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Cartografia, dinâmica territorial e patrimônio material: análise a partir do oeste baiano no setecentos
Cartografía, dinámica territorial y patrimonio material: análisis a partir del oeste baiano en los Setecientos
Cartography, territorial dynamics and material patrimony: analysis from the baiano west in the XVII century
PatryTer, vol. 2, núm. 3, pp. 49-60, 2019
Universidade de Brasília

Artigos

nformamos que a Revista Patryter está licenciada com uma Licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional (CC BY-NC-ND 4.0) https://creativecommons.org/licenses/by-nc-nd/4.0/deed.pt_BR Autores que publicam na Revista PatryTer concordam com os seguintes termos: - Autores mantém os direitos autorais e concedem à revista o direito de primeira publicação, sendo o trabalho simultaneamente licenciado sob a Creative Commons Attribution License o que permite o compartilhamento do trabalho com reconhecimento da autoria do trabalho e publicação inicial nesta revista. - A contribuição é original e inédita, não está sendo avaliada para publicação por outra revista. Quando da submissão do artigo, os(as) autores(as) devem anexar como documento suplementar uma Carta dirigida ao Editor da PatryTer, indicando os méritos acadêmicos do trabalho submetido [relevância, originalidade e origem do artigo, ou seja, oriundo de que tipo de investigação]. Essa carta deve ser assinada por todos(as) os(as) autores(as). - Autores cedem os direitos de autor do trabalho que ora apresentam à apreciação do Conselho Editorial da Revista PatryTer, que poderá veicular o artigo na Revista PatryTer e em bases de dados públicas e privadas, no Brasil e no exterior. - Autores declaram que são integralmente responsáveis pela totalidade do conteúdo da contribuição que ora submetem ao Conselho Editorial da Revista PatryTer. - Autores declaram que não há conflito de interesse que possa interferir na imparcialidade dos trabalhos científico apresentados ao Conselho Editorial da Revista PatryTer. - Autores têm autorização para assumir contratos adicionais separadamente, para distribuição não- exclusiva da versão do trabalho publicada nesta revista (ex.: publicar em repositório institucional ou como capítulo de livro), com reconhecimento de autoria e publicação inicial nesta revista. Autores têm permissão e são estimulados a publicar e distribuir seu trabalho online (ex.: em repositórios institucionais ou na sua página pessoal) a qualquer ponto antes ou durante o processo editorial, já que isso pode gerar alterações produtivas, bem como aumentar o impacto e a citação do trabalho publicado (Veja O Efeito do Acesso Livre).

Recepção: 14 Novembro 2018

Aprovação: 03 Fevereiro 2019

Publicado: 04 Abril 2019

DOI: https://doi.org/10.26512/patryter.v2i3.19355

Resumo: Este artigo, a partir da base empírica do espaço colonial do Oeste baiano, faz análises à luz da Geografia Histórica, num espaço parcamente ocupado e usado pelos colonizadores ao longo dos Setecentos. Por todo o século XVIII a ocupação da região era dispersa e havia apenas uma vila elevada – São Francisco das Chagas da Barra do Rio Grande. Os ditos “sertões”, porém, em nada eram território vazio. Na verdade eram ocupados por grupos hostis aos interesses da empresa colonial portuguesa, ou simplesmente endogenamente desconhecidos por esta. Objetiva-se neste trabalho analisar dinâmicas espaciais pretéritas à luz da cartografia histórica e estabelecer, a partir daí, diálogos com a atual patrimonialização que há sobre esses objetos do passado. Metodologicamente, faz-se análises em variadas escalas, o que possibilita a compreensão da complexa dinâmica territorial que produziu, ao longo do tempo histórico e diferentes temporalidades técnicas, o patrimônio material e imaterial que atualmente “representa” a região do Além-São Francisco. Dentre os resultados, admite-se que a Geografia Histórica elucida dinâmicas territoriais pretéritas e, assim, torna-se elemento essencial para a ativação do patrimônio.

Palavras-chave: Geografia Histórica, patrimônio, cartografia histórica, Oeste baiano, cidade de Barra.

Resumen: Este artículo, a partir de la base empírica del espacio colonial del Oeste baiano, presenta un análisis basado en la Geografía Histórica, en un espacio muy poco ocupado y utilizado por los colonizadores en los años Setecientos. A lo largo del siglo XVIII, la ocupación de la región era dispersa y había sólo una villa elevada – “São Francisco das Chagas da Barra do Rio Grande”. Sin embargo, los llamados “sertões” no se referían a territorios vacíos. En verdad, eran ocupados por grupos hostiles a los intereses de la empresa colonial portuguesa, o simplemente endógenamente desconocidos por ésta. Los análisis realizados en distintas escalas muestran una compleja dinámica territorial que produjo, a lo largo del tiempo histórico y con diferentes temporalidades técnicas, el patrimonio material e inmaterial que “representa” actualmente a la región de “Além-São Francisco”.

Palabras clave: Geografía Histórica, patrimonio, cartografía histórica, Oeste baiano, ciudad de Barra.

