Artigos
Usos da terra urbana e do território em Brasília Patrimônio Mundial e o Setor Habitacional Jóquei Clube
Usos del suelo urbano y del territorio en el Sitio del Patrimonio Mundial de Brasilia y el Sector Habitacional Jóquei Clube
Urban land and territory uses in Brasília World Heritage Site and the Jóquei Clube Housing Sector
Usos da terra urbana e do território em Brasília Patrimônio Mundial e o Setor Habitacional Jóquei Clube
PatryTer, vol. 5, núm. 10, pp. 199-213, 2022
Universidade de Brasília

Recepción: 01 Diciembre 2021
Aprobación: 01 Marzo 2022
Publicación: 01 Septiembre 2022
Resumo: As áreas metropolitanas, como a de Brasília – DF, são objetos de estudo da Geografia quanto ao processo das transformações espaciais. Neste processo, dois problemas são evidenciados: o aumento da densidade populacional, e um novo ciclo de expansão urbana que valoriza o capital imobiliário e o da construção civil. O objetivo deste trabalho é analisar as modificações espaciais e investigar a participação dos poderes público, privado e da sociedade como agentes modificadores do espaço, considerando a dispersão urbana a oeste do Conjunto Urbanístico de Brasília (CUB), tombado pelos governos distrital e federal e classificado como patrimônio mundial pela UNESCO. A pesquisa qualitativa e exploratória utiliza como procedimentos a investigação bibliográfica, que dá sustentação à construção da pesquisa, e a análise documental em arquivos sobre a legislação e planos governamentais. Os resultados evidenciam que o projeto urbanístico do Setor Habitacional Jóquei Clube (SHJQ) causará verticalização e aumentará a pressão sobre os serviços públicos, e a concentração urbana levará à reformulação da circulação e do desenho urbano.
Resumen: Las áreas metropolitanas, como Brasilia - DF, son objeto de estudio de la Geografía en cuanto al proceso de transformaciones espaciales. En este proceso se evidencian dos problemas: el aumento de la densidad de población y un nuevo ciclo de expansión urbana que valoriza el capital inmobiliario y de la construcción. El objetivo de este trabajo es analizar las modificaciones espaciales e investigar la participación de los poderes públicos y privados y de la sociedad como agentes modificadores del espacio, considerando la expansión urbana al oeste del Conjunto Urbanístico de Brasilia (CUB), catalogado por los gobiernos distrital y federal y clasificado como patrimonio mundial por la UNESCO. La investigación cualitativa y exploratoria utiliza como procedimientos la investigación bibliográfica, que da soporte a la construcción de la investigación, y el análisis documental en archivos acerca de legislación y planes gubernamentales. Los resultados muestran que el proyecto urbanístico del Sector Habitacional Jóquei Clube (SHJQ) provocará la verticalización y aumentará la presión sobre los servicios públicos, y la concentración urbana llevará a la reformulación de la circulación y el diseño urbano.
Palabras clave: áreas metropolitanas, transformaciones espaciales, concentración, verticalización, expansión urbana.
Abstract: The metropolitan areas, such as Brasilia - DF, are objects of the geography study regarding the process of spatial transformations. In this process, two problems are evident: the increase in population density, and a new cycle of urban expansion that increases the value of real estate and construction capital. The objective of this work is to analyze the spatial modifications and to investigate the participation of the public and private powers and of society as space-modifying agents, considering the urban expansion to the west of the Conjunto Urbanístico de Brasília (CUB), protected by the district and federal governments and classified as a UNESCO world heritage site. The qualitative and exploratory research employs as procedures the bibliographical investigation, which gives support to the construction of the research, and the documental analysis in archives about legislation and governmental plans. The results show that the urbanistic project of the Setor Habitacional Jóquei Clube (SHJQ) will cause verticalization and increase the pressure on public services, and the urban concentration will lead to the reformulation of circulation and urban design.
Keywords: metropolitan areas, spatial transformations, concentration, verticalization, urban expansion.
Usos da terra urbana e do território em Brasília Patrimônio Mundial e o Setor Habitacional Jóquei Clube
1. Introdução
As áreas metropolitanas são objetos de observação e estudo na Geografia, no que diz respeito ao processo de transformação do espaço, em relação às alterações das suas paisagens.
A paisagem é a materialização imediata e momentânea da vida social, portanto, precisa de análise no contexto do cotidiano das suas representações e dos seus significados. Desta forma, tanto as representações da paisagem como os seus significados constituem a identidade socioespacial ocasionada pela dinâmica da sociedade que movimenta o espaço, o qual é apropriado como objeto da ciência geográfica. Estabelecido este pressuposto, a paisagem como categoria de análise pode ser historicamente contextualizada, isto é, o tempo ganha sua materialidade no espaço e nas paisagens que passam a constituir o espaço.
A vida, no seu sentido social, somente se realiza espacialmente pelo fato de se inscrever nas paisagens, e as inscrições do dia a dia das pessoas criam vínculos não só de morar, mas de estabelecer as relações sociais, com toda a sua heterogeneidade. Como afirma Hartshorne (1978, p. 33):
No entanto, ainda que pudéssemos estabelecer a proposição teórica de que a paisagem é uma região, e que, em consequência, a região é um objeto, a afirmação de que o objeto específico do estudo da Geografia se constitui de regiões não modificaria a realidade de que, para estudá-las, devemos cuidar diretamente de uma grande heterogeneidade de elementos.
Assim, a paisagem é uma marca, pois está impressa nela o processo de humanização dos lugares e das coisas e, também, o modo como se percebe, como se concebe e como se pratica a ação; este conjunto dá sentido à relação da sociedade com o espaço. Esta ideia é corroborada por Hartshorne (1978, p. 50) quando afirma que “objetos ou formas na paisagem poderão despertar uma curiosidade desproporcionada à sua significância ante qualquer aspecto da Geografia que estiver sendo objeto de estudo, ou para a variação total de uma área, no que esta for significante para o homem”. Ao se iniciar uma análise do espaço e da paisagem nele inserida, procura-se fazer uma leitura inicialmente objetiva de seus significantes; contudo, esta mesma objetividade não é possível em seus significados e sentidos, já que estes últimos possibilitam uma variedade de leituras que trazem conhecimento. Quanto a este conhecimento, Costa (2015, p. 168) enfatiza, “Lembremos que, dialeticamente, nenhum conhecimento é totalmente dado a priori ou a posteriori; ele resulta do diálogo justamente entre o a priori e o a posteriori”. Assim, na perspectiva do presente trabalho, a análise espacial se propõe a descrever e interpretar sentidos que a leitura de um conjunto de paisagens pode suscitar, lembrando que uma leitura é uma interpretação e que não existe uma leitura única.
