Resumo: Esse artigo objetiva apontar algumas reflexões sobre as novas tecnologias na produção do ciberespaço e os processos de patrimonialização cultural digital. O patrimônio cultural digital é apontado como a interseção entre patrimônio e as tecnologias da informação e comunicação, com novas potencialidades nas ações de patrimonialização. A partir da literatura consultada, evidenciou-se as novas possibilidades para maior participação da sociedade nos processos de patrimonialização, até então centrados na figura do Estado e de suas agências estatais, incorporando os sujeitos sociais produtores de cultura de forma periférica nesses processos. As redes sociais são importantes, especialmente para a preservação dos patrimônios imateriais, e a interdisciplinaridade é uma condição fundamental para a apreensão das articulações entre ciberespaço e patrimonialização digital.
Palavras-chave:ciberespaçociberespaço,espaço urbano virtualespaço urbano virtual,patrimônio cultural digitalpatrimônio cultural digital,patrimonializaçãopatrimonialização.
Resumen: Este artículo objetiva apuntar algunas reflexiones sobre las nuevas tecnologías en la producción del ciberespacio y los procesos de patrimonialización cultural digital. El patrimonio cultural digital es la intersección entre patrimonio y las tecnologías de la información y comunicación, con nuevas potencialidades en las acciones de patrimonialización. A partir de la literatura consultada, -se evidenciaron las nuevas posibilidades para una mayor participación de la sociedad en los procesos de patrimonialización, hasta entonces centrados en la figura del estado y de sus agencias, estatales, con la incorporación de los sujetos sociales productores de cultura, geralmente considerados de forma periférica en esos procesos. Las redes sociales son importantes, especialmente para la preservación de los patrimonios inmateriales, y la interdisciplinariedad es una condición fundamental para la aprehensión de las articulaciones entre ciberespacio y patrimonialización digital.
Palabras clave: ciberespacio, espacio urbano virtual, patrimonio cultural digital, patrimonialización.
Abstract: This article aims to point out some reflections about the new technologies in the production of cyberspace and the processes of digital cultural patrimonialization. The digital cultural heritage is the intersection between patrimony and information and communication technologies, with new potentialities in patrimonialisation actions. From the literature consulted, the new possibilities for greater participation of the society in the processes of patrimonialization, hitherto centered on the figure of the state and its agencies, were evidenced, incorporating the social subjects that produce culture in a peripheral way in these processes. Social networks are important, especially for the preservation of digital heritage, and interdisciplinarity is a fundamental condition for the apprehension of the articulations between cyberspace and digital patrimonialization.
Keywords: cyberspace, virtual urban space, digital cultural heritage, patrimonialization.
Artigos
Ciberespaço e patrimônio cultural digital: algumas reflexões
Ciberespacio y patrimonio cultural digital: algunas reflexiones
Cyberspace and digital cultural heritage: some reflections

Recepção: 07 Dezembro 2018
Aprovação: 25 Dezembro 2018
Publicado: 04 Abril 2019
Vivenciamos um momento de profundas transformações no mundo contemporâneo, afetando as diferentes dimensões da vida social, da política, da economia, da cultura, e também da organização espacial. As novas tecnologias de informação e comunicação e a internet, como uma das suas expressões mais significativas, têm promovido concepções positivas e negativas sobre suas implicações no modo de vida da sociedade contemporânea. Essas posturas são embasadas, teoricamente, em diferentes enfoques e paradigmas das ciências humanas.
Em trabalho anterior, Ramires (2017) procurou descrever algumas estratégias metodológicas para apreender os espaços virtuais a partir de abordagens qualitativas, demonstrando que a contribuição da geografia é relativamente modesta nesse quesito, quando comparado às demais ciências humanas, especialmente, em relação à Antropologia, que já conta com substanciais ferramentas analíticas sobre a temática, bem como a formação de uma subárea denominada Cibercultura. Ficaram evidentes, com base nas reflexões desse trabalho, que o grande desenvolvimento da internet, promovendo a consolidação do ciberespaço, abriu várias possibilidades de análise para a geografia, comportando diversas escalas de análise, abordagens quantitativas e/ou qualitativas, com um leque expressivo de temas de pesquisa de caráter geográfico, já que sociedade/espaço/tempo estão no cerne dessa discussão.
No âmbito dos estudos sobre patrimônio cultural, as discussões sobre a incorporação da era digital ainda se encontram em curso, com um número significativo de pesquisas sobre digitalização de patrimônios materiais e arquivamento em bases eletrônicas. Entretanto, quando se considera o patrimônio digital a partir de produtos e processos que já nascem eletronicamente no ciberespaço, há poucos trabalhos. Esse fato foi constatado em levantamento realizado no banco de teses e dissertações da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - CAPES, no qual encontramos um número restrito de trabalhos com esse enfoque.
Na atualidade, descortina-se um momento de intensa mercantilização do patrimônio cultural, sendo necessários posicionamentos críticos frente aos processos de espetacularização, cenarização e museificação do território, que têm nas grandes metrópoles seu principal lócus de reprodução. A interseção entre patrimônio e as tecnologias da informação e comunicação tem apontado a possibilidade de novas vertentes nas ações de patrimonialização.