Abstract: This paper, from the empiric basis in the colonial space of the baiano West, analizes, based on the Historical Geography, in the space merely occupied and used by the colonizers during the XVIII century. Through out the XVIII century, the occupation of the region was disperse and there was only one village –“São Francisco das Chagas do Rio Grande”. The well said “os sertões”, however, it was never a empty territory. In truth, they were occupied by groups who were hostiles to the Portuguese colony company, or simply unknown by that. The analysis carried out in different scales show the complex territorial dynamics that produced, during the historical time and different technical temporalities, the material and immaterial patrimony that represents nowadays the region beyond “São Francisco”.

Keywords: Historical Geography, patrimony, historical cartography, baiano West, city of Barra.

Cartografia, dinâmica territorial e patrimônio material: análise a partir do oeste baiano nos Setecentos

1. Introdução

Tem-se como axioma que a cartografia histórica é ferramenta fundamental para a pesquisa no campo da Geografia Histórica, indicadora de um padrão de documentos, os mapas históricos, que apresenta dados eletivos de uma determinada configuração espacial pretérita.

Enquanto justificativa para a produção deste texto, acompanhando o raciocínio de Pedro de Almeida Vasconcelos (1999), defende-se que o desenho, em escala, de elementos da paisagem revela, num dado recorte espaço-temporal, a materialização das ações sociais. Nesse sentido, a produção concreta no espaço e o seu registro no desenho (inclusive refletindo uma apropriação simbólica dos elementos constitutivos de uma dada paisagem) tornam-se fundamentais para a configuração do que, adiante, será tratado e “eleito” como patrimônio.

Andrade (2012, p. 286), num texto específico sobre a funcionalidade da Cartografia nos estudos de Geografia Histórica, havia escrito que “mapear significava conhecer o território. Os mapas históricos, especificamente, eram verdadeiros instrumentos de comunicação, posse e estratégia territorial”. É evidente que cabem as ressalvas sobre intencionalidade e limites técnicos de um mapa de tempos mais recuados, entretanto, acompanhando o raciocínio do referido autor, acredita-se que

O resultado estático do desenho apresenta indícios e marcas de uma dinâmica vivida no espaço geográfico. Cores, linhas e nomes se articulam mostrando formações urbanas hierarquicamente distribuídas, caminhos terrestres, rede hidrográfica, base orográfica, engenhos e regiões geográficas, elementos que compõem estruturas espaciais do passado e que, em determinado momento, foram interpretados e desenhados numa escala imprecisa aos olhos do cartógrafo revelando substratos dinâmicos que tanto sustentavam como induziam ações no território ocupado (Andrade, 2012, p. 286).

Para este artigo, dando vazão à discussão teórica de fundo, trabalha-se com a base empírica (recorte espacial) do Oeste baiano e, mais precisamente, da atual cidade de Barra (figura 1). A opção por esta região foi motivada pelo desafio de fazer análises de tempos pretéritos num território carente de fontes documentais (textuais, iconográficas e cartográficas) e textos hodiernos escritos à luz da Geografia Histórica, notadamente por ser, nos Setecentos, um espaço parcamente ocupado e usado pelos colonizadores. Não obstante esse hiato de documentação, verifica-se na região uma série de objetos concretos assumidos como patrimônio material pelos agentes de produção do espaço e, obviamente, coerentes com os seus interesses hegemônicos.

Ao longo do século XVIII a ocupação da região era dispersa e havia apenas uma vila elevada – São Francisco das Chagas da Barra do Rio Grande. Os ditos “sertões”, porém, conforme Andrade (2013a, p.135-139) e Moraes (2009), em nada eram território vazio. Na verdade eram ocupados por grupos hostis aos interesses da empresa colonial portuguesa, ou simplesmente endogenamente desconhecidos por esta.

Esse recorte espacial previamente definido em nada torna estática a análise a partir do uso da cartografia histórica. Ao contrário, as variadas escalas de análise possíveis tendem a mostrar diferentes dinâmicas territoriais. Na escala do território colonial, o “Além São Francisco” era o território distante, sertão a ser ocupado. Numa escala regional é possível verificar os caminhos terrestres e conexões com estradas reais e vias hídricas que cruzavam a região, já nos Setecentos. Na grande escala, no nível intraurbano, teríamos a possibilidade de analisar em que medida o “padrão” do urbanismo português repercutiu em vilas interiores com diferentes agentes de produção do espaço (a ausência de mapas nessa escala – ainda não encontrado na pesquisa primária para o período destacado) nos estimula a projetar mapas a partir da documentação escrita e dos fragmentos da paisagem de outrora, conforme orientou Abreu (2005).

Essa análise em múltiplas escalas, por si só já daria pistas para um denso estudo, acrescente-se a isso outros elementos possíveis de serem observados na ocupação do território e sinalizados pela cartografia histórica, a exemplo da presença material de agentes de produção do espaço (Igreja, Estado – caminhos autorizados, defesa e autoridade camarária –, grupos indígenas, atividade agrícola e pecuária, dentre outros). Também elementos da fisiografia como o relevo, a malha hídrica que funcionavam ora como óbices à penetração, ora como vias “naturais” de circulação. Sobre os caminhos, intra e extra regionais, num tempo de poucos registros escritos, mormente de escassa iconografia, a feitura e o domínio de um mapa com um, ou vários, caminhos traçados era, certamente, uma preciosidade restrita a pequenos grupos de exploradores. E, para o caso da região aqui estudada, esses caminhos mostram uma articulação e organização interna que atendia a demandas suprarregionais.

