Artigos
Espaço público como expressão ativa do território usado
Espacio público como expresión activa del territorio usado
Public space as an expression of used territory
Espaço público como expressão ativa do território usado
PatryTer, vol. 5, núm. 10, pp. 226-240, 2022
Universidade de Brasília

Recepción: 01 Abril 2022
Aprobación: 01 Mayo 2022
Publicación: 01 Septiembre 2022
Resumo: Este artigo apresenta a proposta de compreensão do espaço público como expressão ativa do território usado. Para isso, é apresentada a discussão teórica que se dedica à esfera pública, ao espaço público de modo geral, e ao espaço público na Geografia. Por fim, anuncia-se a proposta de compreensão do espaço público como expressão ativa do território usado especialmente para o estudo do tema no contexto da América Latina. Entendendo o espaço público desta forma, é possível vislumbrar a existência de racionalidades hegemônicas e contra hegemônicas que o caracterizam. Esta proposta, portanto, acrescenta um aporte para a compreensão do espaço público pela Geografia.
Palavras-chave: espaço público, território usado, Geografia.
Resumen: Este artículo presenta la propuesta de entender el espacio público como expresión activa del territorio usado. Para ello, se presenta la discusión teórica que se dedica a la esfera pública, al espacio público en general y al espacio público en geografía. Finalmente, se anuncia la propuesta de entender el espacio público como expresión activa del territorio usado especialmente para el estudio del tema en el contexto de América Latina. Entendiendo así el espacio público es posible vislumbrar la existencia de racionalidades hegemónicas y contrahegemónicas que lo caracterizan. Esta propuesta, por tanto, suma una contribución a la comprensión del espacio público a través de la geografía.
Palabras clave: espacio público, territorio usado, Geografía.
Abstract: This article presents the proposal of understanding the public space as an active expression of used territory. For this, the theoretical discussion dedicated to the public sphere, to public space in general, and to public space in geography is presented. Finally, the proposal of understanding the public space as an active expression of used territory especially for the study of the theme in the context of Latin America is presented. Understanding the public space in this way it is possible to glimpse the existence of hegemonic and counter-hegemonic rationalities that characterize it. Therefore, this proposal adds a contribution to the understanding of public space through geography.
Keywords: public space, used territory, Geography, public space.
1. Introdução
Existe uma vasta produção bibliográfica, nacional e internacional, que se dedica ao estudo dos espaços públicos. O debate que veremos, já alcança cerca de duas décadas e dialoga com os temas de cidadania, manifestação política e democracia. Deste modo, é seguro argumentar que este é um tema de profunda importância social. E como veremos ao longo deste artigo, é necessária uma abordagem própria da Geografia sobre a temática.
Algumas produções bibliográficas se dedicam a previsão de decadência e fim dos espaços públicos (Sorkin, 1992; Banerjee, 2001; Carrión, 2007; Crossa, 2013; Lima, 2015). Outras produções reafirmam a existência de um dinamismo presente em tais locais nas cidades contemporâneas (Mitchell, 1995, 2017; Crawford, 1995; Gomes, 2002, 2018; Valverde, 2007, 2009; Souza, 2018, 2020). O presente estudo endossa a ideia de que os espaços públicos são dinâmicos, uma vez que diferentes sujeitos ainda reivindicam o uso e participação nas cidades contemporâneas, principalmente na América Latina, não sendo possível prever o fim ou desaparecimento destes locais.
O presente artigo se divide em três partes. A primeira versa sobre a esfera pública e o espaço público. Os teóricos da esfera pública forneceram bases para a visão sobre o espaço público em diferentes áreas do conhecimento. Produções acadêmicas que se dedicam ao tema são discutidas nesta parte do artigo. Esta revisão nos permite apontar algumas indefinições em relação ao tema, especialmente para as cidades latinoamericanas. Nesta etapa, também discutimos o debate da esfera pública, que em parte contribui para este olhar sobre o espaço público, e também para a dificuldade de apontar caminhos possíveis.
A segunda parte, enfoca a produção geográfica sobre os espaços públicos. Nesta etapa estabelecemos um diálogo com a literatura geográfica sobre o tema, suas formas de uso e apropriação. O objetivo desta segunda parte é esclarecer até onde a disciplina chegou neste debate.
A terceira parte se dedica a importância de se compreender o espaço público como expressão ativa do território usado – tese sustentada neste artigo. O espaço público assim compreendido nos permite constatar a um só tempo a existência de racionalidades hegemônicas que tutelam a sociedade verticalmente – sobretudo na América Latina – e as resistências de sujeitos hegemonizados (Santos, 1991, 2000, 2002, 2012, 2017, 2018). O entendimento do espaço público como expressão ativa do território usado nos possibilita apreender desigualdades na cidade que são singularizadas e evidenciadas na concretização de seu uso. Algumas imagens acompanham esta discussão e justificam a proposta apresentada.
Este artigo, que se apoia em uma revisão bibliográfica, resulta da realização da pesquisa de doutorado intitulada “Uso do espaço público e Violência da Desapropriação na América Latina: Brasil e México”. Esta pesquisa apresenta uma tese que emerge de um enfoque crítico e existencialista, cuja origem está nas discussões e leituras realizadas no âmbito de pesquisas no Grupo de Pesquisa de Cidades Patrimonialização na América Latina e Caribe – GECIPA, que partem da proposta de diálogo de métodos que tem sido fundamentadas, desde a Geografia, por Costa (2011, 2017), Costa e Suzuki (2012), Scarlato e Costa (2017), Costa e Scarlato (2019) e Costa (2021).
2. Da esfera pública ao espaço público
As produções de Jürgen Habermas, Hannah Arendt e Richard Sennett sobre a esfera pública são as que mais repercutiram sobre a compreensão do conceito de espaço público na literatura. Nos parágrafos subsequentes, nos ateremos ao que foi defendido pelos autores sobre este tema.
