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Expansão da soja e políticas de reforma agrária no Mato Grosso, Brasil

Expansión de la soja y políticas de reforma agraria en Mato Grosso, Brasil

Soy expansion and land reform policies in Mato Grosso, Brazil

Luiz Felipe Ferrari Cerqueira de Farias
Universidade de São Paulo , Brasil

Expansão da soja e políticas de reforma agrária no Mato Grosso, Brasil

PatryTer, vol. 5, núm. 9, pp. 54-72, 2022

Universidade de Brasília

Recepción: 10 Marzo 2021

Aprobación: 19 Junio 2021

Publicación: 01 Marzo 2022

Resumo: O objetivo deste artigo será expor a dinâmica da expansão da soja no estado do Mato Grosso a partir da década de 1980 e analisar os impasses que este processo impôs às políticas de reforma agrária na região. Em um contexto de enorme sucesso econômico agroexportador e de relativa retração do debate acerca da reforma agrária no país, o artigo propõe-se resgatar a atualidade da questão agrária e da luta pela terra no coração do “agronegócio”. Com base na análise de dados de fontes oficiais, buscaremos destacar tanto a resiliência, quanto os desafios da agricultura familiar no estado do Mato Grosso, em meio à expansão da agricultura empresarial voltada ao mercado externo.

Palavras-chave: agronegócio, luta pela terra, reforma agrária.

Resumen: El propósito de este artículo será exponer la dinámica de expansión de la soja en el estado de Mato Grosso a partir de la década de 1980 y analizar los impasses que este proceso ha impuesto a las políticas de reforma agraria en la región. En un contexto de enorme éxito económico agroexportador y de relativa retracción del debate sobre la reforma agraria en el país, el artículo propone recuperar la naturaleza actual del tema agrario y de la lucha por la tierra em el seno del “agronegocio”. A partir del análisis de datos de fuentes oficiales, destacaremos tanto la resiliencia como los desafíos de la agricultura familiar en el estado de Mato Groso, en medio de la expansión de la agricultura empresarial dirigida al mercado externo.

Palabras clave: agronegocios, lucha por la tierra, reforma agraria.

Abstract: This article intends to analyze the dynamics of soy expansion in the state of Mato Grosso from the 1980s onwards and the impasses imposed to the agrarian reform policies in the region. In a context of enormous agro-export economic success e relative retraction of the debate about agrarian reform in the country, the article proposes to recover the current nature of the agrarian issue at the heart of “agribusiness”. Based on the analysis of data from official sources, we will highlight both the resilience and challenges of family farming in the state of Mato Grosso, in the midst of the expansion of business agriculture aimed at the foreign market

Keywords: agribusiness, struggle for land, agrarian reform.

1. Introdução

O complexo soja no Brasil alcançou um desempenho econômico excepcional ao longo das últimas décadas, tornando-se um dos mais importantes sustentáculos do atual padrão de articulação do país com o mercado internacional. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), entre 2000 e 2018 a produção brasileira de soja saltou de 32,8 milhões de toneladas em 13,7 milhões de hectares para 117,9 milhões de toneladas em 34,8 milhões de hectares. Durante este período, a soja e seus derivados consolidaram-se dentre os principais produtos da pauta de exportações brasileira: segundo as séries históricas do Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços, as exportações brasileiras de soja em grãos, farelo e óleo saltaram de US$ 4,2 bilhões ou 7,5% das exportações totais do país em 2000 para US$40,7 bilhões ou 17% das exportações totais do país em 2018.

Principal produtor brasileiro do grão no país hoje, o estado do Mato Grosso viu sua safra saltar de 8,8 milhões de toneladas em 2,9 milhões de hectares no ano 2000 para 31,6 milhões de toneladas em 9,4 milhões de hectares em 2018. O objetivo deste artigo será identificar alguns importantes processos sociais que jazem sob o estrondoso sucesso econômico desta cultura no estado. Apontaremos as causas e as consequências da expansão vertiginosa da cultura da soja em terras mato-grossenses a partir da década de 1980, com destaque especialmente para as transformações da estrutura fundiária e para a multiplicação de novos e velhos constrangimentos à luta pela terra e à reprodução da agricultura familiar.

Neste contexto, a perspectiva político-metodológica que orientará este artigo propõe-se inspirada na obra de Henri Lefebvre, especificamente em sua leitura acerca da articulação de contradições sociais de diferentes tempos históricos em uma mesma formação econômico-social. Recuperando as elaborações de Lênin acerca desta noção estabelecida por Marx, Lefebvre afirma que o desenvolvimento histórico da acumulação capitalista não avança uniformemente como na abstração (científica, mas incompleta) presente em “O Capital”. Se em alguns países o capitalismo foi capaz de fazer tábula rasa daquilo que o precedeu, especialmente em países periféricos a expansão das relações capitalistas de produção não destruiu relações sociais antecedentes, antes as conservou e subordinou a sua dinâmica. Segue-se daí, portanto, que formações econômico-sociais com diferentes trajetórias são compostas de distintas sedimentações de dilemas históricos sucessivos, mantidos sem solução no interior da ordem burguesa capitalista (Lefebvre, 1969, pp. 200-201). Esta perspectiva destaca o caráter multiforme de tensões sociais ocultas sob a aparente homogeneidade e linearidade do crescimento econômico e do progresso tecnológico. Em “A produção do espaço”, Lefebvre assim se coloca:

Em ‘O Capital’, Marx teve a intenção de analisar e expor o modo de produção capitalista e a sociedade burguesa segundo um esquema binário (dialético): a oposição capital-trabalho, que nos levaria por sua vez à oposição lucro-salário. Esta polaridade permitia compreender formalmente o movimento conflitivo e, em consequência, formulá-lo inteligivelmente, mas supunha a desaparição do terceiro termo procedente da história: a terra, a classe dos proprietários fundiários, as rendas fundiárias, a agricultura como tal. De um modo mais geral, o protagonismo outorgado a uma oposição binária de caráter conflitivo (dialético) pressupunha a subordinação do histórico ao econômico e, em consequência, a dissolução ou absorção pelo econômico como tal das múltiplas formações herdadas da história, anteriores ao capitalismo. [...] Pois bem, Marx não pôde deixar de apreciar rapidamente as resistências de um esquema tão redutor. De onde provinha esta resistência? De vários lados e, em primeiro lugar, da realidade considerada: a terra. A escala mundial, não desaparecia a propriedade do solo, nem se reduzia a importância política dos proprietários fundiários ou os caracteres específicos da produção agrícola. (Lefebvre, 2013, p. 359, tradução minha)

Segundo esta leitura, os processos de agroindustrialização e urbanização do campo não são homogêneos e lineares, mas se impõem de modo desigual e combinado sobre o globo. Especial mas não somente em países periféricos como o Brasil, o bloco histórico entre burguesia e aristocracia fundiária transformou ao longo do século XX a apropriação da renda da terra em um dos principais fundamentos para a formação do capital industrial. Como demonstrou Martins, isso significa que a generalização do mercado de trabalho livre assalariado foi acompanhada da reprodução de relações de produção e da intensificação de conflitos sociais envolvendo famílias de trabalhadores rurais com diferentes formas de acesso parcial e precário à terra (Martins, 1995, pp. 79-80). Por um lado, a expansão e o adensamento do tecido urbano sobre o território crescentemente privaram tais comunidades rurais de autonomia, subordinando-as aos imperativos do mercado e ressocializando-as segundo novos modos de viver e pensar. Em ritmos variados, agrupamentos tradicionais camponeses foram absorvidos e transformados pelo conjunto de manifestações do predomínio da cidade sobre o campo: redes de comunicação e transporte, agências bancárias e supermercados, instituições de ensino e extensão rural, serviços de saneamento e saúde (Lefebvre, 2002, p. 17). Por outro lado, o processo de urbanização do campo envolveu a reprodução e reelaboração de ecos fragmentários da sociabilidade do mundo tradicional rural, evidentes no cultivo de hortas e na criação de galinhas, nas redes de trocas de comida e favores entre parentes e vizinhos ou mesmo no desejo ambivalente do retorno à terra que ainda hoje permeia as periferias de muitas das cidades funcionais ao campo moderno. Lefebvre assim se coloca a este respeito na introdução à coletânea “Do rural ao urbano”:

