seguir.
Ao aprofundar as análises sobre as rodas de samba situadas no cotidiano das periferias, identificou-se que quase todas são reproduzidas em territórios segregados. Os encontros acontecem, preferencialmente, nos finais de semana (sábados ou domingos), em espaços públicos ocupados pelas comunidades de origem dos próprios sambistas. São consideradas rodas itinerantes e democráticas, pois não possuem uma sede ou um lugar fixo de realização e são abertas para toda a população.



Cada evento ocorre em um espaço público distinto, priorizando as Regiões Administrativas do Distrito Federal[xii], de acordo com as iniciativas e disponibilidades dos colaboradores. Promovem eventos integrados com outras rodas de samba e buscam divulgar e valorizar o samba em áreas públicas de Ceilândia, Taguatinga, São Sebastião, Samambaia, Gama, entre outras.
Não há interesses comerciais envolvidos, ou seja, não cobram taxa de entrada, consumação, nem “couvert artístico. para os músicos. As poucas relações que se efetivam com o mercado são: de aluguel dos equipamentos e instrumentos técnicos para a realização dos encontros; e do incentivo ao comércio local de onde elas acontecem.
Todos os custos de realização são arcados pelos próprios sambistas, integrantes das comunidades, sem incentivo algum do governo ou de entidades privadas.
As propagandas e convites de participação são feitos em plataformas e mídias digitais e compartilhados em grupos, pelos próprios sambistas e amigos. Os instrumentos (violões, cavaquinhos, pandeiros, repiques, surdos, chocalhos e reco-recos) e equipamentos de som (amplificador, mesa de controle, caixas de som, microfones e cabos conectores e elétricos) são praticamente dos próprios músicos que, voluntariamente, levam para a realização dos encontros e são compartilhados entre si. “É um encontro de amigos”, dizem os integrantes.
Para a execução dessas rodas de samba, os responsáveis também solicitam autorização do Governo do Distrito Federal para ocuparem os espaços públicos (praças, áreas de lazer, parques) das Regiões Administrativas. Solicitam banheiros químicos, apoio policial e do corpo de bombeiros. Alugam tendas, cadeiras e mesas para o conforto e formação da grande roda de sambistas. Há toda uma burocracia para que elas aconteçam e as dificuldades são inúmeras, conforme narrado a seguir.
Se a gente for levar pela dificuldade, até mesmo porque o financeiro é arcado do bolso dos próprios componentes, elas não acontecem. O governo só dificulta cada vez mais [...] se você for levar por esse lado, desanima. Então, o que anima é justamente a população quando chega, bate palmas pra gente, agradece por estar usando a praça... Essa praça era marginalizada, cara. Só vinha vagabundo. [...] E, olha o que nós estamos conseguindo [...] família participando, a comunidade toda junta (Entrevista concedida pelo Sr. Maicon Santos, responsável pelo Coletivo Samba na Comunidade, em Brasília, Distrito Federal, em abril de 2019).
Conforme Maicon Santos, há uma ressignificação dos lugares onde as rodas acontecem. A Praça da Bíblia em Ceilândia, por exemplo, antes frequentada por “vagabundos” passa a ser utilizada como “lugar do encontro” por famílias e toda a comunidade. Santos (2014a, p. 158) contribui para esse entendimento pontuando: “os eventos operam essa ligação entre os lugares e uma história em movimento. O lugar, aliás, define-se como funcionalização do mundo e é por ele (o lugar) que o mundo é percebido empiricamente”. Trata-se, então, de um “acontecer solidário (...) o lugar, nosso próximo, restitui-nos o mundo [...]. No lugar, estamos condenados a conhecer o mundo pelo que ele já é, mas, também, pelo que ainda não é” (Santos, 2014a, p. 163).
