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Recepción: 01 Marzo 2022
Aprobación: 01 Junio 2022
Publicación: 01 Febrero 2023
DOI: https://doi.org/10.26512/patryter.v6i11.40863
Resumo: A presente pesquisa tem por objetivo investigar a produção de verdade, conforme proposta por Foucault, no interior das chamadas operações de “vigilância semântica”: conservação e restauração de bens culturais. Dessa forma, buscou-se analisar ocorrências e recorrências dos termos “conservar” e “restaurar” em dispositivos legais e infralegais brasileiros buscando situar as práticas de preservação do patrimônio cultural conforme previstas pelas normativas e interpretadas pelo órgão federal do patrimônio.
Palavras-chave: teoria contemporânea da conservação, restauração, normatização, vigilância, percepção.
Resumen: La presente investigación tiene como objetivo analisar la producción de verdad, tal como la propone Foucault, dentro de las llamadas operaciones de “vigilancia semántica”: conservación y restauración de bienes culturales. De esta forma, son consideradas las ocurrencias y recurrencias de los términos “conservar” y “restaurar” en las disposiciones legales e infralegales brasileñas, situando las prácticas de preservación del patrimonio cultural en la forma prevista por la normativa e interpretada por la agencia federal del patrimonio.
Palabras clave: teoría contemporánea de la restauración, conservación, estandarización, vigilancia, percepción.
Abstract: The present research aims to investigate the truth enforcement operations, as proposed by Foucault, within the so-called “semantic surveillance” operations: conservation and restoration of cultural assets. In this way, we sought to analyze occurrences and recurrences of the terms "preserve" and "restore" in Brazilian legal and infralegal provisions, seeking to situate the practices of conservation of cultural heritage as provided for by the regulations and interpreted by the federal agency for cultural heritage.
Keywords: contemporary theory of conservation, restoration, standardization, surveillance, perception.
1. Introdução[i]
Depois de semanas, talvez meses, trabalhando em um mesmo livro, quando o trabalho está completo, é o momento de tirar a fotografia. O retrato de um novo estado, o depois. Que só é possível por ser diferente do estado anterior. A foto imprime um instante. Pretende suspender o fluxo do tempo, em princípio, para sempre. A não ser pelo fato de que também ela, a fotografia, não dura para sempre. É contra isso, o inexorável fluxo do tempo, que trabalha um conservador-restaurador de bens culturais. Operários do impossível.
Apesar da breve experiência com a conservação e a restauração de bens móveis em suporte bibliográfico, como o papel ou o pergaminho, percebi que eventualmente subjaz uma gratificante decepção nos olhos do público frente a alguns resultados. Confrontados com as fotografias do depois de alguns tratamentos, mesmo alguns demorados como a higienização mecânica ou meticulosos como a desacidificação, existe certa decepção por parte dos espectadores que esperavam o glorioso retorno de um estado imaginário, e não um livro que, apesar de interessante, continua parecido com um livro velho. Como se discutirá em outro momento, não basta que o conservador-restaurador de bens culturais efetivamente realize o impossível e interrompa o inexorável fluxo do tempo. Seus pares – talvez mesmo o Estado - parecem esperar que o faça de forma invisível. A sociedade, por sua vez, é o que justifica a intervenção, e frequentemente demanda um antes e depois - subjacente a ideias bem difundidas como o horizonte de expectativas[ii] de Martínez Justícia (2000) e função expressiva da conservação-restauração, de Muñoz Viñas (2005). Esse esforço sísifo de fantasmagoria atemporal se processa microscopicamente e macroscopicamente a cada intervenção e será discutido oportunamente.
Outros tratamentos, embora quimicamente ou arqueologicamente questionáveis, como os branqueamentos hipoclorídricos ou remoções de repinturas, são frequentemente bem recebidos pela comunidade em que o bem se insere. Ressalto esses aspectos agora apenas para apontar que dificilmente haveria unanimidade em relação ao uso dos termos conservar ou restaurar, sequer entre especialistas. Proponho seguir o fio deste novelo a partir de uma constatação: conservação e restauração são coisas diferentes.
Falantes ou leitores treinados e não treinados, que as usam fluentemente na vida cotidiana (e geralmente de maneiras não intercambiáveis), podem distingui-las facilmente. Esse fato demonstra que essas duas noções não são apenas diferentes, mas também úteis; e que existe um critério que permite às pessoas distingui-las. (Muñoz Viñas, 2005, p. 19)
Convido o leitor a percorrer os descaminhos da própria memória em busca desse elemento distintivo. Em determinado bem cultural, a distinção entre uma operação de conservação e uma restauração. Desconfiado que por ofício preciso ser da memória, antecipo: é a percepção. Intervenções perceptíveis são frequentemente tidas como restaurações, e espera-se da conservação que seja imperceptível. Embora seja essa a “percepção inconsciente do falante” (Muñoz Viñas, 2005, p. 20), a perceptibilidade das intervenções não é um critério eficiente para diferenciá-las, por inúmeras razões. Sobretudo psicológicas, já que a percepção dificilmente se confunde com a realidade. Além disso, a percepção não pode constituir critério porque conservar também altera, naturalmente, e é por isso que se conserva.
Um dos belos paradoxos do mundo da conservação do patrimônio cultural é que muitas vezes ela funciona pela alteração da coisa que deveria ser conservada. Em outras palavras: conservação altera. A relutância em reconhecer este fato foi chamada ‘a Síndrome de Frankenstein’ (uma vez que, assim como Viktor Frankenstein não gostaria de pensar em algumas das consequências de seus experimentos, muitos especialistas e não especialistas parecem não levar em consideração as consequências da maioria dos tratamentos de conservação). (Muñoz Viñas, 2017, p. 8)
Na ponta do bisturi, na hora e na vez em que estão se processando uma após a outra decisões e “microdecisões” (Muñoz Viñas, 2005, p. 133), as operações de conservação ou restauração são indiferenciáveis.
As folhas de papel costumam perder força física e resistência com o tempo: a celulose oxida e seu grau médio de polimerização diminui, causando o enfraquecimento do papel. Nestes casos, um tratamento típico de conservação consiste em lavar as folhas. Dessa forma, o papel é reidratado e aumenta o número de ligações de hidrogênio entre as cadeias de celulose. Além disso, os subprodutos da degradação solúveis em água, que também aceleram as reações químicas dentro do papel, são dissolvidos na lavagem. No entanto, como esses subprodutos também podem causar a descoloração da folha, outra consequência notável desse tratamento é que elas costumam ficar com um aspecto mais branco, o que muito provavelmente está mais próximo do original. Além disso, para secar, aplicam-se técnicas a fim de evitar que o papel enrugue, para que as folhas saiam do tratamento aplainadas. Assim, o banho no papel, sobretudo uma técnica de conservação, também tem efeitos colaterais restauradores inevitáveis: tecnicamente, não é possível realizar a eliminação dos produtos da degradação do papel sem reduzir sua descoloração. (Muñoz Viñas, 2005, p. 19)
Uma vez estabelecido o quanto essas definições podem ainda ser indefinidas, segue um inevitável momento de tentar defini-las. A princípio, Brandi e Muñoz Viñas aparentemente coincidem.
A conservação pode, portanto, ser definida como a ação destinada a manter as características perceptíveis de um objeto em seu estado presente pelo maior tempo possível - um objetivo que geralmente é alcançado pela modificação de algumas das características não perceptíveis do objeto. Em contraste, a restauração pode ser definida como a ação que tenta modificar as características perceptíveis de um objeto. (Muñoz Viñas, 2005, p. 20)
Não obstante o fato de que às vezes a conservação pode ser flagrantemente perceptível, como os reforços no Coliseu, mas devido às circunstâncias técnicas incontornáveis. Conforme enunciado, a percepção não é fiel. Talvez por isso tenha se constituído nesse efetivo critério para diferenciar o indiferente. O reino da percepção teve sua dinastia de glória na segunda metade do século XX, com a enunciação da “teoria estetocêntrica” (Muñoz Viñas, 2005, p. 67) conforme o autor identifica a teoria da restauração de bases declaradamente “fenomenológicas” de Brandi (2013, p. 44). A preponderância da percepção é tão cara a este documento, que se expressa no título teoria da “restauração”, isto é, circunscreve um espaço do saber-poder: realizar alterações perceptíveis em bens culturais para a sua efetiva preservação. E inscreve nesse espaço a prática pretensamente invisível e sempiterna da conservação.