Novas periodizações do tempo socio-historico se impõem já; por exemplo, entre a era campesina, a era industrial e a era urbana aparecem diferenças, com um corte (descontinuidade relativa) entre a) o predomínio do campo e da produção agrícola, b) o predomínio da empresa industrial, de sua racionalidade e c) o predomínio, finalmente, do urbano e de sua problemática. A era urbana não faz desaparecer por encantamento ou desencantamento as contradições e conflitos da era industrial. Esta última não consegue tampouco abolir os conflitos e contradições da era anterior. [...] A cidade, sua explosão, a sociedade urbana e o ‘urbano’ em emergência, superpõem suas contradições às da era industrial e da era agrícola. Segue-se daí um nó pouco extricável e uma problemática sumamente complexa. Quais contradições podem pretender-se motrizes do crescimento e do desenvolvimento, isto é, eventualmente destruidoras? Todas. (Lefebvre, 1978, p. 12, grifo do autor, tradução minha)

Desde esta perspectiva teórico-metodológica, propomo-nos neste artigo dar continuidade à tradição do pensamento sociológico e geográfico acerca da atualidade da questão agrária e da luta pela terra no campo dito moderno no Brasil contemporâneo. Com inspiração nas elaborações de José de Souza Martins (Martins, 1997), buscaremos demonstrar o caráter desigual e combinado do desenvolvimento do capitalismo no campo brasileiro e os desafios daí decorrentes às políticas de reforma agrária no país. Destacaremos assim conflitos entre a terra de trabalho e a terra de negócio que permanecem vivos, porém ocultos sob a pujança econômica do chamado “agronegócio” da soja e do milho na fronteira agrícola tecnificada do estado do Mato Grosso.

2. Evolução da soja em Mato Grosso

A oja chegou ao Brasil no final do século XIX e ao longo da primeira metade do século XX foi cultivada de maneira incipiente por imigrantes europeus no Rio Grande do Sul como planta forrageira e por imigrantes japoneses em São Paulo para a fabricação caseira de tofu, misso e shoyo. Iniciativas pioneiras de agroindustrialização do grão no país culminaram na inauguração em 1958 em Esteio (RS) da fábrica de óleo de soja da Sociedade Anônima Moinhos Rio-Grandenses (Samrig). Aproximadamente no mesmo período, durante o segundo governo Vargas desenhou-se um pacote tecnológico pioneiro voltado especialmente para a região Sul para fortalecer a triticultura nacional, utilizando-se da soja como cultura subsidiária para a entressafra do trigo no verão. Antecipando projetos das décadas posteriores, o pacote já prescrevia o uso de calcário, adubos químicos, sementes híbridas selecionadas e máquinas agrícolas para preparo do solo, plantio e colheita. Impulsionada pela demanda agroindustrial e por estímulos do poder público, a produção de soja saltou de 200 mil toneladas em 1960 para 1,5 milhão de toneladas em 1970, sendo 88% desse volume produzido nos três estados da Região Sul (Hasse, 2011, p. 35).

O início dos anos 1970 foi marcado por uma grave escassez de proteínas no mercado internacional decorrente de múltiplos fatores ambientais e políticos, impulsionando um aumento excepcional dos preços da soja (Brum, 1988, p. 78). Estimuladas pela demanda externa e pelos incentivos oferecidos pelo poder público durante a ditadura do capital sob tutela militar, cresceram aceleradamente na região Sul a moderna produção de soja e sua articulação com a agroindústria processadora. A produção do grão no país passou de 1,5 milhão de toneladas em 1970 para cerca de 13,7 milhões de toneladas em 1980, concentrando-se nos três estados da Região Sul cerca de 80% do volume de soja produzida e 75% da capacidade de esmagamento instalada ao final da década de 1970. Entretanto, o avanço da produção de soja provocou um aumento explosivo do preço da terra no sul do país e uma tensão social crescente entre agricultores familiares incapazes de manter-se e/ou de transmitir terras às novas gerações. Ademais, a expansão da sojicultura foi acompanhada do agravamento da subordinação de agricultores familiares a instituições financeiras e a indústrias produtoras de insumos agrícolas: o número de sacas de soja necessários para cobrir o custo financeiro do cultivo de 1 hectare subiu de 0,55 em 1973 para 12,81 em 1985 (Rückert, 2003, p. 128). Consequentemente, muitos produtores rurais endividados viram-se obrigados a vender suas terras nos estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná, alimentando os fluxos migratórios especialmente em direção a projetos de colonização no estado do Mato Grosso.

Ao longo da década de 1980 a produção de soja permaneceu estagnada na região Sul e expandiu-se significativamente na região Centro Oeste, especialmente a partir do desenvolvimento de inovações tecnológicas que permitiram a tropicalização do grão, originalmente adaptado às latitudes subtropicais. Desde a década de 1950 investigações a esse respeito foram desenvolvidas pelo Instituto Agronômico de Campinas (IAC) e pelo Instituto Agronômico do Sul (IAS), em Pelotas, em cooperação com centros de pesquisa de universidades norte-americanas sob o programa Aliança para o Progresso. A criação da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) em 1973 possibilitou a sistematização e aprofundamento dos resultados destes estudos no Centro Nacional de Pesquisa da Soja, instalado em 1975 em Londrina (PR). Ali foram desenvolvidos métodos de correção da acidez e do teor de alumínio dos solos dos cerrados, bem como linhagens da soja adaptadas às condições fotoperiódicas e de temperatura de baixas latitudes. Paralelamente, a expansão da infra-estrutura e os incentivos fiscais e creditícios durante a ditadura colocaram o estoque de terras das regiões Centro Oeste e Norte à disposição de investimentos de capital oriundos do Centro Sul. Neste contexto, destaca-se o Programa de Cooperação Nipo-Brasileiro para o Desenvolvimento dos Cerrados (Prodecer), proposto pelo governo japonês ao brasileiro em 1974 em meio à crise de escassez de proteínas no mercado internacional, com objetivo de aumentar a oferta internacional de grãos por meio da incorporação dos cerrados ao circuito produtivo capitalista mundial. O Prodecer I a partir de 1978 incorporou cerca de 70 mil hectares no estado de Minas Gerais, o Prodecer II a partir de 1985 incorporou cerca de 200 mil hectares nos estados de Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Goiás e Bahia e o Prodecer III a partir de 1995 incorporou mais 80 mil hectares nos estados do Maranhão e de Tocantins, somando cerca de 350 mil hectares de cerrado voltados para a produção de grãos (Inocêncio, 2010, p. 95). Como resultado, a produção de soja no Brasil saltou de 13,7 milhões de toneladas em 1980 para 20 milhões em 1990, expandindo-se gradualmente por todas as grandes regiões do território nacional. Enquanto na região Sul o volume produzido do grão manteve-se no patamar de 11 milhões de toneladas, na região Centro Oeste ele expandiu-se de 1,5 para 6,5 milhões de toneladas ao longo da década de 1980.