A internet, no Brasil, é fruto de um processo de informatização do território, com papel hegemônico de grandes empresas, tornando-se, ao longo do tempo, em uma das principais plataformas de comunicação do país, ficando apenas atrás da televisão e do rádio (Curioso, 2015). Pesquisas realizadas por entidades internacionais indicam que os brasileiros são os usuários que mais tempo passam na internet, e, paradoxalmente, o realizam predominantemente com velocidade baixa. Dados reproduzidos por Lemos e Marques (2012) revelam que o mercado de banda larga no Brasil é altamente concentrado entre as operadoras Oi (30,5%), Net (24,4%), Telefônica (22,8%), GVT (8,8%), CTBC (1,7%), e outras (10,8%). Existe, portanto, muitas preocupações sobre a democratização do seu uso, em um país marcado por grandes desigualdades sociais.
Já existem algumas experiências bem-sucedidas da incorporação da dimensão virtual nas ações de patrimonialização, sejam aquelas surgidas mediante a experiência de sujeitos coletivos, ou de instituições públicas. Como repensar nossos referenciais teórico-conceituais e procedimentos metodológicos para patrimônios que estão ou podem estar no ciberespaço? Como as redes sociais podem fomentar experiências de patrimonialização mais participativas? Como superar visões dicotômicas e extremadas sobre os benefícios e as mazelas da revolução tecnológica de forma mais crítica e aberta?
Nesse sentido, este artigo objetiva tecer, ainda em caráter preliminar, algumas reflexões sobre as implicações das novas tecnologias na produção do ciberespaço e nas novas relações cotidianas mediadas por esses novos produtos tecnológicos, destacando as possibilidades de aplicação no campo dos estudos sobre patrimonialização em áreas urbanas.
A importância da técnica e de sua presença em todas as dimensões da vida social, aparece com destaque na obra de Santos (1994), já no início dos anos 1990, no âmbito da Geografia, tratando por essa via da constituição do meio técnico-científico-informacional. Desde então, um conjunto de reflexões foram estabelecidas sobre os impactos dessas tecnologias na estrutura territorial visível, bem como a formação e consolidação de um espaço imaterial, denominado ciberespaço.
Para Castells (2007), a dimensão geográfica da internet pode ser analisada por meio da dimensão técnica, relacionada à infraestrutura de telecomunicações; da distribuição espacial dos seus utilizadores, e pela geografia econômica de sua produção.
Segundo Ferrara (2008a) não se pode estabelecer relações unilaterais entre o avanço tecnológico e suas implicações afetivas, sociais ou científicas do ciberespaço, já que para a compreensão desse novo contexto, surgem muitas dificuldades conceituais e epistemológicas exigindo a revisão das suas certezas teóricas e empíricas. Para a referida autora,
Essa dificuldade aponta, não só para o caráter revolucionário implícito na realidade epistemológica introduzida pela emergência da tecnologia digital, mas, sobretudo, para seu caráter de processo e passagem entre o conhecido e o novo e sua consequente fase de relação cognitiva que constitui toda ciência quando se apresenta como saturação das anteriores operações epistemológicas, mas não evidencia, com clareza, suas novas estruturas. Entretanto, no caso ‘ciber’ esse processo relacional está longe de ser esgotado, o que significa que aquela saturação se mostra hesitante e em constante processo de revisão, daí decorre a dificuldade da sua nomeação e consequente profusão de nomes que inspira (Ferrara, 2008b, p. 26).
A sociedade contemporânea é inexoravelmente mediada pela comunicação, sendo necessário nos desvincularmos dos paradigmas que indicavam a materialidade, as formas geográficas concretas como as únicas unidades basilares de análise. Para Ferrara (2008a, p. 120),
no ciberespaço da cibercultura alcança-se outros patamares para o conhecimento que não nos permite interpretá-lo ou avaliá-lo com os mesmos paradigmas anteriores; agora, valores e paradigmas científicos também são fluidos e precisam ser analisados nessa condição.
No âmbito da geografia brasileira, destacam-se os estudos pioneiros do professor Hindenburgo Francisco Pires da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, sobre o ciberespaço, com a criação do web-sítio Geografia do Ciberespaço. Em um dos seus trabalhos, Pires (2004), evidenciou a submissão das cidades à lógica da globalização e a sua passagem das cidades industriais para a cibercidades.
Pires (2016) aponta a necessidade de estudar a geografia histórica do ciberespaço tendo em vista a grande expansão de pesquisas acadêmicas, realizadas tanto na geografia como em diferentes áreas do conhecimento, com diferentes pontos de vista interpretativos e suas perspectivas teóricas, exigindo um diálogo com outras ciências. Como ponto de partida procurou aproximar-se das abordagens teóricas dos estudos culturais para esclarecer o conceito de ciberespaço, a partir do gênero da ficção científica com sua capacidade de mapear, enquanto utopia, o presente a partir da imaginação do futuro, fornecendo elementos, metáforas, imagens para a formalização de conceitos sobre a temática. Os primeiros estudos sobre o ciberespaço no âmbito da geografia foram produzidos na década de 1990, com destaque para o geógrafo inglês Michael Batty, que levantou preocupações conceituais e metodológicas, visando compreender a sua estrutura, composição, expansão, bem como sua representação cartográfica.