O conjunto de leituras de uma paisagem resulta de um conjunto de ações sobre ela, e isto é o resultado material das relações sociais cotidianas. Deste modo, a paisagem como expressão materializada do espaço geográfico é interpretada como forma que expressa a herança localizada do homem e “a partir do reconhecimento dos objetos na paisagem, e no espaço, somos alertados para as relações que existem entre os lugares” (Santos, 2012, p. 71). Observa-se que a paisagem não é simplesmente um conjunto de elementos geográficos desordenados, mas o resultado de uma combinação de elementos dinâmicos e em constante transformação que configura um território urbano. Conclui-se, por ora, que a paisagem não é uma simples adição de coisas ou elementos sem conexão, mas sim territorialidades conectadas ao processo de formação do espaço geográfico.
É no espaço urbano, que se revela o local das dissensões das relações socioeconômicas, uma das principais expressões da base territorial que explicita o desenvolvimento do capitalismo e suas territorialidades, como afirma Souza (2019, p. 7), “nele as pessoas começam a reagir, especialmente nas periferias das grandes cidades, ao processo histórico de uso do território, ou seja, aos processos de constituição das desigualdades socioespaciais”. Neste sentido, o território é o espaço geográfico apropriado por relações de poder tais como a produção, a comercialização com seus investimentos e as transações que configuram a dinâmica da circulação do dinheiro sobre o território. Não somente isto, por outra perspectiva é onde se encontram as diferenças sociais de apropriação do dinheiro que circula e dos benefícios promovidos pelo Estado e pela iniciativa privada, causando impactos territoriais socioespacial. Assim encontra-se a cidade, as relações que se desenvolvem neste espaço configuram territorialidades capitalistas, suas centralidades e suas instabilidades.
Não obstante a instabilidade, a paisagem pode ser manipulada racionalmente, o que pode se dar em nome do interesse do Estado, ou de vários outros. As intervenções exercem forte pressão sobre a paisagem; por exemplo, a ação estatal, atualmente, é muito mais cuidadosa ao criar a ideia de modificação da paisagem no sítio urbano. Cria-se uma perspectiva de espaços urbanos muitas vezes espetacularizados como forma de atrair pessoas, vontades, investimentos etc. São modalidades de intervenções, no urbano, por exemplo, que exercem pressão sobre a paisagem, pois encontra-se assentada sobre intenções que estimulam as oportunidades diversas e produzem necessidades. Estas, muitas vezes, focalizam-se na cidade, e as intenções apontadas para a paisagem urbana se referem aos pontos positivos da cidade e de uma vida citadina incorporada de transformações com significados de cidade-mercadoria, cidade-modernidade, cidade-felicidade etc. Um bom exemplo desse processo tem sido a cidade de Brasília e a constituição do Distrito Federal (DF) no Centro-Oeste brasileiro. Há, portanto, um novo território distrital compondo o espaço geográfico brasileiro, constituído por suas dinâmicas socioespaciais. Entende-se, portanto, como afirma Souza (2019, p. 7) que “o espaço geográfico é uma instância social, tanto quanto a economia, a cultura e a política, isto é, algo que se impõe a tudo e a todos e, que o território usado seja sua expressão histórica”.
A cidade de Brasília é um espaço de densidade teórica, de saberes e de práticas que compõem a paisagem e a memória. Do ponto de vista temporal, ela é composta por uma complexidade e uma pluralidade de espaços intercalados, cuja combinação gera mudança a cada instante com a possibilidade de construção de novas área urbanas no interior do DF. Assim, Brasília e o seu conjunto urbanístico vão descompensando as antigas centralidades urbanas, coordenadas por antigas metrópoles brasileiras, e vão se constituindo como uma nova metrópole. Deste modo, é imperativo entender a metrópole brasiliense para explicar as relações espaciais com as outras cidades brasileiras e fazer uma nova leitura da paisagem geográfica que surge com uma cidade modernista que compõe o espaço geográfico. Quanto ao espaço, Santos (1996 p. 62) afirma, “o espaço geográfico considerado como uma porção bem delimitada do território é tanto o teatro das ações da sociedade local quanto das influências externas e até mesmo estrangeiras, cujo peso nem sempre é perceptível à primeira vista”.
Em face do exposto, dentre os problemas atualmente encontrados, aquele que se aponta como responsável visível pelo impacto na infraestrutura da cidade é o aumento do número de prédios com alteração do gabarito, isto é, aumento do número de andares das novas áreas a serem construídas. Assim, dois problemas serão destacados; sendo o primeiro o aumento da densidade prevista para as áreas próximas ao patrimônio histórico tombado; e o segundo, um novo ciclo de expansão que valoriza o capital imobiliário e o da construção civil no que se convencionou chamar de ZONA TAMPÃO ou Área de Tutela do Bem Tombado, isto é, a área que protege conjuntos arquitetônicos que, por suas características, conferem as qualidades urbanísticas da região.
Explicitados os problemas, o objetivo é analisar as modificações espaciais e investigar a participação dos poderes público, privado e da sociedade como agentes modificadores do espaço, considerando a dispersão urbana, em especial nas áreas limítrofes a oeste do patrimônio histórico, tendo como premissa mais específica fazer um recorte espacial que envolve o deslocamento de população, isto é, a circulação de carga e passageiros e as modificações espaciais ao longo da rodovia DF 085, também denominada de a Estrada Parque Taguatinga (EPTG). Importante observar que a poligonal de estudo envolve algumas Regiões Administrativas (RAs) no DF, a RA-XXX – Vicente Pires; RA-X – Guará; e RA-XXIX – SIA.
Para atingir o objetivo e a premissa específica, a metodologia para esta pesquisa será qualitativa e exploratória utilizando como procedimentos metodológicos a investigação bibliográfica, que dá sustentação à construção da pesquisa, e a análise documental em arquivos sobre a legislação e planos governamentais. Fez-se uma pesquisa documental baseada em artigos, dissertações e teses, e o levantamento bibliográfico, os quais são essenciais para um estudo científico estruturado em bases teóricas sólidas da Geografia, por meio do levantamento e trabalho com dados primários e secundários.
Posta a introdução, o presente artigo foi estruturado em três momentos. Iniciou-se apresentando o lócus da investigação, a urbanização do DF e a patrimonialização da RA-I – Plano Piloto, pontuando acontecimentos históricos, como o tombamento de Brasília como patrimônio cultural mundial, que tornam o lugar de pesquisa tão significativo a ponto de ser o objeto a ser recortado para estudo. O segundo momento do artigo, fez-se uma breve exposição da fundamentação teórica que guiou o desenvolvimento da pesquisa, centrando especialmente na discussão dos conceitos de paisagem, urbanização, metropolização e forma da transformação espacial. Neste momento, expôs-se os achados a partir da pesquisa quantitativa e qualitativa, delimitou-se melhor a área de estudo, evidenciando as mudanças da função de usos da terra e as futuras mudanças na paisagem. Enfim, demonstrou-se os achados e/ou as discussões. Por fim, encerra-se o artigo analisando as dimensões dos diversos significados da ocupação das áreas limítrofes a oeste do bem tombado ao longo da DF-085, ou EPTG.