Ao longo da década de 1990 a região Centro Oeste ultrapassou a região Sul em volume de produção de soja, com destaque para o Mato Grosso que saltou de terceiro para primeiro lugar entre 1990 e 2000 dentre os principais estados produtores do grão. Em 1977 a Embrapa, a Empresa Mato-Grossense de Extensão Rural (Emater), a Companhia de Desenvolvimento Agrícola do Mato Grosso (Codeagri), o Centro de Pesquisa do Cerrado (CPAC) e a Secretaria de Agricultura de Mato Grosso iniciaram pesquisas em campos experimentais de soja no estado com apoio do Polocentro. Durante a primeira metade da década de 1980 a produção de soja mato-grossense se concentrou na mesorregião sudeste do estado em torno dos municípios de Rondonópolis e Primavera do Leste, dotada de infra-estrutura e próxima a fontes de calcário em Goiás. A partir da segunda metade dos anos 1980 assumiu liderança no estado a produção de soja na mesorregião norte, especialmente nas microrregiões do Alto Teles Pires (municípios de Lucas do Rio Verde, Nova Mutum, Sorriso, Nobres e Tapurah) e Parecis (municípios de Diamantino, Campos de Júlio, Sapezal e Campo Novo dos Parecis). Com destaque para estas áreas, o estado de Mato Grosso apresenta uma série de características climáticas e geomorfológicas que favoreceram o rápido crescimento das lavouras de soja: topografia plana, vegetação de baixa densidade florestal, solos profundos e bem drenados e clima estável dividido em duas estações bem definidas. Neste cenário, entre 1990 e 2005 a área de cultivo de soja em Mato Grosso quadruplicou de 1,5 para 6,1 milhões de hectares e a produção do grão saltou de 3 milhões para 17 milhões de toneladas, cerca de um terço da safra brasileira de 51 milhões de toneladas alcançada em 2005.

Em meio a estas transformações na distribuição e no volume da lavoura de soja, ao longo da década de 1990 ocorreu também uma ampla reestruturação das agroindústrias processadoras do grão no país. A cobrança de 12% de ICMS quando se transporta a soja de um estado para o outro estimulou que as agroindústrias processadoras se deslocassem para novas regiões produtoras: se até a década de 1980 o processo de beneficiamento da soja era restrito às regiões Sul e Sudeste, a partir de 2004 a região Centro Oeste assumiu a liderança na capacidade de processamento dentre as agroindústrias esmagadoras ativas no Brasil (Wesz Júnior, 2011, p. 76). Este processo de reorganização espacial foi concomitante a uma acelerada desnacionalização e oligopolização do complexo agroindustrial da soja: enquanto em 1995 as quatro maiores empresas processadoras de soja no Brasil eram Ceval, Santista, Cargill e Sadia, em 2010 ocupava a liderança o grupo ABCD composto pelas quatro maiores tradings transnacionais – ADM, Bunge, Cargill e Louis Dreyfus. Estas gigantes do grão ampliaram seu domínio sobre a cadeia produtiva da soja através de uma crescente participação não apenas sobre a armazenagem, comércio e processamento do grão, mas também sobre o mercado de insumos agrícolas e de crédito para os produtores rurais. Como resultado, um conjunto restrito de grandes empresas assumiu controle sobre parcela significativa da vida econômica e social das principais regiões produtores de soja no Brasil: junto à empresa nacional Amaggi, o grupo ABCD controlava em 2009 cerca de 90% da capacidade de esmagamento do grão, 63% das exportações e 55% das importações totais do Mato Grosso (Wesz Júnior, 2011, p. 127).

As consequências de tamanha dependência em relação a uma única cadeia produtiva orientada pela demanda internacional e pelas estratégias de empresas transnacionais ficaram claras pela primeira vez com a crise dos anos 2005 e 2006, quando a área plantada e a quantidade produzida de soja no estado do Mato Grosso tiveram retração após uma década de contínua expansão. Especialmente a partir do ano 2000, o aumento expressivo dos preços internacionais do grão e a desvalorização cambial do real estimularam um ciclo de endividamento de produtores rurais junto a bancos públicos e às principais trading companies, aumentando a vulnerabilidade dos sojicultores à medida que expandiam a área plantada no estado. Em 2005 a valorização cambial e a diminuição dos preços internacionais da soja provocaram a uma redução da renda recebida pelo produtor rural ao mesmo tempo em que aumentavam seus custos de produção, levando muitos sojicultores à falência e detonando uma série de protestos no meio norte mato-grossense a partir de abril de 2006 (Almeida, 2013, pp. 157-159). Diante das pressões conduzidas pela bancada ruralista no Congresso Nacional, o governo editou uma série de medidas para compensar as perdas dos produtores de soja: recursos para a quitação de dívidas junto a fornecedores de insumos relativas às safras de 2004/2005 e 2005/2006 através da Medida Provisória n°372 de 22/05/2007; prorrogação das operações de custeio e investimento contraídas junto ao Banco do Brasil; subvenção para redução de diferenças entre custo de produção e preço de comercialização através dos Leilões Prêmio Equalizador Pago ao Produtor (PEPRO) e Prêmio de Risco para Aquisição de Produto Agrícola Oriundo de Contrato Privado de Opção de Venda (PROP); repactuação das parcelas do Programa Especial de Saneamento de Ativos (PESA); aumento de recursos e redução de juros para novos financiamentos agrícolas (Fernández, 2007, p. 203).

Neste contexto, os anos 2000 foram marcados por uma relativa diversificação da produção agropecuária nas grandes propriedades e por estratégias de agregação de valor por meio da instalação da cadeia carne/grãos em Mato Grosso (Vieira, 2009, p. 87). Conforme dados da tabela 1, paralelamente ao avanço da produção de soja ocorreu a partir da década de 2000 um significativo incremento da produção de algodão herbáceo e principalmente de milho no estado, que também viu aumentar de modo expressivo seu rebanho de bovinos, suínos e galináceos no período. Em uma conjuntura relativamente desfavorável no mercado internacional de soja, parte da produção mato-grossense dirigiu-se à cadeia composta pelo esmagamento de grãos, fabricação de ração e abate de animais, voltada aos mercados externo e interno. Proliferaram-se então em curto espaço de tempo frigoríficos industriais de médio e grande porte nos principais municípios produtores de soja de Mato Grosso, dentre os quais se destacam a unidade de abate de aves da Perdigão inaugurada em Nova Mutum em 2007, a unidade de abate de aves e porcos da Sadia inaugurada em Lucas do Rio Verde em 2008 e as unidades de abate de aves da empresa Anhembi e de abate de suínos da empresa Nutribrás, instaladas respectivamente em 2002 e 2011 em Sorriso. Diferentemente do modelo característico da região Sul em que é significativa a presença de pequenos e médios produtores familiares de aves e porcos integrados às agroindústrias processadoras, predominam nestes municípios mato-grossenses contratos de frigoríficos com um número reduzido de produtores com perfil empresarial, maior capacidade de obtenção de financiamentos e realização de investimentos e maior acesso a informação e tecnologia no que se refere à genética, à alimentação, ao manejo e ao programa sanitário (Bernardes & Aracri, 2010, pp. 22-23).

Contudo, a produção de soja permaneceu o vetor mais dinâmico do agronegócio no estado do Mato Grosso, na medida em que os preços internacionais do grão recuperaram-se após a queda entre 2006-2007 impulsionados pela demanda chinesa. Conforme o gráfico 1, a segunda metade da década de 2000 foi marcada por um aumento expressivo das exportações do Mato Grosso à China, com destaque para soja em grão. Segundo o Instituto Mato-Grossense de Economia Agropecuária (IMEA), cerca de 50% da soja produzida no estado do Mato Grosso no ano de 2015 foram exportadas in natura, sendo que cerca de 65% dos quais se destinaram ao mercado chinês. Com tamanho estímulo externo, a área plantada e o volume de soja produzida no Brasil mantiveram sua impressionante trajetória ascendente, alcançando na safra 2017/2018 a marca de 116 milhões de toneladas colhidas em 35 milhões de hectares em todo o país.