Nos estudos sobre o ciberespaço brasileiro, que podem ser acessados no site Cibergeo, Hindemburgo Francisco Pires procurou apresentar análises da estrutura virtual de acumulação e dos processos de formação territorial, destacando-se a composição diferencial de infraestruturas técnicas que dão suporte ao desenvolvimento da geografia da internet. As perspectivas teórico-metodológicas recentes, para o estudo do ciberespaço no âmbito da geografia da Internet, estão focadas na geografia humana, com estudos sobre a apropriação, os usos sociais dessas redes para a organização, difusão do trabalho científico, articulação de ações colaborativas educacionais. Na geografia econômica, com estudos sobre a gênese da implantação e do planejamento urbano das redes tecnológicas que compõe o ciberespaço, e da geografia política, com questões sobre governança da internet, soberania, geopolítica internacional, segurança, cidadania, privacidade, liberdade de expressão, dentre outros. O referido autor ainda nos lembra que em algumas importantes universidades nos EUA e na Europa, desde 2011 a geografia do ciberespaço ou geografia da internet aparece como subárea da geografia bastante consolidada.
Deve-se ainda destacar que o ciberespaço, enquanto produto, condicionante e reflexo da sociedade, comporta conflitos e contradições da contemporaneidade. A produção de softwares para espionagem e vigilância consolidou-se como atividade extremamente lucrativa, e após o 11 de setembro de 2001, quando os Estados Unidos desencadearam ampla campanha contra o terrorismo, com fortes aportes de recursos para investimentos que favoreceram empresas privadas de segurança, com a militarização do espaço e também do ciberespaço (Pires, 2014).
O ciberespaço deve ser pensado para além da tríade proposta por Henri Lefebvre, ou seja, o espaço físico, o espaço mental e o espaço social, incorporando-se o espaço eletrônico, tecendo conexões entre a materialidade e a imaterialidade. Pode-se afirmar que o ciberespaço é composto pelos seres humanos em interação, pelas redes físicas de computadores e programas, e pelo fluxo de informação, sendo altamente mutante, exigindo constante transformação dos aparatos técnicos. A efemeridade integra a sua lógica de produção e reprodução, e a internet é sua principal expressão.
Presenciamos a consolidação de uma sociedade urbana e nesse contexto de transformações sociotécnicas das últimas décadas, a cidade continua sendo o principal lugar de referências e de relações sociais, com mobilidades aumentadas de forma exponencial. Ainda não temos a clareza e o domínio de todas as transformações em curso, articulando novas tecnologias digitais, e a produção do espaço em diversas metrópoles espalhadas por todo o mundo. Uma postura é a sua constatação e quantificação, e esta aparece de forma visível e de fácil apreensão. A outra é o seu estudo qualitativo, visando captar seu sentido, seus valores e significados para a sociedade urbana contemporânea. Conforme asseveram Lemos e Lévy (2010), as cidades da era industrial tinham sua urbanidade elaborada a partir do papel social e político das mídias de massa, enquanto que as cibercidades são constituídas pelas funções pós-massivas, que
caracterizam-se por abertura do fluxo informacional, pela liberação da emissão e pela transversalidade e personalização do consumo da informação. Elas permitem não só a produção livre, mas também a circulação aberta e cooperativa de produtos informacionais (sons, textos, imagens, programas). Não há necessidade de grandes recursos financeiros, nem de concessão do Estado, e os instrumentos de funções pós-massivas não competem necessariamente por verbas publicitárias e não estão concentrados em um território específico (Lemos & Lévy, 2010, p. 48-49).
As cidades, além de sua materialidade, são expressões das interfaces de um ambiente ao mesmo tempo real e virtual. É possível transitar entre esses dois domínios, com relações complementares, sem que isso signifique a desmaterialização total da cidade real. Trata-se, portanto, de uma nova interação comunicativa, um espaço híbrido, e segundo Lima (2011), as cidades não são apenas expressões dos processos econômicos ou políticos, mas também, são marcadas por imagens, sons, textos, utopias e representações, com foco na mídias, fonte de suporte de emissão, circulação e recepção de fluxos de informação.
As novas tecnologias permitem que as cidades se caracterizem progressivamente por sua condição de ubiquidade, configurando um novo conceito de espaço e tempo, e conforme destaca Leite (2008, p. 108)
O espaço urbano e o espaço virtual entram em sincronia, uma vez que as formas de interação entre a cidade e o ciberespaço são dirigidas pelo conteúdo da informação e pelo contexto físico dos indivíduos. Terminais eletrônicos conectam os indivíduos uns aos outros, mas conectam também os indivíduos às informações presentes no ambiente. Tais interações caracterizam novos tipos de laços sociais, elas se apoiam na comunicação cujo conteúdo é um instante, um acontecimento, um lugar.
O espaço urbano deve ser pensado por meio do paradigma da computação ubíqua, com a disseminação de “computadores invisíveis”, tais como os sensores invasivos cientes a contextos, como os smartphones, computadores tablets, redes sem fio, Bluetooth, WiFi, além das redes exclusivas para telefonia móvel.
Desta forma, é possível perceber que a comunicação ubíqua, por meio das mídias locativas, se insere na proposta da virada espacial. Neste caso, espaço e lugar, a partir da sua relação com a mobilidade e a localização, passam a exercer funções importantes de mediação em experiências como os jogos de realidade alternativa. Com a disseminação da computação ubíqua, feita através da implantação de tecnologias baseadas na localização com sensores, microchips, redes sem fio e unidades receptoras de sinal GPS, a infraestrutura da cidade foi renovada, ampliando o papel do espaço urbano em processos de comunicação social (Andrade, 2014, p. 78).