A norma legal e infralegal brasileira, a verdade realizada pelo Estado em relação à conservação e restauração de bens culturais, prescinde do oposto. Em todos os documentos examinados a seguir, utiliza-se o termo “Conservação” para referir-se a ambas as atividades, a conservação e a restauração. A Política do Patrimônio Material do Instituto do Patrimônio Histórico Artístico Nacional (IPHAN) efetivamente não registra o termo “restauração”, embora dificilmente se possa refutar que o instituto autoriza e realiza restaurações cotidianamente[iii]. Quando o uso corrente dos termos é incapaz de nos fazer chegar a termo, é preciso buscar um uso qualificado, estabelecendo um código político-semântico a partir de referências. Com esse objetivo cometem-se a seguir considerações sobre o uso que a norma legal e infralegal brasileira aprecia desses termos, seguido de conclusões parciais sobre consequências epistemológicas dos mesmos.
Observou-se, em referência à conservação e restauração do patrimônio material tombado, as normas legais: Decreto-lei nº 25 de 1937, que impõe o instrumento do tombamento e Constituição Federal de 1988, que define a noção contemporânea de preservação do patrimônio cultural. O texto legal corresponde à letra do legislador, o cidadão eleito. Produz direitos, deveres e obrigações. Já em relação às normas infralegais, identifica-se como principal instrumento a Portaria nº 375 de 2018, do Instituto do Patrimônio Histórico Artístico Nacional, que estabelece a Política do Patrimônio Material exercida pelo Instituto, a autarquia federal da preservação do patrimônio cultural do país. A hierarquia de normas do ordenamento jurídico brasileiro, em consonânica com a Pirâmide de Kelsen (1998), entende que normas infralegais não tem o poder de gerar direitos, nem impor obrigações. Não podem contrariar as normas primárias, sob pena de invalidade, como é o caso dos decretos regulamentares, instruções normativas e, no presente caso, portarias.
A presente pesquisa teve por objetivo investigar o exercício de produção de verdade, conforme proposto por Foucault (2004), no interior das chamadas operações de vigilância semântica: conservação e restauração de bens culturais. Dessa forma, buscou-se analisar ocorrências e recorrências dos termos “conservar” e “restaurar” nesses dispositivos acima mencionados com vistas a situar práticas de preservação do patrimônio cultural conforme previstas pelas normativas e interpretadas pelo órgão federal do patrimônio.
Considerando ainda que esta análise corresponde a uma etapa de pesquisa mais abrangente, que se refere sobretudo aos bens móveis, julgou-se pertinente, guardadas as proporções das suas atribuições, considerar também a publicação institucional Intervenções em Bens culturais Móveis e Integrados à Arquitetura – Manual para Elaboração de Projetos, de autoria do próprio Iphan (2019), uma vez que, embora não tenha força de norma legal ou infralegal também orienta a aplicação da verdade em relação aos bens móveis protegidos.
Antes de proceder a esta análise semântica, cumpre ressaltar que o Decreto-Lei 25/1937, a Constituição Federal de 1988, a Portaria Do Iphan 375 de 2018 e o Manual para Elaboração de Projetos Intervenções em Bens culturais Móveis e Integrados à Arquitetura compõem um conjunto bastante heterogêneo de documentos, com distintas hierarquias normativas, que se apresentam aqui selecionados em conjunto apenas por serem de apreciação indispensável à restauração de qualquer bem cultural material tombado no país. Embora tenham em comum a produção de verdade sobre a preservação do patrimônio cultural brasileiro, são publicações com historicidades contrastantes, eventualmente divergentes conforme se discute a seguir, resultantes de um Estado, um Instituto e uma sociedade em construção.
2. Decreto-Lei n.º 25/1937. Valores intrínsecos, representatividade limitada
Os antecedentes da criação do Serviço do Patrimônio Histórico Artístico Nacional (SPHAN) foram recapitulados pelo então diretor Rodrigo Melo Franco de Andrade (2012) em Brasil: Monumentos Históricos e Arqueológicos. Originalmente publicado pelo Instituto Pan-Americano de Geografia e História em 1952, apresenta a leitores pan-americanos caminhos e descaminhos da patrimonialização no Brasil até então.
O Decreto-Lei n.º 25 de 1937 descreve, inicialmente, do que consiste o patrimônio histórico e artístico nacional: conjunto de bens móveis e imóveis no país cuja conservação seja de interesse público por sua vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil, ou por seu excepcional valor arqueológico, etnográfico, bibliográfico ou artístico. Em seguida, descreve o instrumento de proteção deste patrimônio, através do instituto jurídico do tombamento. Chama-se Decreto-Lei pela natureza exótica[iv] de sua concepção. Desde o mito fundador da preservação do patrimônio cultural, atribuído no Brasil ao Conde Galveias, Andrade (2012) recapitula diversas tentativas de normatização que antecedem o Decreto-Lei de 1937. Destacam-se o anteprojeto de lei elaborado pelo professor Alberto Childe em 1920, o projeto de 1923 do deputado Luiz Cedro inspirado na lei francesa, e o projeto do deputado baiano Wanderley Pinho, nos últimos dias do último agosto da primeira república, em 1930. O Congresso Nacional, como igualmente descreve Andrade (2012), foi dissolvido pela primeira vez no mês seguinte, em outubro de 1930.
Livremente inspirado no anteprojeto encomendado a Mário de Andrade, o referido decreto é efetivamente concebido pelo Ministro da Educação Gustavo Capanema e aprovado pelo então presidente Getúlio Vargas. Seu texto-base, ainda segundo Andrade (2012) converte-se no projeto nº 511-1936, aprovado sem emendas pela Câmara dos Deputados e encaminhado ao Senado Federal em abril de 1937. No Senado, sofre emendas referentes à Comissão de Constituição e Justiça, Comissão de Educação e Comissão de Finanças, por isso retorna à Câmara dos Deputados, com alterações.
A votação sobre aquelas emendas estava incluída na ordem do dia da sessão de 10 de novembro, para discussão única, quando sobreveio naquele mesmo dia o golpe de estado que dissolveu o Congresso Nacional. (Andrade, 2012, p. 111)
Sendo esta a segunda dissolução, de 1937. Dentre as emendas propostas pelo Senado Federal, relata Andrade (2012), o Ministro da Educação Gustavo Capanema acatou aquelas que pareceram, ao seu exclusivo juízo, pertinentes, conforme descreve em correspondência a Getúlio Vargas.
Retomando agora o projeto inicial, julguei de bom aviso nele incluir, com uma ou duas exceções, as emendas do Senado Federal, e ainda uma ou outra nova disposição com o que se lhe melhorou o texto. (Andrade, 2012, p. 113)
Em análise à influência que o anteprojeto andradiano exerceu sobre o decreto-lei, Motta (2015) aponta como convergentes a inscrição em quatro Livros do Tombo: Livro do Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico; Livro do Tombo Histórico; Livro do Tombo das Belas Artes; e Livro do Tombo das Artes Aplicadas; sendo que apenas com a inscrição nesses livros, os bens selecionados seriam considerados patrimônio histórico e artístico nacional. Outra semelhança diz respeito à restrição para a saída de obras de arte do país. O próprio entendimento sobre o patrimônio explicitado no Decreto-lei, entretanto, se dava de forma bem diferenciada. Para Mário de Andrade o patrimônio era adjetivado como artístico, isto é, sem o complemento histórico, e referia-se a oito categorias (arqueológica; ameríndia; popular; histórica; erudita nacional; erudita estrangeira; aplicadas nacionais; aplicadas estrangeiras); o que está bem distante da noção apresentada pelo Decreto-Lei, que demanda vinculação a fatos históricos nacionais. Por fim, destaca a autora, o entendimento sobre o tombamento apresentado no Decreto-lei nº. 25 não se restringia à catalogação de bens considerados artísticos, conforme idealizado no anteprojeto, constituía sim um ato administrativo com efeitos legais que gera obrigações aos proprietários dos bens móveis e imóveis selecionados como patrimônio histórico e artístico nacional.
O exercício de uma forma de ação do Estado na gestão desses bens simbólicos, visando construir sentimentos de pertencimento ao dar materialidade à ideia de nação com a invenção de um chamado patrimônio histórico e artístico nacional, foi um dentre os vários recursos de produção de representações do Brasil e da nação brasileira em que se configuraram estratégias de controle social. A institucionalização dessa forma de ação do Estado, nesse âmbito particular, foi configurada a partir das relações com intelectuais que direta ou indiretamente se envolveram com a proteção do patrimônio histórico e artístico nacional. Ela é parte integrante do “processo civilizador”, de longo prazo, entendido como uma reorganização dos relacionamentos humanos, que se fez acompanhar de uma mudança de conduta e sentimentos humanos rumo a uma direção específica, e que, apesar de não planejado, obedece a uma ordem, passível de compreensão. (Chuva, 2009, p. 89)
Em 20 dias a lei 25 foi assinada por Getúlio Vargas na forma de decreto-lei, porque não havia então casa legislativa que a subscrevesse. Deste berço soberano ergue-se o texto que oferece contornos ao instrumento através do qual o Serviço do Patrimônio Histórico Artístico Nacional produzirá verdade sobre bens culturais: o tombamento. O decreto-lei refere-se à “conservação” em quatro momentos, que talvez permitam antever as seguintes linhas gerais.