Tabela 1
Evolução da quantidade produzida de soja, milho e algodão herbáceo e do efetivo de bovinos, suínos e galináceos em Mato Grosso entre 2000 e 2017
200020102017
LAVOURAS (Toneladas produzidas)Soja8.774.47018.787.78330.479.870
Milho1.429.6728.164.27329.942.322
Algodão1.002.8361.454.6752.578.596
REBANHOS (Número de cabeças)Bovino18.924.53228.757.43829.725.378
Suíno834.0842.109.9792.559.616
Galináceos15.946.93041.021.66459.688.419
IBGE - Produção Agrícola Municipal e Pesquisa da Pecuária Municipal (2000, 2010, 2017).

Evolução do Valor FOB (US$) das exportações do Mato Grosso para China (2000-2019)
Gráfico 1
Evolução do Valor FOB (US$) das exportações do Mato Grosso para China (2000-2019)
Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços (2000-2019)

O Mato Grosso permaneceu o maior estado produtor com 35 milhões de toneladas colhidas em uma área de 9,5 milhões de hectares, seguido pelo Paraná com 19 milhões de toneladas colhidas em uma área 5,4 milhões de hectares e pelo Rio Grande do Sul com 16,9 milhões de toneladas colhidas em 5,7 milhões de hectares na safra 2017/2018. Segundo dados do Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços, a participação dos produtos manufaturados nas exportações totais do Brasil caiu de 59% em 2000 para 36% em 2019, enquanto a participação dos produtos básicos aumentou de 23% para 51% no mesmo período.

Tabela 2
Número de estabelecimentos produtores de soja, área colhida e quantidade produzida por grupos de área total no Brasil (1985-2006)
Classes de área (ha)Número de estabelecimentos produtores de soja
1985%1996%2006%2017%
Menos de 10125.17529,8%57.20323,5%38.74817,9%30.96013,1%
10 a 100263.15062,6%157.14864,7%141.49165,2%148.32962,8%
100 a 1.00028.2256,7%24.71310,2%30.46114%45.45919,3%
Mais de 1.0003.5370,8%3.9271,6%6.0802,8%11.3934,8%
Total420.204100%242.999100%217.015100%236.141100%
Classes de área (ha)Área colhida com soja (ha)
1985%1996%2006%2017%
Menos de 10370.3243,9%195.0682,1%284.3181,6%127.3940,4%
10 a 1003.293.73434,9%2.328.92024,6%2.813.94215,7%3.013.6499,8%
100 a 1.0003.824.09840,5%3.759.82039,7%6.195.68134,6%9.134.02929,7%
Mais de 1.0001.943.31020,6%3.195.98733,7%8.588.35348%18.437.14860%
Total9.434.686100%9.479.893100%17.883.297100%30.712.220100%
Classes de área (ha)Quantidade produzida de soja (ton)
1985%1996%2006%2017%
Menos de 10521.8443,1%356.7261,7%703.3451,5%420.9090,4%
10 a 1005.644.25433,7%5.035.46623,4%6.628.95814,3%10.259.2169,9%
100 a 1.0006.971.81141,7%8.602.32139,9%15.793.87434,2%30.916.25630%
Mais de 1.0003.587.03221,4%7.569.04335,1%23.067.31849,9%61.527.00559,7%
Total16.730.087100%21.563.768100%46.195.842100%103.123.386100%
Wesz Júnior (2014, p. 116); Censo Agropecuário (2017)

Tabela 3
Número de estabelecimentos produtores de soja, área colhida e quantidade produzida por grupos de área total no Mato Grosso (1985-2006)
Classes de área (ha)Número de estabelecimentos produtores de soja
1985%1996%2006%2017%
Menos de 10702,3%80,3%30,1%70,1%
10 a 10049016,1%1585,8%39310,5%1.22717,3%
100 a 1.0001.69855,9%1.40151%1.70645,4%2.65137,4%
Mais de 1.00078225,7%1.17942,9%1.65844,1%3.21245,3%
Total3.040100%2.746100%3.760100%7.097100%
Classes de área (ha)Área colhida com soja (ha)
1985%1996%2006%2017%
Menos de 101750,0%1.3160,1%180,0%120,0%
10 a 10014.5491,8%4,1270,2%24.8010,6%51.5620,6%
100 a 1.000246.46130%383.05522%615.23114,7%811.4459,2%
Mais de 1.000561.63468,3%1.351.89377,7%3.546.42484,7%7.999.64990,6%
Total822.819100%1.740.392100%4.186.474100%8.826.668100%
Classes de área (ha)Quantidade produzida de soja
1985%1996%2006%2017%
Menos de 102800,0%3.1580,1%620,0%420,0%
10 a 10028.1041,7%9.4610,2%66.4300,6%165.2000,6%
100 a 1.000482.58930%988.40922,3%1.721.91414,7%2.647.2508,9%
Mais de 1.0001.099.55668,3%3.437.91877,4%9.958.86184,8%26.965.85990,6%
Total1.610.529100%4.438.946100%11.747.267100%29.778.351100%
Wesz Júnior (2014, p. 116); Censo Agropecuário (2017).

Acerca da trajetória histórica da sojicultura interessa-nos destacar três aspectos. Em primeiro lugar, ao longo das últimas décadas a lavoura de soja no Brasil como um todo concentrou-se crescentemente em estabelecimentos com mais de 1.000 hectares, processo que ocorreu com maior intensidade no estado do Mato Grosso em particular. Como mostra a tabela 2, entre 1985 e 2017 o número de estabelecimentos produtores de soja com menos de 100 hectares no Brasil como um todo caiu de 92,4% para 75,9%, enquanto sua participação na área colhida com o grão caiu de 38,8% para 10,2% e sua participação na quantidade de soja produzida caiu de 36,8% para 10,3% do total do país. No outro extremo, entre 1985 e 2017 o número de estabelecimentos produtores de soja com mais de 1.000 hectares no país como um todo aumentou de 0,8% para 4,8%, enquanto sua participação na área colhida do grão aumentou de 20,6% para 60% e sua participação na quantidade de soja produzida aumentou de 21,4% para 59,7% do total.

No Mato Grosso por sua vez, como mostra a tabela 3, entre 1985 e 2017 o número de estabelecimentos produtores de soja com menos de 100 hectares caiu de 18,4% para 17,4% do total, enquanto sua participação na área colhida com o grão caiu de 1,8% para 0,6% e sua participação na quantidade de soja produzida caiu de 1,7% para 0,6% do total. No outro extremo, entre 1985 e 2006 o número de estabelecimentos produtores de soja com mais de 1.000 hectares no estado aumentou de 25,7% para 45,3% do total, enquanto sua participação na área colhida do grão aumentou de 68,3% para 90,6% e sua participação na quantidade de soja produzida aumentou de 68,3% para 90,6% do total.

Em segundo lugar, embora a maioria das propriedades rurais da sojicultura mato-grossense ainda seja chamada de “familiar”, as últimas décadas foram marcadas por amplas transformações em sua administração em direção a formas de gestão crescentemente empresariais[ii]. Frequentemente são os filhos os principais responsáveis pela separação mais clara entre empresa e família, tendo se graduado em cursos como Agronomia ou Gestão do Agronegócio, dentre outros com aplicação imediata nas propriedades. Isso implica não apenas na adoção de uma gestão contábil mais rigorosa da atividade agropecuária, mas também na incorporação de inovações biotecnológicas e novas técnicas de produção. No mesmo sentido, estas transformações implicam em um aumento do domínio sobre tecnologias da informação e instrumentos comerciais de cobertura de risco, além de formas de captação de capitais externos para a compra de maquinário ou terras que aprofundam a integração da propriedade fundiária a cadeias de valor nacionais e internacionais (Buhler, Guibert & Requier-Desjardins, 2016, p. 19).