O desejo de produzir um mundo melhor, e as preocupações por fazer em conjunto, compartilhar e mudar situações e contextos, mesmo que de forma pontual, tem engendrando a criação de práticas colaborativas no ciberespaço. Assim, surgem ações visando cuidar de parte da cidade, denunciar condições opressivas e desigualdades socioespaciais, estimular posicionamentos críticos e participativos na produção do espaço urbano, fortalecendo a dimensão do coletivo.
Com a consolidação do uso dos dispositivos móveis, a interatividade entre os indivíduos atingiu proporções exponenciais, permitindo estarmos em vários lugares ao mesmo tempo. Os mecanismos de virtualização possuem grande capacidade de fomentar as interações humanas sem que a presença física seja necessária.
A possibilidade de qualquer pessoa consumir, produzir e distribuir informação sob qualquer formato e em tempo real e para qualquer lugar do mundo sem ter que movimentar grandes volumes financeiros ou ter de pedir concessão a quem quer que seja. Isso retira das mídias de massa o monopólio na formação da opinião pública e da circulação da informação. Surgem novas mediações e novos agentes, criando tensões políticas que atingem o centro da polis em sua dimensão nacional e global (Lemos & Levy, 2010, p. 25).
Lemos (2007, p. 21) também nos chama atenção para o fato de que
Mídias locativas, heterotopias do controle informacional, territórios informacionais estão reconfigurando as práticas comunicacionais nas cidades. Para além da publicidade fácil e do marketing das empresas, deve-se encorajar a produção de conteúdo, a apropriação criativa do espaço urbano, a atenção para com os processos de invasão de privacidade, de controle e de vigilância. As mídias locativas podem instituir processos (e artistas e ativistas já estão fazendo) de conexão, de compartilhamento, de escrita e releitura do espaço urbano.
Um aspecto discutido no âmbito dessa temática na geografia está relacionado à representação cartográfica do ciberespaço, com grandes desafios à sua operacionalização, na medida em que rompe com as premissas cartográficas de que o espaço é contínuo e ordenado. Na visão de Delazari e Brandalize (2012, p. 187)
A complexidade em se tentar representar geograficamente as redes sociais que se estabelecem através das TICs e do espaço cibernético (ciberespaço), reside no fato de que estes não possuem limites físicos estabelecidos, atributos espaciais necessários à sua materialização e espacialização. No entanto, os cartógrafos tendem a estender os métodos empregados na produção de mapas e visualização dos espaços virtuais e inter-relações. De qualquer forma, esta solução, embora nem sempre satisfatória, constitui a única alternativa disponível, pois, somente uma mudança radical na forma de pensar o espaço poderia levar a uma nova concepção de seu mapeamento.
Para Lima (2011), nos mapas colaborativos é fundamental a representação do território vivido e experimentado, na escala do bairro, dos deslocamentos diários e nos lugares de convívio. Assim sendo,
os mapas colaborativos necessariamente não estão a serviço de um projeto de nação e não representam um símbolo de unidade cultural e territorial, presente nos termos em que se constitui o mapa tradicional. Nos mapas colaborativos, o que interessa é a relação dos indivíduos com o lugar representado. É a partir dessa relação de pertencimento que os indivíduos podem produzir sentidos e significados para as apropriações. Estas se dão na escala do lugar e não naquela da unidade territorial federativa do Estado (Lima, 2011, p. 46).
Ao analisar os jogos eletrônicos e as mídias locativas e sua interface com a geografia da comunicação, Andrade (2014) afirma que o espaço oferece a base para a criação de um espaço temporário, que pode ser concebido como um mediador da cibercultura, criando uma forte impressão de realidade. Além disso, “o mapeamento através das mídias locativas renovou consideravelmente o consumo dos mapas, facilitando a interpretação do conteúdo e otimizando a navegação no espaço urbano” (Andrade, 2014, p. 79). Assim, mídia locativa deve ser entendida como todas as tecnologias e serviços baseados em localização.
Em seu manifesto sobre as mídias locativas, Lemos (2009, p. 3) aponta 30 postulados críticos, e especificamente sobre os mapas, destacamos dois que evidenciam o seu caráter geopolítico e as estruturas de poder que comportam:
22. Saiba que todo mapa é uma mídia e que todo mapeamento é uma ação de comunicação, com mensagem, emissor, canal e receptor. Mapear é escrever e ler o espaço. Mapear é sempre um discurso sobre o espaço e o tempo. Mapas, como as mídias, são sempre formas de visualização, de conhecimento e de produção da realidade do mundo externo. Busque, como Borges no “Del Rigor de la Ciência”, criar mapas que sejam novos territórios na escala 1 X 1.
23. Construa mapas que desconstruam visões de mundo. Produza mapas do que não é mapeado em seu entorno, do que é invisível aos olhos bem abertos. Escape do cartesianismo, do racionalismo e das coordenadas geoespaciais. Tente usar mídias locativas para descentralizar o poder de construção de mapas e de sentido sobre os lugares. Como diz Meyrowitz: ‘toda mídia é um GPS mental’.