Em “Mudança Estrutural da Esfera Pública”, publicado na década de 1960, Habermas (1984) introduz o debate sobre a esfera pública – esfera que surge da emergência de uma sociedade burguesa. O fim do Antigo Regime e a formação de uma sociedade capitalista marcam profundamente a sociedade europeia, gerando duas diferentes esferas: a esfera pública e a esfera privada.
Apesar da distinção entre público e privado, Habermas (1984) considera que ambas as esferas não podem ser consideradas um par dialético. Para o autor, elas estão ligadas pela representação. Um nobre carrega seu título tanto na esfera privada quanto na esfera pública. E é nesta última que seu título lhe garante poder e status. A diferença entre as esferas, portanto, é o grau de visibilidade e de publicidade (öffentlichkeit).
A esfera pública, neste sentido, é onde se instaura o debate, porém, segundo Habermas (1984), com algumas ressalvas importantes. A participação dela, segundo o autor, está condicionada ao consumo e de certa forma, ao acesso ao poder aquisitivo. Isto pois, a esfera pública burguesa estava, até o século XIX, relacionada a frequentação dos cafés e da produção literária. Com o aprofundamento das novas relações capitalistas, até mesmo a produção literária foi mercantilizada, convertendo-se em parte de uma cultura de massa. O autor lamenta que, assim, os meios e locais que seriam apropriados ao debate, e que fundamentam a esfera pública, estariam perdidos. Nas palavras do autor:
[...] a cultura de massas recebe seu duvidoso nome exatamente por conformar-se às necessidades de distração e diversão de grupos de consumidores com um nível de formação relativamente baixo, ao invés de, inversamente, formar o público mais amplo numa cultura inata em sua substância. (Habermas, 1984, p. 295)
Os fóruns literários, ao se converterem em cultura de massa, se vinculam mais ao entretenimento e menos ao debate público, que seria o elemento central de uma esfera pública genuína. Neste sentido, o autor questiona se de fato a esfera pública burguesa pode ser considerada como tal, já que dela poucos participam, e da forma como participam, esta esfera pública parece nem mesmo existir.
É importante destacar que Habermas (1984) analisa a esfera pública apenas pela relação existente entre sociedade e Estado. Existem outras formas de compreendê-la que não foram esclarecidas em sua obra. Isto gerou críticas importantes sobre sua contribuição.
Uma crítica contundente ao trabalho do autor foi feita por Nancy Fraser. Fraser argumenta que a compreensão de Habermas sobre o tema é insatisfatória para a compreensão da democracia e da sociedade contemporâneas. Para a autora, a esfera pública; “[...] is the space in which citizens deliberate about their common affairs, hence, an institutionalized arena of discursive interaction [...][i]” (Fraser, 1990, p. 57). Neste sentido, Fraser ultrapassa o entendimento de que a esfera pública é apenas onde os acontecimentos, ideias e intenções se tornam públicas. Ela incorpora o entendimento de que esta instância é também onde pessoas com interesses comuns e destoantes interagem e podem promover consenso. A esfera pública possui diferentes funções e sua análise pode partir de diferentes prismas.
Fraser (1990) também nos lembra que a utopia da esfera pública nunca se concretizou de fato. Ao teorizar sobre ela, Habermas (1984) critica a esfera pública burguesa mas não apresenta uma uma alternativa, capaz de integrar todos de maneira comum. Além disso, Habermas tece críticas a esta esfera pela sua capacidade de exclusão como se em algum momento anterior na história as pessoas fossem convidadas a participar efetivamente do debate, da publicidade, ou seja, da esfera pública propriamente dita. Sobre isso, Fraser é assertiva:
[...]this network of clubs and associations-philanthropic, civic, professional, and cultural-was anything but accessible to everyone. On the contrary, it was the arena, the training ground, and eventually the power base of a stratum of bourgeois men, who were coming to see themselves as a "universal class" and preparing to assert their fitness to govern[ii]. (Fraser, 1990, p. 60)
Fraser (1990) debate e critica o fato da esfera pública ter sempre sido idealizada e pensada por homens, especialmente brancos, cujo acúmulo de privilégios impediu concluir que diversos outros grupos eram excluídos do debate. Mulheres, negros, e outros grupos étnicos, que constituem minorias políticas[iii] não participam da esfera pública burguesa, e tampouco, são considerados na obra de Habermas (1984).
É apropriado considerar a disputa como algo inerente à própria esfera. Esta constatação será retomada em breve, uma vez que muitos estudos que se dedicam e se dedicaram ao espaço público, reconhecem que ele é de fato um local de disputa – não sendo possível concebê-lo como local inerte, passível de idealizações, ou de uma visão etérea sobre seu uso.
Fraser (1990) afirma que os teóricos deveriam se dedicar a consideração da existência de mais de uma esfera pública. Uma única é incapaz de contemplar a multiplicidade e a diversidade inerentes à sociedade, especialmente, à sociedade contemporânea.
Isto está de acordo com o que propôs Hannah Arendt, já em meados do século XX. Em “A condição humana”, Arendt (1994) se dedica a compreensão do que é a humanidade. Isto é, dedica-se ao que constitui o ser humano, ou ao que o distingue dos demais seres vivos. A autora retoma atividades humanas descritas em obras filosóficas anteriores, como as obras de Santo Agostinho e de Sócrates. Para acrescentar o debate sobre o que fundamenta a condição humana, a autora argumenta que existem três atividades distintas e fundamentais que caracterizam a vida humana; o labor, o trabalho e a ação.
A ação é a atividade que se realiza entre seres humanos, sem intermédio. Corresponde, portanto, a atividade política - capacidade de agir em conjunto, em uníssono (Arendt, 1994). Esta atividade humana garante a existência das esferas pública e privada.