Contudo, permanecem centrais à operação destas empresas as relações de solidariedade familiar e a inserção de seus proprietários em centros de sociabilidade locais/regionais. Desde o início da trajetória destas famílias, a migração para a região Centro Oeste e a compra da terra estiveram pautadas em relações de parentesco e mesmo com a profissionalização de sua gestão seguem comuns a formação de sociedades entre irmãos, primos e tios e a concentração das principais decisões estratégicas nas mãos da família. Especialmente no Mato Grosso, a produção de soja é marcada pela presença de grandes grupos mediados por laços familiares, com destaque para os Grupos Bom Futuro e Amaggi: segundo o Instituto Mato-Grossense de Economia Agropecuária (IMEA), na safra 2009/2010 os 20 maiores grupos do estado controlavam cerca de 1,2 milhão de hectares ou 20% da área colhida com soja no Mato Grosso (Wesz Júnior, 2014, p. 115).

Em terceiro lugar, o processo de modernização e integração da produção de soja no Mato Grosso a cadeias produtivas transnacionais foi concomitante à perpetuação e deslocamento de alguns dos traços mais violentos da fronteira agrícola. Para que o estado do Mato Grosso se tornasse uma espécie de plataforma de produção de commodities agrícolas para o mercado internacional, a moderna lavoura de soja avançou ao longo das últimas décadas especialmente sobre aquelas áreas que haviam sido anteriormente desflorestadas para a formação de pasto para pecuária bovina. Similarmente ao que ocorreu com a expansão da lavoura de cana de açúcar na região Sudeste, também o avanço da sojicultura na região Centro Oeste vem pressionando o deslocamento do gado bovino em direção ao norte, consequentemente contribuindo de maneira indireta para a ampliação do arco do desflorestamento no Brasil como um todo. Uma demonstração estatística para este fenômeno foi oferecida pela primeira vez por Arima et al., segundo os quais no período entre 2003 e 2008 uma redução em 10% da expansão da soja sobre antigas áreas de pastos teria diminuído em até 40% o desmatamento nos 761 municípios da Amazônia Legal englobados no estudo (Arima et al., 2011). Neste sentido, o avanço da lavoura da soja sobre o Mato Grosso não implicou na solução ou superação das contradições sociais e ambientais características da fronteira agrícola, mas sim na preservação e no deslocamento de processos como apropriação ilícita de terras públicas, expropriação de posseiros e de povos originários e espoliação de trabalhadores em condições análogas à escravidão. Especialmente no norte mato-grossense e no sul do Pará reproduz-se sucessivamente uma pecuária de baixa produtividade a partir de ocupantes iniciais que desmatam, queimam a floresta, geralmente não investem na limpeza apropriada do solo e obtêm lucro prioritariamente através da venda da área para produtores mais capitalizados e com maior acesso à informação, que por sua vez estabelecem suas fazendas com produção em maior escala e mais intensiva em tecnologia (Arima et al., 2005, p.20). Dados da tabela 4 confirmam o impulso do rebanho bovino ao norte: entre 1990 e 2017 a região Norte aumentou sua participação no efetivo de gado bovino no país de 9,1% para 22,6%, enquanto o Sul diminuiu sua participação de 17,2% para 12,6% e o Sudeste de 24,7% para 17,5%.

Tabela 4
Efetivo de rebanho bovino por Grande Região no Brasil (1990 e 2017)
REGIÕES1990%2000%2010%2017%
Norte13.316.9509,124.517.61214,442.100.69520,148.471.45422,6
Nordeste26.190.28317,822.566.64413,328.762.11913,727.736.60712,9
Sudeste36.323.16824,736.851.99721,738.251.95018,337.529.83417,5
Sul25.325.97917,226.297.97015,527.866.34913,327.033.68412,6
Centro Oeste45.945.93431,259.641.30135,172.559.99634,674.128.21734,5
Total147.102.314100169.875.524100209.541.109100214.899.796100
IBGE - Pesquisa da Pecuária Municipal (1990, 2000, 2010, 2017).

3. Impasses da reforma agrária no Mato Grosso

Em meio a estas transformações, o questionamento da excepcional concentração fundiária no Mato Grosso assumiu novos formatos e foi submetido a novos e velhos constrangimentos. Em seu estudo acerca da luta pela terra no estado entre as décadas de 1980 e 1990, Fernández aponta que no período entre 1980 e 1985 a Comissão Pastoral da Terra identificou 154 casos de conflitos sociais no campo mato-grossense, envolvendo 15.894 famílias em cerca de 1 milhão de hectares (Fernández, 1997, p. 42). Neste contexto, mediante o decreto n° 92.620 de 02/05/1986 o presidente da República declarou a área rural do estado do Mato Grosso zona prioritária para efeito de execução e administração de Reforma Agrária, tendo como objetivos melhorar a distribuição da terra e estabelecer relações que atendessem ao princípio da justiça social e ao aumento da produtividade agropecuária na região. Para tanto, o I Plano Regional de Reforma Agrária de Mato Grosso (I PRRA/MT) estabeleceu como meta para o quadriênio 1986/1989 assentar 41.900 famílias em uma área prevista de 1,5 milhão de hectares. Ademais, os projetos de assentamento deveriam respeitar as situações preexistentes nas terras já ocupadas e garantir serviços básicos como assistência técnica, crédito rural e infraestrutura física e social, além de capacitar os trabalhadores rurais e promover formas participativas de integração institucional. Entretanto, durante o período de vigência do I PRRA/MT de 1986 a 1989 foram criados apenas 39 projetos de assentamentos, beneficiando 6.239 famílias em 412.215 hectares de terras, respectivamente 14,9% e 27% das metas inicialmente estabelecidas no plano (Fernández, 1997, p. 54). Assim como no Brasil como um todo durante a implementação do I Plano Nacional de Reforma Agrária, também no Mato Grosso a criação de assentamentos no início da Nova República foi pontual e distante de um projeto integrado de alteração da estrutura fundiária no estado, dando prioridade aos casos em que a mobilização dos trabalhadores rurais se estendeu por longo tempo e/ou a situações de conflito particularmente intenso.

O processo de redemocratização no Brasil também foi marcado pela sobrevivência do emprego sistemático da violência contra trabalhadores rurais característico especialmente de áreas de fronteira agrícola. Segundo Fernandez, entre 1986 a 1995 a Comissão Pastoral da Terra identificou 257 novos casos de conflitos sociais no campo mato-grossense envolvendo 27.748 famílias em 12,6 milhões de hectares. Neste período ocorreram na área rural do estado de Mato Grosso 947 casos de expulsão de trabalhadores rurais, 2.850 casos de despejo judicial, 347 casos de destruição de meios de produção e 414 casos de destruição de casas (Fernández, 1997, pp. 45-49). Se a política de assentamentos sob o I PRRA/MT reconhecia parcialmente e buscava neutralizar a legitimidade da luta pela terra no estado, o emprego de violência propunha-se a destruir a capacidade de reprodução social dos trabalhadores rurais organizados por meio da eliminação de seu corpo, de seus bens materiais e de seus instrumentos de trabalho. Trata-se, nesse sentido, não de uma reação impulsiva e localizada de setores sociais dominantes contra grupos de trabalhadores, mas de um mecanismo de controle social característico de parcela do patronato rural brasileiro no interior de nossa ambígua democracia. A título de exemplo, a Comissão Pastoral da Terra apresenta este relato sobre os assassinatos de trabalhadores rurais em 10/1990 no município de Terra Nova do Norte:

O fazendeiro Clemente de Almeida Souza Neto, conhecido como ‘Quele’, proprietário de terra conflitando com 52 famílias na Gleba União e 200 na Pingo D’Água desde a entrada dos posseiros na terra em 1985, efetuou diversos ataques, com ameaças, tentativas de assassinato e assassinatos. No dia 15/10/1990 atacou uma família, torturando e matando quatro pessoas: Creuza Cardoso de Oliveira, Franciene, José P. Martins de Souza e Raimundo Ferreira de Souza. No caso de Franciene, em um ato de perversidade, os criminosos deceparam e partiram ao meio sua cabeça, que foi transportada há um quilômetro de distância. Com a prisão decretada, o fazendeiro só foi encontrado pelos policiais civis de Sinop enquanto viajava para o estado do Tocantins. Exatamente um ano após o crime, o caso foi submetido a júri popular, que condenou Quele a 67 anos de prisão e o jagunço Sinval do Nascimento França a 35, constituindo o primeiro caso de assassinato contra posseiros em que o mandante do crime foi julgado e condenado no estado de Mato Grosso. Menos de dois anos depois, por meio da corrupção de um policial militar, ambos fugiram da penitenciária e se mantiveram foragidos. Comissão Pastoral da Terra. Acesso em dezembro de 2018

Se até meados da década de 1990 a luta pela terra no Mato Grosso seguiu ocorrendo de maneira predominantemente fragmentada, seu grau de organização e articulação regional e nacional aumentou com o início da atuação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra no estado. No segundo semestre de 1994 militantes de Rondônia, Mato Grosso do Sul, Santa Catarina e Rio Grande do Sul dirigiram-se para o Mato Grosso e iniciaram contatos com professores da Universidade Federal do Mato Grosso, com membros do Partido dos Trabalhadores, com agentes da Comissão Pastoral da Terra e com sindicatos filiados à Central Única dos Trabalhadores para articular apoio à formação do MST-MT. A primeira ocupação protagonizada pelo movimento no estado ocorreu em 14/08/1995, quando cerca de 1.100 famílias ocuparam a fazenda Aliança no município de Pedra Preta no sudeste mato-grossense, dando origem ao acampamento Zumbi dos Palmares. A segunda ocupação do MST-MT ocorreu em 08/04/1996, quando aproximadamente 1.500 famílias ocuparam a fazenda Santa Amélia no município de Cáceres no sudoeste mato-grossense, estabelecendo o acampamento Margarida Alves. Frente à ausência de respostas dos governos estadual e federal à demanda destas famílias acampadas, o MST iniciou em 17/07/1996 duas caminhadas de 250 km cada rumo à cidade de Cuiabá partindo dos dois acampamentos, visando criar um fato político novo no estado e elevar a capacidade de pressão dos trabalhadores rurais sobre o poder público. Como resultado, apenas dois anos depois de ter iniciado os trabalhos de formação em Mato Grosso, o MST conquistou 17 assentamentos reunindo mais de 2.000 famílias em cerca de 88.000 hectares. Em 02/1997 partiu da região de Rondonópolis uma das colunas que compuseram a Marcha Nacional “Reforma Agrária, Emprego e Justiça”, que consolidaria o MST como mais amplo movimento social do país na década de 1990 (Fernandes, 2001, pp. 214-222).

Também no Mato Grosso o protagonismo do MST co-determinou o significativo ascenso de ocupações de terra entre 1995 e 2005 e seu posterior declínio a partir de 2006. Segundo o Relatório Dataluta – Mato Grosso de 2013, o período entre 1995 e 2005 foi aquele com maior número de ocupações de terras no estado durante a Nova República, totalizando 115 ocorrências que reuniram cerca de 34.190 famílias ao longo da década. Segundo o mesmo relatório, este período também foi marcado pela criação do maior número de assentamentos no estado desde a redemocratização, totalizando 454 projetos que reuniram cerca de 70.798 famílias em 4,3 milhões de hectares (Dataluta, 2013). Entretanto, como ilustram os gráficos de 2 a 5, especialmente a partir do segundo governo Lula (2007-2010) reduziram-se o número de ocupações de terra e o número de assentamentos criados no estado do Mato Grosso. Como discutido anteriormente, isto é um reflexo não apenas dos impasses políticos de forças à esquerda durante os governos do Partido dos Trabalhadores em face do fortalecimento do “agronegócio”, mas também de transformações da base social potencialmente interessada na Reforma Agrária devido a programas de redistribuição de renda e políticas de valorização do salário mínimo.

Entre 1988 e 2014 foram registradas 170 ocupações de terra no Mato Grosso com a participação de 41.682 famílias, correspondentes a 3,3% das famílias em ocupações no Brasil durante este período. Segundo este autor, entre 1979 e 2014 foram criados 577 assentamentos no estado reunindo em 6,3 milhões de hectares 104.120 famílias, correspondentes a 9,4% das famílias assentadas no Brasil durante este período. A desproporção numérica entre a participação mato-grossense no número de famílias acampadas e assentadas no país é indício do caráter conservador das políticas de reforma agrária, que seguem deslocando trabalhadores rurais de regiões mais densamente povoadas para áreas com infraestrutura social e econômica deficiente.

Com base no Relatório Dataluta de 2013 é possível observar que cerca de 60% das famílias em ocupações entre 1988 e 2012 no Mato Grosso concentram-se nas mesorregiões Centro Sul e Sudeste do estado, especialmente nos municípios de Cáceres, Cuiabá e Rondonópolis onde se encontra o maior número de trabalhadores rurais expropriados potenciais beneficiários da reforma agrária. Contudo, cerca de 50% das famílias assentadas e 60% da área dos assentamentos criados entre 1979 e 2012 no Mato Grosso concentram-se na mesorregião Norte do estado, em geral em áreas distantes dos mercados e dos polos de aglomeração da agricultura comercial. Alguns municípios que concentram assentamentos de reforma agrária no estado seguem marcados por casos de violência típicos da fronteira, como ilustra o relato da Comissão Pastoral da Terra acerca do massacre de Colniza ao norte de Mato Grosso em 04/2017:

Nove posseiros do Projeto de Assentamento (P.A.) Taquaruçu do Norte foram assassinados por quatro pistoleiros, contratados por um empresário madeireiro, em 19 de abril de 2017. O grupo chegou à comunidade, invadiu os barracos e matou os nove posseiros com tiros de armas calibre 12 e golpes de facão. Algumas das vítimas foram mortas enquanto trabalhavam na terra. De acordo com a perícia houve tortura, pois vários corpos estavam amarrados e duas das vítimas foram degoladas. O local da chacina fica dentro do ‘Complexo Guariba’, uma área de 630 mil hectares que abriga um terreno de 42 mil hectares, onde os trabalhadores atuavam. A região é alvo de intenso conflito agrário em razão de seu elevado potencial madeireiro e minerário. Colniza, município que abrange a gleba de Taquaruçu do Norte, está localizada a 1.065 quilômetros da capital mato-grossense e faz fronteira com os estados do Amazonas e Rondônia. A cidade é apontada como uma das cidades mais violentas do Brasil pelo grande número de conflitos agrários. Comissão Pastoral da Terra. Acesso em dezembro de 2018

Como já destacado, grandes mudanças na tecnologia agrícola nas últimas décadas permitiram a exploração das terras do Mato Grosso, mas exigiram crescente investimento de capital para corrigir a baixa fertilidade natural e elevada acidez do solo. Neste contexto, a ausência de recursos dos trabalhadores rurais para a necessária “construção do solo” é um dos principais obstáculos à reprodução da agricultura familiar em geral e de assentamentos de reformas agrária em particular no Mato Grosso. Segundo documento da Embrapa Agrossilvipastoril, é pequena a proporção de estabelecimentos de agricultura familiar que acessaram linhas de financiamento de custeio ou investimento no estado entre os anos 2011 e 2014, como ilustra a tabela 5.

Número de ocupações de terra em Mato Grosso (1988-2012)
Gráfico 2
Número de ocupações de terra em Mato Grosso (1988-2012)
Dataluta – Banco de Dados da Luta pela Terra (2013)

Número de famílias em ocupações de terra no Mato Grosso (1988-2012)
Gráfico 3
Número de famílias em ocupações de terra no Mato Grosso (1988-2012)
Dataluta – Banco de Dados da Luta pela Terra (2013).