Esses dois apontamentos revelam ideias importantes sobre a elaboração de mapas que permitam o desvendamento de novas questões, a partir de uma leitura crítica e criativa do nosso cotidiano. No mapeamento colaborativo, por exemplo, pode-se construir mapas personalizados com inserção de textos, áudio, vídeo, e qualquer pessoa pode acessar o mapa e incluir novas informações. O Google Maps é a plataforma ou base cartográfica, e na visão de Lima (2011, p. 48),
o valor do mapeamento colaborativo está na potencialidade de uma representação mais aberta e fluída dos lugares, abrindo caminho para uma espacialidade mais relacional, onde os indivíduos possam construir laços de pertencimento com os ambientes territoriais.
Mapas colaborativos, por exemplo, podem tornar os habitantes da cidade em sujeitos de sua própria história, de sua cultura e de seus valores. O exemplo apontado por Lima (2011) descreve sobre o Mapa da Coxinha, feito com o objetivo de mapear restaurantes, bares e lanchonetes, na cidade de São Paulo, que tivessem uma qualidade superior desse salgado, ou do Urbanias , que levanta questões de infraestrutura urbana na mesma cidade, inserindo fotografias que operam como uma espécie de autenticação do problema apontado no mapa. Serpa (2011), por sua vez, ao analisar as relações entre mídia e lugar na cidade de Salvador, aponta os sites de utilidade pública criados por classes populares visando divulgar informações sobre bairros populares, tais como o Cajazeiras.net, Cidadebaixa.com, Portalpitajá.org. Também ressalta que os conhecidos blocos afros do carnaval da cidade, como o Ilê Aiyê e Araquetu, possuem páginas na rede mundial de computadores.
Muitas experiências pontuais e de diversas naturezas já são observadas em muitas cidades brasileiras, indicando novas possibilidades de vínculos dos cidadãos com a cidade, mediadas pelas novas tecnologias informacionais e comunicacionais. O Coletivo Shoot the Shit, por exemplo, atua em Porto Alegre através de ações que questionam a cidade e o dia a dia do cidadão, por meio de ações, ideias e projetos inesperados. Transformou-se num estúdio de comunicação e no seu site pode-se visualizar cerca de 20 projetos implementados, com experiências envolvendo a coleta de resíduos sólidos, sinalização de ruas por crianças da 3ª série; sinalização de linhas de ônibus, dentre outras (Shoot The Shit, 2018). Uma experiência ganhou grande destaque nas redes sociais – o “Paraiso do Golf” – que por meio da postagem de um conjunto do fotografias sobre as más condições de pavimentação de algumas ruas de Porto Alegre, que, de forma humorística, as comparou aos buracos existentes nos campos de golf. Devido a sua grande repercussão, o poder local procurou atuar de forma rápida para amenizar o problema. Há nesses projetos forte potencial de interação entre as tecnologias de comunicação e informação, os produtores de cultura, os agentes públicos e a sociedade como um todo, convidando-nos à interação e compreensão de novas formas de convivência que podem ser pensadas e aplicadas também aos processos de patrimonialização.
Essas reflexões evidenciam a importância do espaço urbano na mediação das relações online e ofline, numa sociedade marcada, inexoravelmente, pelas tecnologias de informação e comunicação, necessitando, portanto, de novas abordagens para apreender sua materialidade, bem como sua imaterialidade. Cada vez mais os estudos apontam a necessidade de construção de abordagens que integrem as dimensões do online e do off-line.
Na visão de Prats (2005), os processos de patrimonialização se baseiam nos objetos delimitados por um significado compartilhado, nos lugares que materializam monumentos e espaços naturais e as manifestações representadas pelas práticas culturais. Esses processos, ao incorporar a diversidade de valores das comunidades envolvidas, devem contar com a participação desses sujeitos sociais. O conceito de patrimônio nacional surgiu após a Revolução Francesa, tutelado pelo estado visando a sua defesa e salvaguarda tendo em vista os riscos de destruição por agentes do movimento revolucionário. O conceito de patrimônio está ancorado nas ideias de herança, tradição, conhecimento, legado e vivência, com a transmissão da cultura de uma geração a outra.
O patrimônio digital, por sua vez, está associado a um novo contexto histórico marcado pela revolução tecnológica e novas lógicas de organização do Estado e da sociedade, sendo uma área de intersecção entre patrimônio e tecnologias da informação e comunicação, e segundo formulações elaboradas pela Unesco (2003) sobre a preservação do patrimônio digital, esses objetos podem ser compostos por textos, bases de dados imagens fixas ou móveis, áudios, softwares e páginas na web. Por conta de sua efemeridade, bem como pelas rápidas transformações tecnológicas, necessitam de estratégias e políticas que assegurem a sua preservação e o seu acesso universal ao patrimônio documental mundial. Sendo ainda um conceito em construção, há diferentes concepções sobre o que seja o patrimônio cultural digital.