2. Fundamentação teórica para um recorte espacial
As escalas qualitativas de análise da produção do espaço não negam as quantificações, mas buscam uma dialética entre qualidade/quantidade. Deste modo, procuram estabelecer a capacidade de superar compreensões reducionistas do espaço em termos formais, quanto à tipologia e quanto ao espaço sistêmico, redução própria das lógicas estabelecida pelo Estado. Este entende o espaço como meio que necessita de ser organizado e, numa certa medida, ordenado e do capital que o vê como mercadoria e como fonte de acumulação. Marx (2008, p.94), quando escreve sobre a medida dos valores, afirma que “as mercadorias que existem como valores de uso criam a si próprias, em primeiro lugar, a forma sob a qual aparecem idealmente umas às outras como valor de troca, [...]”.
Assim sendo, a reprodução atual dos lugares limítrofes à área tombada como patrimônio histórico no DF, vinculada ao problema que é a produção/reprodução do espaço, pretende compreender a relação entre a produção do espaço em sentido restrito e sentido mais amplo. No stricto sensu, empreende-se a análise do espaço no plano da produção capitalista e, no lato sensu, a produção das relações sociais. Landa (2020, p. 268) afirma que “os fenômenos sociais devem ser entendidos em seu contexto histórico”. Trata-se, portanto, de uma leitura que denota as diferenças e mostra as possibilidades das transformações socioespaciais no território distrital a partir de novos conteúdos da produção do espaço urbano distrital modificadores da paisagem. Assim, Santos (2008, p.96) afirma, “o território é formado por frações funcionais diversas”. Esta ideia é corroborada por Souza (2019, p.7) quando afirma que “o território só existe quando usado, praticado. Ele é a expressão histórica do espaço geográfico por nós entendido como instância social, uma indissociabilidade entre sistema de objetos e sistema de ações”.
A análise da paisagem na porção a oeste de Brasília mostra importantes transformações já concluídas e o projeto Jóquei Clube já aprovado pelo governo distrital para construção. A paisagem nos revela o imediatamente visível e mostra, ao mesmo tempo, um espaço edificado com sua morfologia espacial e para o próprio movimento da vida, isto é, as relações sociais dando materialidade à historiografia no próprio espaço. Como afirma Bispo (2020, p. 48),
Nesse sentido, Brasília pode ser compreendida como paisagem projetada e evolutiva, composta pelo meio natural em que o homem imprimiu as marcas de suas ações e formas de expressão diversificadas, quanto aos usos, ocupações e dinâmica urbana, resultantes de sua composição morfológica e configuração histórica.
Desta forma, na pesquisa ficou evidente a mobilização, neste início de século XXI, no espaço das áreas lindeiras a oeste do patrimônio histórico, uma consequência do mercado imobiliário articulado às políticas habitacionais do governo, seja federal ou distrital, e à financeirização do setor. Os novos empreendimentos, sobretudo residenciais, provocarão mudanças na paisagem geográfica, a qual mescla o passado ao presente, isto é, as formas espaciais começam com a certeza de que tanto as relações espaciais quanto as temporais são intrínsecas a todo aspecto da organização social. Assim, as moradias são produzidas como mercadoria a ser consumida, sendo o morador o consumidor de um produto, intensificando a integração do cotidiano de frações sociais à mercantilização, ao passo que reproduz as históricas desigualdades socioespaciais. Desta forma, tanto as novas produções do espaço distrital quanto sua reconstrução – diga-se a de determinadas áreas – representam momentos em que os capitais podem encontrar formas mais rentáveis de investimento, podendo gerar valorizações, superprodução, circulação de mercadoria e passageiros e, até mesmo, migrar de um setor da economia para outro que se apresente vantajoso para maior lucratividade.
Ao se considerar a produção intraurbana do espaço distrital e a patrimonialização de Brasília - DF e o recorte espacial definido para a pesquisa e construção deste artigo, os setores da economia mais atuantes na cidade, a saber o setor imobiliário formado por construtoras, incorporadoras e o setor financeiro, concentraram suas atividades na produção dos espaços mais nobres e bem localizados e em termos de equipamentos urbanos bem servidos. Destarte, a evolução de Brasília para metrópole, somado à condição de patrimônio histórico, foram bem aproveitados, considerando características mercadológicas e o marketing criados para as vendas, pelos setores imobiliários e financeiros que deram continuidade à produção da acumulação urbana, como afirma Gottdiener (2016, p. 200), quando diz que “a composição estrutural do desgoenvolvimento capitalista é uma fonte explanatória de informação sobre formas espaciais”. A necessidade de dar continuidade à produção ampliada do espaço urbano no Distrito Federal, o setor imobiliário e o capital financeiro, auxiliados pelo Estado e o Governo do Distrito Federal – GDF, investem pesadamente na produção habitacional nos espaços limítrofes com o patrimônio histórico. Então, o Distrito Federal, em sua organização espacial, tem seu arranjo urbanístico como uma consequência do surgimento de Brasília e de sua patrimonialização.
Quando a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura – UNESCO – realiza a Convenção para a Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural, em 1972, o objetivo fundamental era o de permitir que a herança do passado fosse vivida no presente e transmitida às gerações que virão. A agência especializada das Nações Unidas (, 1972) estabelece, no seu Artigo 1º, que “o Patrimônio Cultural Mundial é composto por monumentos, grupos de edifícios ou sítios que tenham um excepcional e universal valor histórico, estético, arqueológico, científico, etnológico ou antropológico”. A definição traz o entendimento de que os patrimônios pertencem à humanidade, portanto são universais, não importa o continente ou país de sua localização.
A UNESCO (1972, p. 134) “observa que o patrimônio cultural e o patrimônio natural estão cada vez mais ameaçados de destruição, não apenas pelas causas naturais de degradação, mas também pela mudança das condições sociais e econômicas que agravam a situação de alteração ou destruição com fenômenos ainda mais preocupantes”. Deste modo, salienta-se que patrimônio é um sistema, isto é, há uma construção temporal, portanto histórica, que ganha materialidade no espaço, objeto da geografia; cumpre destacar a preocupação de natureza metodológica quando se considera o ato de empreender a análise do tempo e do espaço. Esta análise enxerga os elementos integrantes da sociedade e deve considerar as categorias espaço e tempo pela materialidade social que dá às mesmas a condição de existir. Assim, o patrimônio cultural deve ser reconhecido como algo em construção constante em que as multiplicidades de qualidades objetivas do espaço podem ajudar a entender as práticas humanas na sua construção, como na cidade, por exemplo, este é o caráter evolutivo da própria definição de patrimônio, e Hartshorne (1978, p. 16) afirma que “desde muito cedo, no decurso da evolução da humanidade, o homem descobriu que o seu mundo variava acentuadamente de lugar a lugar”. Corroborando a ideia de Hartshorne, Jordán-Salinas, Pérez-Eguíluz e De las Rivas-Sanz, (2020, p. 88) afirmam que “a perspectiva da paisagem não oferece dúvidas, priorizando a percepção do espaço sobre sua explicação, espaço/paisagem que inclui qualquer parte do território percebida pela população”.
