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Utopismos patrimoniais, discursos urbanos e hermenêutica: aproximações conceituais e de método
Renata Mello Montenegro Araújo
Renata Mello Montenegro Araújo
Utopismos patrimoniais, discursos urbanos e hermenêutica: aproximações conceituais e de método
Utopismos patrimoniales, discursos urbanos y hermenéutica: enfoques conceptuales y de método
Patrimonials utopisms, urban discourses and hermeneutics: conceptual and method approaches
PatryTer, vol. 5, núm. 10, pp. 214-225, 2022
Universidade de Brasília
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Resumo: Para fundamentar pesquisa em andamento, propõe-se a discussão de alguns caminhos para conceitualizar uma investigação em Geografia, que se apropria da hermenêutica filosófica como método. A tese tem por temática a interpretação do discurso urbano-urbanístico produzido sobre Brasília, a partir da obra escrita de professores(as) pesquisadores(as) da Universidade de Brasília, atuantes em Urbanismo e Geografia Urbana. Inicialmente, são realizadas algumas aproximações aos conceitos delineadores do tema e da hipótese da pesquisa – utopia Brasília e utopismos patrimoniais. Em seguida, são apresentadas ao debate algumas diretrizes derivadas da hermenêutica filosófica, que deverão conduzir a operação do método. O propósito do debate é guiar a construção de um conjunto de estratégias a serem adotadas como postura frente aos textos que serão interpretados, para que se alcance a situação hermenêutica desejada para realização do estudo.

Palavras-chave: Brasília, Universidade de Brasília, urbano, utopismos patrimoniais, hermenêutica.

Resumen: Para fundamentar la investigación en curso, se propone la discusión de algunos caminos para conceptualizar una investigación en Geografía, que se apropia de la hermenéutica filosófica como método. La tesis tiene como tema la interpretación del discurso urbano-urbanístico producido sobre Brasilia, a partir del trabajo de profesores investigadores de la Universidad de Brasilia, actuando en Urbanismo y Geografía Urbana. Inicialmente, se realizan algunas aproximaciones a los conceptos delimitadores del tema y de la hipótesis de investigación – la utopía de Brasilia y los utopismos patrimoniales. Luego, se presentan al debate algunas pautas derivadas de la hermenéutica filosófica, que deben orientar la aplicación del método. La discusión tiene como objetivo orientar la construcción de un conjunto de estrategias a ser adoptadas como postura frente a los textos que serán interpretados, a fin de se lograr la situación hermenéutica deseada para la realización del estudio.

Palabras clave: Brasilia, Universidad de Brasilia, urbano, utopismos patrimoniales, hermenéutica.

Abstract: To support ongoing research, we propose the discussion of some ways to conceptualize an investigation in Geography, which uses philosophical hermeneutics as a method. The thesis has as its theme the interpretation of the urban-urbanistic discourse produced about Brasília, based on the writings of research professors at the University of Brasília, who work in Urbanism and Urban Geography. Initially, some approximations are made to the delineating concepts of the topic and the inquiry hypothesis – Brasília utopia and patrimonials utopisms. Then, some guidelines, derived from philosophical hermeneutics, are presented to the debate, which should guide the operation of the methodology. The purpose of the argument is to manage construing a set of strategies to be adopted as a posture towards the texts that will be interpreted, to reach the desired hermeneutic situation for the study.

Keywords: Brasília, University of Brasília, urban, patrimonials utopisms, hermeneutics.

Carátula del artículo

Artigos

Utopismos patrimoniais, discursos urbanos e hermenêutica: aproximações conceituais e de método

Utopismos patrimoniales, discursos urbanos y hermenéutica: enfoques conceptuales y de método

Patrimonials utopisms, urban discourses and hermeneutics: conceptual and method approaches

Renata Mello Montenegro Araújo
Universidade de Brasília., Brasil
PatryTer, vol. 5, núm. 10, pp. 214-225, 2022
Universidade de Brasília

Recepción: 24 Abril 2021

Aprobación: 02 Mayo 2021

Publicación: 01 Septiembre 2022

Utopismos patrimoniais, discursos urbanos e hermenêutica: aproximações conceituais e de método
1. Introdução

O tema central deste estudo é a discussão preliminar de alguns elementos conceituais e metódicos alusivos à pesquisa de doutorado, ainda em desenvolvimento, que tem por tema a interpretação, apoiada nos princípios da hermenêutica filosófica, do discurso urbano-urbanístico sobre Brasília, presente na obra dos(as) professores(as) pesquisadores(as) da Universidade de Brasília – UnB, atuantes em Urbanismo e Geografia Urbana, sob a ótica da utopia Brasília e dos utopismos patrimoniais pela América Latina.

Por ter como objeto de estudo o discurso acadêmico sobre Brasília, produzido desde a UnB, a pesquisa procura se apropriar de pressupostos da hermenêutica filosófica como método de interpretação das narrativas espaciais produzidas sobre Brasília pelos(as) professores(as) pesquisadores(as), além de propor um exame de como tais discursos perpassam a noção conceitual dos utopismos patrimoniais pela América Latina, que será oportunamente discutida no artigo.

Em termos introdutórios, será apresentado o desenho geral da pesquisa, e, em seguida, serão apresentadas algumas aproximações conceituais relacionadas ao tema do estudo e suas hipóteses, assim como serão definidas estratégias, derivadas da hermenêutica filosófica, para operacionalização do método.