Sousa (2020, p. 51), ao tratar da ativação popular de espaços públicos, apresenta que “os espaços públicos são pensados (em sua maioria) como vias de circulação, contudo, o que caracteriza sua natureza como local público não está nas normas regimentais, mas sim em seu uso e apropriação”. Diz que “é no espaço público onde o cenário da vida social cotidiana se realiza plenamente”. Pela ocupação e uso desses espaços, as rodas de samba passam a fazer parte do cotidiano dos sujeitos (sambistas e não sambistas) e produzem mecanismos de integração social. Revelam-se como movimentos de solidariedade, além de tornarem o território em “lugar comum” (Dozena, 2011).
A observação participante em campo também possibilitou identificar que essas rodas de samba contribuem para uma movimentação do comércio local. Muitos estendem o horário de funcionamento das vendas para atender ao público que chega, além de possibilitar que os próprios moradores tomem a iniciativa de promover o comércio informal, contribuindo com a renda familiar. Os coletivos e responsáveis pelos encontros também promovem “lanches comunitários” e “campanhas de doações” (mantimentos, roupas, livros, etc.), as quais os materiais recebidos são encaminhados para entidades assistenciais, albergues ou hospitais. Assim, quando territorializadas, essas rodas de samba objetivam priorizar os sujeitos situados e valorizá-los a partir do seu local de origem. Os sambas, quando tocados, se expressam a partir dos sujeitos que os sambam, tal como um “sinalizador cultural” (Dozena, 2011, p. 207), com forças para atenuar a distância entre as classes sociais que ali se encontram reunidas. Promovem, mesmo que momentaneamente, uma sociabilidade comunitária e vínculos de pertencimento.
Considera-se, portanto, que todas as 7 (sete) rodas de samba aqui analisadas podem ser reconhecidas como patrimônio-territorial, pois se manifestam como um elemento mediador, produzindo territorialidades, tal como uma “resistência espacial” a partir dos sujeitos. Definida como “espacial”, por territorializar e reforçar a presença dos sujeitos no lugar onde elas se fazem (nas Regiões Administrativas), ampliando os vínculos com os territórios: de origem ou do samba.
A partir da identificação de tal força, pode-se considerar, então, que essa resistência espacial se faz como uma “resistência espacial negra”, pois recupera, valoriza e faz emergir a presença dos negros no território, desde a colonização até o presente, percorrendo todos os períodos de segregação e situação vulnerável impostas. Vale reforçar que a presença da população negra do território do Distrito Federal é muito significativa. Mais de 2,5 milhões de habitantes, identificados pelo Censo Demográfico do IBGE de 2010, os quais 56,2% desses se consideram negros, e essa presença se faz em maior número nas próprias Regiões Administrativas, como já tratado.
Ademais, conforme observado pela pesquisa, há uma violenta presença das colonialidades do poder, do saber e do ser, que se fazem no território e em toda América Latina, impondo um controle hegemônico aos territórios, além de manipular e subjugar os sujeitos que deles constroem espaços de vivências e de trabalho. As consequências dessa violência, conforme apresenta Santos (2014b, p. 65), faz surgir “um espaço empobrecido e que também se empobrece: material, social, político, cultural e moralmente”. Os cidadãos, diz o autor, tornam-se impotentes, a começar pelas distorções da representação política, tão incapacitada para atuar em benefício dos sujeitos que os elegeram, atendendo, portanto, aos próprios interesses e/ou aos interesses do mercado internacional.
Portanto, essas rodas de samba, denominadas “rodas democráticas” promovem um diálogo direto dos sujeitos (que as territorializam) com a comunidade local, e com o lugar onde elas são efetivadas, tendo a solidariedade, a igualdade, a sociabilidade e o respeito para com os “sujeitos” e o “lugar” como princípios constitutivos de sua natureza. Por ser uma expressão cultural baseada no sujeito, torna-se uma cultura também baseada no território, no trabalho e no cotidiano das comunidades. A expressividade de seus símbolos, manifestados nos próprios sambas musicados e nas formas territorializadas pelo corpo dos sambistas, se solidarizam entre si, todos começam a participar do movimento de modo inseparável, o que assegura uma permanência do movimento no território. Essas rodas também contrapõem à lógica cultural de consumo imediato, imposto pela indústria cultural, por valorizarem o samba autoral local e o samba de raiz.