Via de regra, as cidades inscritas e tombadas como patrimônio cultural carregam em si o estigma de serem relevantes quanto ao desenvolvimento político, econômico ou, até mesmo, sociocultural. Com frequência, a geografia limitou-se a abordá-las tendo por base características de modelos ou estilos ditos citadinos e, muitas vezes, a partir de recortes espaciais e temporais em que se criou a ilusão de que é possível parar o tempo e de que o espaço citadino é meramente descritivo. Assim, é preciso tomar cuidado com este tipo de entendimento, pois a cidade não para, bem como qualquer outro objeto social que, ao se constituir uma estrutura complexa, exporta políticas de desenvolvimento distintas, seja no tempo, seja no espaço.
Deixando a perspectiva descritiva de lado, deve-se assumir que a cidade tem de ser abordada em seus diversos aspectos. Há uma natureza social, política, cultural, econômica etc., que permite que não se caia em fragmentos de análise ou que se parcialize o entendimento sobre o desenvolvimento urbano a partir de enfoques carregados de interesse. Assim, e de modo atento, torna-se fundamental a compreensão de que todos os aspectos circunscritos à cidade, e aqui invocando a definição de patrimônio da UNESCO, variam no tempo, objeto da história; a cidade não é linear, é marcada por rupturas ou descontinuidade, isto é, o tecido urbano se desenvolve e se modifica segundo cronologias diferentes. No tocante às modificações, para Oliveira (2017, p. 11) “a cidade entendida como um “espaço social” representa o espaço do homem, alvo de constantes transformações”; deste modo percebe-se que as relações sociais se materializam num território citadino que é real e concreto, o que significa dizer que há um espaço com práticas socioespaciais. Oliveira (2017, p. 12) complementa, ao afirmar “Por isso, as categorias Espaço e Tempo devem ser consideradas nos estudos urbanos (...)”. Colaborando e dando amplitude às ideia s de Oliveira, Manuel, Duque e Susino (2020, p. 4) afirmam que,
Dessa forma, esses espaços objetivamente centrais, economicamente relevantes e bem articulados, acabam desenvolvendo também uma centralidade subjetiva, simbólica, inscrita no imaginário coletivo e nas histórias de vida individuais dos habitantes da cidade, para quem poder residir próximo a localização supõe um valor em si mesma, não só pela proximidade de determinados serviços ou funções, mas também pelos significados subjetivos que pode conter para eles e pelos valores culturais que estão associados ao espaço central.
Reviver a cidade, a partir das ideias expostas, é denotar os interesses e os conflitos que decorrem num espaço social. Trazendo estas ideias para o Distrito Federal, verifica-se que em quase todos os lugares do DF há rastros que incluem tanto quanto excluem os atores. Finalmente, a partir da exposição até aqui, ilustrar-se-á as análises espaciais com as práticas urbanísticas no DF, algumas pertencentes ao governo local e outras ao governo federal, e ambas contribuem para uma mudança com relação à arquitetura da cidade e da paisagem distrital, inclusive evidenciando que em Brasília há o embate entre inclusão e exclusão. Quanto à paisagem, considera-se que não se trata de uma simples adição de elementos geográficos sem conexão, enquanto uma porção do espaço – no caso o espaço distrital – é uma combinação dinâmica de elementos socioespaciais que fazem da paisagem um conjunto urbanístico único. Considerando as diversas cidades brasileiras, em especial as metrópoles e, em destaque, o conjunto tombado de Brasília – considerado a maior área tombada do globo – com sua área de tutela, todo este conjunto paisagístico está em constante evolução.
2.1. Do Plano Piloto de Lúcio Costa ao Conjunto Urbanístico de Brasília – DF tombado pelo IPHAN e pelo GDF e inscrito na Lista do Patrimônio da Humanidade
O Conjunto Urbanístico de Brasília – CUB é representado pelo conjunto urbano construído em decorrência do projeto vencedor do concurso nacional para a nova capital do Brasil, de autoria do arquiteto e urbanista Lucio Costa, veja (figura 1) a seguir. Brasília, como projeto primoroso, foi planejada para abrigar 500 mil pessoas, isto é, os funcionários públicos e suas famílias, basicamente. Contudo, a persistência dos candangos, que se recusaram a ir embora com a inauguração da capital, fez surgir mais cidades que o previsto pelo urbanista.

Brasília começou a ser construída em outubro de 1956; nos arredores da nova capital modernista no Planalto Central, já havia dois núcleos urbanos erguidos. O mais antigo, Planaltina, foi criado em 19 de agosto de 1859, pela Lei nº 03 da Assembleia Provincial de Goiás e, mais tarde, esta passou a ser a data oficial da fundação da cidade, conforme o disposto no artigo 2º do Decreto nº 571, de 19 de janeiro de 1967[i]. Brazlândia, Fundada em 1933[ii], era um povoado da área rural do município goiano de Luziânia e tinha menos de mil moradores na data da inauguração da nova capital, em 21 de abril de 1960.
O Planalto Central começou a ser mais povoado com a construção da capital. Trabalhadores começaram a migrar para o Centro-Oeste, funcionários que trabalhariam para o governo, ou seja, os funcionários públicos, operários e até mesmo os engenheiros da Companhia Urbanizadora da Nova Capital – NOVACAP. Milhares de trabalhadores, comerciantes e empresários foram atraídos pelas oportunidades trazidas pela criação de uma cidade começando do zero, num grande vazio demográfico. Inicia-se o embate entre a inclusão e a exclusão, e acreditava-se que os migrantes, então chamados candangos, voltariam às suas origens após a inauguração da nova capital. Um bom exemplo foi a Cidade Livre, atualmente denominada Núcleo Bandeirante, o principal acampamento de trabalhadores; naquela região do Distrito Federal, os lotes eram cedidos em regime de comodato, ou seja, não havia escrituras dos terrenos, os quais teriam que ser devolvidos à NOVACAP.
Ainda na perspectiva da exclusão espacial no DF, milhares de imigrantes, muitos com suas famílias, que se dirigiram ao Planalto Central em busca de empregos não tinham o seu lugar de morada, pois as construções dos acampamentos de madeira não atendiam à demanda. Com o crescimento em ritmo acelerado, foi criada Taguatinga – a primeira cidade-satélite criada pela NOVACAP – cujo objetivo era proporcionar a aquisição de terrenos para construção das próprias casas. A satélite surgiu em função do crescimento populacional da Cidade Livre, pois havia uma massa de migrantes que chegavam à capital, e alguns meses depois da instalação dos primeiros habitantes, Taguatinga se transformava numa realidade. Souza (2019, p. 8) ajuda a fazer uma leitura destas transformações ao afirmar que “os lugares se constituem de modo homólogo (aconteceres idênticos em localidades distintas), complementares (aconteceres complementares aos homólogos, porém mais complexos), e hierárquicos, cada um deles se expressa de modo distinto na organização do espaço (...)”.