Cabe justificar, que, por se tratar de um doutorado em Geografia, empreendido por uma arquiteta e urbanista, o tema da pesquisa parte de algumas formulações críticas acerca da formação e atuação dos(as) pesquisadores(as) e profissionais urbanistas e geógrafos(as) na busca por agregar um discurso sobre a cidade que não se concentre apenas na forma urbana, mas também agregue um olhar mais interessado no cotidiano e na sabedoria popular.

A análise será direcionada, sobretudo, ao que podem ser compreendidas como duas das mais importantes áreas dedicadas ao estudo do urbano e das cidades – a Geografia [Urbana] e o Urbanismo, considerando o caráter essencialmente espacial das suas perspectivas e abordagens, mesmo que variadas e distintas, além da interdisciplinaridade que lhes é própria.


Figura 1
Linha do tempo Linha do tempo geral – professores(as) pesquisadores(as) UnB – Geografia urbana e Urbanismo
Elaborado pela autora. (2021) com base em http://lattes.cnpq.br/ e https://www.unb.br/

No contexto da UnB, o curso de Arquitetura e Urbanismo e o curso de Geografia, apesar de possuírem origens institucionais diferentes e terem sido implantados em momentos distintos, apresentam intersecções disciplinares e afinidades temáticas no tocante ao estudo do fenômeno urbano e ao planejamento territorial. Ao longo dos anos da existência da universidade, nota-se, cruzando o currículo dos(as) docentes, uma significativa interação entre seus professores(as) em publicações, bancas, projetos, a exemplo de Aldo Paviani – GEA, Benny Schvarsberg – FAU, Frederico de Holanda – FAU, Neio Lucio Campos – GEA, entre outros, que dividem a autoria de alguns trabalhos, espaço em livros organizados e eventos científicos. O mesmo ocorre com a nova geração de docentes de ambos os cursos, na interação que se identifica, sobretudo, entre Fernando Luiz Araújo Sobrinho – GEA, Flaviana Lira – FAU, Liza Andrade – FAU e Everaldo Costa – GEA, por exemplo. Na figura 1 é possível observar na linha do tempo, a atuação do corpo docente no qual se pretende centrar a pesquisa, sob a perspectiva de alguns marcos institucionais.

A interpretação do discurso que se desenvolverá tem sua base construída nos fundamentos da hermenêutica filosófica (Heidegger, 2005 e 2012; Gadamer, 1999 e 2007; Habermas,1987), e tem por missão a identificação, na obra dos docentes, de elementos constituintes do que se denomina utopismos patrimoniais pela América Latina, noção apresentada originalmente por E. Costa (2016; 2021a), de fundamento dialético-existencialista-decolonial e que coloca o sujeito em seu lugar de protagonismo na construção e recuperação da história dos lugares e dos territórios no continente.

Essa abordagem proposta por Costa (2016) e retomada em seus estudos posteriores (2017, 2018, 2021a, amadurecida neste último), bem como debatida por outros autores (Scharage-Rúbio, 2019; Hostensky, 2020; Alves, 2019; Mesquita, 2020; Sousa, 2020; Silva & Queiroz, 2020; Andrade, 2021 e outros.), é fruto de uma série de investidas empíricas do autor em diversos países da América Latina, que justifica sua denominação, no sentido de desejar inverter a ideia de uma América Latina apartada da civilização ocidental, acreditando que os sujeitos subalternizados são necessários à escrita da nova história do continente.

A definição dos utopismos patrimoniais pela América Latina questiona a aceitação do continuísmo da colonialidade do poder e do saber (fundamentadas em Aníbal Quijano, Walter Mignolo e outros decoloniais), e afronta, por meio de sujeitos, de grupos, seus saberes, memórias e culturas situadas e em situação espacial, a ideologia a que legitima (Costa, 2016).

A ideia é “mergulhar” nos textos dos docentes, utilizando os pressupostos da hermenêutica filosófica, verificando em que medida as narrativas espaciais construídas sobre a cidade, produzidas especificamente nos cursos priorizados na pesquisa – Geografia [Urbana] e Urbanismo, incorporam elementos inerentes aos utopismos patrimoniais pela América Latina. A partir desse fio condutor e do confronto do recorte da produção acadêmica com a discussão em torno das utopias urbanas, da utopia Brasília e dos ideais de modernização do país, perceber como esses discursos abordam ou se aproximam do sujeito em situação espacial duradoura, noção conceitual que será explicitada com maior profundidade oportunamente.

Em termos gerais, pretende-se, na tese, construir uma linha histórica da genealogia das ideias sobre o urbano disseminadas a partir da Universidade de Brasília, tendo como objeto da análise de parte da obra escrita produzida pelos (as) professores(as) pesquisadores(as) em Urbanismo na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo – FAU e em Geografia Urbana no Departamento de Geografia – GEA, que faz parte do Instituto de Ciências Humanas – ICH. Sendo que essa linha histórica será conduzida pela busca por aquele que “existe e experimenta a vida cotidiana na cidade – o sujeito em carne e osso” (Costa, 2021b).

Neste trabalho, serão apresentadas as primeiras aproximações conceituais delineadoras do tema da tese, e serão discutidos alguns pressupostos da hermenêutica filosófica, a partir de Heidegger, Habermas e Gadamer, que serão apreendidos para construção do método da pesquisa.

2. Universidade de Brasília: laboratório síncrono do fazer e do pensar a cidade

Como forma de elucidar a essência do estudo em desenvolvimento, e para o qual esse artigo pretende colaborar na fundamentação conceitual e de método, neste tópico serão apresentados, em linhas gerais, os elementos fundamentais da pesquisa, tais como tema, objetivo geral e hipóteses.

