Artigos
A Igreja na constituição de uma rede urbana do Brasil setecentista
La Iglesia en la constitución de una red urbana en el Brasil del siglo XVIII
The Church in the constitution of an urban network in the eighteenth century in Brazil
A Igreja na constituição de uma rede urbana do Brasil setecentista
PatryTer, vol. 5, núm. 10, pp. 55-70, 2022
Universidade de Brasília

Recepción: 07 Diciembre 2021
Aprobación: 05 Febrero 2022
Publicación: 01 Septiembre 2022
Resumo: O entendimento das complexas e assimétricas relações de poder que se dão entre os agentes produtores do espaço permite identificar intencionalidades e se distanciar de uma perspectiva naturalizada da dinâmica de ocupação e uso dos territórios. Nesse artigo, a partir dessa premissa fundamental aos estudos de Geografia Histórica, objetiva-se analisar o papel da Igreja como agente hegemônico nas relações de produção do espaço no Brasil colonial. A partir do Recôncavo Baiano setecentista (entorno de Salvador, capital colonial até 1763), à luz de pesquisa primária em arquivos brasileiros e portugueses, relacionam-se sete imbricadas funções assumidas pela Igreja (Regular, Secular e Ordens leigas) na constituição daquela rede regional que articulava cidade e vilas interiores. Como resultado, é apresentado um cartograma que sobrepõe as unidades edificadas pela Igreja (matrizes e capelas), os núcleos de povoamento e os caminhos (terrestres e fluviomarítimos) que cruzavam a região.
Palavras-chave: século XVIII, Recôncavo Baiano, geografia histórica, povoados, caminhos.
Resumen: Comprender las complejas y asimétricas relaciones de poder que se dan entre los agentes que producen el espacio nos permite que identifiquemos intenciones y nos distanciemos de una perspectiva naturalizada de las dinámicas de ocupación y uso de los territorios. En este artículo, desde esta premisa fundamental hasta los estudios de Geografía Histórica, el objetivo es analizar el papel de la Iglesia como agente hegemónico en las relaciones de producción en el espacio en Brasil colonial. Basado en la región de Bahía (“Recôncavo Baiano”) del siglo XVIII (alrededor de Salvador, capital colonial hasta 1763), a la luz de la investigación primaria en archivos brasileños y portugueses, se relacionan siete funciones entrelazadas asumidas por la Iglesia (Ordenes Regular, Secular y Laical) en la constitución y dinámica de esa red regional que articulaba el centro de la ciudad y los pueblos. Como resultado, se presenta un cartograma que superpone las unidades construidas por la Iglesia (matrices y capillas), los asentamientos y los caminos (tierra y río) que atravesaban la región.
Palabras clave: siglo XVIII, Recôncavo de Bahía, geografía histórica, pueblos, caminos.
Abstract: The understanding of the complex and asymmetric power relations between the agents that produce the space allows us to identify internationalities and distance ourselves from a naturalized perspective of the dynamics of occupation and use of territories. In this article, based on this fundamental premise to the studies of Historical Geography, the objective is to analyze the role of the Church as hegemonic agent in the relations of production of space in colonial Brazil. From the empirical of the 18th century in the Recôncavo Baiano (around Salvador, colonial capital until 1763), in the light of primary research in Brazilian and Portuguese archives, seven imbricated roles assumed by the Church (Regular, Secular and Lay Orders) in the constitution and dynamics of that regional network that articulated the city and inland villages are related. As a result, it is presented a cartogram that overlays the units built by the Church (matrices and chapels), the nuclei of settlement and the roads (terrestrial and fluvio maritime) that crossed the region.
Keywords: XVIII century, Recôncavo Baiano, historical geography, villages, paths.
1. Introdução
A Igreja teve papel nodal na ocupação e estruturação do território colonial da América Latina. Diversos são os estudos que tratam da atuação hegemônica desse agente na produção do espaço conquistado pelos países ibéricos, a exemplo de Marx (1989) e Vasconcelos (1997), que o fazem de forma mais abrangente, ou de pesquisas que apresentam dados documentais concretos sobre a ação na ocupação de determinados territórios[i], como em Costa & Moncada (2021), para o caso do México.
Considera-se evidente que o papel da Igreja, bem como dos demais agentes de produção do espaço, não é uniforme no espaço-tempo. Daí a necessidade de aprofundar pesquisas e, na análise das idiossincrasias, encontrar parâmetros passíveis de comparação acerca de dinâmicas territoriais pretéritas. Esse é o fator indutor para o problema gerador da pesquisa que segue: quais os papéis que a Igreja assumiu na produção do espaço do Recôncavo Baiano no século XVIII? E, como derivação, quais os resultados simbólicos e concretos da ação desse agente nessa região?
O recorte espacial da pesquisa equivale ao entorno da baía de Todos os Santos, uma região ocupada pelos portugueses no início do processo de colonização das terras americanas. Ali foi fundada a capital colonial (Salvador – Cidade da Bahia), na ponta da península até a sua transferência para o Rio de Janeiro, em 1763. Nessas terras do fundo da baía frutificaram as lavouras canavieira, fumageira e mandioqueira, fundamentais à economia colonial. Para efeito de localização da região em estudo (figura 1), fez-se a opção por um mapa que identifica o Recôncavo Baiano no litoral Atlântico brasileiro e também dá uma dimensão da ocupação do espaço colonial, ao final dos setecentos, com o destaque à densidade demográfica distribuída pelas vilas e cidades de então.