Art. 1º. Constitue o patrimônio histórico e artístico nacional o conjunto dos bens móveis e imóveis existentes no país e cuja conservação seja de interêsse público, quer por sua vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico. (...)
Art. 19. O proprietário de coisa tombada, que não dispuzer de recursos para proceder às obras de conservação e reparação que a mesma requerer, levará ao conhecimento do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional a necessidade das mencionadas obras, sob pena de multa correspondente ao dobro da importância em que fôr avaliado o dano sofrido pela mesma coisa. (...)
§ 3º. Uma vez que verifique haver urgência na realização de obras e conservação ou reparação em qualquer coisa tombada, poderá o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional tomar a iniciativa de projetá-las e executá-las, a expensas da União, independentemente da comunicação a que alude êste artigo, por parte do proprietário. (...)
Art. 24. A União manterá, para a conservação e a exposição de obras históricas e artísticas de sua propriedade, além do Museu Histórico Nacional e do Museu Nacional de Belas Artes, tantos outros museus nacionais quantos se tornarem necessários, devendo outrossim providênciar no sentido de favorecer a instituição de museus estaduais e municipais, com finalidades similares. (Brasil, 1937)
Ressalte-se, em contraste, que o termo “restauração” não é de todo estranho ao legislador. Ocorre uma única vez, e de forma a ser coibida.
Art. 17. As coisas tombadas não poderão, em caso nenhum ser destruidas, demolidas ou mutiladas, nem, sem prévia autorização especial do Serviço do Patrimônio Histórico e Artistico Nacional, ser reparadas, pintadas ou restauradas, sob pena de multa de cincoenta por cento do dano causado. (Brasil, 1937)
Embora o que se entenda por “restauração” não esteja descrito pela lei, há uma distinção entre o reparo, a pintura e a restauração. Pode-se inferir que o reparo consiste do restabelecimento funcional dos bens patrimonializados em suas funções primárias. A restauração pode referir-se ao restabelecimento de funções simbólicas. Essas fronteiras, entretanto, não são claras. O Decreto-lei sem dúvida apresenta muitas nuances e não cabe nesse esforço tentar esgotá-las. Destaca-se que a partir de Andrade (2012), instrumentos legais fracassaram em ambiente democrático. Seja por desinteresse dos poderes instituídos, ou por ser absolutamente impraticável uma vez que obrigava o Estado a realizar desapropriações em massa, a normativa proposta pelo professor Alberto Childe em 1920 nunca foi adiante. O projeto de lei do deputado Luís Cedro em 1923 preconizava a complacência do proprietário na proteção do bem cultural, o que apresentou-se inócuo. O projeto de lei do deputado Augusto de Lima em 1924 que buscava restringir a evasão de obras de arte tradicionais brasileiras, foi considerado inconstitucional já que a Carta de 1891 conferia uma extensão aos direitos de propriedade que colidia com a drasticidade das medidas propostas por Lima. A legislação estadual da Bahia de 1927 e em seguida de Pernambuco, embora meritórias em vários aspectos, foram inconstitucionais ao legislar sobre os monumentos de interesse nacional no território baiano e pernambucano, bem como conflitavam com o código civil ao inaugurarem disposições penais para atentados ao patrimônio, o que de todo não era previsto. O projeto de Wanderley Pinho, de 1930, inaugurava a catalogação de bens móveis e imóveis como ato administrativo, o que representou um grande avanço, mas sua tramitação foi interrompida justamente pela dissolução anterior do Congresso Nacional, em 1930.
O tombamento conforme apresentado pelo Decreto-lei 25 pode ser realizado a pedido do proprietário ou por iniciativa do Serviço do Patrimônio, com anuência deste proprietário ou compulsoriamente. Este fim apenas pôde ser obtido sem necessariamente utilizar-se do instituto da desapropriação, esclarecem Telles & Costa (2014), pois a constituição de 1934 inaugura a função social da propriedade, marco legal indispensável à proteção dos direitos difusos. A constitucionalidade do tombamento viria a ser atestada pelo Superior Tribunal Federal em 1942, a partir do caso do Arco do Teles, no Rio de Janeiro (2014).
O tombamento destitui definitivamente a “coisa tombada” - conforme o documento refere-se aos bens culturais protegidos - do estatuto das coisas ordinárias. Inclusive se supunha eterno, como eventualmente deixa-se antever pelo emprego do termo “jamais” no artigo 17 a seguir. Uma vez que a coisa é tombada, uma série de rituais se impõe com a força da lei, e portanto da verdade, no espaço relacional entre indivíduo e objeto. O Estado agora participa ativamente dessa relação. Isto é, nem toda manifestação cultural será selecionada como um bem cultural, mas uma vez que seja, a relação dos sujeitos com este objeto está legislada. Em caso de extravio deverá o proprietário dar conhecimento no prazo de cinco dias, sob pena de multa de dez por cento sobre seu valor. A coisa tombada não poderá sair do país, senão por curto prazo. Tentada a exportação da coisa tombada, será esta sequestrada pela União - dispositivo igualmente descrito por contextos tidos como mais democráticos, que também se resguardam da evasão do patrimônio cultural dos seus países, mesmo que esse patrimônio tenha sido usurpado de outras nações no contexto colonial.
Art. 17º. As coisas tombadas não poderão jamais ser destruídas, demolidas ou mutiladas, nem, sem prévia autorização especial do Serviço do Patrimônio Histórico e Artistico Nacional, ser reparadas, pintadas ou restauradas, sob pena de multa de cincoenta por cento do dano causado. (Brasil, 1937)
A história da pintura a óleo que atualmente se chama Vista da Baía Sul, de Victor Meirelles, por exemplo, oferece uma interpretação frequente do artigo 17. A história deste objeto está ricamente referenciada no processo de tombamento 1171-T-85 e recentemente foi recapitulada em processo de tramitação interna ao Iphan (2015) por ocasião de um empréstimo. Em 1985, por ocasião de reunião do conselho consultivo da Sphan na Ilha de Anhatomirim em Florianópolis, o então diretor do Museu Nacional de Belas Artes, Alcídio Mafra, “descobre” essa tela magnífica, de 78,2 cm por 120,0 cm discretamente pendurada na Igreja de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito em “péssimo estado de conservação”, nos termos do processo. Agora me detenho ao fato de que o bem foi imediatamente tombado. Em atenção a essa pesquisa, o Museu Victor Meirelles apontou ao menos três intervenções de conservação ou restauração nesta tela, sendo as ações de 1985 e 1996 atribuídas ao Museu Nacional de Belas Artes e a de 1994 realizada no próprio Museu Victor Meirelles. As intervenções no Museu Nacional deixaram memórias físicas, fichas até então não digitalizadas, às quais o Museu Nacional igualmente franqueou acesso a essa pesquisa. Não se observou, entretanto, qualquer indicação da existência de algum processo de autorização de intervenção, em nenhuma das instituições, apesar da demanda apresentada no decreto-lei.
Frequentemente ocorre essa leitura do artigo 17, de que alguma necessidade de autorização efetivamente se impõe, entretanto, apenas às intervenções instauradas pela sociedade. Uma vez que o Museu Nacional de Belas Artes, que efetivamente realizou as restaurações mencionadas, era uma unidade do Iphan, o Estado parece autorizar a si próprio tacitamente em suas próprias intervenções de conservação e restauração em bens tombados, e esse fenômeno pode não estar inscrito em uma janela de tempo. Outro dos objetos dessa pesquisa, livro religioso que pode ter por volta de 800 anos contido no processo de tombamento 1425-T-98, salvou-se do grande incêndio do Museu Nacional de 2018 porque estava sendo restaurado. Igualmente, não foi encontrada, nem junto ao Instituto, nem junto ao Museu, a prévia autorização referida pelo decreto-lei para essa oportuna intervenção.