A origem da Universidade de Brasília confunde-se com a construção de Brasília, tanto em relação ao momento, como em relação às ideias e perspectivas utópicas associadas aos ideais de modernização e desenvolvimento do Brasil. A nova universidade exerceria o papel de centro cultural do país e a missão de contribuir para a integração nacional, ensejando o pleno desenvolvimento das ciências, das letras e das artes.

Nas palavras do Presidente do Brasil, João Goulart, ao sancionar a Lei n. 3.998, de 15 de dezembro de 1961, que instituiu a Fundação Universidade de Brasília:

Na deliberação de trasladar a Capital da República para o Planalto Central, estava já implícito este ato de criação da Universidade de Brasília, órgão complementar indispensável para dar sentido espiritual e assegurar a autonomia cultural ao conjunto de instituições que compõem a cidade-capital. Não se tratava apenas de acrescentar uma universidade mais às que já temos e nos esforçamos por ampliar e aprimorar. O que esperamos da Universidade de Brasília e lhe indicaram como missão fundamental é que contribua para a integração nacional através da ampliação das oportunidades de educação asseguradas à juventude. É que enriqueça as modalidades de formação superior ministradas no país, contribuindo decisivamente para o preparo dos cientistas e dos técnicos, capazes de empreenderem a exploração racional do imenso patrimônio de recursos de que somos herdeiros, para colocá-los ao serviço do desenvolvimento nacional. E é, sobretudo, que constitua o centro cultural de Brasília, dotado da necessária criatividade para que essa Cidade seja capaz de imprimir aos empreendimentos nacionais que aqui se conceberão, o mesmo espírito inovador e o mesmo padrão de excelência que presidiram ao seu planejamento. (Universidade de Brasília, 2018, p. 2)

Além disso, Anísio Teixeira em seu pronunciamento sobre o projeto pedagógico a ser implantado, confere à universidade da nova capital a árdua tarefa de “corrigir os defeitos mais graves de que sofriam as universidades brasileiras em sua mistura de anacronismo e deformações congênitas” (citado por Ribeiro, 2012, pp. 104-106). Teixeira considerava a estrutura imaginada por Darcy Ribeiro propícia à cooperação e capaz de dar ao ensino o espírito de equipe para assim acolher as atividades interdisciplinares, interdepartamentais, interinstitutos e interfaculdades e se tornar primeiro arco da integração universitária do país, enquanto, metaforicamente a implantação da cidade de Brasília no Planalto Central promoveria a integração em escala nacional.

Em 1965, de acordo com Almeida (2017), a UnB sofreu um dos seus maiores reveses, denominado por ele como diáspora, em seu livro “Universidade de Brasília: ideia, diáspora e individuação”. Nesse momento, vários professores pediram demissão em solidariedade aos colegas demitidos por motivações políticas. Assim, a implantação do projeto da Universidade, conforme concebida, foi interrompida e alguns aspectos institucionais se alteraram, tomaram outros rumos e nem tudo se concretizou. No entanto, o formato pedagógico imaginado, de fato, favoreceu a interação entre os departamentos, que compartilham disciplinas, projetos de extensão e a própria produção acadêmica, além de estabelecer um vínculo muito peculiar entre a universidade e a cidade, que ainda estava em processo de construção.

A responsabilidade de produzir e divulgar conhecimento, inerente à missão das universidades, deve ser comprometida com o desenvolvimento de uma sociedade mais justa e igualitária, e para tanto necessita recorrer a matrizes de pensamento que busquem proposições de futuro e que se ocupem em denunciar injustiças e apontar caminhos de verdadeira transformação da sociedade.

Em resumo, a pesquisa da qual deriva este texto, se justifica pela oportunidade de investigar como os(as) docentes da Universidade de Brasília, geógrafos(as) urbanos(as) e urbanistas, têm abordado, ao longo da história da universidade, as questões sociais e dinâmicas espaciais relativas à Brasília, e com isso, aproximar da essência das interpretações urbanísticas e as proposições de futuro que se conjecturam para a capital do país. O estudo poderá ainda trazer contribuições aos departamentos, tanto no sentido do registro e resgate de suas histórias e memórias institucionais, como no porvir de possibilidades de se autoconhecer em termos de produção científica e acadêmica.

A construção de Brasília pode ser considerada como um processo que gerou importantes impactos na forma de fazer e de estudar o fenômeno urbano, e em toda sua história, não deixou de despertar interesse dos críticos, como afirmam Xavier e Katinsky (2012). O experimento utópico, que ganhou existência na forma do urbanismo moderno, tem seu projeto e sua construção impregnados do propósito de transformar a sociedade brasileira.

Essa simultaneidade da construção da Capital e da fundação da Universidade de Brasília, conformando-a como laboratório de produção e de estudo de si própria, parece ter fortalecido o vínculo entre o discurso utópico da construção da modernidade e o discurso acadêmico sobre a cidade, que apresenta muitas vezes a cidade como algo perfeito e inerte aos efeitos do empobrecimento crescente nas áreas de entorno.

Abordagens excessivamente centradas na forma citadina, na configuração espacial e nos elementos estéticos da arquitetura modernista, acabam por se afastar dos conteúdos sociais e políticos inerentes ao fenômeno urbano e estimulam discursos urbanos-urbanísticos que não favorecem a compreensão dos processos que levam a cidade à determinada configuração territorial.