A autora ao longo da obra sustenta que para a existência de uma sociedade mais democrática, é necessária a coexistência das esferas pública e privada, diferente do que ocorre na modernidade. Neste contexto histórico, esfera pública e privada estão em desequilíbrio – a esfera privada tem sido mais valorizada, e a esfera pública está sendo suplantada por uma outra esfera: a esfera social.
A distinção entre a esfera de vida privada e uma esfera de vida pública corresponde à existência das esferas da família e da política como entidades diferentes e separadas, pelo menos desde o surgimento da antiga cidade-estado; mas a ascendência da esfera social, que não era nem privada nem pública é um fenômeno relativamente novo, cuja origem coincidiu com o surgimento da era moderna. (Arendt, 2007, p. 37)
Esta esfera social se apresenta na era moderna como um resultado da desvalorização da atividade humana da ação, em detrimento do comportamento. Em outras palavras, a ação foi enfraquecida na era moderna, devido ao surgimento de uma sociedade de massas em que o comportamento condicionado substitui a ação. Para exemplificar, basta imaginar que em um espaço público, embora diferentes sujeitos utilizem os mesmos locais, a relação social que se estabelece é mais ligada a um comportamento esperado, do que uma articulação política. Na era moderna,
Um fator decisivo é que a sociedade, em todos os seus níveis, exclui a possibilidade de ação, que antes era exclusiva do lar doméstico. Ao invés de ação, a sociedade espera de cada um dos seus membros um certo tipo de comportamento, impondo inúmeras e variadas regras, todas elas tendentes a normalizar seus membros, a fazê-los comportarem-se, a abolir a ação espontânea ou a reação inusitada. (Arendt, 2007, p. 50)
Para Arendt (2007), o surgimento da era moderna, com seu novo ritmo de produção e seus novos valores, corromperam a esfera pública. Esta esfera que incorpora a diversidade de posicionamentos, gerações e percepções, como sustenta a autora, é corroída no momento histórico que o comportamento se torna mais importante que a ação - uma das atividades que fundamentam a condição humana. Assim como Habermas então, Arendt admite que na era moderna, há um enfraquecimento da esfera pública, porque os elementos desta época minam a articulação política. Mas o diferencial de sua obra é que a esfera pública é examinada de uma maneira mais ampla, destacando não apenas a relação entre a sociedade e o Estado, mas citando a relação entre sujeitos, e entre grupos.
Assim como Habermas (1984) e Arendt (1994, 2007), Richard Sennett discorre sobre a esfera pública apontando sua decadência. Em “O Declínio do Homem Público: as tiranias da intimidade”, a tese de Sennett (2014) é de que com o fim do Antigo Regime, com a formação de uma nova cultura urbana, capitalista, a vida pública tornou-se esvaziada. E, por outro lado, a vida privada e pessoal ganha importância. Neste sentido, “[...] o capitalismo industrial sozinho fez com que o domínio público perdesse legitimidade e coerência” (Sennett, 2014, p. 39).
O subtítulo da obra tem a ver com o fato de a intimidade ocupar cada vez mais espaço na modernidade, ofuscando a esfera pública. Esta valorização da intimidade tem reduzido as possibilidades de cooperação. A participação desta esfera, na modernidade, passa a ser um ônus, um esforço, que muitos sujeitos tendem a rejeitar.
A esfera pública para Sennett (2014) é onde são geradas interações entre pessoas com objetivos díspares. E estes objetivos estão além do âmbito político. Para o autor, resumir esta instância apenas a este âmbito é desperdiçar a miríade de funções que ela pode apresentar. No entanto, para Sennett, na modernidade, mesmo as funções que não se restringem ao âmbito político da esfera pública, podem estar comprometidas. Esse desuso e enfraquecimento tem contribuído, segundo o autor, para as crises da alteridade, do reconhecimento do outro, como diferente e também comum. O espaço público, como local comum, segundo Sennett (2014), também tem sofrido com as consequências deste declínio.
Os três autores convergem no entendimento de que a esfera pública, durante a modernidade, tem se enfraquecido (em Arendt e Sennett), ou como algo que não se concretiza neste contexto histórico de economia capitalista (em Habermas). A partir destas leituras, muitos estudos de diferentes áreas do conhecimento se dedicaram ao entendimento de que o espaço público está em vias de desaparecer, ou perder sua importância e sentido (Sorkin, 1992; Banerjee, 2001; Carrión, 2007; Crossa, 2013; Lima, 2015).
Mas é bastante chamativo o fato de que ao mesmo tempo que esta esfera pode estar em decadência, é um espaço do qual minorias políticas ainda hoje insistem em participar. As ações humanas, que para Arendt, perfazem as esferas pública e privada, persistem, especialmente em cidades da América Latina. Se ainda há uma clara disputa pela participação, pela visibilidade e publicidade, é porque, de certa forma, esta esfera pública ainda integra nossas vidas, com uma importância preservada.
O estudo de Perez (2020) sobre o uso do espaço público por mulheres em Bogotá demonstra isso. Os dados obtidos na pesquisa realizada pela autora apontam que as mulheres gostariam de usar mais o espaço público, mas o temor relacionado aos papéis de gênero que elas desempenham torna esta participação um risco. Perez (2020) argumenta que a cidade, em diferentes períodos históricos e especialmente a partir do século XX, pode ser descrita como um espaço erigidos por homens e para homens, com um planejamento que não incorpora as mulheres e reconhece as violências que estão direcionadas a este gênero, sobretudo nos espaços públicos.
Lo dicho hasta aquí también implica que las mujeres no pueden practicar con tranquilidad ese espacio que se supone abierto y democrático pues ese mundo de extraños regido por la copresencia y el anonimato se convierte en un peligro para ellas; por eso siempre están muy atentas a lo que pasa a su alrededor con todo lo que entraña a nivel de tensión y agotamiento psicológico. Para ellas la oportunidad de deambular por el exterior público es a menudo más un factor de peligro que de felicidad [...]. (Perez, 2020, p. 395)
Ademais, a autora argumenta que muitos estudos ou propostas de intervenção focadas no espaço público, principalmente aquelas que buscam uma cidade mais inclusiva, com mais espaços públicos e estímulo ao acesso coletivo, tendem a desprestigiar ainda mais grupos periferizados, como comerciantes informais, refugiados, população em situação de rua e prostitutas. Há mais gentrificação nestas propostas do que tentativas eficazes para proporcionar o convívio e o debate[iv].