Munoz Viñas (2005) aponta para a organização do ofício do restaurador enquanto disciplina acadêmica a partir do advento do sujeito moderno, o que vai pautar sua relação com o tempo - expressa pela conservação dos seus bens culturais. O sujeito racional prescinde de uma ciência da Conservação. Critérios científicos para intermediar o exercício da verdade em relação aos bens culturais, estabelecidos verticalmente por um ego sem sujeito, o cientista, lugar de enunciação da verdade na modernidade. Efetivamente, Andrade (1993) aponta que talvez os principais critérios para exercício da verdade em relação à preservação do patrimônio cultural no Iphan da chamada “fase heroica” tenham sido os pareceres de Lúcio Costa (Andrade, 1993, p. 124).
Aponta-se, portanto, em consonância com sua gênese ditatorial, para uma provável insuficiência do instrumento analisado em garantir a participação da sociedade no momento de reconhecimento e reconstituição simbólica do bem cultural, a Conservação. Pode se inferir alguma relação entre a intermitência democrática que demarca a política brasileira no século XX e suas práticas de preservação do patrimônio cultural eventualmente baseadas em critérios monolíticos e fulanizados de produção de verdade.
3. Constituição Federal de 1988. Inscrição do sujeito no campo do patrimônio
A Constituição Federal de 1988, ou constituição cidadã como também é conhecida, inscreve-se em outro contexto histórico. Registra a passagem dos anos de ditadura militar (1964-1985, terceiro fechamento do Congresso Nacional em 1968) ao restabelecimento do estado democrático de direito, que possivelmente demarca ainda esta fase da República.
Após o fim do Estado Novo, em 1945, o país experimentou por dezenove anos alguma normalidade democrática, até que novo golpe militar sobreveio em 1964, instaurando um regime de exceção e treva que chegaria ao fim apenas em 1985.
No final da década de 1970 e ao longo dos anos 1980 ocorreram intensas mobilizações protagonizadas por entidades da sociedade civil, por grupos populares e trabalhadores, imbuídas por grandes expectativas para o futuro do país, após anos de repressão política. A convocação de uma Assembleia Constituinte no final de 1986, que concomitantemente funcionou como Congresso Legislativo, vinha ao encontro dessas expectativas. Esses trabalhos resultaram na promulgação, em outubro de 1988, da ‘Constituição cidadã’. Foi assim denominada, pois não só previa a democracia política, como também a participativa. (Motta, 2015, p. 57)
Em oposição à fase clássica ou “heroica” organizada ao redor do Decreto-lei de que se tratou anteriormente, pode se afirmar que progressivamente a atuação do órgão federal de preservação do patrimônio cultural passa a se alinhar com critérios de verdade mais relacionais. Sant’anna (2017) aponta para o Compromisso de Brasília, firmado a partir do I Encontro de Governadores em Brasília em 1970, como um dos marcos da descentralização de recursos e ideias que passaria a ser fomentada a partir do Instituto. Isto se dá em um contexto de transformações políticas, econômicas e urbanas, que marcam a passagem dos anos 1960/70. Podemos mencionar o chamado “milagre econômico”, epifenômeno que resulta da importação de capital e financiamento de infraestrutura realizado pelos primeiros governos militares após o Golpe de 1964; o aprofundamento da crise da economia agrária, o crescimento exponencial das ocupações informais periféricas e o surgimento das grandes carências de infraestrutura urbana.
O contexto nacional parece similar àquele descrito por Smith (2006), no qual a passagem dos anos 1960/70 é demarcada pelo que a autora chama de “problemas do patrimônio” (Smith, 2006, p. 25). Trata-se de um momento de intensificação do debate público sobre o patrimônio cultural como consequência das mudanças políticas e sociais conquistadas pelos anos de 1960. Certamente desempenha um papel neste movimento o crescimento do tempo livre, sobretudo de uma classe ociosa, proporcionando escala industrial à prática social e econômica do turismo.
Certamente, no final dos anos 1960 e 1970, houve um impulso crescente em duas áreas de prática patrimonial. Um deles foi o aumento acentuado do turismo patrimonial. Prentice argumenta que o consumo de massa do turismo patrimonial tornou-se um fenômeno econômico e cultural significativo em meados da década de 1970, à medida que o interesse público em patrimônio e história aumentou (1993, 2005; ver também Urry 1990; Hollinshead 1997). Outro foi o grau em que a política e a legislação do patrimônio público nacional estavam sendo introduzidas e/ou alteradas no mundo ocidental. (Smith, 2006, p. 25)
Sant’anna (2017) descreve, no âmbito nacional, que este segundo momento da preservação no país demarca-se no Iphan pela busca de apoio técnico internacional, ao incentivo à criação de organismos estaduais de preservação e ao aproveitamento econômico e conservação autossustentada do patrimônio sobretudo urbano por meio do turismo. Datam também dos anos 1970 as primeiras iniciativas municipais de preservação. Essas transformações operadas nas práticas de preservação produziram impactos importantes na própria noção de patrimônio a que estava vinculada. O aproveitamento econômico e a conservação autossustentada, conforme preconizados por exemplo pelo Programa de Cidades Históricas, faz emergir uma ideia de patrimônio que não é mais decorrente da atribuição de valores vinculados aos efeitos Brunelleschi e Petrarca, para utilizar os termos de Choay (2001), que se referem a Estética e História da Arte; mas sim atrelados ao potencial de desenvolvimento turístico do sítio. Destaca-se que o PCH, conforme ficou conhecido o supracitado programa, buscou investir em regiões não inseridas no eixo sul/sudeste do país, diversificando ao menos em parte os polos irradiadores de uma cultura nacional.
Apresenta-se ainda outra proposta de periodização das ações do Instituto, esta a partir de Gonçalves (2002). O autor identifica o patrimônio cultural e sua preservação a partir dos pares de opostos desejo e gozo, o que mantem em moto perpétuo sua performance alegórica de perda dos objetos da cultura. Entretanto, Gonçalves (2002) identifica diferentes estratégias de "objetificação cultural" da ideia de nação brasileira. Em campos relativamente opostos, identifica em Rodrigo Melo Franco de Andrade uma estratégia de autenticação da existência cultural do Brasil diferente daquela adotada por Aloísio Magalhães, durante sua presidência, fazendo coincidir com estes dois nomes, dois períodos de atuação do Instituto. Essa abordagem faz elipsar a atuação de Renato Soeiro, que presidiu o Instituto entre os mandatos de Rodrigo Melo Franco de Andrade e Aloísio Magalhães, período relevante inclusive pela implantação do Programa de Cidades Históricas anteriormente mencionado.
Independentemente da periodização a ser considerada, é caro a este percurso assinalar que provavelmente o Instituto pouco a pouco abandona progressivamente critérios monolíticos de exercício da verdade, como o saber arquitetônico ou histórico, e expande, a partir da presença de novos sujeitos, suas práticas de preservação. Os anos 1980/90 demarcam-se por uma nova fase de expansão do campo do patrimônio em um contexto de valorização da diversidade cultural.
A abertura conceitual dos anos 1980 ampliou o número de bens culturais protegidos e fortaleceu as atividades de identificação, favorecendo a realização de inventários. Os instrumentos de difusão também se ampliaram com publicações especializadas, exposições e a retomada da Revista do Patrimônio. Do ponto de vista dos sujeitos e objetos da preservação, também houve mudança e diversificação, pois, com o fim da ditadura militar e com a abertura democrática, o reconhecimento de bens culturais como patrimônio a partir de demandas da sociedade se tornou mais significativo, diminuindo, pela primeira vez, a importância do especialista como a autoridade, por excelência, de atribuição de valor a patrimônios. As reações contrárias ao tombamento realizado sem negociação social também aumentaram. O tombamento do Terreiro da Casa Branca do Engenho de Salvador, em 1984, e as sucessivas impugnações interpostas ao tombamento do centro histórico de Cuiabá são exemplos importantes dessas duas tendências. (Sant’anna, 2015, p. 26)
A autora descreve como, além de sujeitos ativos da preservação, os grupos sociais passaram também a ser definidos no período não mais como o outro lado do balcão de uma repartição, ou antagonistas da preservação, mas como os principais guardiões do patrimônio protegido. Essa diversificação de sujeitos e objetos da preservação é descrita em seu ápice na repactuação constitucional realizada pela sociedade brasileira após o fim da ditadura militar. A Carta Magna de 1988 tem por objetivo devolver e ampliar direitos à sociedade civil, dentre estes aqueles qualificados como direitos difusos, como aqueles relacionados à cultura. Os artigos 215 e 216 apresentam uma noção ampla e atual de patrimônio cultural. Selecionam bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação e à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem as formas de expressão, os modos de criar, fazer e viver, as criações científicas, artísticas e tecnológicas, as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais bem como os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico. Os diversos domínios da vida social (festas, saberes, modos de fazer, lugares e formas de expressão) aos quais são atribuídos sentidos e valores relevantes, que constituem marcos e referências de identidade para determinado grupo social, formam um conceito que segundo Motta (2015) foi identificado por Aloísio Magalhães como referência cultural e parece ter sido preponderante para esta noção constitucional de patrimônio cultural.