No sentido de tecer críticas aos processos de análise centrados na morfologia urbana, destaca-se o que nos ensina Santos sobre a forma como “o aspecto visível de uma coisa, refere-se ao arranjo ordenado de objetos, a um padrão, e se tomado isoladamente, torna-se uma mera descrição de fenômenos ou de um dos seus aspectos em um instante de tempo” (2008, p. 69). Assim, para a totalização dos fenômenos, há de se adotar um ponto de vista holístico, que considere, concomitantemente, forma, função, processo e estrutura (Santos, 2012 e 2017).

Em contrapartida, análises direcionadas demasiadamente à crítica dos elementos sociais e políticos são carregadas de pessimismo e estagnação, distanciando-se de propostas que coloquem o sujeito como protagonista da transformação social, no caminho de um planejamento urbano possível centrado no indivíduo e coletivos (Costa, 2021b; Andrade et al., 2018; Schvarsberg (2017).

Considerando a pluralidade de abordagens espaciais que poderão compor o conjunto de textos acadêmicos produzidos por pesquisadores(as) professores(as), no âmbito dos cursos de Geografia e Arquitetura e Urbanismo, dentro do viés que conduz a pesquisa, apontamos o que se imagina serem os extremos: de um lado, as abordagens excessivamente centradas na forma, e do outro aquelas pouco propositivas e pessimistas quanto às soluções e destino das cidades, que se baseiam em críticas sociais e políticas, sem apontar caminhos teórico-práticos para mudanças.

Entre essas duas extremidades, acredita-se que serão encontradas uma miríade de aproximações do que seja a cidade e de como aparece o sujeito que a experimenta cotidianamente, e dentro desse universo, ao interpretar as ideias e distintas formas de abordagem, poderá ser traçado um panorama daquilo que expressam o conjunto da obra analisada.

Assim, o objetivo central do estudo em desenvolvimento é averiguar, apropriando-se dos princípios da hermenêutica filosófica, os discursos produzidos academicamente pelos(as) pesquisadores(as), urbanistas e geógrafos(as) urbanos(as) da UnB, a fim de descobrir se há elementos que preconizem utopismos patrimoniais, que, como define Costa (2016, p. 1), “potencializam a realização de uma simultaneidade de práticas territoriais alternativas, com a liberdade de iniciativas localizadas; estimulam novos comportamentos situados de resistência às ações predatórias e de estigmas sobre o território.”

A hipótese proposta na pesquisa em questão, nasce do confronto entre a ideia da utopia Brasília e os discursos espaciais produzidos sobre Brasília, durante seus mais de 60 anos de existência. Partindo da ideia da Universidade de Brasília ter se conformado como um laboratório síncrono da produção e do estudo de Brasília, problematiza-se o vínculo entre o discurso urbano produzido no âmbito acadêmico, que parece reforçar a concepção formalista do urbanismo original proposto e executado para a cidade e suas expansões projetadas, e a abstração do sujeito.

Entendendo a utopia Brasília como a síntese de um projeto de modernização da nação e expansão do capitalismo, a cidade exerceria, dessa maneira, um papel primordial de estabelecer a unidade geográfica do país, ampliando a comunicação entre as regiões, trazendo modernidade e progresso. Dessa forma, compreende-se que os discursos centrados nos aspectos formais não totalizam o fenômeno Brasília, tanto na sua complexidade real como na escala do país.

Assim, percebe-se que a matriz conceitual cartesiano-newtoniana do espaço prejudica as análises que revelem as relações sociais e contradições fundamentais que estão na base da produção do território. Em outro extremo, as abordagens centradas apenas na crítica aos processos sociais e políticos, perdem-se da capacidade propositiva e acabam não revelando novas utopias, além de desestimular a praxis espacial (Andrade et al., 2021; Costa e Suzuki, 2012; Costa, 2021b; Schvarsberg, 2017).

A tentativa de se aproximar do sujeito localizado, em contraposição à concepção abstrata do sujeito, proposta na noção dos utopismos patrimoniais (Costa, 2016; 2021a), nos conduz a investigar a cidade na escala e dimensão do cotidiano, e a aproximar da história daqueles que construíram a cidade e nela permaneceram e resistiram, mesmo que contra a vontade do projeto de nação revelado pela utopia Brasília.

Assim, diante do confronto entre a ideia de uma massa populacional própria das utopias urbanas – o sujeito abstrato, e o sujeito localizado e em situação espacial duradoura (Costa, 2021a), operando seus utopismos patrimoniais, a hipótese da tese é a de que a utopia Brasília e os utopismos patrimoniais constituem um par dialético ou de simultaneidade contraditória, a qual oscilará na obra analisada dos(as) geógrafos(as) urbanos(as) e urbanistas da Universidade de Brasília, dentro da linha do tempo correspondente à própria produção acadêmica.

3. Aproximações aos utopismos patrimoniais pela América Latina

Nesta seção apresentam-se algumas aproximações às noções conceituais de utopismos patrimoniais pela América Latina e do sujeito em situação espacial duradoura (Costa, 2016, 2017, 2018, 2021a), elementos fundamentais que deverão atravessar toda a leitura dos discursos urbanos-urbanísticos que se pretende realizar na pesquisa de doutorado, como balizadores conceituais incorporados à situação hermenêutica.