O estabelecimento do século XX como parâmetro temporal do estudo se deu por conta de determinantes transformações no interior do Recôncavo Baiano nesse período. Houve, nos últimos anos do século XVII e início do XVIII a erição das cinco vilas que perduraram na região até o início do XIX. Foi também nos setecentos que houve de forma mais significativa a produção material de equipamentos religiosos naquele espaço (matrizes, seminários, conventos e capelas), não obstante os impactos da transferência da capital colonial para o Rio de Janeiro e das políticas pombalinas ao patrimônio eclesiástico. Todavia, considera-se aqui uma certa flexibilidade nesse recorte temporal visto que determinados eventos e, principalmente, objetos construídos, tem relativa “resistência” no espaço e não estão circunscritos a data específica de início e final do século.
Indica-se, como objetivo central desta pesquisa, compreender e espacializar a ação da Igreja no Recôncavo Baiano setecentista. Para isso, adotou-se três passos metodológicos (distribuídos nas três seções interiores desse artigo): primeiro, fez-se a identificação dos agentes de produção do espaço que atuaram na região; segundo, à luz de pesquisa primária de base documental, fez-se a análise de sete dos papéis assumidos pela Igreja para aquele espaço-tempo; terceiro, num esforço de síntese e sustentado em base cartográfica histórica, mapeou-se os pontos onde se estabeleceram as freguesias (com suas sedes: as igrejas matrizes) e as capelas.
A pesquisa apresenta resultados originais na discussão que propõe sobre os agentes de produção do espaço para o período colonial e na relação que desenvolve sobre as funções e interesses do agente Igreja para o Recôncavo Baiano no século XVIII. Também apresenta uma cartografia original que identifica o posicionamento das edificações eclesiásticas juntos aos rios e caminhos, o que revela quão estratégica era a localização das Matrizes e dá pistas sobre a densidade da ocupação regional para o período estudado.
2. Sobre os agentes produtores do espaço no Brasil setecentista
Neste artigo sustentado nos constructos da Geografia Histórica, parte-se do pressuposto inicial de que a identificação de agentes de produção, bem como dos seus interesses e ações, possibilita uma análise crítica sobre dinâmicas territoriais pretéritas e, dessa forma, elimina-se o risco de naturalização das estruturas socioespaciais decorrentes (Andrade, 2021).
Entende-se, todavia, que o exercício de identificação dos agentes não segue um padrão uniforme aplicável a todo espaço-tempo. Ainda que possam ser agrupados genericamente, as peculiaridades de um dado recorte espaço-temporal dão especificidades aos agentes que ali atuam mediados pelas relações de poder na ocupação e uso daquele território. Desta forma, acredita-se que, para cada espaço-tempo, há a necessidade de qualificar quais os agentes atuantes e quanto maior for a precisão desses e dos seus interesses, mais ampla tende a ser a compreensão sobre a configuração territorial decorrente do encontro de suas forças/ações.

Após revisão da literatura, Vasconcelos (1997) elenca, de forma genérica, os agentes modeladores das cidades coloniais brasileiras. O autor sugere como principais produtores do espaço urbano para aquela temporalidade: a Igreja, subdividida em clero Secular, Regular e Ordens Leigas; o Estado, representado pela Coroa e, em escala local, as Câmaras; os agentes econômicos, dentre os quais se destacam os proprietários rurais, os comerciantes e financistas e os artesãos; e, por fim, a população e os movimentos sociais.
Aplicando essa classificação ao caso concreto do Recôncavo Baiano no século XVIII, vê-se a necessidade de que essas categorias gerais sejam ainda mais detalhadas nas suas diversas variações internas. Destarte, no entendimento sobre a configuração da rede urbana regional setecentista, notadamente em relação à dinâmica dos principais núcleos interiores da região, pode-se indicar como agentes produtores do espaço: a Coroa e seus agentes (procurador, ouvidor, oficiais das Câmaras, etc.); os militares (diretamente, mas não exclusivamente, vinculados à Coroa); os agentes econômicos (proprietários de terras ou casas, senhores de engenho, roceiros e lavradores, comerciantes e mascates); os escravos e, analisada mais detidamente neste escrito, a Igreja (clero Secular, Regular e as Ordens leigas). Além desses, dois outros agentes estiveram presentes nos séculos XVI e XVII, mas, praticamente já não atuavam no XVIII, foram os indígenas e os donatários, os primeiros dizimados, incorporados ou formando grupos de resistências (assim como os quilombolas[ii]), os segundos tiveram suas terras, no Recôncavo Baiano, reincorporadas pela Coroa[iii].
É necessário esclarecer que, sob o "rótulo" de Igreja, há uma diversidade de atores com nuanças que os diferenciam. Em linhas gerais, pode-se falar, por exemplo, do clero secular, regular e das confrarias ou ordens leigas. O clero secular está vinculado hierarquicamente ao bispado e, em última escala, ao papa; há de fato uma variação de poder que baliza as relações pessoais e territoriais dentro da Igreja Secular que vai do Bispo de Roma (o papa), passando pelas arquidioceses com arcebispados (o da Bahia, criado em 1551), pelas dioceses com bispados, administração apostólica e paróquias onde, na menor escala hierárquica, os presbíteros e diáconos diocesanos exercem o trabalho de evangelização e controle dos fiéis.
O clero regular, também consagrado pela Igreja Apostólica, está submetido às regras da Ordem (instituto religioso) a que pertence. Ordens como a dos Beneditinos, Franciscanos, Carmelitas e Jesuítas receberam a autorização régia para atuarem no território colonial e estabeleceram uma parceria interessante com a Coroa, pois desempenhavam funções imprescindíveis à colonização, como as acima relacionadas, e ainda arrebanhavam fiéis e acumulavam receitas para as suas instituições.