Tem-se que considerar um aspecto importante quanto a implantação de Brasília, pois há um contexto histórico de expansão e redistribuição urbana para o interior do país. Houve a complementação da interiorização da capital pelo sistema de transportes e pela melhoria das comunicações, o que foi condição para unificar o território brasileiro. Há um projeto nacional de uma unidade territorial integrada que continha uma política desenvolvimentista em que constava a criação de Brasília e suas interligações com o restante do território nacional.
Assim surgiu Brasília – a concretização de um momento histórico brasileiro – que se encontrava em rápido desenvolvimento e causando rápida mudança na paisagem; Santos (2004, p. 54) corrobora esse argumento ao afirmar que “considerada em um ponto determinado no tempo, uma paisagem representa diferentes momentos do desenvolvimento de uma sociedade”. A idealização da nova capital, com a perspectiva de expandir o mercado nacional e ocupar o centro-norte do Brasil, trouxe como características os investimentos, público e privado, visando a infraestrutura, o desenvolvimento da indústria básica e de bens de consumo, e o próprio recurso humano. De fato, a construção da nova capital tornou-se um novo centro polarizador de migrações, atraindo pessoas de diversos estados brasileiros.
O crescimento populacional da inauguração de Brasília aos dias atuais denota a existência de um vetor migratório para o Distrito Federal. Um dos elementos que explicam o aumento populacional – e é nesta lógica que se configura o crescimento da cidade – foi o processo de urbanização e o surgimento de novos núcleos urbanos no DF, que inicialmente eram chamados de cidades satélites e depois passaram a ser denominadas Regiões Administrativas. Por meio da Lei nº 4.545/64 e no seu artigo nº 31 foram criadas oito (8) RAs (Lei nº 4.545, 10 de dezembro, 1964). Posteriormente, com o contínuo aumento populacional, essas RAs foram subdivididas, chegando-se a 33 Regiões Administrativas por meio da Lei nº 6.391[iii], de 30 de setembro de 2019.
Como já foi destacado, para o DF vieram pessoas de várias regiões; assim, Brasília, no seu conjunto urbanístico, recebeu distintas formas de apreensão do espaço trazidas por culturas e costumes de cada indivíduo mobilizado pela execução das obras distritais. Cabe evidenciar que o Plano Piloto de Lúcio Costa para a construção de Brasília trouxe o conceito de uma arquitetura moderna, isto no que tange sua forma urbanística que, necessariamente, remete à paisagem edificada. Posto deste modo, a proposição de Brasília é inédita no Brasil, e isto traz também um traço que interferirá na assimilação de um novo espaço, uma nova possibilidade de novos hábitos e uma prática social de uso do espaço. Para Santos (2012, p. 66),
Da forma como se estruturam e comportam as diversas instâncias da sociedade depende a maneira como o espaço nacional se organiza. (...)Cada instância social é, de fato, representada por uma combinação de fatores, subestruturas ou substâncias complementares e conflitantes, de cuja dialética depende a própria evolução social.
A ideia da construção de Brasília, uma cidade moderna na arquitetura e no urbanismo, surge como inovadora no processo de urbanização brasileira, o qual era, predominantemente, concentrado no litoral do país. O desenvolvimento e o crescimento urbano se davam intensamente nessas regiões litorâneas e nas próximas ao litoral, como o caso de São Paulo, por exemplo, ficando a maior parte do território nacional negligenciada e esvaziada de investimentos.
Neste sentido, argumentos não faltaram para justificar a transferência da capital para o interior do território brasileiro. Um primeiro argumento seria a tentativa de apagar a imagem de um modelo territorial iminentemente periférico; outro argumento, o segundo, seria o de transformar o Brasil em um país unificado, em vez de muitos enclaves. Costa et al. (2013) argumentam que entendem Brasília como uma variante estética da estratégia geopolítica e geoeconômica que transferem a capital para a porção central do Brasil e isto fornece à capital a imagem de referência cruzada entre o estético moderno, símbolo da modernidade arquitetônica internacional, e o político, pois a cidade se transforma em sede do governo federal, portanto, um centro de poder nacional. Deste modo, Brasília seria a concretização de uma política territorial, resultando em um meio de harmonizar o complexo jogo de interações, como afirma Santos (2004, p. 27) “quando se fala de espaço total, fala-se de uma multiplicidade de influências superpostas: mundiais, nacionais, regionais e locais”. Em conclusão, Oliveira (2017, p. 23) afirma que “as cidades são espaços de disputas entre os vários segmentos que constituem a sociedade. (...). Elas são como organismos vivos que, ao longo do tempo, modificam-se”.
As ocupações durante as quatro primeiras décadas de Brasília produziram um espaço urbano bem diferente do idealizado por Lúcio Costa, pois o autor do projeto do Plano Piloto de Brasília tinha previsto abrigar uma população que oscilaria entre 500 e 700 mil habitantes. Na perspectiva do idealizador da cidade, quando se aproximasse deste limite, seriam criadas as chamadas cidades-satélites, as quais seriam pequenas e complementares à capital, já que a cidade estava bem definida. Desde os primeiros anos a nova Capital sofreu pressão populacional, consequência do grande número de migrantes em busca de trabalho que, após a finalização da construção, não quiseram retornar às suas cidades de origem.
As características urbanas de Brasília e do Distrito Federal em seu conjunto sofrem muita alteração, desde a construção aos dias atuais. Dentre as modificações, cumpre destacar o acelerado crescimento populacional com a intensificação da urbanização, da metropolização e, de 1987 em diante, da patrimonialização. Preservar o conjunto decorrente do Plano Piloto de Brasília é um debate antigo, o qual a legislação de organização administrativa do DF, Lei nº 3.751, abril de 1960, por exemplo, definiu em seu Art. 38 que qualquer modificação no plano-piloto, a que obedece a urbanização de Brasília, depende de autorização de lei federal. Assim, há que se analisar a patrimonialização num contexto mais amplo, que envolve a urbanização e a metropolização do quadrilátero distrital.