Cabe já dizer que utopismos patrimoniais correspondem, conjuntamente, a uma noção de fundamento metodológico, baseada na tríade existência, singularidade e a história do território, que, juntas, possibilitam protagonizar o sujeito situado frente aos processos hegemônicos de domínio territorial e dos grupos sociais subalternizados, como indígenas, afrodescendentes, migrantes, apátridas etc. (Costa, 2016; 2021a). Logo, utopismo patrimonial nada tem que ver com o patrimônio cultural tal como é apresentado ou discutido pelos órgãos preservacionistas ou mesmo a universidade.

Os utopismos patrimoniais são a base da esperança de futuro pela força política dos grupos subalternizados na América Latina, o que ampara sua denominação, e remetem, em síntese, à história do território (que não é assimilado como recurso, mas a base da vida, como esclarece Costa, 2021a, a partir da geografia da existência e crítica – em diálogo com Milton Santos, Antônio Carlos Robert Moraes, Maria Adélia de Souza e outros).

Se por um lado a utopia transcende a realidade ao projetar o futuro, para Costa (2016), os utopismos já se concretizaram e constituem um processo já em andamento, e com base tópica nos territórios da América Latina e do Caribe, na forma de potencialidades e vulnerabilidades situadas e personificadas no sujeito em situação espacial duradoura.

Os utopismos patrimoniais designados por Costa (2016, p. 2) são três e se operam simultaneamente, não podem ser identificados separadamente, pois são regidos pelo movimento interno que agencia a existência e a singularidade relativa à história do território, confrontando discursos e prática hegemônicas de domínios.

Sinteticamente, a tríade operativa metodológica, proposta e apresentada ao Geocrítica em 2016, para o caminho do método, corresponde a:

UTOPISMO PATRIMONIAL-TERRITORIAL: exalta resistências socioculturais e memoriais no contexto de formações territoriais latino-americanas;

UTOPISMO PATRIMONIAL SINGULARISTA: denuncia as lógicas modernas que culminaram em um padrão de urbanização vinculada ao universalismo moderno europeu, imposto na América Latina no contexto do colonialismo, e que perdura;

UTOPISMO PATRIMONIAL EXISTENCIALISTA: reconhece a força do sujeito situado mesmo diante dos riscos e vulnerabilidades socioespaciais construídos intencional e politicamente pela crise contínua enfrentada nos países da América Latina e do Caribe. Esse utopismo critica e confronta a universalidade eurocêntrica, a inevitabilidade dos riscos provenientes da urbanização latina e das violências históricas sofridas pelos grupos subalternizados no continente.

O autor propõe que a temática da urbanização e da preservação patrimonial (que deve ir além do que preconizam agências estatais do patrimônio cultural), frente aos riscos construídos socialmente pelas violências históricas da colonialidade e da modernidade, seja tratada através de matrizes existenciais e propositivas, de forma que a vida do sujeito, sua história e vínculos espaciais sejam entendidos como condutores da política desde o sítio.

Assim, vale reforçar, o termo utopismo patrimonial não possui relação semântica e de conteúdo com o patrimônio cultural institucional. A noção proposta por Costa (2016, 2021a) que centraliza os utopismos patrimoniais e o patrimônio-territorial derivado, faz relação com o sentido da herança cultural, de saberes e da memória que, efetivamente, permitiram aos sujeitos subalternizados resistir e durar no território, ou seja, faz-se um giro de pensamento em relação à concepção moderna e eurocentrada de patrimônio cultural. Os utopismos patrimoniais são mobilizadores da política de sítio gestada pelos grupos sociais violentados no processo de tomada territorial, na larga duração histórica.

Em 2017, ao iniciar os trabalhos de campo na América Latina, Costa apresenta, na revista Cuadernos de Geografía da Colômbia, uma metodologia de ativação do patrimônio-territorial, numa proposta que enaltece e valora aquilo que resiste em termo culturais e populares à degradante colonialidade do poder:

Os graves problemas de ordem social, na América Latina -da intolerância étnico-cultural à precarização trabalhista e à indigência- produzem ‘territórios de exceção’ como locus de vida, paradoxalmente, segmentada e pujante, dos subalternizados pela modernidade/colonialidade do poder. Nesse sentido, objetiva-se fazer apontamentos teórico-metodológicos para a ativação popular do denominado ‘patrimônio-territorial’ situado em territórios de exceção latino-americanos (Costa, 2017, p. 53).

É importante destacar que, nesta segunda etapa do projeto, que corresponde à metodologia de ativação de um patrimônio-territorial que resulta dos utopismos patrimoniais, o autor considera que, além de representar alternativa política de sítio ou situada, os utopismos e o patrimônio-territorial podem ser eleitos pelos grupos sociais como potencial de conquista de autonomia econômica local, no caso do grupo entender que a ativação ou cartografia de seu acervo servir não apenas à mobilização política, mas à subsistência.

Na sequência da proposta, em 2018, Costa apresenta na revista do Instituto de Geografia da UNAM, no México, o esforço de realização da verificação empírica da força das noções e conceitos propostos, entendendo que a singularidade disciplinar ou geográfica é revisada pelo empírico (Costa & Scarlato, 2019), ao avaliar os riscos e potencialidades de preservação patrimonial em diversos sítios urbano-rurais latinoamericanos. O autor constrói um quadro-síntese de riscos e potenciais de preservação patrimonial em que o patrimônio-territorial é chave inclusive para manter aquele acervo instituído. Logo, o patrimônio-territorial não é o patrimônio cultural, mas pode otimizar sua preservação pois é a força dos grupos sociais que, normalmente, não são integrados à gestão dos territórios instituídos pelo Estado-mercado. Nessa investigação, o autor percebe, in loco, as potencialidades de uma gestão patrimonial mais centrada no sujeito, assim como verifica os riscos resultantes da anulação da participação das pessoas nos processos de identificação de seus próprios valores culturais, memoriais, identitários.