Além dos religiosos seculares e regulares, existiam outros grupos formados por leigos, mas associados à Igreja Católica pela devoção a um orago. Assim eram as ordens terceiras, as confrarias e irmandades, como a Santa Casa da Misericórdia.
Entende-se que a ação da Igreja e dos demais agentes de produção do espaço acontece de forma individual ou combinada e, inevitavelmente, repercute em choques de interesses mediados pelas relações assimétricas de poder. Nesse sentido, há de se considerar que a classificação e a análise das suas ações, separadamente, não os colocam em "gavetas" hermeticamente fechadas. Ao contrário, o fundamental para entender os seus papéis na dinâmica espacial está na busca pelas relações que estabeleciam entre si; além disso, era habitual que muitos deles assumissem vários papéis concomitantemente. Por exemplo, eclesiásticos que eram proprietários de lavouras e escravos, senhores de engenho que eram oficiais de câmaras ou militares que possuíam propriedade rural e lavravam fumo.
O fragmento do documento com o mapa estatístico das receitas e despesas da capitania da Bahia (Tabela 1), em meados do século XVIII, ratifica a ideia da ação combinada de alguns dos agentes e da dinâmica têmporo-espacial vivida naquela região.
A partir da Tabela 1, é possível extrair indícios como:
(1) A chegada de produtos do reino no Recôncavo atendia a uma demanda regional com uma maior concentração do consumo no principal ajuntamento demográfico – Salvador –, mas com comercialização nas vilas e povoados do interior. Uma importante função exercida por comerciantes e mascates no resgate dos produtos no porto de Salvador e distribuição pela rede regional.
(2) O registro de entrada e saída de escravos na capitania da Bahia revela o volume e importância desse agente para o labor e composição societária da época. Os negros cativos eram destinados, principalmente ao trabalho nas lavouras ou eram deslocados para as minas. Entretanto, várias pesquisas demonstram atividades relacionadas ao papel de escravos urbanos.
(3) A importância econômica da produção açucareira e fumageira do Recôncavo, que enredava o conjunto dos agentes de produção do espaço e era, junto com o tráfico negreiro, fator econômico motriz para aquele espaço-tempo.
(4) A indicação de rendimentos do Rei com o aluguel de casas em Salvador é a referência de uma prática que se dava também nas vilas da região. O ganho com posses (terrenos e casas) no espaço urbano era habitual entre os agentes de maior poder econômico, o que sugere, primeiro, relações assimétricas; depois, uma demanda por habitações nessas incipientes formações do século XVIII.
(5) A "folha" eclesiástica revela a intensa relação entre Coroa e Igreja no empreendimento colonial. Para o caso do Recôncavo, os dados da Tabela 1 também indicam a circulação de vigários no território das freguesias (valores destinados à compra/manutenção de cavalos e canoas com remeiros) e, ainda, freguesias eminentemente urbanas como a de Nossa Senhora do Rosário da Vila de Cachoeira, onde esse custo, com meios para o deslocamento, era descartado.
(6) Na administração civil, merece destaque a indicação do juiz de fora de Cachoeira, que recebia o mesmo rendimento que o de Salvador. Isso também revela a importância dessas duas formações urbanas, visto que apenas nelas aparece o registro desse funcionário da Coroa.
(7) Uma outra associação de muita proximidade era a da Coroa e as forças de defesa, notadamente os militares. Ainda que não apareçam os dados sobre as Companhias do Recôncavo, a folha militar é a que repercute em maiores despesas à Capitania da Bahia. Sobre os destinos desses recursos, além da construção e manutenção dos edifícios militares e pagamentos de soldos, merece destaque a compra de farinha para o abastecimento do corpo; uma menção da importância da lavoura mandioqueira como matriz de subsistência.
(8) Há ainda o registro da presença eventual de visitadores das igrejas da região, um indício de controle externo, hierárquico, pela rede que se espraiava pelo território colonial.
Essa importante fonte documental induz a pensar em diversos interesses assumidos pela Igreja na sua ação como um agente hegemônico na produção do espaço colonial brasileiro. Apresenta-se a seguir uma análise cuidadosa, com base em fontes primárias e secundárias, sobre sete desses papéis

3. A Igreja no Recôncavo setecentista
A continuidade da pesquisa e o diálogo com estudiosos que se debrucem sobre a ação dos agentes na produção do espaço pretérito em outras regiões e temporalidades leva à alvissareira perspectiva de maior compreensão do papel da Igreja no conjunto do Brasil colonial.
A Igreja é um dos principais agentes de produção do espaço urbano-regional no período colonial. Não obstante esse tema geral ter sido discutido sob diversas perspectivas por outros autores[iv], ao que nos parece, há uma lacuna de pesquisas sobre a Igreja como agente de produção do espaço no Recôncavo Baiano no século XVIII.