2.2. Brasília patrimonializada, a urbanização e a metropolização do Distrito Federal. Seus efeitos na espacialidade distrital
A rede de cidades no Brasil está organizada em duas dimensões, isto é, a hierarquia dos centros urbanos e as suas regiões de influência. Estas são identificadas pela ligação entre as cidades de menor hierarquia para as de maior hierarquia urbana e o nó de ligação é a metrópole, para onde convergem as vinculações de todas as cidades no nível Nacional. Ao trazermos a ideia de hierarquia das Regiões de Influência das Cidades – REGIC para o DF, denota-se que há uma ligação entre o Plano Piloto – RA-I e as outras Ras, e o conjunto formado por Municípios goianos e mineiros quando se considera as ligações regionais. Isto se deve ao fato de que a unidade funcional do Distrito Federal é composta por 33 RAs indissociáveis como unidade urbana. Trata-se de um processo de conurbação com um forte movimento pendular, não somente com o interior do DF, mas com os municípios que constituem a Área Metropolitana de Brasília – AMB. Com esta integração, justifica-se considerar Brasília como um nó da rede urbana.
Seguindo as categorias adotadas na versão anterior da REGIC-2008, as Cidades foram classificadas em níveis de hierarquia com suas centralidades. A região de influência dessas centralidades cobre toda a extensão territorial do Brasil, com áreas de sobreposição. No caso das Metrópoles, foram subdivididas em três níveis: Grande Metrópole Nacional, Metrópole Nacional e Metrópole. O arranjo populacional de Brasília/DF ocupa a segunda colocação hierárquica, também com forte presença nacional e, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, a população residente no Distrito Federal, em 2015, era de 2,85 milhões habitantes e passará para 3,24 milhões em 2025, de acordo com o (figura 2), a seguir.
Ao considerar as Regiões de influência de Brasília como metrópole nacional, destaca-se a rede de cidades que se ligam à capital, principalmente por sua extensão de abrangência geográfica. A inserção da influência de Brasília nesses estados ocorre, fundamentalmente, por conta da subordinação das capitais estaduais, em virtude da gestão pública da capital, que é responsável pelos vínculos. A (figura 3) é ilustrativa da ligação entre as metrópoles. Assim, as conexões entre as várias metrópoles brasileiras representam as ligações entre as atividades que geram fluxo. Santos (2018, p. 11), ao analisar os fluxos da cidade, afirma que “o perfil urbano se torna complexo, com tendência à onipresença da metrópole, através de múltiplos fluxos de informação que se sobrepõem aos fluxos de matéria e são o novo arcabouço dos sistemas urbanos”. Em sua análise, Santos (2018, p. 44) observa sobre como a hegemonia espacial se dá sobre o território e as suas intencionalidades,
Como os objetos criados pelas atividades hegemônicas são dotados de intencionalidade específica, o que não era obrigatoriamente um fato nos períodos históricos anteriores, o número de fluxos sobre o território se multiplica. Juntemos a esse um outro dado: da totalidade dos objetos surgidos, alguns surgem com uma vocação simbólica, mas a maior parte tem uma vocação mercantil, de modo que tanto mais especulativa é a especialização das funções produtivas, tanto mais alto o nível do capitalismo e dos capitais envolvidos naquela área, e há, correlativamente, tendência a fluxos mais numerosos e qualitativamente diferentes.
As cidades formam um conjunto de centros articulados territorialmente, e Santos (2008, p.96) afirma que “o território é formado por frações funcionais diversas”, enquanto Souza (2019, p. 8) amplia a ideia de Santos ao afirmar que “a fluidez é uma demanda que o modo de produção vigente cria para a aceleração da mobilidade de pessoas e de mercadorias, das trocas”. Cada assentamento urbano – a exemplo, Brasília – com funções centrais é considerado um local com centralidade que coordena a distribuição de cargas, passageiros, fluxos de capital e informação, etc. Dentre as atividades desenvolvidas que fortalecem a função central estão a distribuição de bens e serviços para a população, inclusive a externa ao próprio núcleo urbano, isto é, fora as RAs do DF, Brasília articula e fortalece as ligações com os vários outros centros vizinhos ao DF e as regiões mais afastadas da porção central do Brasil. Assim, ao mapear as centralidades, verificou-se que há uma economia de aglomeração, o que é verificado pela necessidade que os provedores de bens e serviços têm de estarem próximos uns aos outros, gerando com isto uma área polarizada.


Pelo exposto até aqui, conclui-se que Brasília como metrópole possui grande quantidade de conexões que abrangem todo o território nacional, e esta conectividade é favorecida por estar na porção centro-oeste do país, aliada ao seu papel de capital. Em Brasília, notadamente, as relações empresariais em relação ao espaço distrital estão subordinadas à administração pública, em especial na área tombada como Patrimônio Cultural da Humanidade. Um exemplo que marca a presença do governo federal na administração do espaço patrimonializado é o fato de que o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN sempre esteve presente nas discussões sobre a operacionalidade das normativas de preservação de Brasília e em outros sítios tombados.
O sítio de Brasília patrimonializado está legalmente protegido em três instâncias, colocadas aqui segundo a ordem de prioridade da análise deste texto. A inscrição de Brasília na lista do Patrimônio Mundial pela UNESCO segue os seguintes critérios: a) Representar uma obra artística única, uma obra-prima do gênio criativo humano; e b) Ser um exemplar marcante de um tipo de construção ou conjunto arquitetônico, que ilustre um estágio significativo da história da humanidade. Numa instância mundial, Brasília está legalmente protegida na Lista do Patrimônio Mundial, inscrição nº 445, de dezembro de 1987. Na instância distrital, o Governo do Distrito Federal, pelo decreto nº 10.829 de 14 de outubro de 1987, e na instância federal o Governo Federal inscreve a cidade no Livro do Tombo Histórico, inscrição nº 532, portaria nº 314/92. Tanto em nível distrital como em âmbito federal, no Art. 1º § 2º estabelecem a área de abrangência do tombamento, e a área a que se refere o caput deste artigo é delimitada a Leste pela orla do Lago Paranoá, a Oeste pela Estrada Parque Indústria e Abastecimento – EPIA, ao Sul pelo Córrego Vicente Pires e ao Norte pelo Córrego Bananal. Deste modo, O Conjunto Urbanístico de Brasília – CUB se constitui como um bem tombado. A (figura. 4) a seguir demostra a poligonal do tombamento do CUB, acrescida do espelho de água do Lago Paranoá (Brasil, 2017).
Ao se analisar espacialmente o Distrito Federal desde a construção, inauguração e patrimonialização de Brasília, verificam-se diferente momentos do que chamaremos de transição demográfica. O Plano Piloto de Lúcio Costa, como algo idealizado e concebido para ser um espaço marcado pela modernidade com trabalho ordenado e eficiente numa perspectiva de ser a capital brasileira, não seria o destino de toda a população de migrantes que chegaram antes da inauguração. Com uma população excedente que vivia nos acampamentos, naturalmente surgiram núcleos habitacionais periféricos diferenciados para abrigar as diferentes classes sociais, e este fato está na base socioespacial, isto é, a matiz espacial de um DF colorido pelas distinções materializadas.