O objetivo geral norteador deste artigo é compreender dinâmicas espaciais pretéritas à luz da cartografia histórica e estabelecer, a partir daí, diálogos com a atual patrimonialização que há sobre esses objetos do passado. Parte-se do pressuposto que a Cartografia Histórica apresenta registros eletivos de um tempo pretérito que, assumidos como base da dinâmica territorial que se seguiu estruturou marcos representativos (simbólicos e concretos) da história da região e, por conseguinte, foram assimilados/ "escolhidos” contemporaneamente como patrimônio. Nesse sentido, defende-se a hipótese que a análise de mapas antigos dá pistas sobre a dinâmica territorial pretérita sustentada nas marcas materiais que resistem na paisagem e são apresentadas na cartografia e iconografia históricas.


Figura 1
Localização da cidade de Barra, Bahia, Brasil.
SEI - Basce Cartográfica Digital Google Maps. Elaboração de José Jackson Andrade.

Como objetivos específicos, busca-se: Apresentar como a cartografia histórica, “iluminada” com o uso de novas tecnologias, deve ser utilizada como ferramenta para os estudos da Geografia Histórica; Abordar o papel da Geografia Histórica na interpretação de paisagens e espaços pretéritos, sustentado na análise multiescalar de mapas históricos ou conjecturais, de marcas concretas produzidas naquele tempo e espaço; Destacar a ocupação do Oeste da Bahia e o papel do núcleo urbano de Barra do São Francisco, compreendendo a dinâmica do território colonial nos “sertões” baianos Analisar mapas históricos oportunizando elucidações de análises espaciais e temporais, assim lançando desafios sob cartografias de então.

O escrito que segue está estruturado em três seções internas: uma primeira que trata da discussão teórica que permeia todo o texto do artigo (a apropriação da paisagem e seus elementos desenhados e a sua “transformação” em patrimônio); a segunda aborda empiricamente a ocupação regional nos Setecentos e o papel da única vila criada na região do Além-São Francisco (São Francisco das Chagas da Barra do Rio Grande) e, na terceira seção, faz-se o uso de mapas

históricos como sustentação para análises dos processos espaciais naqueles tempos pretéritos com indicação intertextual de bases materiais que sofrem hodiernamente do fenômeno de patrimonialização.

Acompanhando a orientação de Moraes (2009), acredita-se que a busca pela formação do território colonial tem mais relação com uma dinâmica têmpora-espacialmente diferenciada e, portanto, complexa, pois não é linear, do que com uma cansativa, maçante e inócua relação de fatos e objetos dispostos estaticamente numa paisagem, como se a sua mera descrição fosse suficiente para entender a organização e processos sociais que davam vida àquele dado tempo e espaço. Uma coisa, entretanto, não prescinde da outra. A leitura da paisagem e da disposição dos objetos físicos é instrumental clássico das análises geográficas e a cartografia histórica é uma ferramenta essencial exatamente por apresentar, segundo uma perspectiva específica, o conjunto de fixos que compunham, em um dado momento, a configuração territorial a ser analisada.

Corroborando com esse raciocínio, Andrade (2012, p. 284) informa que

A imagem, notadamente quando cartografada, revela a perspectiva do seu criador acerca de um recorte da paisagem, distribuindo os elementos materiais pelo papel e dando um sentido de representação escalar à outrora folha em branco. O espaço torna-se legível quando revelado pela escrita, pela fala e pelas imagens que, prenhas de significados apresentam formas e conteúdos das complexas dinâmicas territoriais.

O que hoje é tratado como patrimônio resulta, outrossim, de uma representação e leitura do espaço. Moreira (2007, p. 16) ensina que “em todas as fases de tempo, foi pois a imagem de uma ciência colada ao espaço e ao mapa que se firmou na mente dos homens como o traço identitário da Geografia”.

2. O papel da Geografia Histórica na interpretação de paisagens e espaços pretéritos: desafios sob cartografias de então[i]

O debruçar-se sobre os estudos de Geografia Histórica, como sobre quaisquer estudos de base espacial, implica em um desafio primordial de “saber ler o sentido e o significado do que dizem as imagens, que fazem do espaço a categoria por excelência de explicação do mundo como história” (Moreira, 2007, p. 22).

Como orientação basilar, tem-se a paisagem como conceito fundamental para essas análises do espaço desenhado/ cartografado, aqui entendida conforme Santos (1997, p. 83), como um “conjunto de formas que, num dado momento, exprimem as heranças que representam as sucessivas relações localizadas entre homem e natureza”, que desenhada nos mapas históricos, dá pistas acerca da organização e dinâmica de estruturas espaciais do passado.

Como orienta Santos (1997, pp. 83 - 88) a distribuição dos objetos técnicos, matéria da intervenção social sobre a natureza, dá apenas uma ideia parcial sobre os processos vividos em uma dada configuração territorial. O entendimento completo, sempre por ser apreendido por conta da totalidade dinâmica que é o espaço geográfico, só se aproxima do real, quando se estabelece a relação analítica entre as formas materiais da paisagem com o conteúdo e sentido social que elas possuem naquele tempo e espaço[ii].

Abreu (2011, p. 35) corrobora com esse entendimento quando destaca a importância dos mapas históricos como instrumentos de leitura de paisagens pretéritas, entretanto alerta que “o que não podemos fazer é reduzir a contribuição da Geografia à recuperação de formas morfológicas. Pois, são as formas não espaciais “que dão conteúdo às formas morfológicas. Não podemos compreender uma sem entender a outra”. Nesse sentido, a Geografia desempenha papel central no resgate da memória sobre dinâmicas espaciais pretéritas.