Uma vertente está focada no uso de ferramentas tecnológicas para a pesquisa e para o armazenamento de dados que poderão oferecer acesso universal. A digitalização de documentos de valor histórico e cultural, o uso de modelos em 3D de objetos e sítios patrimoniais são os traços marcantes desse tipo de enfoque. O incêndio que destruiu o Museu Nacional no Rio de Janeiro em 2018, e praticamente todo o seu valioso acervo evidenciou as fragilidades das políticas públicas de preservação no país e o risco de desaparecimento de seus registros patrimoniais. Parte do acervo destruído poderá ser visto por meio de registros digitais realizados ao longo do tempo. A plataforma digital Google Arts & Culture, como apoio da Universidade Federal do Rio de Janeiro e o Ministério da Educação, disponibilizou exposições virtuais de parte desse acervo que não existe mais fisicamente, podendo-se ver com detalhes peças que ficavam em exposição. Essas imagens não substituem as obras de grande valor histórico e cultural, mas representam uma possibilidade de se lembrar daquilo que até certo momento constituía o acervo do museu. As novas tecnologias informacionais permitiram, ao longo das últimas décadas, a criação de museus virtuais com acervos disponíveis a população em todos as partes do mundo. Mesmo considerando que há críticas aos museus virtuais, que reproduzem o real, não há dúvidas que eles representam importantes mecanismos de salvaguarda dos acervos, bem como a democratização de seu acesso, já que as novas tecnologias proporcionam uma enorme capacidade de armazenamento da memória do mundo.
Outra vertente considera o patrimônio digital como todos os produtos que já nascem eletronicamente no ciberespaço, guardando relação com o grande desenvolvimento das redes sociais, permitindo a incorporação de agentes individuais e coletivos não relacionados a instituições governamentais encarregadas de patrimonialização. Há a emergência da produção de espaços colaborativos para a ativação patrimonial, surgidos a partir da base da estrutura social. Procura-se fomentar o desenvolvimento de ferramentas que permitam ao usuário interagir de forma ativa nos conteúdos digitais, na sua organização e no seu compartilhamento.
Segundo Henriques (2017), as redes sociais como lugares de memória efêmera, produzida, registrada e compartilhada em tempo real entre amigos e familiares têm mudado a forma como as pessoas se relacionam com a memória, já que as memórias são construídas no presente, sobre um passado e ancoradas no futuro. No contexto das redes sociais o registro é do momento instantâneo para um presente também instantâneo, quase como que um presente-passado e um presente-presente, que podemos chamar de atual. O compartilhamento desses registros gera um efeito de “viralização” com a sua maior possibilidade de preservação Assim, as redes sociais, além de suas funções comunicativas e sociais, podem se tornar espaços de registro e de memória. Deve-se ponderar que, ao contrário dos museus e de outras instituições de memória, os sites não são instituições permanentes, podendo ter começo, meio e fim, e não há garantias eternas dos dados registrados nos diversos servidores.
A referida autora também nos lembra da experiência do Museu da Pessoa, fundado em 1991 e desde 1996 possui um site de memórias na internet, onde qualquer pessoa pode ter sua história preservada e divulgada através da rede mundial de computadores, a partir de um cadastro e envio de sua história para o portal de memórias. É uma experiência brasileira e que deu origem a outros museus do mesmo gênero em Portugal, Estados Unidos e Canadá, criando uma rede de memórias na internet.
O patrimônio nascido digitalmente, conta com uma gama variada de informações em forma de texto, imagens, sons, captados por meio de máquinas fotográficas, tablets, aparelhos celulares e de tudo que está disponível na internet. Esse tipo de patrimônio não possui rastros físicos, sendo compostos por códigos binários, bits e bytes. Nessa concepção de patrimônio cultural digital, há grande complexidade em sua análise, uma vez que os conteúdos podem ser apagados e constantemente transformados, e na visão de Reis, Serres e Nunes (2016a, p. 66-67),
Um bem digital não é qualquer recurso digital, ou qualquer duplicação de bem analógico, ainda que se considera o potencial de patrimonialização presente em cada um desses. Um bem digital imprescinde ser parte integrante de algum movimento civil, ou funcionar como registro, e ser um recurso que provoque interação ativa na internet. Um acervo tão somente digitalizado não se transforma, automaticamente, em patrimônio, sendo mais um recurso de preservação, bem como um website qualquer não é patrimônio digital. Considera-se a possibilidade de instaurar processos de ativação para patrimônios digitais, transformando um material que tem potencial patrimonial em bem patrimonial, fazendo isso através de aguçamento de olhares, observação e experimentação orientada, incorporação de outros recursos não necessariamente digitais.
O trabalho de Abrantes (2014) procurou descrever o modo como foram institucionalizadas as práticas de preservação do patrimônio no Brasil, pelo IPHAN- Instituto Histórico e Artístico Nacional, considerando o início da sua informatização. Tomou-se como exemplo a documentação produzida sobre a cidade de Goiás-GO, buscando compreender de que maneira foram constituídos historicamente os sistemas de informação. A autora utilizou-se de uma periodização analisando uma cronologia das práticas de preservação no país, identificando cinco fases:
1) A fundação do patrimônio cultural brasileiro (1937 a 1946); 2) A rotinização das práticas fundadoras (1946 a 1967); 3) Apropriação do patrimônio como um valor econômico (1968 a 1978); 4) A apropriação do patrimônio pela qualidade de vida urbana (1979 a 1990); 5) A apropriação do patrimônio no mercado globalizado. A partir desse entendimento, busca-se trazer aspectos da história institucional e da TI e seu desenvolvimento ao longo do tempo, em relação às concepções de patrimônio e políticas de preservação, e especialmente do patrimônio urbano (Abrantes, 2014, p. 28).
Somente a partir do final da década de 1970 os computadores passam a integrar as estruturas do IPHAN, mas somente no final dos anos 1980 o órgão começa realmente a investir em informática, tanto em áreas administrativas, como também nas áreas fins. A autora descreve a utilização das tecnologias digitais pelo IPHAN nos últimos anos (2004 - 2014), por meio de vários programas e projetos internos, demonstrando o empenho da instituição com a consolidação de patrimônios digitais.