Com a consolidação espacial de Brasília e formatação da sua Área Metropolitana, a cidade toma uma dimensão nacional como metrópole, o que certamente orienta uma tipologia espacial que inclui e exclui. A exclusão se dá pela valorização do solo no Distrito Federal, pois os locais de morar mais baratos ficam mais afastados do centro patrimonializado, a RA-I – o Plano Piloto; a periferização da população chega a atingir as áreas limítrofes com o quadrilátero do Distrito Federal. É includente quando se trata de RAs que surgiram nos limites mais próximos do patrimônio tombado; nestas áreas, a construção civil enquanto capital dá materialidade a estratégias comerciais que transformam o espaço em paisagens para o consumo. Assim surgem dinâmicas de ocupação espacial, não pela necessidade de morar, tão somente, mas, também, pela necessidade do consumo, assim os impactos da produção do espaço que produzem alterações na paisagem. Cabe aqui uma comparação para dar visibilidade ao que inclui e ao que exclui: Taguatinga (RA-III) foi fundada para absorver a população excedente da antiga Cidade Livre, acampamento de trabalhadores; e, na 10ª edição do Fórum Urbano Mundial desenvolvida em Abu Dhabi, Emirados Árabes Unidos entre os dias 8 e 13 de fevereiro de 2020, a Companhia Imobiliária de Brasília – TERRACAP apresentou sobre o projeto urbanístico do Setor Habitacional Jóquei Clube (SHJQ), em um painel denominado “Inovação na Expansão Urbana” (Leite, s.d.). A figura 5 mostra a poligonal do SHJQ.
A portaria nº 36, de 20 de maio de 2021 aprovou o Estudo Territorial urbanístico – ETU 01/21, o qual é aplicável ao Setor Habitacional Jóquei Clube – SHJC, Setor Habitacional Quaresmeira – SHQ, Setor de Transporte Rodoviário de Cargas – STRC, nas Regiões Administrativas de Vicente Pires – RA XXX, do Guará – RA X e do SIA – RA XXIX. Na poligonal de estudo, a área do SHJC, que foi desocupada em 2005, era destinada à atividade de corridas de cavalos, uma antiga concessão de direito real de uso da TERRACAP para o Jóquei Clube, e o SHQ também se encontra desocupado. A área de estudo situa-se entre duas vias primárias da Rede Estrutural de Transporte Coletivo, também denominada Estrada Parque Ceilândia – EPCL; outra via, também importante, ao sul pela Estrada Parque Taguatinga – EPTG, também conhecida como DF-085, rodovia em que se verificam modificações espaciais com a perspectiva de suprir demandas habitacionais com uma capacidade de consumo elevada. A figura 6 define bem a futura área de ocupação urbana comercial ao longo da EPTG e o uso e ocupação da terra.
O Estudo Territorial urbanístico – ETU 01/21, criado pela portaria nº 36, estabelece as seguintes explicações quanto ao zoneamento e uso da terra:
· Zona A é destinada às centralidades, devendo abrigar atividades diversificadas, que promovam a atratividade de grande número de pessoas e encontro social. Corresponde às extremidades norte e sul do SHJC. Esta localização foi definida em virtude da proximidade com as vias EPTG e EPCL, eixos de transporte coletivo;
· Zona B corresponde à área central do SHJC e é destinada, preferencialmente, ao uso residencial multifamiliar. Esta porção deve comportar também os usos institucional, comercial e de serviços, todos de abrangência local e compatíveis com o uso residencial;
· Zona D – que corresponde à faixa paralela à EPVL – tem localização estratégica para comportar atividades econômicas diversas e de pequeno e médio porte. A EPVL apresenta um caráter regional, como eixo de ligação entre o Plano Piloto de Brasília (RA – I) e os núcleos urbanos do SCIA Estrutural (RA – XXV), Guará (RA – X), Vicente Pires (RA – XXX) e Águas Claras (RA – XX). Desta forma, foi classificada como Via de Atividades, de maneira que as atividades lindeiras devem ser compatíveis com sua capacidade.
Do exposto até aqui, verifica-se a necessidade de uma nova análise na historicidade da cidade patrimonializada, que não se fixe apenas nos dados demográficos com o aumento populacional, nos limites físicos do DF, na tipologia urbana planejada espontânea e na hierarquia funcional da cidade, nos signos e simbolismos da paisagem e, por fim, nos modelos pré-determinados de sociedade ou pela cultura, mas que estude a real prática social correlacionada com os sujeitos modificadores do espaço urbano no tempo, e não apenas a sua representação, pois com as conexão entre o mercado imobiliário e o Estado, o espaço urbano é modificado sendo caracterizado pelo uso intensivo das terras urbanas em porções do território distrital, ocasionando um processo de adensamento e verticalização.


3. Considerações finais
O Distrito Federal, por seu natural protagonismo na região e, também, pelas consequências que significa para seu entorno dependente de sua infraestrutura, vem articulando alternativas a um modelo de desenvolvimento para a região. O primeiro passo é o de reconhecer que as relações dialéticas próprias à sociedade de classes criam riqueza/pobreza, desenvolvimento/desigualdade, exploração do trabalho, segregação socioespacial e forte hierarquia social. Importante lembrar que existe, também, a história de luta, de resistência, de solidariedade, de atuação política organizada, de trabalho etc. Nestes contrapontos entre a patrimonialização e a solidariedade social surgem os pontos de resistência, onde o vínculo entre o patrimônio e o desenvolvimento pode encontrar maior ressonância.
O urbanismo modernista do projeto de Brasília trouxe, também, uma visão arquitetônica e, ao mesmo tempo, a privatização dos espaços públicos no que se convencionou chamar de entorno do bem tombado. Há o potencial de parcelamento da porção desocupada para dinâmica urbana distrital em seu crescimento urbano horizontal e vertical, e isto se dá por estar próximo a áreas urbana consolidadas patrimonializadas com áreas verdes, muitas vezes formatadas para a proteção do cerrado enquanto paisagem.
Estas áreas são mercadologicamente transformadas em locais para moradias, e os planos diretores de regulação das ocupações, de algum modo, não dão conta de exercer suas funções legais, visto que o DF com um tecido urbano fragmentado fica a mercê de projetos de requalificação, com intervenções pontuais que fortalecem o contexto de um espaço para o consumo. Assim, mesmo com toda a preocupação histórico legal com as diretrizes de proteção da ambiência e visibilidade do CUB, os espaços vazios tornam-se propícios à moradia. Assim, considera-se que toda porção de espaço é potencialmente utilizável pois, quando se fala de espaço fala-se de uma multiplicidade de influências tanto mundiais, como locais; contudo não esquecer que o espaço é contínuo e indivisível.