A leitura e interpretação de imagens que revelam elementos de paisagens do passado é um instrumental amplamente utilizado pela ciência, ainda mais na atualidade com a valorização do patrimônio histórico, o seu perverso uso econômico, e o crescimento exponencial dos trabalhos de Geografia Histórica. Os mapas antigos são desenhos que estabelecem o “elo entre o conhecimento da realidade e a ação sobre ela e, portanto, sinônimo de desígnio” (Bueno, 2011, p. 30) para o planejamento territorial naquele tempo. Mapear significava conhecer o território. Os mapas históricos, especificamente, eram verdadeiros instrumentos de comunicação, posse e estratégia territorial. Ao considerar as imprecisões e intencionalidades, a cartografia revelava a configuração territorial em um dado recorte temporal, não sendo por um acaso que a “missão” de mapear o espaço colonial era restrito a alguns poucos indivíduos. O resultado estático do desenho apresenta indícios e marcas de uma dinâmica vivida no espaço geográfico. Cores, linhas e nomes se articulam mostrando formações urbanas hierarquicamente distribuídas, caminhos terrestres, rede hidrográfica, base orográfica, engenhos e regiões geográficas, elementos que compõem estruturas espaciais do passado e que, em determinado momento, foram interpretados e desenhados numa escala imprecisa aos olhos do cartógrafo, revelando substratos dinâmicos que tanto sustentavam como induziam ações no território ocupado.

Beatriz Bueno assevera que os trabalhos de cartografia definiam oficialmente o território e que a interpretação das séries de desenhos do território, da arquitetura civil, militar e religiosa, das vilas e cidades nos permite entrever os diferentes momentos da política de colonização – mais ou menos centralizada nas mãos da Coroa – e expansão das linhas de domínio do império português; “são a fala da conquista”. (Bueno, 2011, p. 300).

No texto que segue, busca-se identificar as possibilidades e limites do uso das imagens da cartografia e iconografia histórica como instrumentos de análises do espaço pretérito a partir da base empírica do Oeste baiano. Assim, procura-se discutir o papel da cartografia como leitura escalar que dá visibilidade a um dado espaço a partir da apresentação de elementos da sua paisagem. Esse é o desafio que se impõe, o de desvendar as informações desenhadas e implícitas nas imagens em escala do real. Como receitou Castro (1995, p. 127), mapear é uma “estratégia de apreensão da realidade – pela impossibilidade de apreendê-la in totum”.

3. Ocupação do Oeste e o papel do núcleo de Barra: a dinâmica do território colonial nos “sertões” baianos

A atual mesorregião Extremo Oeste baiano, bem como a maior parte dos municípios que compõem a mesorregião do vale Sanfranciscano da Bahia, é decorrente de uma história de ocupação formal, povoamento e uso relativamente recentes com a primeira sede de vila criada na região apenas na segunda metade do século XVIII.

Toda a margem esquerda do médio São Francisco, ainda que cortada por vários caminhos terrestres e fluviais ao longo do século XVIII, possuía nesse período uma ocupação político-administrativa absolutamente dispersa, chegando ao final dos Setecentos, conforme indicado alhures, com apenas uma vila elevada – São Francisco das Chagas da Barra do Rio Grande –, ao passo que na faixa litorânea da Capitania da Bahia havia 25 vilas e a cidade capital de Salvador da Baía de Todos os Santos, seis outras vilas mais adentro do território, três em áreas mineiras uma ao norte e duas ao centro da Serra do Sincorá e, junto ao Rio São Francisco, na sua margem esquerda, mais uma vila – Santo Antônio do Urubu de Cima. Certamente, do que hoje é o território baiano, a porção oeste foi a mais tardiamente ocupada.

O Além-São Francisco, na verdade, não pertenceu exclusivamente à Capitania da Bahia e, didaticamente, Vianna ensina que:

O território em que se acha a cidade [da Barra do Rio Grande], bem como todo o da margem esquerda de S. Francisco, conhecido por sertão de Rodellas, sendo primitivamente pertecente a Bahia, que o colonisou e administrou, fundando D. João de Lancastro nem só a povoação de que, como já Lancastro nem só a povoação de que, como já dissemos, surgiu a actual cidade da Barra, como as outras de Campo-Largo, Pilão Arcado, etc, passou, em virtude do decreto regio de 11 de janeiro de 1715, a pertencer a Pernambuco, mas somente na parte administrativa e ecclesiastica, porquanto a judicial continuou sujeita a Bahia. mais tarde o decreto de 15 de janeiro de 1810 creou a comarca do Sertão de Pernambuco, comprehendendo a villa de Cimbres, os julgados de Garanhuns, Theresina, Riberia de Pajahú, Tacaratú, Cabrobó e a villa de S. Francisco das Chagas da Barra do Rio Grande com as povoações de Pilão-Arcado, Campo Largo e Carinhanha, mandado que a villa da Barra, que até então era da correição de Jacobina, não obstante pertencer a capitania de Pernambuco, por lhe estar mais proxima do que a cabeça da comarca respectiva, ficasse na sua correição pertencendo a nova comarca. O decreto porém, de 3 de junho de 1820, creou nova comarca, desmembrada da do sertão de Pernambuco, denominando-a do Rio de S. Francisco, comprehendendo, como cabeça, a dita villa da Barra, e a de Pilão Arcado com as povoações de Campo Largo e Carinhanha. Esta comarca do Rio de S. Francisco, que começava no Pão da História e terminava no rio Caribuamba, foi pelo decreto de 7 de julho de 1824 desmembrada de Pernambuco e annexada a provincia de Minas, mas a resolução de 15 de outubro de 1827 desligou-a desta ultima e encorporou-a a Bahia, voltando assim este vasto territorio a primitiva possuidora depois de cento e doze annos (Vianna, 1893, pp. 424 - 425).