Partindo então da totalidade, mas olhando a especificidade do recorte espaço-temporal aqui proposto, tem-se que esse agente assumiu variados papéis fundamentais à instalação e dinâmica da rede urbana regional[v] do Recôncavo Baiano setecentista, tais como: (1) ação concreta de produção e organização do espaço urbano; (2) associação com a Coroa na regulação do uso do espaço e controle social; (3) ocupação e divisão administrativa do território; (4) estabelecimento de centralidades e consequente atração de fluxos regulares (missas, circulação de religiosos) e eventuais (procissões, festas); (5) assumiu também o papel de instrumento de agrupamento social com uniformidade étnica, econômica, laboral e de gênero; (6) produziu unidades materiais (conventos, hospitais, seminários, igrejas e capelas) que se transformaram em centros de atração demográfica; (7) também assumiu funções empreendedoras como proprietária de terras rurais e imóveis urbanos, lavouras e engenhos, além de posse de escravos.
Sobre as sete funções da Igreja na produção e modelação do espaço urbano-regional, tem-se:
A primeira diz respeito ao Padroado, uma associação com a Coroa na empresa colonial. Ronaldo Vainfas ensina que
a Igreja instituía um indivíduo ou instituição como padroeiro de certo território, a fim de que ali fosse promovida a manutenção e propagação da fé cristã. Em troca, o padroeiro recebia privilégios, como a coleta dos dízimos e a prerrogativa de indicar religiosos para o exercício das funções eclesiásticas. (Vainfas, 2000, p. 466).
O Padroado, ainda que nao reflita uma ação concreta de produção do espaço urbano-regional, apresenta um fundamental indicativo das funçoes exercidas pela Igreja, visto que determina a vinculação da mesma à Coroa. A relação entre esses dois agentes hegemônicos na produção do espaço foi fulcral para a regulação dos usos do território e para o controle social do mesmo.
Diversos são os textos das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia (1707) que dão pistas sobre orientações religiosas que tinham clara repercussão na vida societária. Exemplos disso eram a arrecadação dos dízimos (quem era obrigado e onde deviam pagar) e esmolas, contagem da população (batizados, casamentos e óbitos), estabelecimento de privilégios a grupos sociais e religiosos, além de práticas cotidianas que movimentavam com regularidade o espaço daquelas pequenas povoações onde havia uma igreja, capelas, oratórios e ermidas e as missas eram inexoravelmente rezadas com tempo e hora determinados. A obrigatoriedade de "dizer missas" aos domingos e as sansões aos ausentes indicam fluxos regulares em direção aos locais de culto, destacadamente junto às formações urbanas e outras povoações.
A segunda função está relacionada à produção material do espaço urbano a partir do erguimento de edifícios eclesiásticos. Tema amplamente trabalhado por Marx (1989, 1991, 1999), a construção do edifício religioso estabelecia uma posição central para o espaço que se distendia com a ereção das vilas. Em cada sede de freguesia uma Matriz era construída e exercia uma centralidade sobre aquele território eclesiástico. Não por acaso, as orientações para a localização das igrejas eram minuciosas e possuíam uma estratégia territorial sobre o ajuntamento demográfico que se formava. As Constituições eram destinadas especialmente ao clero secular, porém com orientações e determinações às Ordens Religiosas e ao clero regular. Elas formalizavam as decisões hierárquicas sobre a ação dos religiosos no território colonial e repercutiam diretamente no espaço construído e na organização societária de então. Nas ditas Constituições determinava-se que,
neste Arcebispado se não edifiq. Igreja, Capella, ou Mosteiro sem licença nossa [...] e o Sacerdote secular, que nella [Igreja sem licença] disser Missa, será suspenso de suas Ordens, prezo, e castigado com as mais penas que sua culpa merecer. E o Regular que for achado dizendo Missa na tal Igreja, será levado a seu Superior, para que o castigue, e mande disso certidão, confórme dispoem o Sagrado Concilio Tridentino. (Constituições..., L. 4, Tit. 16, 1707).
Esse fragmento apresenta a intenção de extremo controle sobre a construção e funcionamento dos edifícios religiosos. Indica que os locais em que eles existem, salvo as possibilidades de corrupção às ordens dessa documentação, tiveram a sua construção e funcionamento autorizados, o que passa pela avaliação da estrutura física e demográfica do entorno, numa verdadeira estratégia territorial. Considerando o imenso número de edifícios religiosos no Recôncavo, percebe-se a densidade e importância da ocupação e uso da área pela Igreja. Destaca-se também no texto a confirmação das determinações ao clero secular, mas com sanções orientadas às Ordens para os religiosos regulares que burlarem as normas.
Ainda sobre a edificação e reparação das Igrejas Paroquiais, há nas referidas Constituições a informação de que
as Igrejas se devem fundar, e edificar em lugares decentes, e accommodados, pelo que mandamos, que havendo-se de edificar de novo alguma Igreja Paroquial em nosso Arcebispado, se edifique em sitio alto, e lugar decente, livre da humidade, e desviado, quanto for possivel, de lugares immundos, e sordidos, e de casas particulares, e de outras paredes, em distancia que possaõ andar as Procissoens ao redor dellas, e que se faça em tal proporçaõ, que naõ sómente seja capaz dos freguezes todos, mas ainda de mais gente de fóra, quando concorrer ás seitas, e se edifique em lugar povoado, onde estiver o maior numero dos freguezes. [...] As Igrejas Paroquiaes terão Capella maior, e cruzeiro, e se procurará que a Capella maior se funde de maneira, que posto o Sacerdote no Altar fique com o rosto no Oriente, e não podendo ser, fique para o Meio dia, mas nunca para o Norte, nem para o Occidente. [...] haverá no ambito, e circunferencia dellas adros, e cemeterios capazes para nelles se enterrarem os defuntos. [...] E não tratamos aqui do dote que he preciso tenha cada huma das Igrejas Paroquiaes porque como todas as deste Arcebispado pertencem á Ordem, e Cavallaria de nosso Senhor Jesus Christo, de que S. Magestade he perpetuo administrador, tem o mesmo Senhor com muito catholica providencia mandado pagar pontualmente, e vão na folha os dotes das Igrejas, que he seis mil reis a cada Igreja, e oito para as que estão em Villas: assim como com muito liberal mão como tão zeloso, e Catholico Rei manda dar grossas esmolas, assim para a edificação, como para a reedificação das ditas Igrejas. (Constituições..., L. 4, Tit. 17, 1707).