Al considerar los principales riesgos, la inevitabilidad de pérdidas y la existencia de potenciales de preservación en el continente, a partir de los casos investigados, se aprecia que las políticas de gestión de riesgos tienen en la praxis patrimonial situada la capacidad de desarrollar una racionalidad menos instrumental y funcional y más humana. (…) La mitigación de daños producidos a partir de tragedias se da, antes que nada, por el reconocimiento político periférico de la política generadora de vulnerabilidades. El proceso de resistencia debe ser enfrentado como pedagógico; las acciones de resistencia, educativas. Confrontar problemas estructurales que conllevan trabajo infantil, discriminación de ancianos y criminalización de la pobreza en sitios patrimoniales demanda acción conjunta com los violentados (Costa, 2018, p. 23-24).

Na sequência da proposta, nos anos de 2020 e 2021, o autor recupera a noção utopismos patrimoniais. A experiência própria e de outros autores do Gecipa – Grupo de Estudos sobre Cidades e Patrimonialização na América Latina e Caribe (GEA/CNPq) – que tem se dedicado à discussão, desde o Paraguai (Mesquita, 2020), o Brasil (Hostensky, 2020; Alves, 2019; A. B. Andrade, 2021), a Bolívia (Rubio-Schrage, 2019), Cuba (Sousa, 2020) e outros conduziram reaproximar ou revisar a discussão dos utopismos patrimoniais, apontando para as utopias como críticas ao existente e desejo de transformação da realidade pelo sujeito situado.

Por meio dessa aproximação à existência do sujeito em situação territorial duradoura e sua história de luta pela sobrevivência na América Latina, eixo que norteia as reflexões propostas por Costa (2016; 2017; 2018; 2021a), o autor estabelece uma possibilidade de mudança de paradigma, de giro decolonial, na reflexão sobre o futuro das nossas cidades-campo, através do reconhecimento dos utopismos patrimoniais.

Por fim, vale dizer que, no âmbito do Gecipa e fora dele, alguns estudos vêm, nos últimos anos, trazendo resultados dos desdobramentos dessa proposta, dentro do eixo analítico que envolve a história do território e as singularidades que remontam à resistência dos sujeitos frente ao domínio hegemônico dos territórios.

Nesse contexto, cita-se, por exemplo, a síntese da tese de doutoramento defendida em 2017, no Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade de Brasília, intitulada “Lugar e memória: o patrimônio goiano entre o esquecimento e a resistência”, de autoria de Luana Lima:

A abordagem está concentrada na análise sobre bens não institucionalizados ou parcialmente institucionalizados, concepção que coincide com a proposta de Costa (2017) no viés de um patrimônio-territorial, como alternativa real de valoração do patrimônio latino-americano subalternizado na história oficial. (Lima, 2020, p. 203)

Outro trabalho desenvolvido nesse sentido teórico-metodológico, fruto da dissertação de mestrado de Évellin Mesquita, que estabeleceu uma análise do bairro Loma San Jerónimo localizado em Assunção, Paraguai, sob a ótica do patrimônio-territorial:

A partir da reflexão de duas lógicas patrimoniais apresentadas por E. Costa, em diálogo com a proposta de território usado de M. Santos e revisada por M. A. Souza, tratou-se aqui de dar centralidade aos impactos que a patrimonialização global ocasiona no patrimônio-territorial, mas não sem suscitar resistências e reafirmação. (Mesquita, 2020, p. 181)

Mais um trabalho a ser citado nesse contexto é a tese de doutorado de autoria de Vitor Alves (2019), que tem como proposta compreender a natureza e definir as territorialidades das rodas de samba do Distrito Federal brasileiro, a fim de reconhecê-las e ativá-las popularmente como patrimônio-territorial latinoamericano. O trabalho de Alves (2019) cartografa os valores memoriais da tradição negra no Distrito Federal, por meio do samba, realçando um elemento central da cultura nacional que surge junto à própria cidade. No bojo dos utopismos patrimoniais, o samba discutido pelo autor aparece como elemento de resistência dos grupos sociais minorizados pelos definidores do lugar de subalternização desses grupos.

Em resumo, a contrução da tese discutida nesse artigo deverá verificar se os discursos produzidos academicamente pelos(as) pesquisadores(as), urbanistas e geógrafos(as) urbanos(as) da UnB, carregam elementos que preconizem utopismos patrimoniais, ou que potencializem a realização de uma simultaneidade de práticas territoriais alternativas, com a liberdade de iniciativas localizadas; estimulam novos comportamentos situados de resistência às ações predatórias e de estigmas sobre o território, como diz Costa (2016, 2021a). Essa inquirição estimulará pensar em que medida Brasília povoa o imaginário e as propostas acadêmicas da UnB na direção efetiva de cidades para cidadãos reais, para sujeitos em carne e osso. Será possível entender em que medida as pessoas são abstraídas no plano da cidade capital e do Distrito Federal.

4. Operando o método: a situação hermenêutica

De maneira introdutória e como forma de esboçar os procedimentos metódicos para a pesquisa de doutorado, serão discutidas em linhas gerais, algumas aproximações acerca do que pode significar a apropriação da hermenêutica filosófica como método em Ciências Humanas.