Ou seja, o Sertão de Rodellas, ao longo da margem esquerda do rio São Francisco pertenceu, durante a maior parte do século XVIII à Capitania de Pernambuco, pela facilidade de acesso àquelas terras através das margens do dito rio. Foi nesse período, mais exatamente em 23 de agosto de 1753 que, respeitando a provisão régia de cinco de dezembro de 1752, foi erigida a vila de São Francisco das Chagas da Barra do Rio Grande, hoje a cidade de Barra na mesorregião Vale Sanfranciscano da Bahia.

A localização estratégica foi fator fundamental na elevação desta vila. Ela foi fundada num "entroncamento" de vias fluviais que articulava o norte e o sul através do rio São Francisco e acessava por caminhos hídricos ou terrestres as terras/minas do leste e oeste. A vila é decorrente de um arraial formado por índios pacificados a partir de orientação do então Governador Geral D. João de Lancastro ao final do século XVII. Esta medida foi tomada para evitar as invasões e ataques do gentio (Acoroazes e Mocoazes) às fazendas de gado da região. Os óbices demográficos e materiais daquelas distantes terras, porém levou ao retardo da elevação do povoado a vila, só ocorrendo depois de mais de meio século.

Após a constituição da vila, entretanto, a nova formação urbana passou a exercer uma centralidade política, administrativa, religiosa, jurídica e comercial (junto à desembocadura do Rio Grande no São Francisco) por um vasto termo só fragmentado em novas vilas no século seguinte, como se vê no Quadro 1.

Quadro 1
Ordem cronológica da sequência de desmembramentos da vila de São Francisco das Chagas da Barra do Rio Grande.

SEI, 2003. Elaboração de Adriano Bittencourt Andrade.

A observação da evolução político-administrativa do Oeste baiano permite traçar algumas considerações acerca da organização espacial daquela região no século XVIII: uma marca da ocupação e interiorização do Brasil colonial que se confirma na região é a utilização dos corredores hidrográficos, tanto pela facilidade de acesso/orientação, como pela disponibilidade de alimentação. Se o Rio São Francisco teve um papel primordial na ocupação dos sertões, na condução dos gados e no acesso às minas, os seus três principais afluentes da margem esquerda – Cariranha, Corrente e Grande – também exerceram importante função na penetração para o Além-São Francisco e, consequentemente, no estabelecimento dos primeiros núcleos de povoamento. Na sobreposição do mapa hidrográfico da região com a sede das principais formações urbanas é possível verificar que o traçado das vias fluviais, mesmo as não navegáveis, coincide com a localização das vilas e cidades locais.

Destaca-se a presença de apenas uma vila erigida no século XVIII para toda a região, entretanto, observando a margem direita do rio São Francisco, esse fato já não aparece tão isolado visto que em 1720, estimulado pelas descobertas mineralógicas foi criada a vila de Santo Antônio de J

Jacobina e quatro anos após, em 1724, duas outras ao sul da Chapada, Santíssimo Sacramento das Minas do Rio de Contas e Nossa Senhora do Livramento das Minas do Rio de Contas. Além dessas, com função similar a da Barra do Rio Grande, foi erguida em 1745, junto à margem do São Francisco, a vila de Santo Antônio do Urubu de Cima, no lugar que hoje se encontra a cidade de Paratinga. Esses eventos, relativamente próximos temporal e espacialmente, refletem um interesse ascendente do poder formal em legitimar a ocupação e uso sobre os territórios dos sertões, especialmente quando isso significava aproximação ou viabilidade de acesso às minas.

Ainda que o fato político da emancipação só tenha ocorrido nos séculos XIX e XX para todos os municípios do Oeste baiano, no século XVIII, compondo o termo da vila de Barra do Rio Grande, as atuais sedes de cidades eram fazendas, arraiais, capelas, povoados, sedes de freguesias, etc. que já exerciam relativa centralidade nos caminhos que cruzavam tal região. Eram núcleos puntiformes ainda não elevados a vila no século XVIII, porém já ocupados e exercendo importante papel no estabelecimento dos caminhos de gado e para as minas.

As fontes documentais e secundárias sugerem uma série de atividades para as formações urbanas do Oeste baiano no século XIX que, acredita-se, tem a sua gênese em tempos mais recuados nos anos Setecentos. Lavradores de mandioca, cana, fumo, milho, arroz, feijão, algodão, mineradores, criadores de gado e a existência de um comércio regular em unidades construídas ou feiras livres (inclusive com registro de contato com formações urbanas de Minas Gerais e Goiás), certamente constituem atividades que se intensificaram com a ampliação da ocupação e dos fluxos na região, mas que tem a sua origem em tempos mais remotos o que sugere uma demarcação do território por agentes privados ou religiosos antes da presença formal da Coroa. Esse fato está presente na análise acerca da origem dos municípios feitos por Viana (1893) e é visível na leitura da cartografia histórica que se fará a seguir.