No presente esforço, a partir de leituras transversais sobre sujeito e poder, além da apreciação dos artigos constitucionais relacionados aos direitos culturais, buscou-se também pelo emprego do termo “vigilância”. Na Constituição Federal de 1988 o termo registra-se em apenas duas passagens. O artigo 200, ao descrever o funcionamento do Sistema Único de Saúde, vai preconizar que este execute ações de vigilância sanitária e epidemiológica. A segunda e última ocorrência do termo refere-se ao patrimônio cultural.
§1º O poder público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação. (Brasil, 1988)
Validam-se constitucionalmente dispositivos empregados pelo Decreto-lei nº 25 de 1937, como o tombamento, e acrescenta-se o emprego da vigilância, em consonância com a tecnologia do poder descrita por Foucault (2004), que vai passar a designar ações de conservação e restauração. Os verbos que regem os ritos patrimoniais, de acordo com a Constituição Federal, agora são “promover” e “proteger”.
Conforme descrito anteriormente, normas infralegais como instruções normativas ou portarias não podem contrariar normas primárias, sob pena de invalidade. A associação constitucional entre vigilância e Conservação vai influenciar obrigatoriamente os demais dispositivos produzidos após a repactuação estado-sociedade de 1988. Em consonância com o texto constitucional, a Portaria nº 375 de 2018 (Iphan, 2018) que será discutida posteriormente, identifica os processos institucionais: Normatização, Autorização, Avaliação de impacto, Fiscalização, Monitoramento e Conservação como formas de vigilância do patrimônio cultural material. (Iphan, 2018, p. 33).
Foucault (2004, p. 118) descreve a passagem do poder soberano ao poder disciplinar e a generalização dos seus instrumentos, sobretudo a vigilância e a normalização:
A 'invenção' dessa nova anatomia política não deve ser entendida como uma descoberta súbita. Mas como uma multiplicidade de processos muitas vezes mínimos, de origens diferentes, de localizações esparsas, que se recordam, se repetem, ou se imitam, apóiam-se uns sobre os outros, distinguem-se segundo seu campo de aplicação, entram em convergência e esboçam aos poucos a fachada de um método geral.
O aprimoramento da vigilância é tratado por Foucault como um elemento chave no aperfeiçoamento da economia do poder. O texto constitucional apresenta apontamentos já bastante refinados. A vigilância sanitária na constituição de um país tem suas origens na sanção normalizadora imposta ao indivíduo pela medicina e os saberes de prefixo psi, de acordo com Foucault (2004) sobretudo a partir da modernidade.
Da mesma maneira o hospital é concebido cada vez mais como ponto de apoio para a vigilância médica da população externa; (...) teriam por função recolher os doentes do bairro, mas também reunir informações, tomar conta dos fenómenos endémicos ou epidêmicos, abrir dispensários, dar conselhos aos moradores e manter as autoridades a par do estado sanitário da região. Vemos também se difundirem os procedimentos disciplinares, não a partir de instituições fechadas, mas de focos de controle disseminados na sociedade. Grupos religiosos, associações de beneficência muito tempo desempenharam esse papel de disciplinamento. (Foucault, 2004, p. 175)
Já a vigilância que se expressa na constituição em relação ao patrimônio cultural, por sua vez, pretende vigiar a relação que se estabelece entre a sociedade e seus símbolos. Desdobra-se, de acordo com a política do patrimônio material, nos processos institucionais de normatização, autorização, avaliação de impacto, fiscalização e conservação do patrimônio cultural. Essa vigilância será aqui qualificada como “vigilância semântica”. Busca conservar os valores e significados daquilo que se considera patrimônio cultural em relação aos grupos formadores da sociedade.
Admitir que existem valores e significados no patrimônio cultural a serem vigiados por meio da conservação dos bens que os transmitem reforçará quaisquer que sejam esses valores através das alterações administradas pela sua Conservação.
4. Portaria n.º 375 de 2018, Política do Patrimônio Cultural Material
Ao longo de sua história, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional passou por diversas e profundas alterações, revisões críticas e aprimoramentos de suas práticas e políticas de preservação. Por vezes essas mudanças são mobilizadas pela bibliografia de forma a apontar fases de atuação ou períodos. Aqui buscou-se apenas situar o momento em que a presente Política do Patrimônio Cultural Material ainda em vigor foi concebida. Seu preâmbulo situa assim o momento institucional.
Nos últimos anos, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) vem passando por significativo processo de revisão crítica e de aprimoramento de suas práticas. Tal afirmativa pode ser constatada na abrangência e na importância de iniciativas como a aplicação da Instrução Normativa nº 01/2015, que estabeleceu procedimentos administrativos a serem observados pela Instituição nos processos de licenciamento ambiental dos quais participe; na criação do Grupo de Trabalho Interdepartamental para Preservação do Patrimônio Cultural de Terreiros, que atua na preservação e salvaguarda do patrimônio cultural de bens relacionados aos povos e comunidades tradicionais de matriz africana; e na publicação dos guias de pesquisa e documentação do Patrimônio Cultural e Diversidade Linguística. (Iphan, 2018, p. 4)
as Coordenações Gerais deixam de ser temáticas (Bens Móveis, Bens Imóveis, Patrimônio Natural e Cidades) e “assumiram a lógica dos macroprocessos institucionais”: Identificação e Reconhecimento, Normatização e Gestão do Território, Autorização e Fiscalização, e Conservação (Iphan, 2018, p. 4). Dessa forma, a estrutura interna do Depam passa a refletir a atuação do Iphan nos estados (superintendências). Essa reestruturação foi integralmente acatada pelo Decreto nº 9238 de 2017, que aprova a presente estrutura regimental da autarquia.
Devido à proximidade histórica com a qual os eventos se desenvolvem, é difícil já trazer em aspas dados sobre a crise que a democracia brasileira atravessa e seus prováveis atravessamentos à Política do Patrimônio Material. Entretanto, para além de um contexto de extinção do Ministério da Cultura e desmonte das instituições públicas ligadas aos direitos culturais, ao longo de 2017 e 2018 a atuação do Instituto busca se demarcar pelas reflexões e comemorações dos seus oitenta anos. De forma a repactuar uma Política do Patrimônio Material participativa, ainda que em novo contexto de crise da democracia brasileira, o Iphan integrou e promoveu sobre o tema consulta pública, e diversos eventos acadêmicos. Considerou ainda cinquenta correspondências recebidas, tidas como pertinentes, além das contribuições técnicas de quase uma centena de especialistas, entre pessoas físicas e jurídicas. Coube ao Depam agenciar as contribuições no texto final da Portaria nº 375 de 2018.
A norma infralegal apresenta os seguintes títulos: I. Disposições Gerais, II. Diretrizes Aplicáveis aos Processos Institucionais, III. Tratamentos de Temas específicos e IV. Sistemas de Gestão. A presente análise concentra-se em I. e II, por apresentarem contornos teóricos decisivos que acompanharão toda a redação do texto infralegal. Nas disposições gerais se estabelecem princípios, premissas e objetivos. Os princípios podem ser agrupados em eixos que dão conta de 1) repartir a responsabilidade pela preservação do patrimônio cultural entre sociedade e entes federados; 2) assegurar o papel central dos sujeitos no campo do patrimônio e 3) estabelecer critérios às intervenções realizadas, efetivamente permitindo antever as discussões sobre patrimônio material no momento dos oitenta anos do Instituto. São alguns deles:
I. Princípio da Humanização. A preservação do patrimônio cultural material deve considerar sua contribuição para garantir a cidadania e a dignidade da pessoa humana;
II. Princípio da Indissociabilidade. Não deve haver separação entre os bens culturais materiais patrimonializados e as comunidades que os tem como referência;
III. Princípio da Ressignificação. Constantemente novos significados são atribuídos ao patrimônio cultural material que, em consequência, deve ser entendido para além de um registro do passado;
VII. Princípio da Atuação em Rede. A gestão do patrimônio cultural material ganha escala e qualidade quando estabelece redes entre instituições, públicas e privadas, sociedade organizada e profissionais da área de preservação;
XI. Princípio do Acesso Equitativo. Todos têm direito de utilizar, de forma equilibrada, os bens culturais materiais patrimonializados e os recursos do meio ambiente;
XII. Princípio da Precaução. Não se pode intervir em um bem cultural material patrimonializado antes de demonstrar que a ação não será adversa ao bem;
XIII. Princípio da Prevenção. Deve ser garantindo o caráter prévio e sistemático da apreciação, acompanhamento e avaliação das obras ou intervenções e atos suscetíveis de afetar os bens culturais materiais patrimonializados;
XIV. Princípio da Reparação. Todo dano sofrido por um bem cultural material patrimonializado, sempre que possível, deverá ser reparado;
XV. Princípio do Respeito às Diversidades locais e regionais. O reconhecimento e a consideração da diversidade geográfica, socioeconômica e cultural são a base de uma Política justa e equânime.