Com base no entendimento de que a esfera pública foi profundamente afetada pelos aspectos da modernidade, um importante trabalho dedicado às cidades e seus espaços públicos foi publicado; “Variation on Theme Park; The New American City and the End of Public Space” organizado por Michael Sorkin (1992). A obra possui textos de importantes autores, como Edward W. Soja , Margaret Crawford, Neil Smith e Mike Davis. Os autores discutem a ascensão das interferências do mercado imobiliário sobre cidades norte-americanas. Estas interferências, com base nos textos, têm dificultado o acesso e prejudicado o uso dos espaços públicos.
A expectativa destes autores impressiona. Ela nos remete a uma utopia possível, da expressão dos desejos de homens e mulheres pela participação coletiva. Mas utopias podem inspirar expectativas que não se concretizam, surgindo então a ideia ou a impressão de que os espaços públicos estão declínio, ou que aquele espaço de uso coletivo na cidade, talvez nunca tenha sido um espaço público, devido às restrições nele presentes.
Banerjee (2001) é um dos autores que enxerga o espaço público em decadência. Seu entendimento emerge da experiência das cidades norte-americanas, em que a ascensão da perspectiva liberal, principalmente no planejamento, teve como principal característica a redução no investimento de infraestruturas para espaços públicos, sobretudo de lazer. Banerjee (2001) questiona se de fato o espaço público das cidades é de acesso livre e irrestrito. Considera também que o acesso e uso dos espaços públicos nas cidades contemporâneas são na verdade um privilégio. Em suas palavras “any expectation that such spaces are open to all is fancifull at the best[v]” (Banerjee, 2001, p. 12).
De maneira semelhante, Carrión (2007) reconhece que nas cidades contemporâneas é necessário que o espaço público volte a ter importância, por ser um espaço da coletividade, da possibilidade de ação e articulação dos indivíduos. Não é preciso dizer que Carrión (2007) também identifica uma decadência relacionada a estes locais. O autor, no entanto, atribui esta decadência não só a políticas neoliberais como também à própria violência. Os cidadãos inseguros estariam evitando visitar ou permanecer nestes locais.
Os espaços públicos e as cidades perdem muito com as propostas hegemônicas que se estabelecem verticalmente, sem considerar o cotidiano, a espontaneidade e a concretização da vida. Isto é inegável. E justamente por isso, Crossa (2013), que teoriza sobre cidades latinoamericanas, também reconhece a decadência de tais espaços, devido às expropriações promovidas pelo poder público. Nas palavras da autora:
[...] los espacios públicos urbanos están desapareciendo, y las ciudades contemporáneas se están convirtiendo en espacios segregados y cerrados donde cada vez es más clara la separación entre lo que Svampa (2001) llama los ganadores y los perdedores. (Crossa, 2013, p. 41)
Neste sentido, a decadência do espaço público está relacionada em primeiro lugar ao incremento de políticas liberais, que comprometem a qualidade e a segurança – fato resultante da redução nos investimentos nestes espaços. E em segundo lugar, deve-se ao aprofundamento das desigualdades, provocado pela contínua exploração do sistema econômico. Estes três fatos, inspiram o olhar de Fonseca (2005), que afirma a existir uma relação entre padrões sociais e o uso de tais locais. Segundo a autora, pessoas de classe alta e classe baixa usam o espaço público de maneira distinta. A autora sustenta que os espaços públicos tem sido frequentados cada vez mais por pessoas de baixa renda, tornando-os menos atraentes às diferentes classes, o que contribui para sua desvalorização. A classe alta apenas observa estes locais de dentro de seus carros.
Mais uma vez, é possível identificar uma expectativa em relação aos espaços públicos. Expectativas essas que corroboram para a visão de decadência e fenecimento destes locais nas cidades contemporâneas. Diferentes áreas do conhecimento que se dedicam a esta temática corroboram para a visão de declínio e futuro desaparecimento.
Em contrapartida, Crawford (1995) apresenta um trabalho esclarecedor sobre este entendimento do espaço público e da esfera pública de modo geral. Ela dirige críticas às previsões, sobretudo as que argumentam que ele deixará de existir. Para ela, estas expectativas advêm do desejo por categorias fixas e conceitos rígidos de público e privado. Crawford (1995, p. 4) ressalta algo muito importante sobre este tema: “the meaning of concepts such as public, space, democracy, and citizenship are continually being redefined in practice through lived experience[vi]”.
Nas produções geográficas, o debate da esfera pública de Habermas, Arendt e Sennett também se faz presente. A “narrativa de perda” como descreve Crawford também é apresentada nas produções geográficas sobre o tema (Crossa, 2013; Lima, 2015). No entanto, há trabalhos que inovam, abordando essencialmente a espontaneidade inerente ao próprio espaço, que, como parte de uma totalidade, constitui movimento (Mitchell, 1995, 2017; Crawford, 1995; Gomes, 2002; Valverde, 2007, 2009; Souza, 2018, 2020).
Em se tratando de América Latina, não podemos deixar de citar que esta é uma região onde existem profundas desigualdades que podem ser examinadas em suas cidades e em seus espaços públicos. Trata-se de um conjunto de países cujos efeitos da colonização ainda se fazem sentir. Países onde as cidades revelam desigualdades ainda mais profundas do que as examinadas em outras regiões do mundo (Santos, 2018).