4. Mapas históricos: oportunizando elucidações de análises espaciais e temporais

Na análise que segue nessa seção, fez-se a opção por lançar olhares cruzados sobre dois mapas na escala regional com cerca de um século de diferença temporal, da metade dos Setecentos à metade dos Oitocentos, o que permite verificar uma certa inércia espacial e bases cartográficas que se assemelham, além de marcas do território (caminhos, vias hídricas e parcos povoamentos) que se repetem, demarcando uma ocupação presente, mas escassa para o Além-São Francisco. Num exercício de diálogo entre as diferentes perspectivas escalares e o que elas revelam sobre a dinâmica territorial, fez-se também um mapa conjuntural na grande escala para verificar as nuanças que marcaram a edificação da única vila da região até o final do período colonial: Vila de Barra.

Conforme mencionado, analisa-se, inicialmente, dois mapas na média escala: “O Mapa dos confins do Brazil com as terras da Coroa de Espanha na America Meridional” (Biblioteca Nacional, 20 Ago 2018), datado de 1749, conhecido como o Mapa das Cortes e a “Carta topographica e administrativa da provincia de Bahia” (Biblioteca Nacional, 13 Set 2018), de 1857 (figuras 2 e 3).

É importante salientar que a forma como foram montadas as figuras tem o objetivo de melhor demonstrar os detalhes da região onde se encontra a cidade de Barra e adjacências. O zoom dado em ambos através do recorte, não deve ser considerado uma tentativa de aumento de escala, o que seria um grave erro cartográfico, mas uma forma didática de melhor observar os fenômenos descritos, dada as limitações para apresentar o mapa em seu tamanho original neste artigo.

Cabe destacar que entre os dois mapas em questão há mais que um século de diferença (1749 e 1857). Com o hiato temporal existente entre os dois documentos, já é possível perceber uma evolução nas técnicas de mapeamento e nível de informação retratada, resguardando-se naturalmente, os objetivos distintos de cada um e sua escala. Não obstante essas ressalvas, observa-se uma nítida permanência de símbolos espaciais ou elementos postos cartograficamente como essenciais na demarcação da região aqui estudada (Rios Grande e São Francisco, principais caminhos terrestres e a vila de Barra).

O Mapa das Cortes, conforme visto anteriormente na figura 2, mostra todo território do Brasil pertencente à coroa portuguesa, ainda sem os limites conhecidos atualmente. Salta aos olhos a demarcação dos principais rios e alguns afluentes, caminhos naturais à interiorização que possibilitam deslocamento, alimentos/água e orientação. As formas de relevo aparecem de modo genérico e alguns aglomerados populacionais no litoral são sinalizados, como a cidade de Salvador, o que evidencia uma ocupação e conhecimento parco de grande parte interior do Brasil pelos colonizadores neste momento.


Figura 2
Mapa das Cortes, 1749.
Biblioteca Nacional, 20 Ago 2018. Elaboração de José Jackson Andrade.

A confluência do Rio São Francisco com Rio Grande já está perfeitamente cartografada nesta época, fato este que denota conhecimento do objeto cartografado. O Rio São Francisco, também conhecido como Rio da Integração Nacional, já era conhecido pelos Europeus desde 4 de outubro de 1501 (Lessa & Pontes, 2018), quando em expedição comandada por Américo Vespúcio e Gonçalo Coelho chegaram à sua foz, onde, atualmente, temos a divisa entre os estados de Sergipe e Alagoas.

A “Carta topographica e administrativa da provincia de Bahia” (figura 3), traz um desenho com maior precisão, que certamente está relacionado a técnicas de mapeamento mais modernas acessíveis na época. Esse fato é destacado na carta junto ao título: “erigida sobre documentos mais modernos”. O nível de detalhamento e volume das informações sinalizam a uma ocupação contínua, ainda que escassa, dos sertões interiores, notadamente daqueles pontos estratégicos ao uso do território colonial.


Figura 3
Carta topograhica e administrativa da província da Bahia: erigida sobre documentos mais modernos, 1857.
Biblioteca Nacional, 20 Ago 2018. Elaboração de José Jackson Andrade.

Além do detalhamento do relevo, a ocupação mais densa é demonstrada pelo maior número de caminhos e povoações, e dentre estas, a Barra tem destaque, como única vila da região por muito tempo, o que evidencia sua importância e centralidade. O Rio São Francisco foi por séculos, como afirmam Batistel & Comandaroba (1999, p. 86), a principal via de acesso a esta região.

O principal meio de transporte para fora da Barra, naturalmente, foi o através dos rios São Francisco e Grande, com barcos, os mais famosos foram os barcos a vapor, que tiveram grande importância no desenvolvimento da Barra e região. Com a abertura da estrada asfaltada Salvador – Brasília, o transporte tomou outro rumo. Aos poucos foi deixando-se de lado a via fluvial, dando lugar ao transporte rodoviário.

Uma análise mais atenta sobre os caminhos mapeados e as vias hídricas mostra uma articulação entre os pontos de maior povoamento destacados na figura 3 e os caminhos que permitiam, segundo aquela temporalidade específica, ligações físicas e acesso aos pleitos ao poder formal que, ao longo do século XVIII e mais decisivamente no século XIX, lá se estabeleceu com a criação das suas bases locais, as primeiras vilas.