Esse pequeno recorte de texto apresenta diversas nuanças acerca da posição dos edifícios religiosos, de modo especial a Matriz, e o controle do espaço construído no meio urbano. A observação das matrizes das cinco vilas do Recôncavo Baiano setecentista revela que determinações como localização em cumeadas, abertura voltada para o sol nascente (a leste), adro ao seu redor (sem encontro com outras paredes) e a ocupação em parte central do sítio foram seguidas parcialmente, sendo, entretanto, decisivas na orientação do conjunto edificado dessas formações urbanas. Da mesma forma, o tamanho e a suntuosidade das ditas igrejas tanto refletem a importância desse agente como dão indícios da concentração demográfica daquelas localidades. No mesmo texto, o padroado é confirmado como traço de união de Igreja e Coroa no empreendimento colonial, ficando os custos de implantação e manutenção à cargo da Coroa que, por sua vez, também detinha o direito ao recolhimento dos dízimos.
As Constituições também regulavam a construção das capelas mais afastadas das formações urbanas com maior densidade demográfica, havendo no seu texto esta explícita determinação: "se não fundem em lugares ermos, e despovoados" (Constituições... L.4, Tit.19). Uma norma só compreensível para aquele tempo-espaço visto que ajuntamentos com cerca de 50 almas (engenhos e pousos) já eram passíveis de terem capelas. Além do mais, a necessidade de expansão para os sertões e a indução à ocupação dos caminhos acabavam por relativizar esse rígido controle demográfico exercido pela Igreja, ainda que se entenda a óbvia priorização da localização em áreas de maior concentração populacional.
O espaço para além do edifício religioso também era regulado, a exemplo do escrito que orienta que
sob pena de excommunhão maior, e de dez cruzados para a fabrica da Igreja, e accusador, que nas Igrejas, e seus adros se não fação feiras, ponhão tendas, nem se compre, e venda, ou apregoe cousa alguma, posto que seja para comer, e beber: e que se não fação quaesquer outros contratos, escambos, ou escrituras. E outrosim mandamos, que nenhum Julgador, ou qualquer outro Ministro de justiça secular faça audiencia, ou ouça as partes em alguma Igreja, ou no seu adro [...] E declaramos por nullos todos os autos de jurisdicção, que no adro, ou Igreja se fizerem (Constituições..., L. 4, Tit. 29, 1707).
Há uma clara delimitação do espaço sagrado (edifício, cemitério e adro) onde a ação dos administradores e juízes vinculados à Coroa (jurisdição secular) era restrita pelo poder eclesiástico que inclusive impunha penas sagradas e materiais (pecuniárias) sobre as transgressões. Destaca-se também, nesse trecho, a referência, não ocasional, às feiras, tendas e mercados. Nesse caso, a proibição revela a existência de tais práticas comerciais nos ajuntamentos coloniais, um dos poucos registros formais desses eventos.
O terceiro papel assumido pela Igreja está relacionado à ocupação primeira e fragmentação administrativa da região através da delimitação de territórios eclesiásticos: as freguesias. São dois lados de uma mesma dinâmica; a primeira diz respeito à distribuição de unidades físicas (igrejas, mosteiros, conventos, seminários e, em maior número, capelas e ermidas), estrategicamente localizadas nos lugares mais povoados e em faixas de expansão da ocupação do território. Mais uma vez, a ação da Igreja não se dava isoladamente, pois o ato de ereção de edifícios religiosos era "dividido" em custos com outros agentes como a Coroa. Também havia divisão de custos com particulares ligados às Ordens Religiosas e às unidades que atendiam a demandas localizadas em Engenhos ou propriedades outras de uma família ou grupo, a exemplo do requerimento feito por Antônio de Figueiredo Mascarenhas para edificar uma capela na sua fazenda nos sertões da freguesia de Sant'Anna do Camisão, termo da vila de Cachoeira (AHU, Doc.21149, 05 mai.1800) assumindo para tanto, obrigações e encargos pecuniários a fim de obter tal licença.
Essa dispersão pela região em nada era aleatória, ela passava pelo crivo e autorização da hierarquia eclesiástica secular. Outrossim, construir edifícios religiosos, mesmo que modestas capelas, era demarcar fisicamente a presença sobre o território ocupado e propagar o ideário católico (diretamente vinculado aos interesses da Coroa) junto ao agrupamento atraído pela nova centralidade.
De forma mais contundente, no outro lado da mesma dinâmica, a estratégia territorial tomava forma com a criação de freguesias que pressupunham o estabelecimento de uma sede com Igreja Matriz e, ao menos, um pároco e um território eclesiástico sob sua jurisprudência, onde seriam arregimentados os fiéis e coletados os dízimos. Essa fragmentação eclesiástica do território precede e orienta a criação das vilas que, quando erigidas, localizavam-se junto à sede da mais importante freguesia local e tinham, normalmente, o seu termo coincidente com a soma das tantas freguesias que compunham a recém criada unidade administrativa civil.