Número de assentamentos rurais no Mato Grosso (1979-2012)
Gráfico 4
Número de assentamentos rurais no Mato Grosso (1979-2012)
Dataluta – Banco de Dados da Luta pela Terra (2013).

Número de famílias assentadas no Mato Grosso (1979-2012)
Gráfico 5
Número de famílias assentadas no Mato Grosso (1979-2012)
Dataluta – Banco de Dados da Luta pela Terra (2013).

Em seus apontamentos acerca da organização social e dos sistemas produtivos em um conjunto de assentamentos de reforma agrária no Mato Grosso, Ferreira, Fernandes e Praxedes da Silva destacam que em geral sua agricultura é desenvolvida em áreas de mata explorando a fertilidade natural do solo, com baixa utilização de insumos químicos, mecanização ou sistemas de irrigação. Segundo os autores, contudo, o enfraquecimento da fertilidade natural do solo em média após três anos de cultivo tem como resultado nos assentamentos estudados a ampliação crescente da área dedicada a pastagens, ilustrando limitações estruturais à reprodução dos assentados descapitalizados em áreas desfavoráveis ao desenvolvimento da agricultura familiar (Ferreira, Fernandez & Praxedes da Silva, 2009, pp. 223-224).

Ademais, os assentados no estado veem-se frequentemente distantes de zonas urbanas e submetidos a canais escassos e estreitos de distribuição dos excedentes de sua produção, o que limita perspectivas de reprodução social por meio do trabalho familiar. Em pesquisa acerca da eficiência (em sentido estritamente econômico) dos assentamentos de reforma agrária no Mato Grosso, Lamera aponta que a precariedade de estradas e o maior tempo de acesso às cidades mais próximas são os principais fatores determinantes para maiores índices de abandono de lotes, cujo isolamento não apenas impossibilita em momentos do ano o transporte da produção até os centros comerciais como também prejudica o acesso a serviços básicos como educação e saúde (Lamera, 2008, p. 121).

Em pesquisa acerca de estratégias de acesso a mercados em assentamentos no norte de Mato Grosso, Ruas acrescenta que a concentração do comércio de alimentos em cadeias de supermercados também em pequenas e médias cidades no interior do estado reduziu a capilaridade de mercados varejistas locais e ampliou as exigências de volume, regularidade e qualidade dos produtos agropecuários. Paralelamente, a crescente adoção de padrões de segurança fitossanitária privilegiou a super-higienização e homogeneização de processos agroindustriais, impondo custos frequentemente proibitivos a unidades produtivas artesanais ou de pequeno porte. Segundo o autor, estes processos de exclusão frequentemente empurram assentados para canais de comercialização marginais menos exigentes e menos favoráveis do ponto de vista financeiro, com destaque para a atuação de atravessadores capazes de reter parcela significativa da renda do produtor agropecuário especialmente em áreas mais remotas (Ruas, 2017, p. 91). Como resultado, o estado do Mato Grosso importa das demais Unidades da Federação ampla parcela de produtos típicos da agricultura familiar para abastecer seu mercado interno: segundo documento da Embrapa Agrossilvipastoril, pesquisa acerca do mercado de Frutas, Legumes e Verduras (FLV) junto a supermercados e consumidores das cidades de Alta Floresta, Cáceres, Colíder, Cuiabá, Rondonópolis, Sinop e Várzea Grande permitiu identificar que 56,3% do total destes produtos comercializado no ano de 2006 vieram de fora do estado de Mato Grosso (Embrapa Agrossilvipastoril, 2014, pp. 15-16).

Este contexto tem sido terreno fértil para a perpetuação de relações entre “empresários” e servidores públicos que historicamente permitiram a apropriação e a concentração em poucas mãos de terras da União em tese destinadas à reforma agrária.

Tabela 5
Percentual de agricultores familiares que acessaram crédito rural em Mato Grosso (2011 – 2014)
Ano AgrícolaPercentual de agricultores que acessaram crédito rural do Pronaf
Custeio (%)Investimento (%)
2011/20124,853,78
2012/20135,565,03
2013/20145,466,56
Embrapa Agrossilvipastoril (2014, p. 26).

Entre 2013 e 2014 a Polícia Federal desencadeou a Operação Terra Prometida, cujo objetivo era desarticular um grupo de empresários do “agronegócio”, fazendeiros, vereadores e outros representantes políticos que usava de sua influência e poder econômico para aliciar e/ou coagir beneficiários da reforma agrária a vender seus lotes. Para realizar este comércio ilegal de terras de assentamentos, a organização teria feito uso de documentos falsos, ações de vistoria simuladas, termos de desistência fraudados e dados inverídicos incluídos no Sistema de Informações de Projetos de Reforma Agrária (SIPRA/INCRA), possibilitando que grandes latifundiários, grupos do “agronegócio” e até empresas multinacionais ocupassem ilicitamente cerca de mil lotes da União de 100 ha em média no valor total de mais de R$1 bilhão de reais à época. Foram cumpridos então 52 mandados de prisão preventiva inclusive contra o ex-prefeito de Lucas do Rio Verde Marino Franz, o vice-prefeito do município Rui Schenkel, dois vereadores de Itanhangá e dois irmãos do então Ministro da Agricultura Neri Geller. À época o superintendente do Incra Salvador Solterio informou que 37% dos lotes em assentamentos de reforma agrária no estado do Mato Grosso apresentavam irregularidades, destacando o envolvimento de representantes políticos neste processo.

Neste contexto, a reprodução econômica e social dos assentamentos de reforma agrária depende principalmente de políticas públicas implementadas por governos municipais, estadual e federal, decorrentes da capacidade de organização e pressão política das famílias assentadas. No âmbito local, destacam-se parcerias estabelecidas com prefeituras para a criação de feiras públicas municipais, transporte dos produtos agropecuários, empréstimo ou aluguel de máquinas agrícolas, fornecimento de insumos e assistência técnica, frequentemente mobilizados em troca de apoio político eleitoral. Feiras públicas municipais têm especial relevância na medida em que não são apenas canais de escoamento de mercadorias, mas também espaços importantes de sociabilidade para agricultores familiares em geral e assentados de reforma agrária em particular, que ali podem estabelecer relações de apoio mútuo e construir vínculos de confiança e proximidade com os consumidores de seus produtos. No âmbito federal, são fundamentais aos assentados os canais de compras públicas por meio do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), que preveem a aquisição de produtos da agricultura familiar para a formação de estoques estratégicos, para o atendimento de populações em situação de insegurança alimentar e para os alunos da rede pública de educação. Em pesquisa acerca da implementação destes programas no estado do Mato Grosso, Mendes destaca que eles funcionaram como estímulo não apenas à produção, mas também à constituição e ao fortalecimento de associações, cooperativas e grupos informais dentre os assentados (Mendes, 2017, pp. 210-211).

Criado pelo Decreto n. 5.297 de 06 de dezembro 2004, o Programa Nacional de Produção e Uso do Biodiesel (PNPB) é mais uma política pública implementada pelo governo federal com impacto sobre assentamentos de reforma agrária no Mato Grosso. O PNPB determinou a mistura obrigatória de 5% (a partir de 2014, de 7%) de biodiesel no diesel convencional e criou o Selo Combustível Social para empresas que comprovem que no mínimo 15% de sua produção é abastecida pela agricultura familiar. Em pesquisa acerca da expansão da soja no Mato Grosso entre 2000 e 2012, Risso identificou no ano-safra 2000/01 a produção do grão em 30 mil hectares no interior de assentamentos do estado, aumentando para 75 mil hectares no ano-safra 2006/07 e para 149 mil hectares no ano-safra 2011/12. Ainda segundo este autor, áreas de soja superiores a 1.000 hectares ocorreram em três assentamentos em 2000/01, subindo para 16 assentamentos em 2006/07 e 35 assentamentos em 2011/12 (Risso, 2013, pp. 53-54). Em pesquisa acerca da pequena produção de soja impulsionada pelo Selo Combustível Social, Beal relata diferentes experiências frustradas de parcerias entre empresas de biodiesel e o assentamento “28 de outubro” em Campo Verde (MT) entre 2000 e 2008. Segundo a autora, durante sua pesquisa de campo poucos assentados com mais experiência na agricultura e maiores recursos arrendavam a área de seus vizinhos. Estes ainda assim faziam um contrato individual com a empresa de biodiesel, que dessa forma mantinha benefícios do Selo Combustível Social (Beal, 2010, p. 161).