Lançando olhar num mapa em grande escala (figura 4), pode-se sugerir análises no nível intraurbano. Antes, entretanto, faz-se necessário ressalvar que esse mapa conjectural (Abreu, 2005) foi produzido a partir da observação de rugosidades que permanecem no espaço hodierno e da colaboração do relato oral de moradores de Barra[iv] sobre as antigas edificações da cidade. Nesse sentido, é inevitável verificar alguns problemas atinentes à anacronia das informações, visto que nem todos esses elementos perduram edificados até a nossa contemporaneidade, entretanto, fez-se a opção metodológica pela manutenção das referências por conta da importante noção de distribuição espacial dos principais equipamentos urbanos no cenário da fundação e primeiros anos da vila de Barra do Rio Grande.


Figura 4
Núcleo central da cidade de Barra, em 2018, com equipamentos do passado colonial.
Google Maps Elaboração de José Jackson Andrade.

O desenho urbano original certamente não se distingue muito desse cartograma apresentado e, nesse sentido, revela pistas sobre a dinâmica territorial no momento da sua erição.

Destacaram-se, na figura anterior, elementos nodais do “modelo” da urbanização portuguesa que, ainda que distante do rigor das normas impostas pela colonização da América Espanhola, repercutia nos confins da colônia, ainda que respeitando as formas vernaculares e os ditames fisiográficos do sítio onde a vila ou cidade estava sendo edificada/implantada.

Percebe-se com clareza equipamentos que se repetem em todo o domínio colonial português: a praça central ladeada pela Igreja Matriz (realçando a importância deste agente de produção do espaço) e pela Casa de Câmara e Cadeia com o pelourinho (símbolo do poder formal da Coroa) que, no caso de Barra, ainda não tivemos informação precisa sobre a sua localização. O arruamento relativamente linear e quadriculado, se não tem a dimensão de um largo tabuleiro dado à longínqua localização e parco povoamento da área, reflete um “saber fazer” do urbano que se inaugurava e que procurava seguir aos parâmetros da racionalidade e fluidez que “tocava” em todo o território colonial.

Essa, aliás, é uma excelente oportunidade de aprofundamento de pesquisa: a busca pelo entendimento das nuanças que marcaram o desenho urbano de vilas fundadas em períodos aproximados, porém em diferentes dinâmicas territoriais como no ocupado Recôncavo Baiano, nas Minas Gerais e nos sertões do Além-São Francisco, por exemplo.

Essa, aliás, é uma excelente oportunidade de aprofundamento de pesquisa: a busca pelo entendimento das nuanças que marcaram o desenho urbano de vilas fundadas em períodos aproximados, porém em diferentes dinâmicas territoriais como no ocupado Recôncavo Baiano, nas Minas Gerais e nos sertões do Além-São Francisco, por exemplo.

Dois outros elementos hão de ser mencionados na breve análise que se faz desse mapa conjuntural (figura 4): Primeiro a predominância das águas na imagem. A vila de Barra do Rio Grande foi erigida no ponto de confluência entre o rio São Francisco e o seu principal afluente da margem esquerda. É evidente que não foi obra do acaso. O rio, notadamente rios volumosos como o “Velho Chico”, foram fundamentais para as estratégias de interiorização ao território colonial pois ofereciam alimentos (água e víveres) e orientação no espaço. O outro elemento a ser tratado, absolutamente imbricado com o primeiro, é a presença do cais junto ao núcleo original da vila. Entre cais e a atual praça da Bandeira, certamente havia trapiches e outros equipamentos comerciais que davam vazão à função de entreposto que a vila assumia nos inóspitos sertões que mascates, tropeiros e aventureiros singravam em busca do eldorado das minas no interior da colônia.

5. Considerações finais

As análises aqui desenvolvidas somam esforços para a busca pelo entendimento da dinâmica territorial do Oeste baiano ao longo do século XVIII, notadamente, aos estudos que se sustentam na cartografia histórica. Apesar dos claros limites do texto de um artigo e, principalmente, das lacunas que ainda existem na pesquisa documental sobre o Além-São Francisco para os Setecentos, há uma clara sinalização do papel político-administrativo da Vila de Barra, bem como a sua importância para a estruturação espacial do poder da Coroa espraiado pelo território colonial. Também surgem evidências nos documentos cartográficos que a região estruturou-se, naquele tempo, muito mais como espaço de passagem/circulação, que como uma região de fixação, certamente pelo interesse mineralógico, norteador das políticas coloniais para aquele tempo espaço, ausente no local e abundante no entorno.

Esse papel da atual cidade de Barra e da própria região deixou marcas concretas e simbólicas no espaço (vias, edifícios, manifestações – vaquejadas –, elementos da natureza – caatinga, montes, rios) que são atualmente incorporadas a partir do jogo dos interesses contemporâneos como patrimônio local e regional. Clarificando a ideia que a “eleição” do patrimônio, medidas as intencionalidades dos grupos formais que o determinam para fins de alocação de recursos[v], reflete uma produção e dinâmica territorial, por vezes, em tempos mais recuados.