Sobre a dispersão de freguesias no Recôncavo Baiano o historiador Cândido da Costa e Silva escreveu que,
As freguesias do Recôncavo, em número superior a qualquer outra região, reduziam as áreas e aproximavam-se. Contiguidade que incrementava o intercâmbio, facilitando o contacto entre párocos e fiéis. Além do mais, um sem número de capelas, curadas ou não, multiplicavam-se em espaços de culto. Vantagem no destacado papel de agrupar para as de engenhos; criavam condições pelo fomento das práticas religiosas públicas, a que se transformassem em matrizes. (Silva, 2000, p.54)
A Tabela 2 demonstra a precedência do recorte eclesiástico frente ao civil, visto que as primeiras vilas da região só foram criadas ao final dos Seiscentos. Os dados também elucidam o interesse de ocupação gradual pela Igreja de um espaço povoado e de grande valor econômico.
A Tabela 2, decorrente do Título de Creação de Freguezias de um documento do século XIX do Artquivo Público Nacional, revela uma longa dispersão temporal na fragmentação do território do Reconcavo Baiano pelo poder eclesiástico. Ela também demonstra a clara função da Igreja na como agente de produção do espaço do Brasil colonial. Um papel que precedia à administração política da Coroa e que tinha, ao menos, duas repercussões diretas: uma na escala regional, visto que cada freguesia delimitava um território eclesiástico ordenado por uma centralidade (a sede) ; a outra, na escala local, a demarcação da freguesia estava vinculada à produção concreta e simbólica de uma unidade central (a Matriz) para onde vetorizavam os fluxos e onde eram erguidos os principais edifícios religiosos da região.
O quarto papel da Igreja diz respeito ao estímulo à circulação de pessoas na rede regional a partir da produção de uma centralidade eclesiástica. Vasconcelos (1997, p.251 e 256) já alertava sobre a função social das matrizes "no que se refere ao local de encontros e sociabilidades (missas, casamentos, batizados, festas religiosas, peças teatrais etc.)" e das irmandades que "eram responsáveis por numerosas procissões, além daquelas de responsabilidade da Câmara, da Igreja Secular, ou das ordens regulares".
A determinação da presença nas missas aos domingos e dias santos[vi] revela um fluxo centralizado pelos nós religiosos que estavam situados nas áreas de maior povoamento; ainda que pudesse acontecer em capelas e oratórios de engenhos e ermidas de povoados mais distantes, os principais edifícios religiosos estavam nas vilas e cidade, espaços de convergência de pessoas do campo e do meio urbano, visto que as festas e eventos religiosos comemorativos (missas do orago e procissões) atraíam pessoas de uma faixa espacial mais ampla que englobava as vilas circunvizinhas.

As Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia (1707. L.2, T.12) indicam um calendário religioso que reserva para a obrigação da missa, além de todos os domingos, 37 dias santos entre datas móveis e fixas e também mandam que "se guarde o dia da festa principal do Orago". Percebe-se que os eventos e festas religiosas eram momentos de concentração demográfica de uma determinada freguesia junto à sua Matriz e, nesse sentido, era também uma festa urbana visto que as maiores freguesias (em número de fiéis, suntuosidade dos edifícios e riquezas) estavam localizadas nas sedes da cidade de Salvador e vilas da região.
A quinta função da Igreja era o papel que desempenhava como instrumento de agrupamento social com uniformidade étnica, econômica, laboral e de gênero. As instituições eclesiásticas assumiam a função de estabelecerem relativa segmentação societária com o agrupamento de frações diversas da sociedade em irmandades e confrarias de ordens religiosas. As Ordens Terceiras, associações de leigos com arrecadação de valores e variadas funções, como sepultar os irmãos, rezar missas comemorativas ou póstumas, além da função bancária, exerciam papel explícito de coesão por etnia, gênero, objetivo e/ou profissão e, dessa forma constituíam verdadeiro elemento de divisão da sociedade colonial, prestando-se inclusive à ostentação de posições em eventos festivos através da demonstração pública dos seus valores (materiais e espirituais). O fragmento que segue exemplifica, a partir da indicação de um litígio encaminhado para resolução ao Ministro Ultramar Francisco Xavier Mendonça, em meados dos setecentos, os papéis e interesses por vezes conflitantes e com intermediação da Coroa, entre ordens que atuavam na vila de Cachoeira:
No anno de 1728, fallecido o primeiro chamado fundador, Fr. Bernardo da Conceição relligioso franciscano, ficou adminisrando o verdadeiro fundador o ditto Antonio Machado, hoje Fr. Antonio de N.S. de Bellem, religioso de S. João de Deus, demoliu o hospital de Paraguassu e mudou para a villa da Caxoeira, populosa e de porto de mar a ditta caza com todos os moveis, ornamentos, botica, roupas, escravos, e ainda o material de pedra, tijolo, telhas, caliças, madeyras, portas, &. Por motivo de que os Reverendos Franciscanos lhe puzerão litígio contra elles na ouvidoria geral da Bahia. (AHU, Doc.5457 a 5460, 20 set.1761).
Vasconcelos (2016, p.36 a 39) já havia destacado a importância do agente “Igreja” na dinâmica social da cidade de Salvador (cabeça de ponte tendo como hinterlândia o Recôncavo), quando apresentou (para o final do século XVI e início do XVII) documentação vasta que indica o papel das ordens regulares na expansão extramuros da capital colonial, bem como o exercício das ordens leigas na associação de grupos distintos, a exemplo da irmandade de negros de Nossa Senhora do Rosário e da Santa Casa da Misericórdia. O mesmo autor também menciona as primeiras procissões realizadas pela Câmara de Salvador, mas organizadas pela Igreja no século XVII, indícios de eventos de segmentação social que aconteciam na capital e repercutiam nas vilas interiores.