Estes princípios fazem parte de um reconhecimento textual da importância da sociedade nos processos de ativação patrimonial. Estão alinhados à recente revolução copernicana, nos termos de Bonsanti (1997), que operou o século XX ao trazer o sujeito (e frequentemente sua percepção) para mais próximo do centro do multiverso do Patrimônio Cultural. Em consideração inicial à Portaria nº 375, a publicação identifica, em relação às suas premissas que “correspondem às verdades adotadas. Serão sempre aplicadas independente do tipo de ação” (Iphan, 2018, p. 11). Constam no artigo 3:
I. As ações e atividades relacionadas com a preservação do patrimônio cultural material devem compreender e considerar o Presente;
II. As ações e atividades devem considerar a indissociabilidade entre as dimensões materiais e imateriais do Patrimônio Cultural;
III. As ações e atividades devem partir da leitura do território e da compreensão das dinâmicas políticas, econômicas, sociais e culturais ali existentes;
IV. As ações e atividades devem buscar promover a articulação institucional com diferentes níveis de governo e sociedade;
V. As ações e atividades devem buscar estimular o fortalecimento de grupos sociais para preservação do seu próprio patrimônio cultural material; e
VI. As ações e atividades devem buscar articular com os entes federados e demais órgãos e entidades componentes do Estado Brasileiro, na construção de instrumentos de compartilhamento e de delimitação de atribuições relativas à preservação dos bens protegidos. (Iphan, 2018, p. 32).
Em princípio as premissas parecem situar o patrimônio cultural no contemporâneo e reconhecer sua dimensão política ao estimular o fortalecimento de grupos sociais para a preservação do seu próprio patrimônio. Ao longo dessa pesquisa pretende-se investigar a aplicação dessas premissas e princípios, uma vez que, ao longo de toda a Portaria, eles serão epistemologicamente tensionados, sobretudo no título seguinte: Diretrizes Aplicáveis aos Processos Institucionais.
Se até o artigo 5, fim do primeiro título, apresenta-se o espírito da Política do Patrimônio Material, demarcado sobretudo pelo seu viés relacional, o título seguinte vai lhe conferir corpo. Descreve e organiza assim os processos institucionais:
I. Educação Patrimonial
II. Identificação
III. Reconhecimento
IV. Proteção
V. Normatização
VI. Autorização
VII. Avaliação de Impacto
VIII. Fiscalização
IX. Conservação
X. Interpretação, Promoção e Difusão
§ 1º. A Educação Patrimonial, em função de seu caráter transversal, deve contribuir para a construção participativa dos demais processos de preservação do patrimônio cultural material;
§ 2º. Os processos de Identificação, Reconhecimento e Proteção correspondem a formas da Patrimonialização de um bem cultural material;
§ 3º. Os processos de Normatização, Autorização, Avaliação de Impacto, Fiscalização, Monitoramento e Conservação correspondem a formas de Vigilância do patrimônio cultural material; e
§ 4º. Os processos de Interpretação, Promoção e Difusão correspondem a formas de Interação com o patrimônio cultural material. (Iphan, 2018, p. 33)
O terceiro parágrafo, bem como o texto constitucional, parece utilizar o termo “Conservação”, para referir tanto à conservação quanto à restauração – como uma atividade de vigilância. De fato o artigo 35 menciona esse vínculo:
Entende-se por Vigilância, nos termos do art. 216 da Constituição Federal, a obrigação disposta ao Poder Público, com a colaboração da comunidade, de exercer atenção permanente em relação ao patrimônio cultural material protegido. (Iphan, 2018, p. 39)
Cumpre ainda destacar que a Proteção não é considerada uma atividade de vigilância nos termos da Política. A Portaria entende Proteção como tutela do patrimônio cultural material (artigo 26) e para tanto designa os instrumentos: tombamento, aplicável a bens materiais em geral; cadastro, aplicável a bens arqueológicos; valoração, aplicável aos bens ferroviários da extinta RFFSA e; proibição de exportação, aplicável às obras de arte e ofícios produzidos no país até o fim do período monárquico. Sobre estes bens, incidem ações de vigilância, dentre elas a sua Conservação. Não há uma crítica neste destaque, ele busca demarcar a relação estabelecida pelas normas legais e infralegais brasileiras entre vigilância e conservação.
O artigo 30 faz ainda uma ressalva que diz respeito à fruição cultural. Recomenda ao Instituto que evite tombar aquilo que não está fisicamente acessível e capaz de permitir a fruição por algum grupo. O artigo 33 estabelece a Preservação como um pacto, entre instituições e agentes políticos, econômicos, sociais e culturais interessados e impactados pela preservação. E desse pacto, diz o artigo 34, devem decorrer ainda os princípios e diretrizes que subsidiem os processos e ações de Normatização e Conservação, que são descritos nesse mesmo título, Capítulo III – Da vigilância sobre o patrimônio cultural material.
Deste capítulo, o presente esforço vai destacar duas seções: II. Da Autorização e V. Da Conservação. O artigo 40 estabelece que o objetivo da Autorização é estabelecer um conjunto de princípios, práticas e procedimentos que regulem a atividade administrativa vinculada à permissão ou autorização de exploração, circulação, manipulação ou intervenção em bens protegidos. Esse artigo parece organizar o que já estava previsto no Decreto n.º 25 de 1937 sobre a necessidade de autorização estatal para intervenção em bem tombado, inclusive na particular interpretação mencionada do artigo 17, potencialmente expressa na partícula “quando couber” (Iphan, 2018, p. 40). A Portaria n.º 375 de 2018 institui assim a Autorização.
Art. 41. São instrumentos de Autorização e Gestão do patrimônio cultural material protegido em âmbito federal:
I. A aprovação de intervenções em bens tombados e nas respectivas áreas de entorno, quando couber. (Iphan, 2018, p. 40)
O artigo 42 descreve como finalidade das autorizações a efetivação dos Princípios da Precaução e da Prevenção, anteriormente mencionados. Dessa forma, consiste critério para a autorização demonstrar que a intervenção não será adversa ao bem; e que se garanta o caráter prévio e sistemático da apreciação, acompanhamento e avaliação das obras ou intervenções. Não se exige uma comprovação de necessidade da operação de conservação ou restauração, mas sim que a mesma não será adversa. Simultaneamente, recapitulo o Princípio da Reparação (todo dano sofrido por um bem cultural material patrimonializado, sempre que possível, deverá ser reparado) para pontuar que a simples constatação de um dano já é suficiente para justificar a intervenção. Entretanto, como pretende-se discutir posteriormente, não há consenso em relação ao conceito de dano ao patrimônio cultural. Embora a Política do Patrimônio Material conte com um glossário, esse não é um dos seus verbetes. O Dicionário do IPHAN, um dos excelentes projetos da instituição interrompidos nos últimos anos, igualmente não registra o vernáculo “dano”. O texto analisado posteriormente, o Manual para Elaboração de Projetos para Intervenções em Bens Culturais Móveis, preconiza por sua vez a elaboração de um mapa de danos, sem também definir o termo, utilizando de forma equivalente à deterioração. Ashley-Smith (1995) propõe que as alterações perceptíveis em bens culturais materiais são: a pátina, isto é, o efeito ótico da decomposição da superfície por influência da passagem do tempo, a restauração e a deterioração. Muñoz Viñas (2005) propõe que a pátina e a restauração são alterações que aumentam o valor dos bens, embora se diferenciem em relação à intencionalidade - a pátina não é intencional, e a restauração sim. O dano tem componentes involuntários (o fluxo inexorável do tempo, as tragédias) e voluntários, que o autor identifica como vandalismo.

O objetivo da Conservação, conforme descreve o artigo 51, é preservar os valores e a significação cultural do patrimônio material protegido; isto é, impedir a alteração desses valores. Qualifica-se assim a vigilância constitucional sobre o patrimônio cultural: semântica. E conforme esclarece o primeiro inciso do artigo 53, não se trata de quaisquer valores, mas daqueles que determinaram a tutela do bem, em tensão potencial com o Princípio da Ressignificação, proposto pelo Instituto e já citado em aspas anteriormente, que garante que “constantemente novos significados são atribuídos ao patrimônio cultural material que, em consequência, deve ser entendido para além de um registro do passado” (Iphan, 2018, p. 31).