Muito distante de se pretender acessar o debate da hermenêutica na filosofia, os apontamentos apresentados aqui deverão contribuir na construção de um conjunto de estratégias para serem adotadas como postura diante dos textos a serem interpretados na pesquisa, com o intuito de concretizar aquilo que Gadamer denomina de situação hermenêutica.

De acordo com Marques (2021), a palavra hermenêutica remonta, de maneira mais longínqua ao verbo grego hermeneuen (ερμηνεύειv), que, traduzido para a língua portuguesa pode significar:

· Expressar: dizer, falar. Remete à linguagem oral. Fazer aparecer aquilo que naturalmente está no interior.

· Interpretar: expor, explicar e argumentar. Remete à linguagem escrita. Desvendar o que está dentro antes de exteriorizar.

· Traduzir: portar a mensagem, com compromisso de conservar a mensagem original. Remete à linguagem escrita. Encontrar o melhor modo de exteriorizar.

Nas três ações a que o verbo hermeneuen se reporta, é possível perceber, mesmo em graus diferentes de elaboração do pensamento, a presença da mediação do conteúdo entre o sentido interno e aquele que se externaliza, seja pela linguagem oral, escrita ou pela tradução.

Dessa maneira, a hermenêutica será entendida como o campo da ciência que estuda as ações mediadoras da linguagem. No entanto, é mister diferenciar a hermenêutica tradicional – empenhada na arte e na técnica de interpretar as leis, textos antigos ou sagrados – da hermenêutica filosófica, que, segundo Gadamer (1999), discípulo de Heidegger, não se trata apenas de um procedimento, ou de um conjunto de procedimentos, mas da própria forma de ser e existir no mundo, um mundo de valores, saberes, cultura e tradição.

Ao criticar o historicismo e seu fundamento romântico em relação à compreensão do passado, Gadamer rejeita a leitura do passado como algo monumental e heroico, que pode ser acessado como ele foi, de forma neutra e científica, na qual se anula a identidade do intérprete. Para ele, a tarefa da compreensão não é isenta de pré-conceitos ou de opiniões prévias, mas que deve partir da consciência desses pré-conceitos e da distância histórica não como obstáculos, e sim como a condição de possibilidade para a compreensão, o que ele caracteriza como a própria situação hermenêutica (Gadamer, 1999, p. 683).

Como a interpretação recai sobre a linguagem, pressupõe-se ao discurso a articulação de conceitos para chegarmos aos objetos através dos significados. Dessa forma, as palavras assumem uma importância preeminente em uma pesquisa que a opera a hermenêutica como método. Assim, será necessária uma atenção especial ao se trabalhar os conceitos, assim como com os significados estruturados pelo discurso, considerando ainda as condições históricas e culturais nas quais esses discursos se desenvolvem e são interpretados. Além disso, é necessário admitir que nem tudo que se observa no mundo precisa recorrer ao fundamento empírico, e que o conceito de verdade absoluta, herança dos métodos das ciências exatas, dificulta a compreensão da complexidade dos fenômenos observados nas ciências humanas e sociais.

Essas sempre foram as duas alternativas da filosofia: ou existe um fundamento empírico, ou então um fundamento último da verdade. [...] A hermenêutica é esta incômoda verdade que se assenta entre as duas cadeiras, quer dizer, não é nem uma verdade empírica, nem uma verdade absoluta - é uma verdade que se estabelece dentro das condições humanas do discurso e da linguagem. (Stein, 2004, p. 48)

A intenção é assumir, como ensina Stein (2004), ao analisar Gadamer, que os objetos de estudo das ciências do espírito, ou das ciências humanas, são objetos altamente fluidos e altamente imprecisos em sua verificação, o que obriga o pesquisador a constantemente reescrevê-los. Além disso, nem sempre somente as estruturas lógicas darão conta de todo o processo cognitivo, o que leva o investigador a recorrer, de alguma maneira, à interpretação, que é hermenêutica e sempre ocorre dentro de determinado contexto e de determinada tradição.

As estruturas lógicas não dão conta de todo o nosso modo de ser conhecedores das coisas e dos objetos, e aí somos obrigados a introduzir um elemento que será o núcleo dessa análise, o elemento da interpretação. A interpretação é hermenêutica, é compreensão, portanto, o fato de nós não termos simplesmente o acesso aos objetos via significado, mas via significado num mundo histórico determinado, numa cultura determinada, faz com que a estrutura lógica nunca dê conta inteira do conhecimento, de que não podemos dar conta pela análise lógica de todo o processo do conhecimento. (Stein, 2004, p.19)

Stein (2004, p. 95) defende, ao propor o início do caminho para construção da situação hermenêutica, uma investigação profunda do que ele convenciona chamar de metalinguagem e define como uma espécie de ortolinguagem produzida intersubjetivamente por um grupo, que se compromete, por meio da discussão, em um determinado contexto temporal e cultural, convencionar o significado de um termo ou o uso de uma expressão, de maneira mais ou menos rígida.

A extração desses termos fundamentais acerca do objeto, determinados por essa ortolinguagem seria um passo fundamental para a concretização da situação hermenêutica, assim como a elaboração de uma cuidadosa história conceitual dos termos desse campo disciplinar.