No mesmo contexto, entre 2000 e 2012 a expansão da soja no interior de Terras Indígenas mato-grossenses manteve-se relativamente pouco significativa, porém com tendência ao crescimento. Segundo a FUNAI, entre delimitadas e regularizadas as TIs totalmente ou parcialmente alocadas no Mato Grosso cobrem uma área de 16,7 milhões de hectares ou 18,4% do território do estado. No interior deste conjunto, Risso indica que a produção de soja passou de cerca de cinco mil hectares em 2000/01 para cerca de 50 mil hectares em 2011/12. Áreas de soja superiores a 1.000 ha foram identificadas em uma reserva em 2000/01, em três reservas em 2006/07 e em seis reservas em 2011/12 (Risso, 2013, pp. 55-58). Relatório da ONG Repórter Brasil de 07/2010 mostra como a expansão da soja tem impactado as TIs no Mato Grosso de diferentes formas. Historicamente ocupada pelos índios Xavante e homologada pelo governo federal em 1998 com 165 mil hectares, a Terra Indígena Maraiwatsede permanecia em 2010 com 90% de seu território ocupado ilegalmente por fazendeiros e posseiros não indígenas, majoritariamente criadores de gado e produtores de soja e arroz. Segundo o relatório, estas atividades eram responsáveis por um dos maiores desmatamentos em áreas protegidas do estado: cerca de 45% da mata nativa de Maraiwatsede já havia sido destruída em 2010, de acordo com o Sistema de Proteção da Amazônia (Sipam). Diferentemente, entre 2004 e 2006 os povos indígenas Paresis, Manoki e Nambikwara firmaram contratos de parceria com fazendeiros e empresas agropecuárias para a co-produção de soja no interior das Terras Indígenas Paresi, Rio Formoso, Utiariti, Tirekatinga e Manoki. Os acordos previam que os indígenas fornecessem terra e mão-de-obra e os parceiros empresariais fornecessem insumos, financiamentos e máquinas, devendo ser o resultado da comercialização dividido igualmente entre as partes. Apresentados especialmente por lideranças Paresi como ferramentas de desenvolvimento de seu povo, os contratos são considerados por seus críticos uma forma velada e ilegal de arrendamento de Terras Indígenas e um estímulo à estratificação social e à desorganização cultural dentre as aldeias.

Tabela 6
Estrutura fundiária no Mato Grosso de 1985 a 2006
Classes de área (ha)Número de estabelecimentosÁrea Ocupada (ha)
Menos de 1017.91915,1%67.5160,1%
10 a 10063.60453,7%2.683.8504,9%
100 a 1.00027.37423,1%8.166.95814,9%
1.000 a 10.0008.6297,3%24.306.15944,3%
Mais de 10.0008680,7%19.606.33635,8%
Total118.394100%54.830.819100%
IBGE – Resultados preliminares do Censo Agropecuário (2017)

Tabela 7
Estrutura fundiária no Mato Grosso em 2017
Classes de área (ha)Número de estabelecimentosÁrea Ocupada (ha)
Menos de 1017.91915,1%67.5160,1%
10 a 10063.60453,7%2.683.8504,9%
100 a 1.00027.37423,1%8.166.95814,9%
1.000 a 10.0008.6297,3%24.306.15944,3%
Mais de 10.0008680,7%19.606.33635,8%
Total118.394100%54.830.819100%
IBGE – Resultados preliminares do Censo Agropecuário (2017)

4. Conclusão

Este artigo buscou demonstrar a permanência do caráter desigual e combinado do desenvolvimento do capitalismo no campo brasileiro, mesmo naquelas regiões onde há evidente predomínio da agricultura comercial em grande escala voltada para exportação. Segundo os dados do Censo Agropecuário do IBGE, em 1996 havia 55.070 estabelecimentos de agricultura familiar em Mato Grosso ocupando cerca de 4,66 milhões de hectares, enquanto em 2006 estes números haviam subido para 86.167 estabelecimentos de agricultura familiar ocupando cerca de 4,88 milhões de hectares. Apesar desta resiliência, em 2006 o estado de Mato Grosso era a terceira Unidade da Federação com menor participação dos estabelecimentos familiares na área total dos estabelecimentos agropecuários (9,94%), na frente somente de Mato Grosso do Sul (3,91%) e do Distrito Federal (4,32%), enquanto a média para o Brasil era de 24%.

Segundo dados do Censo Agropecuário do IBGE, entre 1985 e 2006 houve uma relativa desconcentração fundiária no Mato Grosso, uma vez que o índice de Gini no estado passou de 0,909 em 1985 para 0,870 em 1996 e 0,865 em 2006. Neste período os estabelecimentos com mais de 1.000 hectares diminuíram sua participação na área total ocupada de 83,49% para 77,93%, enquanto os estabelecimentos com menos de 100 hectares aumentaram sua participação de 3,21% para 5,42% como consequência da criação de assentamentos de reforma agrária no estado especialmente entre 1995 e 2006. Entretanto, desde então a participação dos estabelecimentos até 100 hectares na área total ocupada no Mato Grosso sofreu retração de 5,42% em 2006 para 5% em 2017, enquanto a participação de estabelecimentos com mais de 1.000 ha aumentou de 77,9% para 80,1% da área total ocupada no estado. Os dados de 2017 também indicam uma concentração excepcional das terras mato-grossenses em propriedades gigantescas: apenas 868 estabelecimentos com mais de 10.000 hectares (0,7% do total) somam 35,8% da área total ocupada no estado.

Estes dados demonstram que a expansão da soja sobre o Mato Grosso acirrou os desafios das políticas de reforma agrária nesta região, estreitando os horizontes de conquista de terra, de crédito e de canais de escoamento para a agricultura familiar. Entretanto, estes dados também demonstram que a expansão do chamado “agronegócio” da soja no estado do Mato Grosso de modo algum eliminou a reprodução de diferentes modos de apropriação da terra por parte de sujeitos sociais portadores de distintos horizontes políticos e econômicos. Neste embate, o dinamismo tecnológico e o sucesso exportador da agricultura empresarial no Brasil têm ocultado a resiliência e a relevância da agricultura familiar e contribuído para o silenciamento do debate sobre a atualidade e urgência da reforma agrária em nosso país. Em contraponto, este artigo propôs-se trazer a tona a resiliência e os desafios dos resíduos insubmissos que permanecem nos poros do “agronegócio” no Brasil contemporâneo, expressões das necessidades radicais e virtualidades históricas ainda a serem concretizadas em nossa construção nacional.

5. Referências bibliográficas

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Notas

[i] Este artigo é parte da tese de doutorado, defendida no Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo em 2020, intitulada “Classe trabalhadora na ‘capital do agronegócio’: Terra, trabalho e espaço urbano em Sorriso – MT”. A tese contou com financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
[ii] De acordo com a Lei nº 11.326/2006, para ser considerado como agricultor familiar é preciso que a propriedade tenha no máximo quatro módulos fiscais, onde seja utilizada predominantemente mão de obra da própria família, assim como a base de sustentação da renda familiar tenha origem nas atividades econômicas vinculadas ao próprio empreendimento.
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