O hiato de informações documentais e o volume de fontes ainda a serem exploradas se apresenta como estímulo aos estudos vindouros, mas também prepara armadilhas às pretensas conclusões de agora. A pesquisa primária sempre apresenta novas possibilidades de análises complementares ou contraditórias com os cenários já traçados.

O texto que aqui se apresentou, sustentado em fontes secundárias e primárias (escritas e cartográficas), revelou muito objetivamente os primórdios da ocupação e uso das terras da margem direita do médio São Francisco, boa parte delas circunscritas na região do Oeste baiano, fez-se isso apoiado no arcabouço teórico-conceitual da Geografia Histórica e priorizando dados do século XVIII, quando aparecem os primeiros registros efetivos de colonização daquelas terras. É fundamental esclarecer que a dimensão do texto permite apenas a apresentação de dados documentais e breves análises acerca de outros escritos, o que sugere brechas a serem ocupadas com novos estudos que avancem, por exemplo, na avaliação dos agentes de produção daquela região, ou na gênese do urbano para aquele tempo e espaço.

Concretamente tem-se dados irrefutáveis sobre a constituição e evolução político-administrativa da região, a exemplo da elevação de apenas uma vila ao longo do século XVIII com um imenso termo que ocupava todo o território do que hoje se conhece como mesorregião do Extremo Oeste baiano. Esse território foi fragmentado em oito novas vilas ao longo do século XIX e, só no século XX sofreu os desmembramentos que resultaram na sua atual configuração política. É também evidente o parco povoamento e ocupação desse espaço nos anos Setecentos, ao passo que o litoral e área mineira já possuíam um relativo adensamento demográfico; este vazio compunha o genérico e desconhecido "sertão".

Outras considerações podem ser traçadas à luz dos indícios da documentação apresentada:

(1) A falta de registros cartográficos na média e pequena escala não significa necessariamente que não havia ocupação na área, uma cartografia em grande escala poderia revelar a existência de agentes da colonização "dividindo", por vezes de forma conflituosa, o território ocupado pelo gentio principalmente com o estabelecimento de fazendas, com a lavoura e o gado, e pousos para os caminhos que, inevitavelmente, começavam a cortar a região;

(2) Sobre os caminhos, é possível perceber uma malha reticular formada por vias hídricas e terrestres, ainda não completamente reveladas pelos documentos consultados, que articulavam os pontos de maior povoamento, e permitiam, segundo aquela temporalidade específica, ligações e pleitos ao poder formal que, ao longo do século XVIII e mais decisivamente no século XIX, lá se estabeleceu com a criação das suas bases locais, as primeiras vilas;

(3) A dispersão da produção pecuária ao longo dos rios e a atração ao interior produzido pela notícia da descoberta de metais preciosos certamente foram os dois principais motivos da ocupação das terras para oeste do rio São Francisco. Tal rio cruza o imaginário polígono já citado entre as terras do centro da Bahia, a Capitania de Goiás e a de Minas Gerais. Um longo território inóspito a ser transpassado no estabelecimento de vínculos entre espaços de mais denso povoamento;

(4) O que aparece mapeado (caminhos, fazendas, vilas etc.) faz parte de um processo de produção do espaço que possui, por vezes, longa existência temporal. Daí a necessidade da “leitura” dos dados e cartografia levando em conta a dinâmica do espaço geográfico: o que se registra pontualmente pode ter existência e sentidos anteriores.

(5) Destarte essa afirmação anterior, os elementos produzidos no passado colonial e “tomados” como marcas da história do território (ressalvas feitas sobre a eliminação intencional de memórias pré-cabralinas) são apropriados atualmente num viés patrimonialista que, conforme Costa (2015) repercute mundialmente em maior ou menor escala a partir dos interesses em jogo (uso pelo trade turismo; mercantilização e venda do espaço, ou, por outro lado, seguindo a lógica da “dialética da memória” (Costa, 2015, p. 107), o resgate de manifestações e equipamentos de outrora numa perspectiva de revalorização do patrimônio material e imaterial).

Tem-se então os estudos pautados na Geografia Histórica como elementos essenciais para hodierna ativação do patrimônio, notadamente, como orienta Costa (2017), o patrimônio popular, para além de “selos” e apropriações verticalizadas (externas). Desta forma, o patrimônio como máquina de guerra e instrumento de resistência de grupos explorados no desenrolar temporal de ocupação e uso dos territórios.

A leitura que se fez da produção do espaço do Oeste baiano no século XVIII não se esgota nesse texto e, principalmente, não tem fim em si mesmo, acredita-se, entretanto, que o encontro com outros estudos de diversos “encaixes” disciplinares, possibilita o entendimento muito mais amplo desta dinâmica região baiana da atualidade.

6. Referências

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Notas

[i] O texto dessa seção foi aprofundado, numa outra perspectiva, no artigo defendido por Andrade (2012).
[ii] Uma longa e profícua discussão sobre essa relação entre o espaço como totalidade e a apropriação e “eleição” do patrimônio é desenvolvida por Costa (2015).
[iii] Parte do texto dessa seção foi desenvolvido no artigo de Andrade (2013b).
[iv] Além de contatos diversos e da visita em campo, foi inestimável a contribuição do Sr. Sócrares Nascimento que, além do relato, fez um cartograma que, em larga escala, reproduzimos nesta figura a partir da base cartográfica do Google Maps.
[v] Como precisamente alertam Costa e Scarlato (2012).


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