3. Espaço público na Geografia
Em diferentes contextos históricos e espaciais, os espaços públicos nunca foram locais de fato democráticos, de uso livre e sem empecilhos – apesar de sua definição. Conforme assinalado por Mitchell (2017, p. 512): “public space is a struggle[vii]”. O mesmo se aplica à chamada esfera pública, em que a participação para muitos sujeitos é uma conquista. Isto está de acordo com o que é apresentado por Fraser (1990). Ou seja, como espaços de disputa, a esfera pública e o espaço público estão longe de desaparecerem, uma vez que existem grupos que ainda os reivindicam.
Apesar disto, existe um número significativo de trabalhos na Geografia que se dedicam a previsão de fim (Lima, 2015; Crossa, 2013) e/ou a profunda e inevitável transformação dos espaços públicos (Sobarzo, 2006; Narciso, 2009; Burgos, 2015).
A respeito destas previsões, um estudo produzido por Souza (2018, 2020) demonstra que tais conclusões se devem à compreensão de esfera pública fundamentada por Habermas, Arendt e Sennett. De certa forma, o que os três autores apresentaram em suas obras, forneceu bases para a previsão de decadência dos espaços públicos. Para Souza (2018, p. 203), estas previsões constituem um equívoco, que nasce de uma leitura “excessivamente normativa e que não reconhece outras possibilidades interpretativas”.
Ao reconhecer estas outras possibilidades interpretativas, isto é, outras formas de concretização do espaço público, Valverde (2007, 2009) irá utilizar o termo “heterotopia”, da obra de Foucault, para designar a transformação da concepção de espaço público. O que se concretiza é, em muitas ocasiões, uma contestação da expectativa ou utopia dedicada a estes locais.
Mitchell (1995, 2017) também questiona essa previsão de decadência e fim dos espaços públicos, utilizando exemplos de cidades norte-americanas. Mulheres, pessoas LGBTQIA+ e outras minorias políticas desde a década de 1990 insistem em participar dos espaços públicos, fazendo a sociedade encarar a discriminação e o preconceito direcionado a estes grupos. As paradas LGBTQIA+ por exemplo, foram ao longo dos anos sendo promovidas em diferentes espaços públicos, demonstrando que este local ainda possui grande importância política. Além disso, em outras ocasiões, como em Berkeley, na tentativa do governo de remover as pessoas em situação de rua do parque, os cidadãos comuns se posicionaram em oposição, reafirmando que o espaço público é de uso comum, e isso inclui diferentes apropriações, inclusive o uso destinado à moradia.
Neste sentido, dificilmente se pode afirmar ou prever que o espaço público se encontra em declínio ou prestes a desaparecer. As manifestações quando públicas, se tornam maiores, mais difundidas, e constituem práticas políticas, que em síntese são ações humanas (Arendt, 2007; Santos, 2017). Estas ações, sempre direcionadas a um fim, continuam a ocorrer e se concretizar. E uma abordagem geográfica deve considerar sua existência. Ou melhor, deve identificá-las, a partir do presente, vislumbrando também o passado espacial (Santos, 2000, 2012, 2017).
Os trabalhos que se dedicaram a ideia de fim ou de profunda transformação dos espaços públicos embora não tenham alcançado uma proposta de compreensão própria da Geografia, contribuíram para este tema. Por exemplo, Lima (2015) apresenta a visão de que os espaços públicos tem perdido seu prestígio devido ao medo e a insegurança presente nestes locais. Para a autora:
O medo influencia [...] a paisagem urbana, na medida em que surgem as cercas elétricas, os muros e as grades, fazendo com que cada vez mais os indivíduos, que não possuem esses itens em sua residência, sintam-se inseguros. Consequentemente, a familiaridade das pessoas com o espaço público vai se enfraquecendo, e este, vai se tornando cada vez mais estranho ao citadino. (Lima, 2015, p. 19)
De fato, o medo e a insegurança têm estimulado não apenas a aquisição de sistemas de segurança privada cada vez mais avançados, como também o afastamento das pessoas dos espaços públicos. São nestes locais que a violência urbana se torna mais evidente, devido a sua publicidade e visibilidade.
Lima argumenta que parte do desprestígio dos espaços públicos também se encontra no fato da classe privilegiada ter os abandonado. Esta classe tem utilizado cada vez mais espaços de uso restrito como resorts e condomínios horizontais fechados, deixando os espaços públicos para as classes menos favorecidas.
Os espaços públicos abandonados pelos privilegiados ficam, então, entregues aos pobres, que deles necessitam no seu cotidiano, e não dispõem do poder reivindicatório das classes média e alta. Nesses espaços, não são priorizados investimentos públicos, ficando em consequência disto, geralmente em fiscalização das regras de uso e, aí predomina a violência e o desrespeito. (Lima, 2015, p. 19)
A autora argumenta que os mais pobres têm menor poder reivindicatório, e que por isso, investimentos em infraestruturas nos espaços públicos não são priorizados. Talvez fosse mais apropriado dizer que o poder reivindicatório dos mais pobres é menos valorizado. Pois dizer que estes têm menor poder de reivindicação seria o mesmo que dizer que são incapazes de saber suas necessidades e de saber como podem se articular.
Este argumento é questionável. Os pobres e as demais minorias políticas em diferentes partes do mundo e em diferentes períodos históricos, apesar da repressão, articularam-se na busca da superação de diferentes injustiças. Se isto não fosse fato, nem mesmo o presente texto teria sido escrito.
Em relação a falta de investimentos em infraestruturas nos espaços públicos, é necessário não esquecer que, em algumas cidades do mundo, o que ocorre é o revés; espaços públicos de lazer tornam-se muito mais atraentes, devido ao foco no turismo, conforme examinado por Sorkin (1992).
Contudo, quando Lima (2015) cita a insegurança nos espaços públicos e a ascensão de espaços de usos restritos, é possível identificar elementos de uma cidade contemporânea, que não pode ser compreendida sem a consideração dos avanços técnicos, e do aprofundamento das desigualdades que caracterizam este sistema econômico (Santos, 2000, 2017).