Atualmente, o IPHAN possui a Coordenação Geral de Tecnologia da Informação (CGTI), que trata especificamente dos assuntos relacionados à informática e tecnologia da informação e tem como objetivo principal planejar, pesquisar, implementar, fomentar e desenvolver tecnologias de informação, comunicação e informática que possibilitem a disseminação de dados, informações e conhecimento necessários às ações institucionais do IPHAN.
A discussão sobre patrimônio digital se aproxima das formulações tecidas sobre o patrimônio imaterial que
abrange as expressões culturais e tradições de grupos de indivíduos, que não estão tão somente gravadas em monumentos e objeto, mas sim na vida dessas pessoas. São os saberes, os modos de fazer, as formas de expressão, as celebrações, os lugares. Compara-se o bem digital ao bem imaterial por compartilharem as características de vivacidade, transformação pela intervenção, necessidade de uso de mais de um recurso para preservação, o que normalmente propõem a materialização de algum elemento dessas práticas (Reis; Serres; Nunes, 2016a, p. 63).
Devemos levar em conta que muitas manifestações culturais, ainda hoje são transmitidas por meio da oralidade de geração em geração, evidenciando a importância de se apropriar de todas as novas tecnologias disponíveis no momento para a salvaguarda desse patrimônio.
Há, portanto, um conjunto de experiências com grande potencial para alavancar práticas culturais a partir do ciberespaço. Índios Online, por exemplo, é um portal contemplando uma experiência de gestão compartilhada entre quatro povos indígenas (Kiriri, Tupinambá, Pataxó-Hãhãhãe e Tumbalalá da Bahia, os Xucuru-Kariri e Kariri-Xocó de Alagoas, e os Pankararu de Pernambuco), facilitando a troca de informações e valorizando o diálogo intercultural. Foi desenvolvido pela ONG Thydewa, de Salvador (BA), com o apoio do Ministério da Cultura, da Associação Nacional de Apoio ao Índio (Anai) e assessoria de um etnólogo alemão, com a intenção de facilitar a inserção digital indígena e apresentar aos internautas "os índios na visão dos índios". Tem como objetivo principal facilitar o acesso à informação e comunicação para diferentes povos indígenas, estimular o diálogo intercultural.
A participação social pode ser apontada como importante mecanismo de construção coletiva dos processos de patrimonialização. O uso das redes sociais, por exemplo, pode promover outros usos do patrimônio cultural, não somente como espetáculo, como mercadoria a ser consumida, mas um importante recurso na construção de sentidos dos lugares e das identidades culturais, de forma mais inclusiva e efetiva.
Reis, Serres e Nunes (2016b) analisaram o processo de mobilização de um grupo comunitário em Santo Ângelo, um importante núcleo histórico da região das Missões no estado do Rio Grande do Sul, que se articulou para reivindicar a patrimonialização do centro histórico da cidade, atingido por processo de degradação do seu patrimônio arquitetônico e da especulação imobiliária. Criou-se, em 2011, um grupo no facebook intitulado “Defenda Santo Ângelo! Quero nossa História Viva”, que chegou a ter mais de 1.200 membros, que conseguiu organizar um abaixo-assinado digital solicitando ao Instituto Histórico e Artístico do Estado do Rio Grande do Sul, o tombamento do centro histórico da cidade.
Os autores descreveram todo o processo de solicitação da patrimonialização entre 2011 e 2013, com base na análise empírica das postagens realizados no grupo. As categorias de análise dos dados foram organizadas em três grupos: atos do processo X respostas do grupo; sujeitos ativos X sujeitos observadores; participação na internet x participação nas ações. Mesmo apresentando algumas limitações, os autores asseveram que o balanço geral foi positivo, tendo o grupo como um espaço de aprendizagem sobre questões relacionadas à preservação patrimonial. As contradições e os conflitos entre os defensores da patrimonialização, os atores do mercado imobiliário, do poder público local e dos moradores do centro histórico a favor e contrários à patrimonilização foram evidenciados no estudo.
O trabalho de Werneck (2015) também é um exemplo de estudo que procurou analisar o movimento ciberativista em defesa da Aldeia Maracanã, ocupação indígena urbana no antigo Museu do Índio, ameaçado de demolição em função das reformas do Complexo do Maracanã para a Copa do Mundo de 2014, na cidade do Rio de Janeiro. A autora evidenciou que, cada vez mais, novos atores se inserem no campo dos processos de patrimonialização cultural, revelando um jogo de forças entre múltiplos atores e interesses.
Mediante análise de conteúdo da página do Facebook intitulada Aldeia Maracanã Página Oficial, procurou-se categorizar as ações dos ciberativistas e com o aplicativo Evernote criou-se um arquivo em nuvem de suas postagens, realizadas entre novembro de 2012 e abril de 2013, preservando a memória do movimento. O aplicativo acoplado ao navegador, permite-nos salvar em nuvem textos e fotos disponíveis na web.