Em síntese, atuam como redes territoriais de sociabilidade, dotadas de um sentido coletivo de resistência em (i) valorizar os sujeitos periferizados das Regiões Administrativas; (ii) valorizar o samba de raiz e o samba autoral de Brasília; além de (iii) ocupar os espaços públicos e ressignificá-los, inspirando possíveis caminhos alternativos em seus usos e sentidos, tal como um patrimônio-territorial. Pensar as rodas de samba em sua totalidade e como uma totalidade, representa entender que cada uma das rodas pesquisadas guarda em sua natureza especificidades dinâmicas e particulares, que se dialogam e se totalizam. A partir de cada totalidade “roda de samba”, que também não são isoladas entre si, estruturam-se fragmentos que interagem no movimento histórico da formação social, econômica e espacial do Brasil. Portanto, essas, também totalizam a formação socioespacial brasileira, em um movimento dialético entre o “particular” e o “universal”, e vice-versa.
Os eventos ocorridos no território brasileiro, desde sua formação, e que imprimem um caráter particular à formação socioespacial brasileira, permitem múltiplas interpretações, sendo possível pontuar que: os efeitos espaciais, sociais, políticos e econômicos provocados, em sua particularidade, pelos processos de colonização, industrialização, modernização (Era Vargas) e desenvolvimentismo (Governo Kubitschek), totalizam a violenta realidade concreta. O trabalho, assim, denuncia, em escalas, essas distintas formas de violência que se totalizam pelo território.
Em contrapartida, as resistências se fazem presentes, desde os movimentos de defesa das antigas civilizações originárias contra os ataques dos colonizadores, e permanecem ativas no avanço da formação territorial brasileira. Essas resistências podem ser reconhecidas e ativadas como patrimônio-territorial, por representarem símbolos territoriais singulares da história registrada, e promoverem alternativas de valoração dos subalternizados e de seus territórios de exceção. Tais resistências, da mesma forma, imprimem um caráter singular à formação socioespacial aqui analisada.
Contudo, deve-se considerar que os conceitos aqui revistos representam o espaço em constante movimento, de forma que contribuem para uma interpretação da realidade objetiva e concreta, também em mudança. Sendo a formação socioespacial brasileira o cruzamento de condicionantes, gerais e específicos, do modo de produção, da formação social e do espaço, para interpretar o Brasil (Santos, 2014a), o utopismo patrimônio-territorial, da mesma forma, contribui para essa interpretação, por se fazer da relação entre os bens patrimoniais valorados, os sujeitos e o território (Costa, 2016). Portanto, entende-se que é a partir dele, também, que se totaliza a formação socioespacial brasileira, no necessário olhar geográfico que envolve singularidade-universalidade, dado pelo próprio patrimônio-territorial. O fato “rodas de samba” é entendido, assim, como símbolo territorial, que se pauta como patrimônio-territorial e colabora para a interpretação da formação socioespacial do Brasil.
O trabalho contribui, desde outro empírico, para a revisão dos conceitos geográficos de formação socioespacial e patrimônio-territorial, por reforçar a noção de que: é a partir do próprio sujeito, e do grupo em que ele se insere, que se fazem efetivas as mudanças e a construção de um mundo no qual possa imperar a solidariedade. Apesar do cenário futuro parecer incerto e sombrio, o que temos a fazer, no presente, é buscar o conhecimento original da crise, as objetividades e subjetividades que geram tanto a opressão quanto a resistência socioespacial, nos moldes explicativos dos conceitos aqui operados e do fato “roda de samba” trabalhado.