Desigualdades e injustiças foram também identificadas por Crossa (2013), em sua pesquisa sobre os espaços públicos do centro histórico de Coyoacán, na Cidade do México. O estudo concentrou-se na análise do Programa de Recuperação dos Espaços Públicos, que visava a “revitalização[viii]” de ruas, parques e praças. Mas, segundo Crossa, o projeto consistiu muito mais em uma higienização, o que incluia o afastamento de comerciantes informais e artesãos.
Semelhante ao que foi defendido por Lima (2015), Crossa (2013) também argumenta que os espaços públicos estão desaparecendo, uma vez que as cidades atuais estão cada vez mais permeadas de espaços fechados, que utilizam do discurso da segurança para serem desenvolvidos. Na verdade, o que se busca é a separação entre aqueles que podem e buscam se autossegregar (Souza, 2020), e aqueles que não escolhem nem mesmo seu destino (Bauman, 1999).
Em uma abordagem mais ligada a ideia de transformação do espaço público, Sobarzo (2006, p. 94) é direto: “Falar em morte do espaço público parece simplista demais, já que esse posicionamento tende a se fechar em si mesmo, limitando as análises”. Ao criticar a ideia de finitude destes espaços de uso coletivo, o autor argumenta que nas cidades contemporâneas, o que ocorre é o surgimento de novos produtos imobiliários como Shopping Centers, Parques Temáticos e Centros Turísticos, que podem ser considerados “caricaturas sociais”, pois negam os conflitos e a diversidade inerente a concepção ideal de espaço público defendida pelo autor.
Para Sobarzo (2006), são nos espaços públicos que a improvização, a espontâneidade, a convivência, os conflitos e desacordos têm lugar. E nestas “caricaturas sociais”, as normas se tornam um imperativo, por serem locais controlados, que impossibilitam a espontaneidade característica dos espaços públicos. É neste sentido que Sobarzo advoga por uma transformação dos espaços públicos, pois são agora espaços vigiados, onde são valorizadas normas, isto é, o comportamento ideal.
Narciso (2009) também admite a transformação dos espaços públicos. A grande crítica que a autora faz se direciona às intervenções urbanas, que tendem a beneficiar interesses próprios, se aliando mais ao mercado do que à própria sociedade. Mas os projetistas e suas expectativas também tem sua parcela de culpa:
Muitas vezes os projetos não conseguem dar respostas às necessidades urbanas, porque os projectistas encaram o desenho do espaço público de forma fechada, como um produto acabado, que não vive o tempo da cidade nem o tempo de interpretação de seus usuários. (Narciso, 2009, p. 279)
Essa observação, bastante oportuna, tem também relação com as expectativas depositadas sobre o espaço público. Tais expectativas, já vimos, partem de uma ideia excessivamente normativa que desconsidera a concretização do uso destes espaços, valorizando mais o projeto do que a concretização da existência do espaço e da vida que nele acontece.
Por exemplo, Burgos (2015) argumenta que os espaços públicos passam por um processo de redefinição. Esta redefinição tem relação com o ideário neoliberal. A atuação do Estado segue uma agenda restrita, de redução de investimentos para aquilo que é público. Na verdade, o ideário neoliberal demonstra que o ocorre é menos participação do Estado para os interesses coletivos, e mais participação para empresários e as classes favorecidas.
Burgos acerta ao discorrer sobre esta tendência do ideário liberal nas cidades contemporâneas. No entanto, dizer que os espaços públicos passam por uma transformação ou uma redefinição é redundante. Espaços públicos são, por definição, dinâmicos.
Na verdade, o envolvimento na esfera pública e no espaço público sempre se deu a partir de reivindicações. E as manifestações que exigem participação destes locais nunca se esgotaram.
Ao longo do tempo, cada vez mais pessoas tornam-se participantes do debate, da espontaneidade e dinamismo inerentes aos espaços públicos. Deles não podemos ter expectativas excessivamente rígidas, especialmente na América Latina, pois nos encontramos diante de uma realidade profundamente desigual. Estamos nos referindo a a região cuja conquista resultou em um número impressionante de mortes de indígenas (Costa & Moncada, 2021), na imposição estética e religiosa, cujos resíduos ainda se fazem presentes (Ianni, 1988; Martins, 1993; Hoffman & Centeno, 2006; Mann, 2010). Ao propor uma ótica e noção que aponta a presença de resistências no espaço latinoamericano, Costa (2017) destaca que:
A dinâmica de trabalho imposta para a exploração de riquezas, em territórios latino-americanos, extirpou a cultura (e a vida) de milhares de indígenas e afrodescentes. O ouro e a prata multiplicaram riquezas europeias; o açúcar e o café foram produtos mais lucrativos do mercado mundial, até serem superados pelo petróleo pós-1940. Além dos buracos das minas, ficaram como herança dimensões de patrimônio que vão de “implantações civilizatórias”. (Costa, 2017 p. 55)
Assim, os antecedentes históricos da região perfizeram o retrato atual de desigualdade e injustiça social. Apesar disso, Hoffman e Centeno (2006) criticam a prevalência da visão de que apenas a conquista seja a responsável por todas as mazelas identificadas nestes países. Criticam a tendência de responsabilizar apenas a colonização e o consequente estabelecimento de castas sociais pela desigualdade social tão acentuada identificada nestes países. Outros fatores merecem o devido exame. Contudo, os autores chamam a atenção para o fato de que a partir do momento que identificamos as resultantes do processo de colonização, que permeiam as diferentes relações, em diferentes escalas, podemos ter maior autonomia sobre o destino destes povos. Os diversos outros fatores que respondem a desigualdade social estão de alguma forma relacionados com a conquista de seus territórios, sendo impossível dissociar a realidade atual da região dos aspectos históricos que forjaram suas nações.