A Igreja também possuía o papel de instrumento de atração demográfica, a sexta função aqui analisada. Foi no entorno dos seus edifícios que se deram os maiores ajuntamentos de pessoas do Recôncavo Baiano. Conventos, hospitais, seminários, igrejas e capelas prestavam serviços essenciais à sociedade de então e se constituíam em nós de atração e localização de pessoas. Dentre os vários documentos possíveis a que se poderia recorrer para exemplificar esse papel de núcleo de atração demográfica, utiliza-se um ofício (arrolado nos documentos da citação anterior), que, em 1761, informava a fundação do convento e hospital de Cachoeira. Nele está escrito que
Este convento e Hospital teve o principio no citio de Paraguassu distante da Caxoeira quatro légoas edeficado com esmolas dos fieis e pelo zelo e deligencia de Fr. Bernardo da Conceypção religioso leigo da Província de S. Antonio, tendo sido derector, enfermeiro e cirurgião do ditto hospital intitulado Nossa Senhora de Bellem de Paraguassu. [...] No anno de 1728 [...] Antonio Machado, hoje Fr. Antonio de N.S. de Bellem, religioso de S. João de Deus, demoliu o hospital de Paraguassu e mudou para a villa da Caxoeira, populosa e de porto de mar [...] Comtudo o ditto padre erigio o dito convento e hospital na villa da Caxoeira que he o que hoje existe. [...] Os donatos vão aos peditórios de gados, tabacos e de outros gêneros. A necessidade que ha dos dittos padres para a villa e seus moradores, he pouco atendível porque só hum diz missa e administra sacramento, porem são treis aos pobres doentes dezemparados; da villa ou de fóra ou passageiros por ser a villa da Caxoeira hum porto donde vem parar todos os viageiros das idas e outras villas. (AHU, Doc.5457, 20 set.1761).
O registro resgata a localização primeira da casa de enfermos no lagamar do Iguape, em frente à Maragogipe e junto à sede da freguesia de São Thiago do Iguape (uma das mais ricas pela lavoura de canas no termo da vila de Cachoeira) e, naquele momento, anexa ao Convento de Santo Antônio do Paraguaçu. Em 1728, houve a transferência do prior e subsequente instalação do hospital na vila de Cachoeira – este hospital foi assumido pela Santa Casa da Misericórdia, em 1826 (Azevedo, 1978). Dentre os fatores apresentados para esta nova localização estava a centralidade da vila e maior possibilidade de recolhimento de esmolas. Destaca-se, ainda, a reclamação presente no documento sobre uma demanda urbana local, de passantes e de vilas circunvizinhas superior à capacidade dos quatro "donatos" que lá trabalhavam.
A sétima, entre as funções aqui relacionadas para o agente Igreja, diz respeito ao seu papel como empreendedora no negócio da colonização brasileira. A Igreja, na sua tríplice fragmentação (Secular, Regular e leiga), era a mais rica participante da empresa colonial e nas terras tropicais acumulou posses diversas, como propriedades urbanas, lavouras, engenhos e escravos.
A Tabela 3 traz alguns exemplos de posses da Igreja no Recôncavo Baiano. Os dados são da segunda metade do século XVIII, em larga escala derivados de inventários decorrentes da expulsão dos Jesuítas no início do período Pombalino (1750 a 1777), quando Sebastião José de Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal, assumiu o cargo de primeiro ministro de Dom José I.).

Além da relevante enumeração de bens vinculados ao clero regular, há outras pistas presentes na referida tabela, como por exemplo: a posse de casas e terrenos no meio urbano destinados a aluguel e aforamento, um indício de ocupação das vilas e demanda por construções; a posse de um armazém em Cachoeira, que também reforça a tese da possibilidade de ganhos com a atividade comercial central naquela formação urbana; os ganhos com empréstimos, que confirmam um dos variados papéis que as ordens regulares e leigas possuíam junto aos fiéis.
As funções aqui enumeradas pelo agente Igreja certamente não esgotam a miríade de outras possibilidades analíticas sobre os papéis, interesses e participação no emaranhado jogo de poderes estruturantes de dinâmicas territoriais passadas, mormente no contexto do Brasil colonial. Todavia, o corte analítico aqui proposto possibilita entender a dimensão da participação do poder eclesiástico na produção do espaço do Recôncavo Baiano setecentista, seja pelo viés da imposição de valores, comportamentos sociais e costumes, seja pela indução à movimentos (pessoas e mercadorias) no interior da incipiente rede urbana que se formava, seja pela própria construção material no uso do território (edifícios religiosos, caminhos, lavouras, casas urbanas, dentre outros).
4. O estabelecimento da Igreja no Recôncavo setecentista. Uma síntese a partir da cartografia histórica
A Igreja, dentro da imensa diversidade que cabe nesse termo, exerceu um papel central na produção do espaço urbano-regional do Recôncavo. Em relação à rede urbana, este agente tanto estruturou os nós e criou centralidades como estimulou a circulação de fluxos.
A edificação de seminários, conventos e, especialmente, capelas e matrizes nas sedes das freguesias era uma ação material, passível de reprodução em escala que refletia concretamente as intencionalidades de ocupação do território colonial.