O antigo Museu do Índio da Aldeia Maracanã, uma construção do início do século XX, representava uma forma de preservação da cultura indígena no espaço urbano do Rio de Janeiro. Com a transferência do Museu para o bairro de Botafogo, o prédio foi doado para o Ministério da Agricultura, ficando desocupado até 2006, quando passou a contar com atividades realizadas pelo Movimento dos Índios Tamoios. A pressão dos coletivos foi significativa na época, o governador Sergio Cabral desistiu de demolir o prédio e concordou em transformá-lo em um espaço dedicado à causa indígena.
Por outro lado, há registros de experiências existentes na internet que não cumprem suas funções de forma adequada. Damin, Dodebei, Morigi, Massoni (2018) ao analisar o aplicativo Porto Alegre Guide e o site da Prefeitura Municipal de Porto Alegre, que em princípio teriam potenciais de divulgação do patrimônio cultural da cidade, verificaram algumas limitações. As comunidades afro-brasileiras e indígenas não possuem visibilidade, e valorizam-se os atributos culturais da zona central, sul e áreas valorizadas, desconsiderando-se as expressões culturais localizadas em áreas periféricas.
Costa (2017) indica a necessidade de criação de territórios turísticos alternativos que represente uma ruptura com a colonialidade do poder na América Latina, que regaste outras histórias, com a incorporação ativa dos indígenas, afrodescendentes e grupos sociais excluídos. Outras referências memoriais das cidades devem ser incorporadas, especialmente, aquelas situadas fora dos centros históricos consolidados, tais como as áreas periurbanas e as periferias.
O processo de ativação patrimonial comporta elementos que devem ser legitimados como construção social, ao adquirirem autoridade, representatividade e ressonância civil, e a patrimonialização digital pode ser um meio para a educação patrimonial, para a difusão de informações e conteúdos culturais, e consolidação desse processo. As práticas de patrimonialização podem ser realizadas de forma colaborativa, rompendo com o papel monopolista do estado nesses processos, na medida em que podem contar com a participação de diferentes atores, tais como a sociedade civil, ONG’s e empresas privadas.
Os discursos sobre a revolução tecnológica e seus impactos são sempre abordados de forma dicotômica, entre aqueles que a enaltecem contra os que a veem de forma extremamente negativa. É preciso superar essa polarização salientando suas potencialidades, sem perder o senso crítico com relação às dimensões negativas desse processo.
Pelas discussões levantadas ao longo deste artigo ficou patente que o estudo do espaço virtual não pode ser desconectado dos espaços concretos, com um movimento dialético de apreensão, análise e interpretação, possível de ser realizado de forma consistente pela geografia. Os mundos online e off-line não são realidades separadas e podem ser considerados um continnum de uma mesma realidade sociespacial.
A aproximação com a Antropologia, Sociologia, a Psicologia, Geografia, Turismo, bem como as Artes, a Linguística e Semiótica, a Filosofia, Comunicação e Tecnologia da Informação são fundamentais para a apreensão das articulações entre ciberespaço e patrimonialização digital.
É interessante ressaltar que a primeira formulação sobre patrimônio digital pela Unesco data de 2003, e, desde então, não houve novas iniciativas dessa instituição, tendo em vista os avanços acelerados das tecnologias de informação e comunicação. Merece também mencionar que o decreto que instituiu no Brasil o registro de bens culturais de natureza imaterial data do ano 2000, e a partir de então pouco foi feito com relação à patrimonizalização cultural digital.
Em muitos países latino-americanos, a exclusão digital é fato concreto, sendo necessário estratégias urgentes para a sua superação, tendo em vista as rápidas transformações tecnológicas, e a necessidade de empoderamneto dos grupos sociais de baixa renda.
Deve-se também evitar uma visão globalizada da cultura, que desconsidera particularidades e especificidades de povos e nações, sendo a dimensão escalar um elemento importante para a realização de mediações entre o local e o global. A salvaguarda e o reconhecimento da cultura de pequenos grupos nas cidades pode ser viabilizada pelas novas tecnologias de informação e comunicação. As novas tecnologias podem ser usadas como instrumentos de alienação, de libertação, de manipulação ou de esclarecimento crítico. Isso depende do uso que os diferentes atores fazem dela.
A utilização das redes sociais pode apresentar–se como uma possibilidade de incorporar outros usos do patrimônio cultural, não somente como espetáculo, mas como recurso na construção de sentido dos lugares e das identidades culturais, de forma mais efetiva. Abrem-se novas possibilidades para maior participação da sociedade nos processos de patrimonialização, até então centrados na figura do Estado e de suas agências estatais. As redes sociais são importantes especialmente para a preservação dos patrimônios imateriais, incorporando sujeitos sociais considerados sempre de forma periférica nesses processos.
Existe um número significativo de experiências em cidades brasileiras utilizando-se de tecnologias digitais como novas alternativas de sociabilidade urbana, valorização cultural e inclusão social. A construção de mapas colaborativos, por exemplo, pode ser uma interessante ferramenta nos processos de patrimonialização digital.
Estamos diante do grande desafio de criar e reformular conceitos e procedimentos metodológicos para interpretação do patrimônio cultural que já nasce no formato digital. Como realidade em construção, o espaço virtual e a patrimonialização digital apresenta-se como um contexto de potencialidades, mudanças e transformações mutáveis em curto espaço de tempo, com conflitos e contradições, deixando em aberto uma série de perguntas e um enorme leque de temas de pesquisa de caráter geográfico a serem realizadas, já que sociedade/espaço/tempo estão no cerne dessa discussão.