Outra questão importante levantada por Stein (2004) para propiciar a situação hermenêutica diz respeito à aceitação de que, em ciências exatas os textos possuem uma dimensão sincrônica, recortada e estática no tempo. A leitura de um texto de química antiga, por exemplo, nada irá trazer de novo, esse texto torna-se puramente formal, conforma-se apenas um elemento museológico, sendo um texto fechado em si mesmo, podendo ser citado como referência, mas de algo que já passou, teve sua validade dentro de um espaço determinado de tempo. Já os textos em ciências humanas ou filosofia possuem características diacrônicas, e podem e devem ser lidos, revistos, revisitados e interpretados em várias épocas, e essa é a concepção hermenêutica da história. Nunca como um fato a ser colocado em um nicho de museu, mas como algo que produziu efeitos e influenciou pesquisadores, grupos, pessoas, e sempre haverá uma relação a ser estabelecida pelo que ocorreu.

Assim, a hermenêutica passa a ser compreendida como um processo que pressupõe uma ação da existência humana, e, por isso, a ideia de neutralidade do sujeito deve ser superada, segundo Gadamer (1999). Gadamer desenvolve e destrincha o conceito de história efeitual, e convida o intérprete a se perceber dentro de uma tradição, e a admitir que o seu modo de lidar com o passado já está interpelado, imbuído, influenciado pelos efeitos que esse passado produziu até o momento da sua interpretação do fato ou objeto sobre o qual se debruça no presente.

O reconhecimento de que somos seres finitos, que estamos inseridos em uma temporalidade, e que para compreender a realidade ou o passado, devemos reconhecer que os efeitos produzidos por esse passado formaram e ainda moldam os conceitos e as opiniões de quem o interpreta.

Considera-se também, na operação da situação hermenêutica, que o indivíduo é modificado à medida da sua investigação, e assim o próprio método não deve representar uma amarra à criatividade e à construção do conhecimento, admitindo-se algum caráter especulativo no ato da interpretação.

[...] O método não é uma explicação exterior, o método não é simplesmente um instrumento, não é apenas procedimento, vamos dizer assim, de tipo técnico. Não é apenas um caminho mecânico que permitiria ser trilhado através do uso de algumas regras.

No conceito de método, a hermenêutica se amplia muito, justamente como consequência dessa idéia de totalidade e talvez por isso possamos falar de um certo caráter especulativo da hermenêutica. (Stein, 2004, p. 103)

Por fim, pode-se afirmar que a situação hermenêutica é a própria consciência de que o investigador [na área de humanas] sempre está vinculado ao objeto. Dessa maneira, a evolução de suas análises irão depender da sua capacidade de autocontrole e de autocrítica, da sistematização dos métodos e dos procedimentos de reconstrução dos textos, e da consciência que todo trabalho científico é um caminho de investigação que perpassa sua biografia, sua formação intelectual e sua assimilação de um repertório conceitual específico.

5. Considerações finais

Dentre os princípios básicos da hermenêutica filosófica discutidos neste texto, que servirão de alicerce para a construção de uma conduta a ser assumida no processo de interpretação dos textos no desenvolver da tese, destacam-se, resumidamente:

1. Deve-se considerar a fluidez dos objetos em ciências humanas e a necessidade de sua permanente reformulação;

2. Procura-se aceitar que objeto e intérprete não se separam totalmente, e sempre aparecem em determinado mundo histórico e cultural, em uma tradição. Assim, considera-se que a obra tem um autor que se situa dentro de uma tradição, bem como o sujeito que a interpreta tem seu lugar histórico determinado;

3. Há uma ortolinguagem do campo disciplinar que deverá ser decifrada cuidadosamente para a elaboração da história conceitual dos termos e expressões fundamentais, sendo a assimilação desse repertório conceitual essencial ao desenvolvimento da pesquisa científica;

4. As estruturas lógicas não dão conta de todo o conhecimento do mundo, e por isso, ao lado da forma lógica dos processos cognitivos é inevitável recorrer à interpretação, que é hermenêutica e não é neutra;

5. Buscar assumir uma postura consciente dos efeitos que história produz sobre o intérprete, admitindo que o seu modo de lidar com o passado já está imbuído pelos efeitos que esse passado produziu até o momento da sua interpretação do fato ou objeto sobre o qual se debruça no presente,

6. O intérprete deve exercer uma atitude dialógica entre a sua tradição e os seus pré-conceitos e aqueles apresentados pelo texto, em um embate circular, a fim de legitimar ou rejeitar suas pré-compreensões;

7. Ao aceitar que o indivíduo é modificado à medida da sua investigação, aceita-se que o próprio método também pode transformar-se e não deve representar uma amarra à criatividade e à construção do conhecimento, admitindo-se algum caráter especulativo na interpretação.

Sem a pretensão de concluir ou encerrar os debates, os apontamentos aqui apresentados devem servir de guias, balizamentos iniciais, para a construção conceitual e metódica da tese em desenvolvimento. Assumir tais posturas, apreendidas desde a hermenêutica filosófica, deverá trazer importantes contribuições na condução da pesquisa, desde amparar a escolha dos autores e dos textos a serem estudados e localizá-los em suas respetivas tradições epistemológicas no campo disciplinar, assim como desenvolvimento do repertório conceitual desejado, para a adequada interpretação da obra dos pesquisadores e pesquisadoras, em consonância com o objetivo central da pesquisa.

Material suplementario
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Notas

Figura 1
Linha do tempo Linha do tempo geral – professores(as) pesquisadores(as) UnB – Geografia urbana e Urbanismo
Elaborado pela autora. (2021) com base em http://lattes.cnpq.br/ e https://www.unb.br/
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