As sedes de freguesias eram núcleos de povoamento com evidente centralidade religiosa. As capelas, por outro lado, mais dispersas no território, também realizavam o controle no espaço ocupado e estavam normalmente ligadas a outros pontos de povoamentos (engenhos, pousos, entrepostos, etc.), além de permanecerem vinculadas a uma freguesia/Matriz.
Na figura 2, desenha-se exatamente o rebatimento espacial da ação da Igreja no Recôncavo, através da iluminação dos pontos onde se estabeleceram as freguesias e capelas. Pela densidade de informações e concentração nas áreas mais ocupadas, priorizou-se o uso de uma escala que mostrasse o entorno imediato da baía de Todos os Santos. A observação do posicionamento dos rios e caminhos revela quão estratégica era a localização das Matrizes e deixa pistas sobre a densidade demográfica e decorrente mancha de ocupação do Recôncavo ao final do século XVIII.
A figura 2, ainda que esclarecedora, apresenta muitas lacunas de informação, visto que são cartografadas 38 freguesias e Azevedo (1969, p.198) indica, em 1774, a existência de 43 para a região, sendo: dez na cidade de Salvador, dez no subúrbio, cinco em São Francisco do Conde, quatro em Santo Amaro, oito em Cachoeira, duas em Maragogipe e quatro em Jaguaripe. O número de capelas certamente excedia em muito as 31 cartografadas, visto que nas sedes das freguesias existiam outras paróquias, com as suas respectivas capelas, e muitos engenhos, especialmente os maiores.
Estes também possuíam capelas anexas, sendo pouco provável que nos povoados indicados na referida imagem não houvesse uma capela para o exercício das funções eclesiásticas. Essa figura 2, entretanto, deriva dos dados disponíveis na cartografia histórica consultada, que abarca o período da segunda metade do século XVIII e início do XIX, onde a escala regional e a quantidade de informações que elas apresentavam dispersavam o foco e não permitia uma revelação mais precisa deste evento aqui pontuado. Conclui-se então que o cartograma apresentado teria uma malha muito mais
densa com a representação de todas as instituições ligadas à Igreja.
Numa pequena amostra, como ilustraçao aos dados apresentados, a figura 3 traz duas das mais importantes e imponentes edificações religiosas da freguesia de Nossa Senhora do Rosário da Cachoeira e do próprio Recôncavo Baiano.
Além da estratégica dispersão territorial das unidades físicas que representam o papel do agente Igreja na ocupação e uso do território do Recôncavo Baiano setecentista, a leitura do mapa (figura2), com sobreposição de informações, possibilita outras análises combinadas, como a importância da circulação fluviomarítima e a conexão com os caminhos terrestres no processo secular de interiorização em busca de metais preciosos, mas também como fator de articulação do território ocupado com o porto de escoamento (na cidade de Salvador) na península que forma a baía de Todos os Santos.
Também é possível observar uma maior densidade de ocupação nas terras mais próximas ao entorno da baía., onde aparecem os solos de baixadas úmidas (baixios de massapê – solo maduro, escuro e argiloso fundamental à produção canavieira do Nordeste brasileiro) e dos tabuleiros fumageiros. Esses foram elementos fisiográficos que orientaram o uso econômico e a ocupação do território nessa região.


Para os dois casos (acessibilidade e uso econômico) fica clara a ação estratégica da Igreja na disposição das suas principais unidades construídas, antecedendo, como comentado alhures, o próprio papel da Coroa. A erição das sedes das freguesias junto aos caminhos terrestres ou aos últimos portos navegáveis dos principais rios da região, bem como a ocupação das terras mais férteis e produtivas são marcos reveladores da importância que esse agente assumiu na dinâmica territorial do Reconcavo Baiano setecentista.
5. Considerações finais
A compreensão sobre os papéis da Igreja no Recôncavo Baiano no século XVIII passa necessariamente pela conjunção das suas ações com as dos demais agentes de producao do espaço urbano-regional, notadamente a Coroa e os proprietários fundiários que atuaram predominantemente de forma combinada com imposição hegemônica dos seus interesses nas relacoes de poder que se estabeleceram na região. A Igreja assumiu funções variadas na dialética produção simbólica e material do espaço. Edificando templos, induzindo movimentos em rede e, fundamentalmente, determinando hábitos e práticas sociais rígidas e coadunantes aos seus interesses na dinamica territorial daquele espaço-tempo.
Destaca-se o esforço de síntese aqui desenvolvido na abordagem desse tema amplo e complexo que permitiria amplificar o diálogo com outros autores não referenciados nesse artigo devido à priorização de base documental primária na estruturação da pesquisa e texto. A enumeração de sete funções associadas à Igreja na produção do espaço do Recôncavo Baiano do século XVIII, bem como o uso de cartografia original para mapear a ação eclesiástica na região configuram a tentativa de contribuir para a discussão que segue.
Tem-se o entendimento que o texto aqui apresentado abre brechas para o debate acadêmico, notadamente na área da Geografia Histórica, visto que ilumina, à luz de dados primários e outras fontes secundárias, a ação da Igreja (Secular, Regular e Ordens leigas) na constituição e dinâmica do Recôncavo Baiano no século XVIII – uma das mais importantes e povoadas regiões do Brasil colonial – e desta forma acentua o papel desse agente.
A continuidade da pesquisa e o diálogo com estudiosos que se debrucem sobre a ação dos agentes na produção do espaço pretérito em outras regiões e temporalidades leva à alvissareira perspectiva de maior compreensão do papel da Igreja no conjunto do Brasil colonial.
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Notas