Isto pode ser verificado no que descreveu Quijano (2005) sobre a formação de castas sociais a partir do elemento racial estabelecido pela conquista. Conforme o autor, o elemento racial definiu e define a divisão do trabalho em diferentes escalas, criando uma desigualdade mais acentuada do que a examinada em outras regiões do mundo. Mas é possível falar de uma unidade na América Latina? É sabido que existem diferentes especificidades em cada país que a integra, no entanto, como sustentado por Ribeiro (2014, p. 7):
[...] acima de todos os fatores de diversificação sobressaiam os de uniformidade, certas diferenças visíveis alcançam, frequentemente, um sentido social discriminatório. É o caso, por exemplo, do paralelismo entre cor da pele e pobreza, que dá lugar a uma estratificação social de aparência racial.
Neste sentido, a América Latina apresenta-se como uma região caracterizada por suas desigualdades e problemáticas geradas direta e indiretamente pela conquista do território de seus países. Nas cidades latinoamericanas, as consequências da conquista são evidentes. Conforme identificado por Janoschka (2016), nestas cidades os processos de gentrificação e expropriação são mais numerosos e mais intensos, e atualmente, estas cidades esboçam uma mesma tendência: expulsão de sujeitos dos espaços centrais públicos com grande visibilidade, aplicando em sequência reformas e “revitalizações”. Tais fatos justificam a proposta que apresentamos neste artigo.
4. Espaço Público como expressão ativa do território usado
A participação na esfera pública e no espaço público latinoamericanos são ainda bastante reivindicados. Conforme observado por Martins (1993, p. 12), nos territórios conquistados persistem recriações e regenerações de “ideias e modos de vida” que redefinem as concepções impostas.
Sobretudo na América Latina, um dos aspectos básicos do espaço público é o fato de que ele é ativado pelos sujeitos, como propõe Costa (2017, 2018, 2021). Sendo o espaço público um local de disputa, onde a busca por participação sempre se faz presente, na América Latina, este espaço exige muito mais resistência por parte dos grupos que foram periferizados pela conquista. As ruas e praças de La Habana demonstram isso (Figura 1).
Nos países desta região, é possível identificar uma urbanização acelerada (Briceño-León, 2007; Mann, 2010; Luna, 2013) e a existência de racionalidades hegemônicas e contra-hegemônicas. Os espaços públicos e as cidades latinoamericanas nos exigem um exame sobre a existência humana que modifica e ressignifica o espaço. A existência humana pressupõe a ação, conforme assinala Sartre (1997), e neste sentido, a Geografia pode compreender o espaço como algo criado e recriado pela concretização da vida – o que nos impede o estabelecimento de previsões rígidas e que desconsiderem seu dinamismo. A Rodoviária do Plano Piloto de Brasília no Brasil, por exemplo, local de fluxo, nos apresenta exatamente a ativação do espaço público (Costa, 2021) pelos trabalhadores informais que insistem em permanecer e comercializar em um espaço público que foi destinado ao embarque e desembarque, ressiginificando-o (Figura 2).
O espaço público, sobretudo latinoamericano, pressupõe disputas e eventuais desapropriações, que contestam sobremaneira a ideia de declínio de tais locais. O espaço público, como já mencionado, não foi pensado com um aspecto ideal a ser seguido e mantido. Não é também um espaço inerte, cujas funções se mantêm ao longo do tempo. Assim, os espaços públicos dispensam expectativas, especialmente aquelas que emergem de uma proposta que tutela o espaço e a sociedade verticalmente. As praças de La Liberación e Gomes Freire de Guadalajara (México) e Mariana (Brasil), ao revelarem diferentes tipos de uso, mostram a permanência da ativação dos espaços públicos pela existência dos sujeitos situados (Costa, 2017) (Figura 3 e Figura 4).



A previsão de desaparecimento presente nas produções geográficas decorre da falta de uma abordagem própria desta ciência sobre o tema. E uma abordagem própria da Geografia pode ocorrer pela consideração simultânea de formas, estruturas, funções e processos que dizem respeito ao espaço enquanto totalidade (Santos, 1991, 2000, 2002, 2012, 2017).
As lacunas das produções geográficas encontram-se consideração das formas, estruturas, funções e processos de maneira apartada. Por exemplo, um dos problemas da produção geográfica sobre os espaços públicos, apontados por Gomes (2018) tem a ver com o fato de estudos concluírem que qualquer espaço com a forma física de ruas, praças e parques podem ser considerados espaços públicos. Diferentes locais com estas formas físicas não são espaços públicos. Estão situados em áreas de uso restrito, como condomínios fechados. Esta conclusão deve-se a uma abordagem cujo enfoque se manteve na forma, desconsiderando outros aspectos.

A abordagem que se concentra apenas na função de tais espaços, também contribui para um entendimento incompleto. Assim, a produção geográfica sobre este tema que se empenha em compreender apenas a função destes espaços, tende a admitir a reconfiguração ou o desaparecimento do espaço público, justamente pela modificação de sua função. Sem a consideração dos demais elementos, tem-se a ideia de que o espaço público está em franco declínio, ou em extinção, conforme também apontado por Gomes (2018).
Uma análise que enfoca apenas a estrutura, isto é, a inter-relação entre as diferentes partes do todo, pode desprezar o movimento histórico do mesmo todo (totalidade). A produção geográfica que se concentra nesta abordagem pode não considerar que os espaços públicos revelam problemáticas que são históricas, e fazem parte não apenas de uma história recente.
O que nos apresenta Santos (1991, 2000, 2002, 2012, 2017) é a possibilidade de uma particularidade analítica da Geografia. E esta é a ciência que pode compreender o espaço como um híbrido. A união forma-conteúdo é o que constitui o espaço geográfico. A forma pode ser compreendida como objetos artificiais e coisas naturais, enquanto o conteúdo tem relação com as ações humanas. A ação humana, ou seja, o conteúdo, anima as formas, de modo que se torna impossível compreender apenas a forma ou os conteúdos separadamente na Geografia. É a forma-conteúdo que nos permite apreender esta totalidade.