Quanto ao arranjo da gestão espacial existente, os achados para esta pesquisa verificam que o mesmo não é pautado para a governança de um projeto de desenvolvimento urbano do DF neste século XXI. Por um lado, não se articula em função de objetivos que levem em conta a vocação do território; por outro lado, deixa de considerar a existência de atores sociais. Em linhas gerais, o urbanismo moderno distrital é o planejamento até os anos de 1980, e não se detectou outros tipos de ordenanças sobre o território. Contudo, ao fim dos anos oitenta, a constituição de 1988 deu mais autonomia política e administrativa ao Distrito Federal, somado ao fato do aumento dos investidores privados; em outras palavras, os espaços vazios passam a ser requalificados para novos usos e surge o investimento do governo distrital juntamente com a iniciativa privada para a construção de infraestrutura que suporte o aumento populacional propiciado pelas novas construções completamente verticalizadas.
Definitivamente, Brasília transbordou ao que foi planejado e passou a cumprir novas funções e responsabilidades espaciais, e é sob essa perspectiva que a cidade, enquanto patrimônio – nacional e da humanidade – deve ser considerada. Verifica-se o potencial das novas funções, com parte do território distrital desocupado, para a dinâmica urbana e habitacional do quadrilátero e, por estar próximo a áreas urbanas consolidadas e delimitadas por áreas verdes. Importante frisar que a cidade real e vivida e seu projeto original patrimonializado não são uma coisa ou outra, são as duas formas de ser cidade. Enxerga-se em Brasília características excludentes, mas há, também, o oposto; marcadamente, há atributos da cidade que implicam a inclusão de sujeitos, e cada lugar a seu modo, na qualidade e na quantidade que seus atributos espaciais o possibilitam. A pesquisa apresentou uma abordagem para construção de arranjos de governo que possuam legitimidade por envolverem os sujeitos que contribuem para as transformações do território. É claro que essa leitura não é excludente em relação a outras abordagens, e compreende-se com este estudo que, mesmo após medidas preventivas que pudessem dar uma margem provável e possível ao crescimento desordenado distrital, não há, de fato, medidas totalmente eficazes para poder controlar este crescimento.
4. Referencias bibliográficas
Bispo, A. (2020). Da perspectiva edênica à concepçao paisagística de Brasília, cidade-parque. PatryTer, 3(6), 35-50. https://doi.org/10.26512/patryter.v3i6.26965.
Brasil. (2017). Plano de Preservação do Conjunto Urbanístico de Brasília. Brasília: Câmara Legislativa do Distrito Federal. http://www.seduh.df.gov.br/wp-conteudo/uploads/2017/11/Minuta-PLC-PPCUB.pdf.
Brasil. (2018). Projeções e cenários para o Distrito Federal: Análises prospectivas populacionais, habitacionais, econômicas e de mobilidade. Brasília: CODEPLAN. https://www.codeplan.df.gov.br/wp-content/uploads/2018/12/Proje%C3%A7%C3%B5es-e-cen%C3%A1rios-para-o-Distrito-Federal-An%C3%A1lises-prospectivas-populacionais-habitacionais-econ%C3%B4micas-e-de-mobilidade.pdf.
Costa, E. (2015). Cidades da patrimonialização global: simultaneidade totalidade urbana - totalidade-mundo. São Paulo: Humanitas.
Costa, E., Drumond, B., de Souza, D., Dantas, E., Beserra, F. & Carmo, T. (2013). Metropolização, patrimonialização e potenciais de conflitos socioterritoriais em Brasília (DF). Espaço e Geografia, 16(1), 325-367. https://www.researchgate.net/publication/305215778.
Gottdiener, M. (2016). A Produção Social do Espaço Urbano. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo.
Hartshorne, R. (1978). Propósitos e natureza da geografia. São Paulo: HUCITEC.
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. (2018). Regiões de Influência das Cidades. Rio de Janeiro. https://biblioteca.ibge.gov.br/index.php/biblioteca-catalogo?view=detalhes&id=2101728.
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional no Distrito Federal. (2017). Patrimônio em Transformação: atualidades e permanências na preservação de bens culturais em Brasília. Brasília. http://portal.iphan.gov.br/uploads/publicacao/patrimmonio_em_transformacao_braslia_r.pdf
Jordán-Salinas, J., Pérez-Eguíluz, V., & De las Rivas-Sanz, J. (2020). Paisagem Urbana Histórica: aprendendo com uma cidade-paisagem, Segóvia. EURE, 46(137). https://www.eure.cl/index.php/eure/article/view/3051/1247.
Landa, I. (2020). Uma abordagem à historiografia urbana: alguns aspectos epistemológicos e metodológicos. EURE, 46(139). https://www.eure.cl/index.php/eure/article/view/3183/1306.
Lei nº 4.545, de 10 de dezembro de 1964. (1964). Dispõe sobre a reestruturação administrativa do Distrito Federal, e dá outras providências. Brasil. https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1960-1969/lei-4545-10-dezembro-1964-377657-norma-pl.html.
Leite, S. (s.d.). Projeto urbanístico para o Jóquei Clube tem destaque no Fórum Urbano Mundial. Brasília: Terracap.
Marx, K. (2008). Contribuição à crítica da economia política. São Paulo: Expressão Popular.
Oliveira, W. (2017). Novas espacialidades e a densificação populacional na Área de Tutela do Bem Tombado do Plano Piloto de Brasília – RA-I. (Tese de Doutorado em Geografia). Universidade de Brasília, Brasília.
Organização das Nações Unidas para Educação, a Ciência e a Cultura. (1972). Convenção para a Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural. Paris: UNESDOC Digital Library. https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000133369_por.
Santos, M. (1996). O Trabalho do Geógrafo no Terceiro Mundo. São Paulo: Editora Hucitec.
Santos, M. (2004). Pensando o Espaço do Homem. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo.
Santos, M. (2008). Espaço e Método. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo.
Santos, M. (2012). A Natureza do Espaço: Técnica e Tempo, Razão e Emoção. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo.
Santos, M. (2012). Da Totalidade ao Lugar. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo.
Santos, M. (2018). A Urbanização Brasileira. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo.
Souza, M. (2019). Território usado, rugosidades e patrimônio cultural: refletindo sobre o espaço banal. Um ensaio geográfico. PatryTer, 2(4), 1-17. https://doi.org/10.26512/patryter.v2i4.26485.
Secretaria de Estado de Gestão do Território e Habitação. (2017). Plano de preservação do Conjunto Urbanístico de Brasília. Brasília. http://www.seduh.df.gov.br/wp-conteudo/uploads/2017/09/apresentacaoo_ppcub_ccpptm_24052016.pdf.
Manuel, J., Duque, R. & Susino, J. (2020). El retorno de la ciudad. La tesis de la recuperación material y simbólica de las ciudades centrales. Biblio3W, 25(1299), 1-36. https://revistes.ub.edu/index.php/b3w/article/view/31038/31546.
United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization. (1972). Volume 1. Resolutions Recommendations. Paris: UNESDOC Digital Library. https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000114044.page=134
Notas