Conforme mencionado anteriormente, a supracitada Política de Preservação utiliza o termo “conservação” em referência às atividades de conservação e restauração, não registrando o termo “restauração” em artigo algum. Talvez porque a restauração declaradamente altere os valores do bem restaurado, embora não existam maiores subsídios para oferecer essa suposição fora dos regimes de visibilidade propostos por Muñoz Vinãs para diferenciar as duas atividades e fora da distribuição assimétrica do olhar como dispositivo do poder descrito por Foucault. Conforme destacado anteriormente, há um critério aparente de diferenciação entre as atividades de conservação e restauração que não se fez anunciar claramente em nenhum dos dispositivos pesquisados até aqui. Em breve será inevitável tentar responder, afinal, o que está sob vigilância – aplicação política de um regime de visibilidade – e exatamente contra o que é que se está vigiando o patrimônio cultural.
5. Intervenções em Bens Culturais Móveis e Integrados à Arquitetura
Dentre os bens culturais, nem todos serão patrimonializados. No Brasil, dentre os que são, podem sê-lo na esfera municipal, estadual, federal e mundial. Dentre os bens culturais patrimonializados pela União, no caso de bens imateriais, são protegidos pelo instrumento do registro, revalidado a cada dez anos, descrito pelo Decreto nº 3551 de 2000. No caso de bens culturais materiais, conforme exposto anteriormente, são “protegidos” (Iphan, 2018, p. 37) através do tombamento (bens materiais em geral), do cadastro (bens arqueológicos) e da valoração (bens ferroviários da extinta RFFSA), além da proibição de exportação (obras de arte e ofícios produzidos no país até o fim do período monárquico).
Esta pesquisa ocupou-se dos bens materiais protegidos pelo tombamento. Sob esse instrumento, em setembro de 2021, de acordo com dados do portal do Iphan (2021), estão 430 edificações, 371 edificações e acervos (sendo 370 igrejas e a Casa de Chico Mendes), 93 conjuntos arquitetônicos, 81 conjuntos urbanos, apenas 56 bens móveis ou integrados, 47 equipamentos urbanos ou de infraestrutura, 32 conjuntos rurais, 29 ruínas, 28 coleções ou acervos, 20 patrimônios naturais, 19 jardins históricos, 11 terreiros, 7 sítios arqueológicos, 1 bem paleontológico (a Floresta Fóssil no Rio Poti em Teresina-PI) e 1 quilombo (do Ambrósio, em Ibiá-MG). Apesar das promessas contidas na enumeração exaustiva, essa pesquisa deteve-se nos 56 bens móveis ou integrados. Categoria particularmente diversa do ponto de vista da tipologia dos objetos que abriga.
Em atenção ao Princípio da Prevenção mencionado anteriormente, uma das formas de garantir o caráter prévio e sistemático da apreciação, acompanhamento e avaliação das obras ou intervenções é por meio da publicação de um Manual para Elaboração de Projetos para Intervenção em Bens Culturais Móveis e Integrados à Arquitetura, elaborado pelo Iphan (2019). Sua publicação se dá meses após a Portaria do Patrimônio Material, não encorajando a repetição do contexto histórico de enfraquecimento institucional e crise da democracia brasileira. Trata-se de uma publicação de caráter técnico-científico, que embasa detalhadamente a elaboração desse tipo de documento. O projeto de intervenção em um bem tombado consiste de memória documental e científica fundamental sobre todo o universo dos bens tombados.
Ao contrário da Portaria, da Constituição e do Decreto-Lei, esse documento diferencia claramente conservação e restauração. Estabelece inclusive que há uma certa gradação nas intervenções, que variam entre a conservação e a restauração.
Conservação – Conjunto de ações, direta ou indiretamente, empregadas sobre o Bem Cultural, com o objetivo de controlar, minimizar ou paralisar um processo de deterioração. Pode ser de natureza preventiva ou curativa.
Restauração – Conjunto de operações e atividades destinadas a restabelecer a integridade física e estética do Bem cultural, a partir do reconhecimento dos aspectos simbólicos que o valoram e a necessidade de garantir a legibilidade desses aspectos, considerando os traços da passagem do tempo.
As intervenções menos invasivas, relativas a serviços de conservação, poderão ser dispensadas de algumas das etapas relacionadas neste Manual, o que será discutido e acordado entre as partes envolvidas. Quando se tratar de intervenções complexas e de grande vulto, o Projeto contemplará em todas as suas etapas, podendo também ser solicitadas complementações pela fiscalização. (Iphan, 2019, p. 17)
Este manual, em consonância com a Portaria n.º 375 de 2018 e a Constituição Federal de 1988, reconhece e privilegia a legibilidade dos valores simbólicos, considerando – em exigência brandiana[v] na escolha de termos e inatingível em sua plenitude – “os traços da passagem do tempo”. Assume-se que esses valores estão incluídos no primeiro inciso do artigo 53 da supracitada Portaria: não se trata de quaisquer valores, mas daqueles que determinaram a tutela do bem, em tensão potencial com o Princípio da Ressignificação, ambos propostos pela Instituição. Observe-se, entretanto, que também este manual apresentará primeiramente suas premissas.
Ao contrário do entendimento que se faz das premissas na Portaria n.º 375, que abrange todo o Patrimônio Material (verdades adotadas, sempre aplicáveis), este texto, que se refere aos bens móveis ou integrados, adverte em rodapé:
Premissas Básicas não constituem uma regra a ser seguida, mas um conjunto de orientações, destacando que cada caso deverá ser analisado a partir das características históricas e estéticas, bem como dos constituintes materiais e técnica de construção de cada Bem a ser restaurado. (Iphan, 2019, p. 13)
Esta relativização não significa que neste documento não haja produção de verdade, como nos anteriores. Efetivamente, o que diferencia a verdade produzida por ele é que ela não se exerce a partir do Direito, mas a partir de um campo técnico-científico do saber, a Conservação de Bens Culturais. São as premissas:
1. Respeito aos valores estéticos, históricos e culturais do Bem e, na medida do possível, pautar o projeto pelo princípio da MÍNIMA INTERVENÇÃO na autenticidade do mesmo, seja ela artística, histórica, dos materiais ou dos processos de execução.
2. A AUTENTICIDADE corresponde ao respeito às ideias que orientaram a concepção do Bem e ao reconhecimento das alterações introduzidas ao longo de sua existência. Tão importante quanto a manutenção dos materiais e dos aspectos estéticos é a garantia da preservação da autenticidade dos processos de execução e suas peculiaridades, evitando o uso de técnica e/ou materiais que sejam incompatíveis, descaracterizem ou que possam gerar danos ao Bem. Esta premissa deverá permear todos os aspectos associados ao Bem, não devendo a intervenção proposta alterar ou falsificar os valores contidos nos materiais, técnicas construtivas e aspectos estéticos.
3. Na impossibilidade da manutenção dos materiais originais, deverão ser propostos outros, desde que seja considerada a COMPATIBILIDADE com os pré-existentes, em suas características físicas, químicas e mecânicas e características visuais, atendendo ao princípio da DISTINGUIBILIDADE, ou seja, as intervenções devem ter a marca do seu tempo e as técnicas para alcançar tal resultado deverão ser justificadas teórica e tecnicamente, e previamente acordadas com as partes envolvidas.
4. A adição de novos materiais deverá ser sempre comedida e, preferencialmente, será recomendada a utilização de MATERIAIS E TÉCNICAS REVERSÍVEIS, ou seja, que possam ser removidos a qualquer momento, sem danos ao Bem. Na impossibilidade, haja vista a diversidade de tipologias e situações, a proposição deverá ser justificada, técnica e teoricamente.
5. Como parte dos condicionantes a serem observados nas decisões do restauro adotadas no projeto, serão considerados os VALORES SIMBÓLICOS e de uso do Bem Cultural e a proposta de intervenção deve ser discutida previamente com a comunidade, sobretudo com os grupos sociais para os quais ele constitui parte significativa de práticas culturais.
6. A TRANSPOSIÇÃO da manifestação artística e/ou cultural de um suporte para outro é atitude extrema que deve ser recomendada unicamente quando há falta de condições operacionais e técnicas para aplicar medidas efetivas que garantam a sua salvaguarda nas condições originalmente apresentadas.