Diante da ideia limitante de que a Geografia seria uma ciência das localizações, Santos (2000, p. 2) advoga por uma Geografia cujo objeto não seja apenas o território, mas o território usado – que seria “tanto o resultado do processo histórico quanto a base material das novas ações humanas”. O território usado, como sinônimo de espaço geográfico, incorpora o movimento do todo, que explica suas partes, sendo mais do que a soma delas. É este movimento que nos permitirá vislumbrar e alcançar uma análise geográfica que possa ajudar na compreensão do uso do espaço público, em especial na América Latina.
O vigor do conceito de território usado está no fato de ser ele uma “chave” para compreender e explicar o mundo, as relações socioespaciais e os lugares. Como? Com base no que propõe Santos (2000), o território usado é, por um lado, recurso para os atores hegemônicos, e por outro, espaço de resistência. E este convívio entre atores hegemônicos e hegemonizados é identificado pela operacionalização deste conceito na Geografia.
Para a compreensão do uso do espaço público e da cidade latino-americana é fundamental considerar a existência de propostas hegemônicas e propostas contra-hegemônicas. Estamos nos referindo a países cuja colonização produziu não uma sociedade de classes sociais, mas de castas, conforme pontuado por Ianni (1988). As cidades latino-americanas se mostram como reveladoras de profundas desigualdades. Nestas cidades a urbanização se deu de maneira acelerada separando claramente ricos e pobres, e conformando diferentes circuitos da economia, como apontado por Santos (2018). As ações hegemônicas e contra-hegemônicas nestas cidades, entretanto, não podem ser entendidas como um par dialético. Elas fazem parte de um mesmo todo. Nelas, a resistência e a permanência nos espaços públicos é explícita e reafirmada pela existência dos sujeitos situados (Costa, 2017).
A existência humana supõe a ação, e agir, como apontado por Sartre (1997, p. 536):
[...] é modificar a figura do mundo, é dispor de meios com vistas a um fim, é produzir um complexo instrumental e organizado de tal ordem que, por uma série de encadeamentos e conexões, a modificação efetuada em um dos elos acarrete modificações em toda a série e, para finalizar, produza um resultado previsto.
É devido à ação do sujeito inerente à sua existência que se pode conceber a realidade como um devir. No espaço público latino-americano, revelam-se grupos concorrentes. Ao passo que uma proposta hegemônica se impõe e é, muitas vezes, representada pelo poder público, resiste uma atividade desprestigiada, que, por meio da ação contínua, ativa o espaço público como lócus da reprodução da vida individual e comunitária (Costa, 2017).
5. Consideração finais
Entende-se que a esfera pública e o espaço público continuam sendo expresssões das disputas sociais e espacias no mundo contemporâneo. Embora alguns autores apontem sua decadência, estes locais ainda são reivindicados por grupos desprestigiados. Entendendo-o como expressão ativa do território usado, o espaço público revela a disputa pela visibilidade e publicidade de problemas que existem especialmente na vida de “sujeitos lentos” (Santos, 1991, 2017), que resistem a propostas verticais e hegemônicas de maneira própria.
Conforme os argumentos sustentados por Habermas (1984), Arendt (1994) e Sennett (2014), podemos conceber a esfera pública como uma esfera que representa a relação entre Estado e socidedade, como algo que relaciona pessoas e grupos distintos, ou como um espaço de visibilidade e publicidade. O entendimento sobre a esfera pública apresentado por estes autores, deu suporte para a compreensão sobre o que é o espaço público. Diferentes áreas do conhecimento, a partir do que discutiram tais autores, se dedicaram ao entendimento do espaço público como uma expressão da esfera pública. Alguns estudos geográficos sobre o tema também usufruíram destas bases teóricas, porém sem uma abordagem própria. E por isso, obtiveram conclusões que não reconhecessem características do espaço público como parte do território – sinônimo de espaço geográfico. Além disso, as bases teóricas apresentadas, embora bastante pertinentes, somadas à falta de uma abordagem própria da Geografia em certos estudos, não contribuem para a compreensão do espaço público latino-americano, devido a especificidades já anunciadas. É neste sentido que novos aportes são necessários, conforme o que apresentamos nesta pesquisa.
Para Santos (1991, 2000, 2002, 2012, 2017), o espaço social, ou seja, o espaço geográfico é, metodologicamente, definido pela forma, a estrutura, e a função, que não sendo inertes, fazem parte de um processo. Portanto, forma, estrutura, função e processo são elementos desta instância social, cuja compreensão exige o esforço teórico que reúna estes elementos, uma vez que estas categorias não existem separadamente. Em síntese, para o autor:
A totalidade que supõe um movimento comum da estrutura, da função e da forma, é dialética e concreta. Para estudá-la, é preciso levar em consideração todas as estruturas que a formam e que em conjunto ou isoladamente a reproduzem. Essas estruturas, bem como a totalidade, não são fixas, pois evoluem no tempo. (Santos, 2012, p. 57)
O território usado é uma totalidade (Santos, 2000). Esta noção incorpora toda a proposta de Milton Santos para a compreensão do espaço geográfico. Dentro desta totalidade apresentada, encontra-se o espaço público, que em uma abordagem geográfica, pode ser compreendido como um híbrido, resultante da união de forma e conteúdo, e da coexistência do que é hegemônico e do que resiste.
Compreender o espaço público como expressão ativa do território usado, isto é, como concreção de parte do espaço geográfico, pode nos proporcionar condições para reconhecer o dinamismo deste espaço e da própria esfera pública, como sustentado por Fraser (1990). Isto significa que não incorreremos em prever o desaparecimento ou declínio do espaço público.
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Notas