7. O DESLOCAMENTO de um Bem (ou de Bens) para receber a intervenção restaurativa em outro local que não seja aquele no qual se encontra sob a guarda deve ser recomendada apenas em casos excepcionais e com argumentação clara e precisa que o justifique.
8. O REGISTRO diário das atividades, fotográfico e textual, deve ser parte imprescindível da rotina do trabalho. (Iphan, 2019, p. 13)
Apesar do que adverte a nota de rodapé, todas elas apresentam algum grau de justiça e razoabilidade epistemológica em suas demandas. No caso das premissas potencialmente conflitantes, segundo Muñoz Viñas (2005), como a mínima intervenção e a reversibilidade ou a autenticidade e os valores simbólicos, parece estabelecido pela quinta premissa que é preponderante considerar os valores simbólicos e o diálogo com grupos sociais “como parte das condicionantes a serem observadas” (Iphan, 2019, p. 13).
6. Considerações finais
Embora faça uso da análise crítica do discurso para identificar o discurso autorizado do patrimônio cultural, Smith (2006) também aponta em Foucault uma referência pertinente à análise do discurso do patrimônio. Igualmente, Sant’Anna (2017) utiliza o mesmo autor em seus dispositivos para propor uma genealogia da norma de preservação de sítios urbanos brasileiros.
A apreciação da norma legal e infralegal aponta para uma transição. De um corpus jurídico que protege o patrimônio cultural porque identifica em suas manifestações valores intrínsecos (artigo 1 do Decreto-Lei nº 25 de 1937), a um entendimento como o constitucional, o da Portaria n.º 375 ou o do Manual para Elaboração de Projetos, de que objetos manifestam valores e significados para determinados grupos sociais e que esta questão é preponderante. Chuva (2009), Meneses (2012) e Gallois (2019) são alguns autores que igualmente descrevem essa transição, que se já não trago em aspas é por considerar que a preponderância do sujeito nas práticas de preservação deste século está plenamente caracterizada, ao menos nos debates teóricos e textos legislativos. Se esses sujeitos, individuais ou coletivos, enfim se inscreveram no campo do patrimônio, inclusive na forma da lei, parece pertinente ao campo do patrimônio debater esse espaço relacional que se estabelece entre o sujeito, seus símbolos e o Estado.
Conforme alertará o próprio autor, trata-se da constituição do sujeito e não do poder, demarcando uma inflexão na trajetória do seu pensamento em direção aos estudos da governabilidade, sobretudo a partir do curso Segurança, Território, População (1977-1978) . A compreensão que Foucault (2004) realiza de sujeito não vai coincidir com aquela oferecida pela tradição filosófica: que subjaz, substrato essencial sobre o qual incidem predicados. O autor buscou investigar diferentes modos pelos quais, em nossa cultura, os seres humanos se tornaram sujeitos; a constituição histórica dessas diferentes formas de sujeito, em relação aos jogos de verdade.
Esse espaço relacional entre o sujeito, seus símbolos e o Estado guarda três dimensões: passado, presente e futuro. No presente, é conformado pelo Estado na forma da lei. Mas essa conformação presente resulta do uso realizado pelos próprios sujeitos ao longo dos passados. Na alegoria proposta por Meneses (2012) esse uso chama-se legítimo ou privilegiado; o uso que a velhinha faz da igreja, em algum grau de oposição ao uso realizado por um grupo de turistas. Os interesses do futuro são zonas de conflito, de acordo com Smith (2006), no presente. Bem como, a partir de Lowenthal (1985), os interesses do passado.
Frente à norma legal e infralegal analisada, uma vez que o bem cultural é tombado, não cabe mais apenas aos grupos sociais disputarem sua fruição. O aparelho disciplinar identifica, reconhece e protege através dos mecanismos apresentados anteriormente, o que deve guardar relações ainda com a consolidação dos Estados nacionais e sua efetiva aderência aos discursos do patrimônio. Em função do seu caráter transversal, nos próprios termos da lei, o processo institucional educação patrimonial contribui para a construção participativa dos demais processos. Normatização, autorização, avaliação de impacto, fiscalização, monitoramento e conservação: formas de vigilância. Que de acordo com Meneses (2012), disciplinam o uso fugaz do turista e o uso perene da velhinha. Em relação à vigilância, prossegue Foucault:
Conforme observa Foucault (2004), a vigilância é uma tecnologia que vem sendo aperfeiçoada ao longo dos séculos pela economia do poder. Consiste em potencializar o olhar que vê sem ser visto. Percebe-se que a Política do Patrimônio Cultural Material busca realizar ou autorizar ações sob o termo conservação em atenção à vigilância semântica; vigilância dos valores e significados que determinaram a tutela do bem, em potencial tensão com o Princípio da Ressignificação e de diversos outros pontos do mesmo documento. Complementa essa ideia o suposto regime de visibilidade que demarca a fronteira imaginária entre a restauração e a conservação, corroborado inclusive pelo entendimento que o Manual de Intervenção em Bens Móveis ou Integrados oferece, no qual a complexidade, características e dimensões da intervenção determinarão o grau de detalhamento do Projeto, que poderá variar entre conservação e restauração. (Iphan, 2019, p. 17)
A conservação é pretensamente invisível e, portanto, supõe-se que não altera o valor semântico dos bens patrimoniais. Sua prática inclusive dispensa algumas das etapas propostas pelo referido manual. Ao contrário da restauração, que restitui o valor ou signo de outrora e naturalmente se inscreverá no regime das coisas perceptíveis. Talvez por sua efetividade plástica e portanto sua instantânea inscrição na história, a restauração já é coibida em 1937 e permanece discretamente às margens da Constituição e da Política do Patrimônio Material. O principal subsídio textual para essa interpretação nos documentos analisados é a timidez com que descrevem a atividade da restauração. Espera-se, sobretudo das produções normativas, mas também daquelas que produzem verdade através do saber, que descrevam seus objetos objetivamente. Na percepção deste autor, não obstante seus êxitos centrais, os textos aqui analisados em maior ou menor medida corroboram de alguma forma para o ambiente de insegurança epistemológica em que se desenvolvem sobretudo as ações de restauração do patrimônio cultural.
Ainda segundo Foucault (2004), não há relação de poder sem constituição relativa de um campo de saber, nem saber que não pressuponha e constitua relações de poder. Será preciso investigar epistemologicamente o saber que sustenta a vigilância constitucional, que procurei identificar como semântica. Esse saber, essa concorrência de saberes, será atravessada pela extensão das chamadas práticas de governo, que para Foucault (2004) são ao mesmo tempo totalizantes e individualizantes. Inicialmente, identificadas na forma de um poder pastoral, ampliaram-se desde o século XV da religião para a sociedade civil e o Estado.
Os marcos temporais oferecidos por Choay (2001) e Foucault (2004) são bem parecidos, talvez porque sujeitos aos mesmos eventos, como a Revolução Francesa. Para Choay (2001) o século XV demarca uma invenção ocidental: o patrimônio cultural. Essa invenção se fortalece junto à consolidação dos estados nacionais, no momento em que Foucault (2004) assinala a passagem do poder soberano à sociedade disciplinar, que igualmente disciplina a preservação dos símbolos, agora, nacionais. Foucault (2004) aponta para o deslocamento das agências de governo do contexto religioso para a sociedade como um todo, agregando outras dimensões institucionais: o Direito, a Ciência, a Filosofia, a lei, em Foucault (2004), é a verdade produzida a partir das necessidades do poder. Desta necessidade deriva o Direito, e os demais elementos de produção, transmissão e oficialização da verdade. Somos obrigados pelo poder a produzir verdade; encontrá-la ou confessá-la. Resultantes do mesmo vetor (a modernidade), as teorias clássicas da Conservação também privilegiavam uma certa perseguição à verdade, seja nos pareceres absolutos de Lúcio Costa, no reconhecimento do momento metodológico, ou no átomo nu ao microscópio.
A partir da reflexão aqui proposta, chega-se a algum grau de reconhecimento de que a conservação de um bem cultural não se propaga no vácuo. É a verdade produzida pelo Estado sobre o patrimônio cultural, atualizada a cada intervenção, tanto em tempos de democracia como em tempos de exceção. Essa abordagem faz tomar por ingênua qualquer definição de Conservação que proponha a utópica ausência de alterações no bem cultural. Em vez disso, infere-se que a conservação dos bens culturais vai consistir de uma certa combinação refinada e vigiada de alterações induzidas, administradas e normatizadas pelo Estado sobretudo no caso dos bens tombados, que positivamente resultarão na menor alteração perceptivel em referência a determinado discurso, já estabelecido pela norma como o verdadeiro.
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Notas